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Repetição, originalidade e tradução

Repetition, originality and translation

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa envolvendo os conceitos de repetição, originalidade e tradução. Os resultados apresentados aqui envolvem a elaboração crítica de trabalhos cujo contexto de circulação primordial é a teorização de matriz anglófona. A base do artigo se constitui a partir da contraposição entre as ideias de Edward W. Said sobre repetição e originalidade, expostas em seu livro The World, the Text, and the Critic, e as ideias de Samuel Weber a respeito da tradução expostas em seu livro Benjamin's -abilities. A hipótese central do artigo é que a passagem da "origem" para a "originalidade", assim como da "tradução" para a "tradutibilidade", descortina um potencial conceitual que é constitutivo do estatuto da teoria literária dos últimos anos.

Palavras-chave:
Repetição; Originalidade; Tradução; Teoria Literária; Literatura Comparada

Abstract

The aim of this article is to present some of the results of a research study involving the concepts of repetition, originality and translation. The results presented here are engaged in a critical reading of the theory of Anglophone matrix. The basis of the article deals with the contrast between Edward W. Said's ideas about repetition and originality, exposed in his book The World, the Text, and the Critic, and Samuel Weber's ideas about translation in his book Benjamin's -abilities. The central hypothesis of the article is that the passage of "origin" to "originality", as well as from "translation" to "translatability", reveals a conceptual potential that is constitutive of the status of literary theory in recent years.

Keywords:
Repetition; Originality; Translation; Literary Theory; Comparative Literature

1. Repetição

Em 1983, Edward W. Said publica The World, the Text, and the Critic, um livro que reúne ensaios que o autor vinha escrevendo pelo menos desde 1970. Os assuntos e autores tratados são os mais variados, mas é possível entrever um fio narrativo que dá coesão ao todo, ou seja, uma preocupação teórico-crítica que está presente em todos os textos. Essa preocupação tem relação direta com a Literatura Comparada e pode ser traduzida em uma série de palavras-chave, tais como "filiação", "pertencimento", "historicidade", "crítica", "teoria" e "tradução". Ao passar por teóricos e pensadores como Erich Auerbach, Michel Foucault e Giambattista Vico, e também por ficcionistas como Joseph Conrad, Jane Austen e Jorge Luis Borges, Said está primariamente interessado em perceber como ideias e conceitos atravessam espaços geográficos e temporais, deixando suas marcas e transformando suas características a cada passagem.

No início de um desses ensaios, intitulado "On Repetition", Said retoma The New Science, de Vico (La Scienza Nuova, no original), afirmando que, perto do fim, "after having laid forth in detail the precise way in which human history is not only made by men but also made by them according to cycles that repeat themselves", Vico "then proceeds to explain how these repetitions are intelligent patterns that preserve the human race" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 111). Aquilo que torna a história possível é a repetição de padrões de conduta humana, que organizam a passagem do tempo e a possibilidade de convivência dentro das comunidades. "Instead of unlimited copulation", escreve Said a partir de Vico, "there is matrimony, instead of uninhibited autocracy there are laws and republics, and so forth" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 112). Os ciclos de Vico são marcados por instâncias determinadas - bestialidade, racionalidade, intelectualidade, novo barbarismo e preparação para o recomeço - que são revitalizadas a cada retorno por meio da reflexão histórica, tornada possível pela "nova ciência" do título. "Vico understands repetition as filiation", esclarece Said, "but filiation that is problematic, not mindlessly automatic" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 115).

Esse ponto é central para a argumentação de Said, pois é a concepção de repetição como problema e filiação que permitirá o salto do século XVIII (campo histórico de atuação de Giambattista Vico1 1 Considerando a carreira de Edward Said como um todo, é possível dizer que Giambattista Vico serve não apenas a este ensaio, mas também e principalmente como um dos principais fios condutores de sua obra. Por um lado, a presença de Vico em Said se explica por uma referência cruzada: a leitura permanente que Erich Auerbach realizou de Vico, atualizando-o na filologia das primeiras décadas do século XX (Auerbach traduziu a Scienza Nuova de Vico para o alemão em 1924, além de publicar o ensaio "Vico e o historicismo estético" (AUERBACH, 2007, p. 341-356). Said dedica um ensaio somente a Vico em seu livro Reflexões sobre o exílio, intitulado "Vico e a disciplina dos corpos e dos textos" (SAID, 2003, p. 31-40), além de comentar extensamente sobre a relação existente entre Vico e Auerbach em seu livro Humanismo e crítica democrática (SAID, 2007, p. 113-118). ) ao século XX (campo histórico de atuação não só de Said, mas dos teóricos que Said mobilizará na sequência de seu ensaio). No caso de Vico, a repetição não pressupõe um sistema evolutivo no interior da história e da linguagem, mas um sistema confrontativo, aberto a modificações e irrupções, pois, "according to Vico", escreve Said, "history is where nothing is ever lost" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 116). Para Said, Vico representa o ponto crítico da reflexão historiográfica, um ponto em que se nota um embate entre certa concepção evolucionista corrente e outra concepção, mais difusa e ainda incipiente, que diz respeito à possibilidade de transformação da conjuntura histórica. O modelo da repetição envolve, simultaneamente, um modelo da reprodução, da manutenção das características do passado dentro do presente, o que fica evidente na cena familiar clássica, moldada pela herança, pelo dote, pelas referências familiares levadas adiante geração após geração. Lançando tal debate para a literatura, Said escreve: "the novelistic character is conceived as a challenge to repetition, a rupture in the duty imposed on all men to breed and multiply, to create and recreate oneself unremittingly and repeatedly" SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 117).

