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UMA FERRAMENTA QUE VEIO INOVAR O ENSINO DA LÍNGUA INGLESA NA REDE PÚBLICA: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DA NOTÍCIA DE LANÇAMENTO DA PLATAFORMA INGLÊS PARANÁ

A TOOL THAT CAME TO INNOVATE THE TEACHING OF ENGLISH IN PUBLIC SCHOOLS: A CRITICAL DISCOURSE ANALYSIS OF AN ARTICLE ABOUT THE LAUNCHING OF THE “INGLÊS PARANÁ” PLATFORM

Resumo

A tecnologia na educação é tida como transformadora, como evidenciada em discursos publicitários e acadêmicos. Recentemente, políticas educacionais parecem compartilhar dessa noção. Assim, neste artigo temos como objetivo identificar as representações do Estado, da Tecnologia, da Língua Inglesa, de Estudantes e de Professores em uma notícia divulgada pelo Estado do Paraná sobre a recém-lançada plataforma “Inglês Paraná”. Nos ancoramos teoricamente na Análise Crítica de Discurso e em perspectivas críticas sobre tecnologia educacional. Empregamos categorias da Linguística Sistêmico-Funcional e da Representação de Atores Sociais para a análise. Os resultados mostram que essa política educacional é representada como benéfica e transformadora para alunos e professores, apresentando traços do discurso de de-escolarização e desqualificação de professores.

Palavras-chave:
Análise Crítica do Discurso; Tecnologia Educacional; Políticas Públicas

Abstract

Technology in education is seen as transformative, as evidenced in advertising and academic discourses. Recently, educational policies seem to share this conception. Thus, in this article we aim to identify the representations of the State, Technology, the English Language, Students and Teachers in a news item published by the State of Paraná about the recently launched “Inglês Paraná” platform. We are theoretically anchored in Critical Discourse Analysis and in critical perspectives on educational technology. We employ categories from Systemic-Functional Linguistics and Representation of Social Actors for the analysis. The results show that this educational policy is represented as beneficial and transforming for students and teachers, showing traces of the discourse of de-schooling, and deskilling of teachers.

Keywords
Critical Discourse Analysis; Educational technology; Public policy

Introdução

Nas últimas décadas, o emprego de ferramentas digitais no ensino de línguas vem crescendo exponencialmente (DIAS; SANTOS, 2010DIAS, M. A. A.; SANTOS, H. N. A. Tecnologia e Ensino: O uso de blogs como ferramenta de motivação e aprendizagem. EDUCTE: Revista Científica do Instituto Federal de Alagoas, v. 1, n. 1, 2010.; FIGUEIREDO, CARDOSO, 2011FIGUEIREDO, E. Q.; CARDOSO, E. L. Blogue: tecnologia para uma aprendizagem significativa da Língua Inglesa. Educação Unisinos, v. 15, n. 2, p. 158-165, 2011.; OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, U. M. Gamificação: uma proposta para aula de língua inglesa. Babel: Revista Eletrônica de Línguas e Literaturas Estrangeiras, v. 9, n. 2, p. 18-32, 2019.; PEREIRA FILHO; FRANCO, 2021PEREIRA FILHO, S. A.; FRANCO, B. A.R. Ensino de língua estrangeira e a tecnologia: Kahoot! Quizlet e Wordwall. Brazilian Journal of Development, v. 7, n. 4, p. 35083-35102, 2021.). A inserção de tecnologias digitais na aprendizagem de línguas é comumente justificada pelo caráter lúdico e pelo aspecto motivacional dos alunos, sobretudo os jovens. Tal ubiquidade das tecnologias e sua associação a um ensino de qualidade tem uma boa recepção por parte dos pais e responsáveis (RELO; CHATCLASS, 2020Regional English Language Office (Brasil); Chatclass (Brasil). Ensino e Aprendizagem de Língua Inglesa no Brasil: Desafios e Oportunidades. Um retrato de 2020. In: Embaixada Americana (Brasil). Olimpíada de Inglês. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.olimpiadadeingles.com/relatorio-ingles-2020. Acesso em: 3 nov. 2021.
https://www.olimpiadadeingles.com/relato...
, p. 49), e vem sendo explorada com frequência em campanhas de marketing de escolas particulares e institutos de idioma:

Figura 1
Ação de marketing de uma escola particular

Na imagem, podemos observar elementos que remetem a tecnologia (um robô, um tablet, luzes de néon, a palavra transformação), acompanhados de uma legenda que inclui diversos itens associados ao campo lexical da revolução tecnológica: “projetos inovadores que transformam”; “conectados”, “ampliando os horizontes”, “proposta pedagógica de constante evolução”. Este é apenas um exemplo de texto encontrado em mídias sociais que reforça a ideologia do papel revolucionário das tecnologias em contextos educacionais.

Embora já seja lugar-comum no discurso publicitário de instituições privadas, mais recentemente, essa ideologia tem sido veiculada e legitimada em políticas educacionais do setor público. Por exemplo, a Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2018) faz menção à aprendizagem por meio de tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs, doravante), e as caracteriza como uma “competência essencial” (p. 9), um “direito de aprendizagem infantil” (p. 38), uma desenvolvedora de “autonomia” (p. 94) e ampliadora de “possibilidade de acesso [...] à cultura e ao trabalho” (p. 475). O documento parece compartilhar da concepção da tecnologia como transformadora de experiências educacionais.

Não podemos ignorar que as TDICs têm muito a contribuir para as salas de aula. A internet amplia o acesso à informação em uma escala global, possibilitando o contato com diferentes culturas (e por consequência, diferentes linguagens), bem como com pontos de vistas plurais sobre virtualmente qualquer temática, constituindo um canal de participação social global (PEREIRA; COUTINHO, 2017PEREIRA, C. M.; COUTINHO, I. Circulação audiovisual e comunicação pública: A internet como espaço para o exercício da pluralidade e do direito à comunicação. Anais.. XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2017. Disponível em http://portalintercom. org. br/anais/nacional2015/resumos/R10-1498-1. pdf. Acesso em. 02/11/2020.
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). Ademais, para o ensino de línguas, a internet tem sido usada como uma plataforma capaz de fomentar práticas sociais de linguagem, possibilitando interações reais (SANTANA, 2020SANTANA, P. Write, Learn, Teach: Protótipo De Ensino Para A Produção Escrita Na Formação De Professores De Língua Inglesa Às Lentes Da Teoria Sociocultural 2020. 95 folhas. Trabalho de Conclusão Final (Mestrado Profissional em Letras Estrangeiras Modernas) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.; ZANCOPÉ; EL KADRI, 2021ZANCOPÉ, T.; EL KADRI, M. S. Affordances do protótipo “Teaching English to Teachers”: contribuições da perspectiva da justiça social, da educação antirracista e do webcurrículo para as aulas de inglês na formação de professores de línguas. Ilha do Desterro, v. 74, n. 3, p. 463-491, 2021.). Além disso, estudos demonstram a eficácia da tecnologia assistiva em sala de aula no propiciamento de acessibilidade para pessoas cegas, surdas, ou com síndrome de Down (CRISTÓVÃO; RETORTA, 2017RETORTA, M. S.; CRISTÓVÃO, V. L. L.Visually-impaired Brazilian students learning English with smartphones: Overcoming limitations. Languages, v. 2, n. 3, p. 12, 2017.; NOGUEIRA; CABELLO, 2017NOGUEIRA, A.; CABELLO, J. Considerações sobre educação de surdos e tecnologias a partir da análise das estratégias de ensino de um professor surdo. Texto Livre: linguagem e tecnologia, v. 10, n. 1, p. 242-256, 2017.; MURO; SANTANA; RUIZ, 2012MURO B. P. H.; SANTANA, P. C. M.; RUÍZ, M. Á.G.. Uso de interfaces tangibles en la enseñanza de lectura a niños con síndrome de Down. El Hombre y la Maquina, n. 39, p. 19-25. Maio-Ago. 2012).