O exemplo utilizado por Said é Madame Bovary, de Flaubert, romance em que a repetição é utilizada para acentuar, progressivamente, a irrupção do novo a partir da postura da protagonista. Mais do que isso: a repetição é incorporada por Flaubert como tema (o cotidiano enfadonho na pequena cidade) e também na dimensão da linguagem, na retomada das cenas e dos diálogos, elementos que contribuem para a acentuação da ruptura da personagem. Dominick LaCapra argumenta nesse sentido em seu livro de 1982, "Madame Bovary" on Trial, dedicado a retomar o processo realizado contra Flaubert, acusado de imoralidade por conta da publicação de seu romance. LaCapra, ao recriar criticamente em seu livro a ocasião do processo, oferece múltiplas tonalidades do uso da repetição, desde a repetição do tema (como o adultério era recorrente em termos sociais), passando pela repetição do tema na literatura (como outros escritores lidaram com o tema, mas não com a repercussão alcançada por Flaubert) até chegar na repetição do romance durante a defesa e a acusação (os advogados dos dois lados "repetiram" o romance, salientando elementos que poderiam servir para a absolvição ou para a condenação). Todas essas possibilidades da repetição, defende LaCapra, combinadas ao uso metódico de Flaubert desse mesmo procedimento, permitem que o romance seja, ao mesmo tempo, típico de seu contexto social e produtivo em leituras historicamente afastadas (LACAPRA, 1982LACAPRA, Dominick. "Madame Bovary" on Trial. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1982., p. 53-63).

Voltando a Said, é significativo o momento de seu ensaio no qual ele aproxima Vico e Flaubert, escrevendo: "History in Vico's case, the very form of the novel in Flaubert's, is on the side of institutions preserving, transmitting, confirming not only the process of filiative repetition by which human presence is repeatedly perpetuated" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 118). A repetição não é apenas aquilo que possibilita a história, mas também aquilo que possibilita a crítica da história, o questionamento de seus processos e caminhos, a possibilidade de filiação dentro dela e de transformação de seus elementos quando da migração temporal ou geográfica (precisamente o ponto de Dominick LaCapra ao comentar a potência de Madame Bovary para a crítica de seu presente). A repetição está ligada à manutenção dos modelos e, simultaneamente, ao desejo de antagonizar tais modelos - é por isso que Said cita Harold Bloom brevemente ao comentar Vico, salientando a proximidade do esforço de Bloom em seu livro The Anxiety of Influence do paradigma de filiação que está traçando (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 117). Said, no entanto, capta, ao longo dos anos em que prepara seus ensaios, uma transformação desse paradigma - transformação essa que, poderíamos acrescentar, só fez aumentar com o tempo.

Antes de perseguir tal transformação em direção ao nosso presente (2015), é preciso concluir a argumentação de Said, que atinge um ponto decisivo no momento em que ele cita Michel Foucault, logo na sequência de Vico e Flaubert. "Among the most interesting and effective contemporary efforts to deal with the first appearance of something", escreve Said ao abordar a dialética entre repetição e inovação, "are Foucault's archeological studies", e continua: "The difference between what he does in La Naissance de la clinique and Surveiller et punir and what is done in the history of ideas is that Foucault is determined to show the accommodations of singular events to repeating epistemological structures he calls discourse and archive" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 119). Na leitura de Said, a arqueologia foucaultiana serviria para perceber as sutis variações que todo evento singular provoca na estrutura histórica mais ampla. Nesse sentido, o exemplo de Flaubert casaria muito bem, sobretudo se tivermos em mente as estratificações feitas por Dominick LaCapra em torno da questão da repetição: é impossível deixar de lado a estrutura histórica mais ampla para a compreensão do caso de Flaubert, mas, ao mesmo tempo, a singularidade do caso de Flaubert só pode ser corretamente analisada tendo como pano de fundo rigoroso tudo aquilo que era "repetido" e "reiterado" em seu contexto imediato2 2 A dinâmica entre originalidade e repetição envolvida na recepção de Gustave Flaubert recebeu um tratamento inovador - e já clássico - por parte de Silviano Santiago, em seus ensaios "O entre-lugar do discurso latino-americano", "Eça, autor de Madame Bovary" e "Análise e interpretação", entre outros, todos reunidos em seu livro Uma literatura nos trópicos. Em vários momentos Santiago cita Flaubert e, quando não o faz, retoma a questão da originalidade e da repetição dentro de um contexto latino-americano, querendo com isso não reforçar a ideia de dependência e de cronologia fixa, mas subvertê-la: "Para ajudar nosso raciocínio, retomemos no entanto a dicotomia visível/invisível, aparente/subterrânea, tal como encontrada em Borges e tentemos ver como ela se articula no estudo das relações entre Madame Bovary e O primo Basílio, e como de certa forma poderia ela explicitar o mistério da criação no romancista português, ao mesmo tempo que deixa clara, não sua dívida para com Flaubert, mas o enriquecimento suplementar que ele trouxe para o romance de Emma Bovary; se não enriquecimento, pelo menos como Madame Bovary se apresenta mais pobre diante da variedade de O primo Basílio" (SANTIAGO, 2000, p. 52). O objetivo deste meu ensaio, no entanto, não está em qualificar performances ("mais pobre", "menos pobre"), mas sim em propor uma reflexão sobre a potência da ambivalência (entre origem e originalidade, entre tradução e tradutibilidade, como veremos mais adiante). .

A limitação que persiste no projeto de Foucault, argumenta Said, é sua recusa em perceber o peso das metáforas biológicas no sistema de repetição e inovação (em linhas gerais, o drama familiar, a herança, a passagem das características familiares de geração em geração, e o antagonismo tanto biológico quanto histórico que isso gera). Dos inúmeros desdobramentos da questão, é possível destacar um ensaio recente de Robin James, publicado no periódico Culture, Theory and Critique, em 2014, no qual a relação entre repetição e inovação dentro do arquivo foucaultiano é articulada com as teorias do mesmo Foucault sobre a biopolítica e o governo dos corpos pelos dispositivos de poder do Estado. James, retomando a ideia de repetição, escreve: "repetition is biopolitical in the Foucaultian sense not just because it is statistical and probabilistic, but also because it centers biological life as a privileged field of knowledge and regulation", acrescentando à frente: "From this perspective, life is a deregulated market, not a natural given. 'Biology replaces mechanics' because it shifts focus from the regulated, mechanistic functioning of individual bodies (anatomy), to the deregulated health and flourishing of populations (epidemiology, genetics)" (JAMES, 2014JAMES, Robin. "Neoliberal Noise: Attali, Foucault & the Biopolitics of Uncool". Culture, Theory and Critique, 2014, 55:2, 138-158., p. 141). O que há de central nesse debate é a ideia de que a ligação entre história e biologia daria um aspecto "natural" à questão, desviando-a de obstáculos como a diversidade de idiomas e contextos histórico-sociais, o que redundaria em um achatamento da possibilidade de dissenso e antagonismo (central no que diz respeito ao campo de estudos da literatura e da tradução, por exemplo).

Said oferece dois exemplos de modos de lidar com a repetição que fogem de tal esquema: em primeiro lugar, Kierkegaard, e, em segundo, Karl Marx. No caso de Kierkegaard, escreve Said, "repetition is not recollection, and it is not longing for something not there. Repetition is 'return, conceived in a purely formal sense'" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 120-121). Para Kierkegaard, no entanto, o todo ao qual remete a repetição - espécie de instância superiora organizadora da repetição - chama-se Deus, fazendo com que a batalha inerente à repetição (pois não é rememoração, mas criação) seja uma batalha perdida. Por isso, "repetition involves no giving up, but a self-possession carried to the point of no return" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 121). Nesse sentido, há uma limitação no senso de repetição de Kierkegaard, ainda que haja antagonismo e possibilidade de criação, e essa limitação é dada de forma antecipada, ao posicionar Deus como foco e possibilidade da repetição.

O caso de Marx, no entanto, é distinto. Said recupera a célebre passagem do 18 de Brumário de Luís Bonaparte, fórmula hegeliana em sua origem: "Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes", escreve Marx, e continua: "Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa" (MARX, 2011MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 25). Said comenta: "If it is true that events of importance occur twice, then repetition is their spatial form; their aesthetic, political, and temporal form is different" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 122).

Nessa perspectiva, o que permanece atrelado ao imperativo da repetição é a "forma espacial" do evento, liberando, consequentemente, a potencialidade de ressignificação temporal, estética e discursiva desse mesmo evento. Ainda que não se escape do imperativo da repetição, argumenta Said a partir de Marx, é não só possível como necessário intervir criticamente na significação (estética, discursiva, política) dessa repetição, daí a relevância central do trabalho com a linguagem, que constitui o instrumento de intervenção por excelência. "What Marx does in his own writing is to show that rewritten history can be re-rewritten, that one sort of repetition usurped by the nephew is but a parodied repetition of the filial relationship" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 122). Tal liberdade de intervenção crítica significa, no caso de Marx, que o que está sendo repetido em 1848 não é 1847, e sim 1789, ano da Revolução Francesa, da mesma forma que Luís Bonaparte não repete seu pai (como o modelo biologista defenderia), e sim seu tio, Napoleão, o grande imperador (para uma análise detida da passagem de Marx, bem como para uma reflexão sobre sua pertinência para o presente, pode-se consultar com proveito o livro de Slavoj Zizek, Primeiro como tragédia, depois como farsa, especialmente o capítulo "A hipótese comunista" (ZIZEK, 2011ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 79-129)).

É na dimensão da escritura que Marx confere potência à repetição, retirando o peso do paradigma evolutivo e biologista, conforme o comentário de Said: "Repetition shows nature being brought down from the level of natural fact to the level of counterfeit imitation", uma vez que "to repeat a life is not to produce another life; it is to place death where life had been" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 124). Aquilo que acontece na história não se dá por algum imperativo incontornável - não é um "fato natural", como aponta Said -, e o esforço de Marx é precisamente o de mostrar que a repetição acrítica dos modelos do passado gera morte, e não vida (a continuidade irrefletida da herança repete modelos falhos, desiguais, perniciosos).3 3 É importante notar certo paralelismo existente entre a apropriação breve que Said faz de Marx em seu ensaio e o trabalho de Jeffrey Mehlman no mesmo período. Tanto Mehlman quanto Said estão preocupados, no âmbito da academia anglófona, não apenas com uma releitura de Marx, mas sobretudo que ela seja feita tendo como pano de fundo a teoria de matriz francesa dos anos 1960 e 1970 (Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Deleuze, entre outros). Em seu livro de 1977, por exemplo, intitulado Revolution and Repetition: Marx/Hugo/Balzac, Mehlman retoma o mesmo livro e a mesma passagem de Marx a que Said faz referência. A diferença é que Mehlman acrescenta à equação a teorização psicanalítica de Freud a respeito do estranho/inquietante (Unheimliche) e da pulsão de morte, aplicando tais ideias à dinâmica histórica que Marx postula como um antagonismo entre tragédia e farsa (MEHLMAN, 1977, p. 8;13;15-29). A repetição, portanto, não é inerentemente positiva ou negativa; ela serve a múltiplos usos e estratégias - como afirma Said, "repetition cannot long escape the ironies it bears within it" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 125).

É justamente desse paradoxo tenso que habita o cerne da repetição que se ocupa Walter Benjamin em suas teses "Sobre o conceito de história", texto que Said não cita em seu ensaio. Na quinta tese, por exemplo, Benjamin fala da "imagem irrestituível do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconhece como nela visado" (LÖWY, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das teses de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 62); na sexta tese, fala que "articular o passado historicamente não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo" (LÖWY, 2005, p. 65).4 4 São muitos os textos de Walter Benjamin nos quais ele reflete sobre a experiência histórica e a tarefa do historiador como elementos de uma luta, de um conflito que deve ser permanentemente reavivado, sob pena de perpetuar a visão dos vencedores. Pode-se citar, como exemplo, o fragmento "O caráter destrutivo", presente em Rua de mão única: "O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal" (BENJAMIN, 1995, p. 237). Benjamin apresenta desdobramentos da cena que Said captura em Marx, ou seja, a cena da articulação que a partir da linguagem (da reescrita crítica das imagens do passado) se faz da repetição, não mais como atualização de modelos herdados, e sim como atividade de risco, de perigo, de comprometimento. A insistência de Said na questão da filiação fica mais legível no final de seu ensaio, quando, a partir de Marx, incorpora a ideia de uma repetição da história pensada não como herança (ou seja, como cronologia naturalizada), mas como antagonismo e reescrita. É, portanto, na dimensão da escrita, na dimensão retórica do comprometimento com a história, que a repetição ganha potência criativa, pois é a linguagem que permite a intervenção sobre a dimensão significativa da repetição.