Por outro lado, esses benefícios aparentam contemplar apenas uma parcela da população brasileira, visto que 40 milhões de brasileiros não possuem conexão com a rede em seus domicílios, uma vez que o acesso à internet é correlato à renda familiar e grau educacional (IBGE, 2019IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018 (PNAD Contínua 2018). Rio de Janeiro: IBGE, 2019). Do mesmo modo, uma pesquisa do British Council sobre o Ensino de Inglês na educação pública (BRITISH COUNCIL, 2015BRITISH COUNCIL. O ensino de inglês na educação pública brasileira. Instituto de Pesquisas Plano CDE. 1 ed. São Paulo, 2015.BULFIN, S.; JOHNSON, N.; BIGUM, C. Critical Is Something Others (Don’t) Do: Mapping the Imaginative of Educational Technology. In: BULFIN, S.; JOHNSON, N.; BIGUM, C. Critical perspectives on technology and education. 1. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2015. cap. 1, p. 1-15., p. 15-16) revela que os professores apontam a falta de recursos como a principal dificuldade encontrada — 43% apontam a falta de recursos tecnológicos. No mesmo estudo, apenas 24% dos professores indicam ter conexão com a internet em suas salas de aula. Mais recentemente, Liberali (2020) discute a evidência dessas lacunas no contexto da pandemia de COVID-19, e aponta que pouco foi feito pelos governos federal e estaduais para mitigar os problemas de acessibilidade às tecnologias durante o período.

Selwyn et. al (2020)SELWYN, N.; HILLMAN, T.; EYNON, R.; FERREIRA, G.; KNOX, J.; MACGILCHRIST, F.; SANCHO-GIL, J. What’s next for Ed-Tech? Critical hopes and concerns for the 2020s. Learning, Media and Technology. v. 45, n. 1. p. 1-6, 2020. DOI: 10.1080/17439884.2020.1694945
https://doi.org/10.1080/17439884.2020.16...
discutem as novas formas de configuração da inclusão e exclusão digital. Os autores reprovam uma concepção binária da inclusão digital (uso/não uso), que não considera o entendimento de quem de fato se beneficia pelo uso de tecnologias em sala de aula. Assim, políticas públicas que visam sanar essa problemática com a mera inserção de recursos e diretrizes para promover competências digitais, argumentando que a tecnologia é inerentemente positiva e criadora de oportunidades, ignoram as conjunturas socioculturais envolvidas e a lógica mercadológica neoliberal que vem dominando os contextos educacionais. Os autores apontam que muito tem sido “mais do mesmo”, e que os investimentos em tecnologias educacionais têm sido maquiados como uma iniciativa de mitigar desigualdades sociais. Isto é, embora exista uma retórica de acessibilidade e inclusão, os investimentos raramente se centram no combate à desigualdade de fato. A inclusão da tecnologia é vendida como remediadora de dificuldades, sem uma real preocupação com as possibilidades criadas por ela, além de não atingir as camadas mais desprivilegiadas.

No dia 26 de outubro de 2021 o governo do Paraná lançou a “Plataforma Inglês Paraná”, em parceria com a plataforma Education First - English Live. A plataforma se configura em um curso on-line de inglês que pode ser acessado por computadores e celulares. O objetivo principal desta ferramenta, como descrito no site “Escola Digital Professor”,

é favorecer o processo de ensino e aprendizagem da Língua Inglesa na rede, ofertando aos alunos da rede básica de ensino, um curso on-line completo de Língua Inglesa, seguindo o Quadro Comum Europeu de Referência para Línguas (CEFR), contemplando habilidades da BNCC e objetivos de aprendizagem previstos para cada etapa do nosso currículo.