2. Originalidade

Não é por acaso que o ensaio que vem depois de "On Repetition", no livro de Said, seja aquele intitulado "On Originality". O percurso de Said neste segundo ensaio deixará claro que repetição e originalidade são fenômenos simultaneamente complementares e excludentes na dinâmica da filiação dentro da história e da linguagem. Nosso pensamento teórico acerca da literatura, argumenta Said, é povoado de metáforas e conceitos envolvendo a originalidade: "Not only does one speak of a book as original, of a writer as possessing greater or lesser originality than another, but also of original uses of such and such a form, type, character, structure" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 126). É possível perceber de imediato a analogia com a discussão do ensaio anterior, pois a originalidade, assim como a repetição, envolve a revisitação de cenas e eventos conhecidos, com o intuito de revitalizá-los - como, por exemplo, no uso original de uma estrutura ou forma, como aponta Said. Assim como a repetição, portanto, a originalidade se deixa decifrar como um procedimento de linguagem, de tradução ou passagem de um contexto a outro (deslocados no tempo ou no espaço ou em ambos).

Em linhas gerais, a argumentação de Said nesse segundo ensaio apresenta os seguintes pontos: uma visão retrospectiva em direção a Platão, salientando sua ideia da divisão entre trabalho contemplativo (a teoria) e trabalho ativo (a prática); a longa apropriação dessa ideia na tradição ocidental, sendo uma de suas conclusões a limitada noção de que o trabalho do crítico seria uma diluição do trabalho do artista, mais próximo da autenticidade e da originalidade; em seguida, Said propõe a dissolução dessa oposição a partir da noção de escritura, comum tanto ao crítico quanto ao artista; a ênfase nesse ponto compartilhado da escritura, argumenta Said, levou às obras inovadoras de autores como T. S. Eliot, James Joyce, Samuel Beckett, Sigmund Freud, Georg Lukacs e Roland Barthes, que confluem todas no desejo de escapar da "naturalização" dos conceitos e da própria linguagem, ou seja, escapar de certo paradigma acumulativo e evolutivo de organização do pensamento; por fim, a originalidade passa a ser pensada como um efeito do texto, e não mais um objetivo a ser alcançado, uma origem a ser resgatada - como escreve Said: "If originality as a conception has had the power for too long of depressing time backwards into lost primacy at best, and regained utopias at worst, this is a good reason for reorienting our study systematically toward the future", e completa: "As Foucault and Gilles Deleuze have said, so drastic a reversal of perspective has the effect of de-Platonizing thought" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 139).

Tal reversão de perspectiva - de um paradigma evolutivo para um paradigma retrospectivo - envolvia, no caso de Said e do contexto institucional no qual ele se inseria no momento de publicação de seu livro, uma espécie de repetição crítica das vanguardas e do período modernista - o que fica claro já nos exemplos dados por ele: Thomas Mann, Joyce ou Kafka, do lado da literatura, Spitzer, Curtius e Auerbach, do lado da crítica. Havia outra camada de elaboração operando também no discurso de Said, que não retrocedia tanto no tempo mas que responde pela outra parte de seus exemplos e referências, ou seja, o pensamento crítico francês então em voga: Foucault, Deleuze, Derrida, entre outros, que consolidam suas presenças na teoria anglófona precisamente nesse momento histórico a partir do qual fala Said, início dos anos 1980. Toda atividade crítica e teórica envolvida com a linguagem literária lida com a passagem tensa entre a repetição e a originalidade, não apenas nos temas e motivos com os quais escolhe lidar, mas na própria dinâmica textual de suas escolhas e resultados - é um processo tão reflexivo quanto autorreflexivo. No caso específico dos dois ensaios de Said trabalhados aqui, envolve uma múltipla problematização de temporalidades (a evocação do passado clássico de Platão, por exemplo, ou mesmo do século XVII de Giambattista Vico) aliada a uma complexa articulação conceitual (entre a arqueologia foucaultiana e a ensaística de Lukacs, por exemplo), dois processos constantemente ligados em um jogo tradutório. "Paradoxically, therefore", comenta Said, "the originality of contemporary literature in its broad outlines resides in the refusal of originality, or primacy, to its forebears" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 135).

Se deixarmos por um momento de lado o contexto específico de Said e nos aproximarmos de reflexões mais recentes, veremos que a questão da originalidade continua sendo levantada, mas com algumas importantes alterações. Em sua coletânea recente de ensaios, Literaty Criticism in the 21st Century: Theory Renaissance, Vincent Leitch retoma o debate da originalidade, colocando como baliza inicial dois nomes que também foram as primeiras referências citadas por Said em seu ensaio - René Wellek e Austin Warren. No entanto, ao contrário de Said, que apresenta um percurso bastante preciso e conceitualmente investigativo, Leitch aborda a originalidade por um viés mais historiográfico e inventariante, mostrando, em linhas gerais, a progressiva ampliação do campo teórico-crítico. Tal ampliação, na perspectiva de Leitch, mostra que a originalidade efetivamente ganhou força sendo compreendida como um efeito do texto, tal como Said apontava a partir de Foucault e Barthes. A tradição agora é revisitada e reordenada a partir das perspectivas dos estudos de minorias, queer, étnicos, culturalistas, hermenêuticos, fenomenológicos, eslavos, transmidiáticos, interdisciplinares, entre outros, todos modulando a originalidade segundo procedimentos próprios (LEITCH, 2014LEITCH, Vincent B. Literaty Criticism in the 21st Century: Theory Renaissance. New York: Bloomsbury Publishing, 2014., p. 82-83).

Outra contribuição expressiva recente dentro da questão da originalidade partiu de Stanley Fish, que publicou, em 2010, dois artigos sobre plágio no jornal The New York Times (Fish foi vítima de plágio e seus textos no jornal são respostas a essa situação). O primeiro deles, intitulado "Plagiarism Is Not a Big Moral Deal", comenta a questão da originalidade por vias indiretas, tomando essa noção como uma espécie de solo comum do cotidiano acadêmico, e salientando como o plágio funciona como uma espécie de resto desconfortável e irresolvido desse gesto de centralizar a originalidade. "In recent years there have been a number of assaults on the notion of originality, issuing from fields as diverse as literary theory, history, cultural studies, philosophy, anthropology, Internet studies", escreve Fish, e continua: "If it is wrong to plagiarize in some context of practice, it is not because the idea of originality has been affirmed by deep philosophical reasoning, but because the ensemble of activities that take place in the practice would be unintelligible if the possibility of being original were not presupposed" (FISH, 2004FISH, Stanley. "Plagiarism Is Not a Big Moral Deal". The New York Times, 09 de agosto de 2010. [disponível em < http://opinionator.blogs.nytimes.com/2010/08/09/plagiarism-is- not-a-big-moral-deal/>].
http://opinionator.blogs.nytimes.com/201...
). Em outras palavras, para poder esvaziar a ideia de plágio de certo conteúdo metafísico e essencialista, Stanley Fish recorre, entre outras estratégias, a uma breve argumentação em torno da originalidade, reforçando o aspecto que aqui nos interessa: a originalidade não se oferece como uma apreensão ontológica, como algo dado de saída, unívoco, coeso e definitivo; pelo contrário, a "possibilidade de ser original" de que fala Fish deve ser algo provisoriamente pressuposto, agindo, dessa forma, no "contexto da prática" da linguagem.

Diante disso, é preciso reafirmar que meu objetivo não é discutir a relação entre plágio e originalidade segundo a formulação de Stanley Fish, e sim apreender nas entrelinhas da argumentação do mesmo Fish aquilo que ele entende por um paradigma não-essencialista da originalidade. Ou seja, observar como na argumentação de Fish a originalidade é enunciada como um efeito do texto, como um procedimento textual, e não como uma esfera autônoma que organizaria o discurso a partir de uma posição exterior. Em um comentário ao texto de Fish, publicado em 2015 na revista Topoi, Fabio Paglieri ressalta precisamente a relevância desse debate em torno de certa concepção aberta da originalidade, que serviria não como gabarito para a verificação de casos de plágio, e sim para uma reflexão mais profunda sobre as regras de linguagem que possibilitam a crítica e a teoria: "discussing the philosophical underpinnings of originality can have a lot of practical value, certainly not for assessing current cases of plagiarism, but rather for considering whether the rules demanding a commitment to originality in academia are truly conducive of its legitimate goals, i.e. the fostering and sharing of knowledge" (PAGLIERI, 2015PAGLIERI, Fabio. "Reflections on Plagiarism". Istituto di Scienze e Tecnologie della Cognizione (ISTC), Roma. Topoi: An International Review of Philosophy, 2015, n. 34, p. 1-5., p. 2). O que se percebe, portanto, tanto em Fish quanto no comentário de Paglieri, é a complexificação daquele movimento de "desplatonização" do pensamento que Said capturara em Foucault e Deleuze, que ganha força nos anos 1960, repercute nos anos 1980 e chega até nossa contemporaneidade sob nova roupagem.

Tais digressões nos permitem um retorno produtivo ao ensaio de Said sobre a originalidade, sobretudo em momentos nos quais ele declara: "the best way to consider originality is to look not for first instances of a phenomenon, but rather to see duplication, parallelism, symmetry, parody, repetition, echoes of it - the way, for example, literature has made itself into a topos of writing" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 135). Ou ainda: seguindo tal transformação do olhar sobre um fenômeno "the writer can be read as an individual whose impulse historically has been always to write through one or another given work, in order finally to achieve the independence, like Mallarmé, of writing that knows no bounds" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 136). Da mesma forma que a repetição serve à originalidade, em um jogo de referências que retira o essencialismo da linguagem, a escritura que se propõe como reescritura crítica da tradição serve à independência do artista, que se dissolve no discurso como potência, e não mais como identidade unívoca.

Como afirma Said, a originalidade consiste não em buscar a origem de um fenômeno, mas seus ecos, suas reverberações em temporalidades e espacialidades heterogêneas - a literatura não como uma instituição inexpugnável, mas como um efeito da escritura, "a topos of writing" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 135). A potencialidade teórica da "originalidade", portanto, não está em seu endereçamento à "origem", mas na proliferação possível desse sufixo, -inalidade, que coloca o conceito em movimento, que permite, no interior da dinâmica mesmo da linguagem, sua transformação.

3. Tradução

A ideia da potencialidade teórica do sufixo que marca um conceito foi apresentada por Samuel Weber em seu livro de 2008, Benjamin's -abilities. Weber, que atualmente é professor na Northwestern University e na European Graduate School, e traduziu para o inglês trabalhos de, entre outros, Theodor Adorno e Jacques Derrida, propõe no livro referido uma releitura de Walter Benjamin que se centra não em sua figura histórica, mas na possibilidade de repetição diferida de seus conceitos no presente, entre eles o de "tradução" e "tradutibilidade". De certa forma, o percurso realizado até este ponto - através dos ensaios de Said e digressões envolvendo comentários recentes de certas questões levantadas por eles - era necessário para melhor refletir acerca da contribuição de Weber não só para os estudos de tradução mas para o campo da teoria literária em geral (uma contribuição entre várias, da qual retiro apenas uma faceta possível para os fins precisos deste ensaio5 5 A contribuição de Samuel Weber para o cenário teórico contemporâneo tem o mérito de articular a obra de Walter Benjamin à questão da tradução por um viés tanto textual quanto histórico. Uma série de outros trabalhos análogos e igualmente importantes foram analisados ao longo de minha pesquisa, por isso gostaria de utilizar esta nota para mencionar alguns deles: o livro mais recente de Jeanne Marie Gagnebin, Limiar, aura e rememoração, sobretudo os ensaios "Estética e experiência histórica em Walter Benjamin" e "Esquecer o passado?" (GAGNEBIN, 2014, p. 197-216; 251-264); o estudo de fôlego de Paul Ricoeur, La mémoire, l'historie, l'oubli (RICOEUR, 2000); a contribuição de Beatriz Sarlo no âmbito latino-americano (que se casa àquele de Silviano Santiago, referido em nota anterior), Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (SARLO, 2005); e dos vários textos fundamentais de Georges Didi-Huberman destaco "O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein" (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 19-53). ).