A plataforma possui um teste de nivelamento e um curso dividido em 13 níveis, do básico ao avançado. As avaliações, bem como o progresso nos módulos, são integradas ao novo sistema de gestão, e podem ser acompanhadas pelos professores e pela Secretaria de Educação do Paraná (SEED). Os Núcleos Regionais de Educação (NRE) têm premiado professores com certificados e aulas com “professores nativos” dentro do aplicativo, tendo como critério a maior adesão de alunos a plataforma. Ademais, o recurso foi utilizado no “Aula Paraná”, transmitido pela televisão e aplicativos durante o período de distanciamento social.

Figura 2
A plataforma “Inglês Paraná” em evidência no “Aula Paraná”

Em nossa concepção, essa política educacional objetiva uma padronização do ensino de inglês no Paraná, retirando completamente a autonomia dos professores. Espera-se que os professores a “integrem a suas aulas”, embora a plataforma seja de auto acesso. Esse posicionamento da Secretaria de Educação implica em um desempoderamento do professor em suas salas de aula. Primeiro, porque essa política aparenta dizer que o professor não domina o conteúdo a ser ensinado, e a tecnologia vem para suprir essa falha. Segundo, parece ignorar completamente a falta de acesso à internet e aparelhos eletrônicos por parte de muitos alunos e professores.

Tendo isso em vista, o presente artigo visa analisar as representações veiculadas na esfera jornalística e mídias sociais em relação à Plataforma Inglês Paraná. Para tal, nos ancoramos no referencial teórico de perspectivas críticas sobre tecnologia na educação (APPLE; JUNGCK, 1990APPLE, M. W.; JUNGCK, S. “You Don’t Have to Be a Teacher to Teach This Unit”: Teaching, Technology, and Gender in the Classroom. American Educational Research Association, v. 27, ed. 2, p. 227-251, 1990; SANTOS, 2007SANTOS, S. P. d. Entre o discurso modernizante e a precariedade da prática: Núcleo de Tecnologia Educacional e formação de professores. Orientadora: Ruth Catarina Cerqueira Ribeiro de Souza. 2007. 204 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007.; SELWYN, 2010SELWYN, N. Schools and Schooling in the Digital Age: A Critical Analysis 1a. ed. Londres: Routledge, 2010., 2012, 2013SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28.), da Análise Crítica do Discurso (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse. In: CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. p. 37-59; FAIRCLOUGH, 1989FAIRCLOUGH, N. Language and power. Londres: Longman,1989., 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova York: Routledge, 2003.; HEBERLE, 1997; FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
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; RAMALHO; RESENDE 2011; ROGERS, 2011ROGERS, R. Critical Approaches to Discourse Analysis in Educational Research. In: ROGERS, R. (Org.) An introduction to critical discourse analysis in education. 2. ed. Nova York e Londres: Routledge, 2011.), da Linguística Sistêmico Funcional (HALLIDAY, 1978; FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
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; FUZER; CABRAL, 2014FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Mercado de Letras, 2014.;) e da Teoria de Representação de Atores Sociais (VAN LEUWEEN, 2008).

Desta forma, apresentaremos primeiramente o referencial teórico que pauta este estudo. Em seguida, detalharemos os procedimentos teórico-metodológicos empregados para a análise. Posteriormente, traremos os resultados e a sua discussão. Por fim, traçaremos nossas considerações finais.

Tecnologias digitais de informação e comunicação em sala de aula

A tecnologia digital faz parte da educação atual de uma forma que teria sido difícil de imaginar até alguns anos atrás. Sua presença é fortemente conectada à vida cotidiana das pessoas, e são poucas as áreas da educação que permanecem intocadas pelo ‘digital’, de uma forma ou de outra. Dispositivos digitais, como tablets, laptops e smartphones, oferecem suporte a uma diversidade de práticas de aprendizagem informal em casa, no trabalho e em movimento. Computadores e a internet são comumente utilizados em salas de aula e outros ambientes de aprendizagem formal, assim como houve uma crescente no trabalho educacional de forma “virtual”. É perceptível, no dia a dia de escolas e universidades, o uso de sistemas de software que suportam e estruturam a ação individual e coletiva de várias maneiras. Apesar da diversidade e complexidade de manejo das tecnologias, argumento utilizado por muitos dos agentes educacionais, ‘o digital’ é agora, inegavelmente, parte do cenário educacional.