Já na introdução de seu livro, Weber explica que, "throughout his life", "Benjamin tended to formulate many of his most significant concepts by nominalizing verbs, not in the usual manner but by adding the suffix -barkeit (which in English can be written either -ibility or -ability)" (WEBER, 2008WEBER, Samuel. Benjamin's -abilities. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p 4). Note-se que a reflexão teórica sobre a tradução é, em si própria, tornada possível por um movimento tradutório, no qual, como aponta Weber, as "Benjamins -barkeiten" do alemão tornam-se "Benjamin's -abilities" em inglês e, agora, em nosso caso, "As -ibilidades de Walter Benjamin". É precisamente essa dinâmica tradutória que reforça o argumento que estamos seguindo aqui, de que tanto a repetição, quanto a originalidade e a tradutibilidade, são efeitos do texto, e não categorias estanques, essencialistas, ligadas à presença e autoridade de um sujeito. Como aponta o próprio Weber, na sequência da citação anterior: "the '-abilities' with wich I am concerned cannot be considered as being the properties or attibutes of a particular subject, Walter Benjamin", pois "what continues to provoke today, I am convinced, has less to do with the person of Walter Benjamin than with his writings", e finaliza: "If those writings surprise us again and again by their seemingly inexhaustible ability to come up with striking, unexpected, and above all compelling formulations and insights, (...) then I want to suggest", continua Weber, apresentando sua hipótese central, "that this is in part, at least, the result of a very distinctive way of conceptualizing that manifests itself in the tendency to resort to the suffix, -ability, -barkeit, in forming nouns from verbs" (WEBER, 2008, p. 6-7).

Adiante no texto, Weber precisa a questão da conceitualização: "The power of conceptualization, in this perspective, then, is one of singularization. In taking phenomena to their ever singular extreme, the concept causes them to part company with themselves, with their Self, not in order to dissolve them into some greater generality", explica Weber, e continua: "but rather to reveal their distinctive, incommensurable spatial-temporal singularity as a measure of change and alteration" (WEBER, 2008WEBER, Samuel. Benjamin's -abilities. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 9). No final de seu ensaio sobre a repetição, Edward Said retoma Karl Marx para salientar sua concepção da repetição como atividade crítica diante da história e da linguagem, ou seja, a repetição pensada não como herança, mas como intervenção. Os termos de Said, como tivemos a ocasião de apontar, remetiam àqueles que Walter Benjamin em suas teses sobre o conceito de história. Não surpreenderá, portanto, encontrar na exposição de Samuel Weber um desdobramento decisivo da questão: a conceitualização (seja da repetição, da originalidade ou da tradução) envolve, nesse novo paradigma que vem sendo perseguido, não a dissolução do pensamento em uma generalidade ("dissolução" no sentido de uma resolução, de uma subsunção, no sentido da crítica do juízo de Kant (KANT, 1980KANT, Immanuel. Primeira introdução à Crítica do Juízo. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Os pensadores (Kant II). São Paulo: Abril Cultural, 1980., p. 170-173)), mas a busca por um conjunto de singularidades que se combinam em diferentes espacialidades e temporalidades.

Dos muitos conceitos de Walter Benjamin comentados por Weber em seu livro - entre eles, os de "criticabilidade", "citabilidade", "reprodutibilidade", "comunicabilidade" -, gostaria de me deter apenas em um, que servirá de arremate para nossa discussão presente sobre a conceitualidade e sua presença fundamental na teoria literária: o conceito de "tradutibilidade". Weber retoma um ensaio de Walter Benjamin sobre tradução, preparado como introdução à sua tradução dos Tableaux parisiens, de Baudelaire, cujo título é "The Task of the Translator", "Die Aufgabe des Übersetzers" em alemão.6 6 Em ensaio dedicado à teoria da tradução, intitulado "Filosofia da tradução - tradução de filosofia: o princípio da intraduzibilidade", Márcio Seligmann-Silva aponta a ambivalência desse título de Benjamin, uma ambivalência que vem desde Goethe: em seu "terceiro modo da tradução", "Goethe destacou a ambiguidade da tarefa (Aufgabe) da tradução: ela inclui um abandono (Aufgeben) tanto da sua própria pátria como também da possibilidade de seu traduzir de modo integral" (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 171). E mais adiante, sobre Gadamer: "Como no terceiro modelo de tradução de Goethe, para Gadamer a tradução envolveria, portanto, um traduzir-se (sich Über-setzen) do tradutor mesmo para fora de si" (p. 173). E, finalmente, sobre Walter Benjamin: "O fato de Benjamin ligar aqui [em uma carta a Gershom Scholem sobre a tradução do Zohar] o comentário do tradutor à renúncia não deixa de remeter à sua noção de tradução como Aufgabe, a saber como Aufgeben, renunciar, desistir, abandonar" (p. 181). O texto de Benjamin tem tradução ao português, feita por Susana Kampff Lages (HEIDERMANN, 2001, p. 187-215). A preocupação central de Benjamin é de apresentar uma reflexão filosófica acerca da filiação possível entre as línguas e o sistema de "parentesco" ("kinship" e "Verwandtschft") que as liga. Ao mesmo tempo em que o tradutor se vale de tal parentesco, procurando pontos de contato entre uma língua e outra, seu trabalho - sua tarefa e sua "renúncia" - diz respeito também a uma fuga das reações esperadas dentro do campo de atuação desse parentesco (WEBER, 2008WEBER, Samuel. Benjamin's -abilities. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 54-56). Note-se como é possível aproximar essa reflexão de Benjamin sobre a convivência tensa entre filiação e desfiliação no interior da linguagem com as reflexões de Said sobre a repetição (a partir de Marx, de Foucault ou de Barthes): são dois momentos de um mesmo esforço de retirar o peso da "herança", ou seja, do pertencimento compulsório, da evocação obrigatória de uma cronologia que deve ser respeitada, reiterada e mantida. Weber resume a questão da seguinte forma: "that task", ou seja, a tarefa do tradutor, "is an ambiguous one, traversed by tensions and conflicts, and as such is remote from the notions of harmony and wholeness traditionally dominant in the realm of aesthetic theory" (WEBER, 2008, p. 57-58).