Contudo, embora o potencial das tecnologias digitais para transformar a educação e a aprendizagem tenha sido amplamente difundido desde o início do novo milênio, muito ainda tem a ver com o campo discursivo. Apesar dos discursos enfatizarem o potencial das tecnologias para mudar a forma como aprendemos na era digital e como as novas fontes de informação e formas de interação têm se desenvolvido, no geral as instituições educacionais e ambientes de aprendizagem pouco têm mudado em relação ao que existia há mais de cem anos (SELWYN, 2010SELWYN, N. Schools and Schooling in the Digital Age: A Critical Analysis 1a. ed. Londres: Routledge, 2010.).

Em suma, a maioria dos relatos da era digital é enquadrada em discursos comuns de progresso e do fascínio do ‘novo’. Muitas percepções populares e acadêmicas da tecnologia digital parecem, por exemplo, ser animadas pela crença de que a era digital representa uma “sensação difusa de deixar o passado para trás”. (MURDOCK, 2004, p. 20 apud SELWYN, 2010SELWYN, N. Schools and Schooling in the Digital Age: A Critical Analysis 1a. ed. Londres: Routledge, 2010., p. 7, tradução nossa).

Bigum, Bulfin e Johnson (2015) tecem uma crítica à lógica simplista da integração da tecnologia como uma ferramenta de “aprimoramento de práticas pedagógicas”, e apontam que as pesquisas pouco se fundamentam em questões de aprendizagem. Desta forma, pesquisas desse teor abrem o campo à lógica mercadológica, visto que “professores e pesquisadores se ocupam localizando problemas para os quais certos artefatos tecnológicos possam ser a solução” (p. 6), o que acarreta a repetição de políticas e práticas pedagógicas limitadas.

Integrar as TDICs em currículos ou ambientes de aprendizagem formal continua a ser um desafio significativo. Assim, examinar os discursos sobre tecnologias digitais e compreender suas implicações para o ensino, aprendizagem e desenvolvimento profissional torna-se cada vez mais necessário.

Selwyn (2010)SELWYN, N. Schools and Schooling in the Digital Age: A Critical Analysis 1a. ed. Londres: Routledge, 2010. argumenta que tecnologias digitais acabam por desempenhar um papel de componente integral e naturalizado das condições e arranjos educacionais em todo o mundo. Em consonância a esta colocação, em nossas experiências em contextos educacionais diversos, percebemos uma aceitação generalizada de que as tecnologias digitais devem desempenhar um papel integral no fornecimento de todos os aspectos da aprendizagem ao longo da vida — desde a integração de computadores nas salas de aula de escolas, faculdades e universidades, até a entrega virtual de cursos e treinamentos on-line. Em nossas vivências em instituições escolares, faculdade e universidade, por exemplo, muito esforço é colocado no uso de salas de aula e tecnologias presenciais, juntamente com o uso crescente de formas ‘combinadas’ de oferta de ensino on-line e off-line, bem como totalmente virtual.

Selwyn (2012) argumenta que essa ‘escolaridade virtual’ é agora uma característica crescente dos sistemas escolares na América do Norte e na Europa. A educação virtual também é um elemento-chave da oferta diversificada de ensino superior “offshore” transnacional, com instituições de ensino superior oferecendo educação on-line internacional, programas transnacionais apoiados por parceiros, e até mesmo campus de filiais internacionais. Desta forma, justifica-se uma transição para pesquisas que abordem a tecnologia educacional com um viés crítico, visto que “educação e tecnologia é um tópico amplo, que abrange diversas formas e diversos interesses”. (SELWYN, 2012, p. 7).

Paula (2021)PAULA, A. S. N, The Learning-Market Of Edtech In Brazilian Education: The Impacts Of The Covid-19 Pandemic On The Educational Sector. Journal for Critical Education Policy Studies (JCEPS), v. 19, n. 1, 2021. discute o cenário de políticas educacionais em relação à tecnologia no Brasil, em decorrência da pandemia de COVID-19. O autor aponta o crescimento acelerado de grandes conglomerados comerciais devido a compra de pacotes (softwares, currículos pré-fabricados, materiais digitais, dispositivos digitais, etc.) pelo setor público de forma oportunista, e que tais decisões foram tomadas sem ter em vista as parcelas mais desfavorecidas da população de alunos. O autor ainda afirma que o discurso predominante é o da tecnologia alocada de forma central, e um futuro em que instituições de ensino estarão na ‘nuvem’.

Desta forma, a pandemia de COVID-19 agiu como um fator contextual que favoreceu a introdução imediatista de tecnologias educacionais no contexto público - envolvendo altos investimentos e pouca preocupação com as implicações do uso de tais ferramentas, como por exemplo, a questão do acesso por parte dos alunos e a formação dos professores para mediar suas práticas docentes com as novas ferramentas. Por consequência, tais mudanças atendem os interesses do mercado de causar transformações disruptivas na educação, reconfigurando o papel do professor, forjando novos currículos, ignorando a função social das escolas e quaisquer princípios educacionais (PAULA, 2021PAULA, A. S. N, The Learning-Market Of Edtech In Brazilian Education: The Impacts Of The Covid-19 Pandemic On The Educational Sector. Journal for Critical Education Policy Studies (JCEPS), v. 19, n. 1, 2021., p. 264). Apple e Jungck (1990)APPLE, M. W.; JUNGCK, S. “You Don’t Have to Be a Teacher to Teach This Unit”: Teaching, Technology, and Gender in the Classroom. American Educational Research Association, v. 27, ed. 2, p. 227-251, 1990 discutem os impactos de intervenções estatais na imposição de currículos pré-fabricados, que tratam professores como meros aplicadores de materiais comerciais, os posicionando como profissionais desqualificados. Os autores argumentam que tais imposições muitas vezes colidem com lacunas na formação dos professores, somadas às limitações infraestruturais para a sua execução — nesse cenário, soluções imediatistas e pré-fabricadas ganham espaço:

[Inserções de currículos pré-fabricados] compensam professores pela sua falta de tempo, providenciando materiais prontos ao invés de intervir nas condições básicas [...] Alguns professores podem interpretar isso como útil e considerar como um recurso. Por um outro lado, isso destitui professores do processo vital da elaboração de currículos [...], e a longo prazo limita o escopo intelectual e emocional do trabalho dos professores (APPLE; JUNGCK, 1990APPLE, M. W.; JUNGCK, S. “You Don’t Have to Be a Teacher to Teach This Unit”: Teaching, Technology, and Gender in the Classroom. American Educational Research Association, v. 27, ed. 2, p. 227-251, 1990, p. 248, nossa tradução).

O estudo de Santos (2007)SANTOS, S. P. d. Entre o discurso modernizante e a precariedade da prática: Núcleo de Tecnologia Educacional e formação de professores. Orientadora: Ruth Catarina Cerqueira Ribeiro de Souza. 2007. 204 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2007. ilustra essa desqualificação no Brasil. O autor aponta que, apesar do discurso modernizante de programas do estado para a inserção de tecnologias nas escolas, as práticas são precárias — visto que a formação dos professores se dá de forma rápida e rasa, a fim de baratear essa formação, consequentemente não atingindo os objetivos do investimento. Fica claro que, por muitas vezes, os treinamentos para professores (diferentes de uma formação) relativos à tecnologia são feitos de forma rápida, acrítica, e consequentemente, alienadora. As ferramentas tecnológicas/digitais são inseridas nos contextos educacionais de forma impositiva, impedindo a agência dos professores neste processo.