Assim como a "originalidade" escapa da "origem" em sua dinâmica de conceitualização, a "tradutibilidade" escapa da "tradução" a partir de uma lógica semelhante. Ao falar da tarefa do tradutor, Benjamin evoca a "tradutibilidade" como um procedimento que lhe permite renovar o campo da filiação em busca de diferentes formas de dizer o já dito (ou seja, de traduzir). "Translatability does not depend on a relationship of the original to a particular audience, according to Benjamin: rather, it is an intrinsic trait of certain works themselves" (WEBER, 2008WEBER, Samuel. Benjamin's -abilities. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 59). A tradutibilidade, portanto, desvia o foco da origem (e, consequentemente, de uma fidelidade engessada ao original) e pensa a refração dessa origem no interior de vários textos, ou ainda, o modo como diferentes textos modulam tal originalidade da origem, pensada não mais como uma essência, mas, novamente, como um efeito do texto. Pensando a tradução como atividade diante dos textos e não diante da origem, os próprios textos, escreve Weber, "can no longer be considered self-sufficient, independent, autonomous, or self-contained. The paradox resides in the fact that the work can only be itself insofar as it is transported elsewhere, altered, transformed - in short, translated. Put another way", continua Weber, "the work can only make a name for itself - keep its name - by having that name travel, take leave, go elsewhere and become another name, in another language. The original can only be itself by becoming something different. Or, to sharpen the paradox", finaliza Weber: "the original work can only survive insofar as it is able to take leave of itself and become something else" (WEBER, 2008, p. 61).

Sendo a tradução uma atividade que ocorre nos domínios da linguagem, e sendo a linguagem histórica e aberta a mudanças, parece pertinente que se afaste de uma busca pela origem e se aproxime de uma busca pela filiação criativa entre textos. No entanto, não se trata de uma troca, da passagem de um exclusivismo ao outro, muito pelo contrário. O ponto no qual reside a densidade do ensaio de Walter Benjamin é também o ponto sobre o qual insistem tantos outros teóricos, Edward Said entre eles: originalidade, repetição e tradução/tradutibilidade são conceitos instáveis, que retiram seu potencial teórico de uma situação de instabilidade, ou seja, do fato de não estarem nem totalmente ligados à busca da origem, nem totalmente comprometidos com o jogo puramente textual da linguagem. A ampliação crítica do paradigma não elimina definitivamente a constatação óbvia de que a tradução continua envolvendo duas (ou mais) línguas que operam em contextos e sob regras diversas.

Como aponta Jacques Derrida em seu ensaio sobre a "Teologia da tradução", que revisita não apenas as ideias de Walter Benjamin, mas sobretudo aquelas da filosofia que lhe deu ensejo e suporte (Kant, Schelling, Goethe), há um paradoxo que permanece: "o conceito da tradutibilidade fundamental se liga poeticamente a uma língua natural e resiste à tradução", pois "o poético (enraizado na particularidade de uma língua) situa aquilo mesmo que limita a tradutibilidade que, apesar disso, ele reclama" (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. "Teologia da tradução". Tradução de Nícia Bonatti. In: OTTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005, p. 155-174., p. 161). Não se trata, portanto, de escolher posições determinadas, de optar de forma exclusiva pelo paradigma da origem e da essência, de um lado, ou pelo paradigma do jogo textual e seus efeitos, de outro. O que fica claro no percurso teórico realizado até aqui é que todos esses fenômenos - e as reflexões críticas acerca dos fenômenos - estão inseridos na história, da mesma forma que a linguagem, e por isso pedem constante revisitação e atualização (em uma palavra conhecida, "repetição").

Para concluir com Samuel Weber e Walter Benjamin, "translation thus suggests a conception of medium that would be very different from that of the transparent interval between two fixed points. Instead of diaphanous transmission and transparency", precisa Weber, "translation brushes up against a past and in so doing opens itself to the future" (WEBER, 2008WEBER, Samuel. Benjamin's -abilities. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2008., p. 94). Vale relembrar o comentário de Said sobre a originalidade: "If originality as a conception has had the power for too long of depressing time backwards into lost primacy at best, and regained utopias at worst, this is a good reason for reorienting our study systematically toward the future" (SAID, 1983______. The World, the Text, and the Critic. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1983. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000., p. 139). Nem apenas origem, nem apenas o jogo textual; e, da mesma forma, nem o exclusivismo do passado e tampouco o exclusivismo do futuro: trata-se de pensar uma mobilidade conceitual que seja sempre ambivalente, que retire seu rigor da mobilidade do conjunto de suas referências, ou ainda, do investimento em sua tradutibilidade. É ao pensar a tradução como processo - como tradutibilidade - que se pode abandonar igualmente a concepção essencialista da repetição e da originalidade, que não são mais categorias estanques, e sim elementos operativos da cena crítica.

Referências

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  • ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • 1
    Considerando a carreira de Edward Said como um todo, é possível dizer que Giambattista Vico serve não apenas a este ensaio, mas também e principalmente como um dos principais fios condutores de sua obra. Por um lado, a presença de Vico em Said se explica por uma referência cruzada: a leitura permanente que Erich Auerbach realizou de Vico, atualizando-o na filologia das primeiras décadas do século XX (Auerbach traduziu a Scienza Nuova de Vico para o alemão em 1924, além de publicar o ensaio "Vico e o historicismo estético" (AUERBACH, 2007, p. 341-356). Said dedica um ensaio somente a Vico em seu livro Reflexões sobre o exílio, intitulado "Vico e a disciplina dos corpos e dos textos" (SAID, 2003, p. 31-40), além de comentar extensamente sobre a relação existente entre Vico e Auerbach em seu livro Humanismo e crítica democrática (SAID, 2007, p. 113-118).
  • 2
    A dinâmica entre originalidade e repetição envolvida na recepção de Gustave Flaubert recebeu um tratamento inovador - e já clássico - por parte de Silviano Santiago, em seus ensaios "O entre-lugar do discurso latino-americano", "Eça, autor de Madame Bovary" e "Análise e interpretação", entre outros, todos reunidos em seu livro Uma literatura nos trópicos. Em vários momentos Santiago cita Flaubert e, quando não o faz, retoma a questão da originalidade e da repetição dentro de um contexto latino-americano, querendo com isso não reforçar a ideia de dependência e de cronologia fixa, mas subvertê-la: "Para ajudar nosso raciocínio, retomemos no entanto a dicotomia visível/invisível, aparente/subterrânea, tal como encontrada em Borges e tentemos ver como ela se articula no estudo das relações entre Madame Bovary e O primo Basílio, e como de certa forma poderia ela explicitar o mistério da criação no romancista português, ao mesmo tempo que deixa clara, não sua dívida para com Flaubert, mas o enriquecimento suplementar que ele trouxe para o romance de Emma Bovary; se não enriquecimento, pelo menos como Madame Bovary se apresenta mais pobre diante da variedade de O primo Basílio" (SANTIAGO, 2000, p. 52). O objetivo deste meu ensaio, no entanto, não está em qualificar performances ("mais pobre", "menos pobre"), mas sim em propor uma reflexão sobre a potência da ambivalência (entre origem e originalidade, entre tradução e tradutibilidade, como veremos mais adiante).
  • 3
    É importante notar certo paralelismo existente entre a apropriação breve que Said faz de Marx em seu ensaio e o trabalho de Jeffrey Mehlman no mesmo período. Tanto Mehlman quanto Said estão preocupados, no âmbito da academia anglófona, não apenas com uma releitura de Marx, mas sobretudo que ela seja feita tendo como pano de fundo a teoria de matriz francesa dos anos 1960 e 1970 (Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Deleuze, entre outros). Em seu livro de 1977, por exemplo, intitulado Revolution and Repetition: Marx/Hugo/Balzac, Mehlman retoma o mesmo livro e a mesma passagem de Marx a que Said faz referência. A diferença é que Mehlman acrescenta à equação a teorização psicanalítica de Freud a respeito do estranho/inquietante (Unheimliche) e da pulsão de morte, aplicando tais ideias à dinâmica histórica que Marx postula como um antagonismo entre tragédia e farsa (MEHLMAN, 1977, p. 8;13;15-29).
  • 4
    São muitos os textos de Walter Benjamin nos quais ele reflete sobre a experiência histórica e a tarefa do historiador como elementos de uma luta, de um conflito que deve ser permanentemente reavivado, sob pena de perpetuar a visão dos vencedores. Pode-se citar, como exemplo, o fragmento "O caráter destrutivo", presente em Rua de mão única: "O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo sentimento básico é uma desconfiança insuperável na marcha das coisas e a disposição com que, a todo momento, toma conhecimento de que tudo pode andar mal" (BENJAMIN, 1995, p. 237).
  • 5
    A contribuição de Samuel Weber para o cenário teórico contemporâneo tem o mérito de articular a obra de Walter Benjamin à questão da tradução por um viés tanto textual quanto histórico. Uma série de outros trabalhos análogos e igualmente importantes foram analisados ao longo de minha pesquisa, por isso gostaria de utilizar esta nota para mencionar alguns deles: o livro mais recente de Jeanne Marie Gagnebin, Limiar, aura e rememoração, sobretudo os ensaios "Estética e experiência histórica em Walter Benjamin" e "Esquecer o passado?" (GAGNEBIN, 2014, p. 197-216; 251-264); o estudo de fôlego de Paul Ricoeur, La mémoire, l'historie, l'oubli (RICOEUR, 2000); a contribuição de Beatriz Sarlo no âmbito latino-americano (que se casa àquele de Silviano Santiago, referido em nota anterior), Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (SARLO, 2005); e dos vários textos fundamentais de Georges Didi-Huberman destaco "O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein" (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 19-53).
  • 6
    Em ensaio dedicado à teoria da tradução, intitulado "Filosofia da tradução - tradução de filosofia: o princípio da intraduzibilidade", Márcio Seligmann-Silva aponta a ambivalência desse título de Benjamin, uma ambivalência que vem desde Goethe: em seu "terceiro modo da tradução", "Goethe destacou a ambiguidade da tarefa (Aufgabe) da tradução: ela inclui um abandono (Aufgeben) tanto da sua própria pátria como também da possibilidade de seu traduzir de modo integral" (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 171). E mais adiante, sobre Gadamer: "Como no terceiro modelo de tradução de Goethe, para Gadamer a tradução envolveria, portanto, um traduzir-se (sich Über-setzen) do tradutor mesmo para fora de si" (p. 173). E, finalmente, sobre Walter Benjamin: "O fato de Benjamin ligar aqui [em uma carta a Gershom Scholem sobre a tradução do Zohar] o comentário do tradutor à renúncia não deixa de remeter à sua noção de tradução como Aufgabe, a saber como Aufgeben, renunciar, desistir, abandonar" (p. 181). O texto de Benjamin tem tradução ao português, feita por Susana Kampff Lages (HEIDERMANN, 2001, p. 187-215).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2015
  • Aceito
    30 Out 2015
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