No que se refere aos discursos sobre tecnologias educacionais, Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28. acredita que uma análise discursiva sobre a temática pode ser reveladora, em contraponto ao senso comum da “virada tecnológica” que tem dominado a discussão nas últimas décadas, permitindo um entendimento de como estas representações são transmitidas e legitimadas. Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28. aponta o discurso comum da tecnologia como uma inserção disruptiva no campo da educação, sendo a tecnologia comumente associada a mudanças e transformações. Dentre os discursos recorrentes, o autor faz duas distinções: o discurso da re-escolarização e o de-escolarização.

A re-escolarização se refere às propostas de reconfiguração de espaços escolares de forma a empregar tecnologias em suas práticas, propiciando experiências participativas e criativas e desafiando as relações existentes nas instituições. Tal discurso se pauta em pedagogias que priorizam a construção de forma comunitária, personalizada e lúdica — fomentando as “habilidades do século 21”. Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28. ilustra a apropriação desse discurso por empresas de tecnologia (figura 3) que, por sua vez, reorientam seus produtos e ações de marketing de modo a espelhar esses princípios, bem como a firmar parcerias público-privadas e influenciar políticas públicas.

Figura 3
Banner em site da Microsoft

Já o discurso de de-escolarização se refere à capacidade da tecnologia de completamente ocupar instituições educacionais, promovendo conceitos de “autodeterminação, auto-organização, autonomia e controle” (SELWYN, 2013SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28., p. 6). Essa concepção valoriza práticas que formem alunos independentes por meio da experimentação contínua. Na prática, esses discursos se materializam na distribuição de aparelhos e acesso a plataformas e cursos, valorizando um “individualismo que parte da crença do auto determinismo” (SELWYN, 2013SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28., p. 8) dos alunos. Normalmente, tal discurso é travestido de uma preocupação social de “prover” aqueles que não têm acesso à educação formal.

Além disso, o discurso da de-escolarização promove o encobrimento dos professores, visto que grande parte da mediação dos processos educacionais tem como recurso plataformas de auto acesso. Nesse sentido, professores são posicionados como “instrutores” que indicam quais plataformas utilizar, bem como guiam alunos nos procedimentos técnicos referentes ao acesso e utilização dessas plataformas.

Em suma, Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28. aponta questões a serem tratadas no âmbito da educação perante essas tecnologias: o discurso de individualização de práticas educacionais, a informalização, o apagamento de diversidades em comunidades de prática, o aprendizado como competição, a mercantilização da educação e sua reconfiguração como uma commodity, e o apagamento das relações sociais no processo de ensino e aprendizagem e dos aspectos emocionais envolvidos na aprendizagem.

Análise Crítica do Discurso

A Análise Crítica do Discurso (ACD) é uma abordagem teórica crítica para os estudos do discurso, com foco nos efeitos ideológicos que os eventos discursivos (ou textos, num sentido amplo) exercem sobre formas de nos relacionarmos e agirmos socialmente, nossas formas de ser (ou nossas identidades), e nossos sistemas de valores, crenças e atitudes (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
https://revistas.pucsp.br/index.php/delt...
, p. 740). Situada no campo dos estudos linguísticos como abordagem interdisciplinar que toma a linguagem como prática social, a ACD se insere na tradição das ciências sociais críticas (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova York: Routledge, 2003.).

Considerando que “toda prática social é tanto produtiva quanto reflexiva, isto é, toda prática inclui pessoas envolvidas em relações sociais aplicando tecnologias a materiais, mas também inclui representações dessa prática como parte integrante da própria prática” (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
https://revistas.pucsp.br/index.php/delt...
, p. 740), a ACD objetiva contribuir para reflexões sobre questões relacionadas a poder e justiça. Nas práticas sociais, “a linguagem se manifesta como discurso: como uma parte irredutível das maneiras como agimos e interagimos, representamos e identificamos a nós mesmos, aos outros e a aspectos do mundo” (RAMALHO; RESENDE 2011, p. 15).

Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse. In: CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. p. 37-59 usam o termo “discurso” para se referir aos elementos semióticos (como a língua, linguagem corporal, retórica, imagens etc.) de práticas sociais em relação a outros elementos não discursivos, como as atividades produtivas, meios de produção, relações sociais, identidades, valores culturais e consciência (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis as a method in social scientific research. In N.W., R. & M., M. (ed.) Methods of critical discourse analysis. London, Thousand Oaks, Nova Delhi: Sage Publications, 2001. p.121-p.136.). Nessa perspectiva, uma análise crítica do discurso pode fornecer esclarecimentos sobre as diferentes estruturas sociais e como elas se configuram por meio de discursos, bem como sobre a forma como elas são percebidas e construídas socialmente por atores sociais — e como elas são constituintes de aspectos identitários.

Partindo destes pressupostos, Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse. In: CHOULIARAKI, L; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. p. 37-59 apontam a necessidade de uma teoria dialética da linguagem, que seja capaz de captar a complexidade do discurso, considerando suas formas e seus aspectos sociais. Nesse sentido, os autores defendem, como teoria linguística de base, a linguística-sistêmico funcional (LSF, doravante) de Halliday (1978), que concebe a linguagem em relação a sua função social e constituinte de práticas sociais. Rogers (2011)ROGERS, R. Critical Approaches to Discourse Analysis in Educational Research. In: ROGERS, R. (Org.) An introduction to critical discourse analysis in education. 2. ed. Nova York e Londres: Routledge, 2011. explica que, na LSF, o estudo da linguagem se foca nas escolhas empregadas por atores para representar suas visões de mundo, relacionar-se com os demais e construir suas identidades discursivamente. Nesse sentido, a autora adiciona que significados estão em constante construção e negociação dentre os diversos sistemas de representação.

Segundo Fairclough (2003, p. 18)FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova York: Routledge, 2003., as representações ideológicas contribuem para “estabelecer e manter relações de poder, dominação e exploração”, e [...] muito frequentemente os textos realizam ações estratégicas (e.g. procuram influenciar, dirigir ou modificar o comportamento dos/as receptores/as) mascaradas como trocas de conhecimento, ou ações comunicativas (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova York: Routledge, 2003.).

Além disso, para investigar os significados representacionais em um texto, é possível “analisar, em nível micro textual, os grupos lexicais (i.e., os grupos de significados) que predominam nesses textos, e que visões de mundo esses significados constroem” (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
https://revistas.pucsp.br/index.php/delt...
, p. 740). Dessa forma, o léxico tem dupla função em um texto: ele ao mesmo tempo manifesta e cria a maneira como contemplamos a realidade. Por meio de nossas escolhas lexicais demonstramos nossos valores e crenças, bem como nosso posicionamento ideológico, político e social (FAIRCLOUGH, 1989FAIRCLOUGH, N. Language and power. Londres: Longman,1989.).

Fuzer e Cabral (2014, p. 33)FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Mercado de Letras, 2014. discutem a função ideacional (ou experiencial) da linguagem e postulam:

A função experiencial é responsável pela construção de um modelo de representação de mundo. Sua unidade de análise é a oração. [...] Quando se analisa a oração, o sistema relevante considerado é conhecido como transitividade, que dá conta da construção da experiência em termos de configuração de processos, participantes e circunstâncias. Nesse sistema, a oração é vista como representação.

De modo a analisar as representações presentes no texto jornalístico selecionado, neste trabalho nos centraremos na identificação dos processos atribuídos a diferentes atores sociais representados no texto. Nossa análise consistirá na identificação e exploração do campo semântico criado pelas escolhas lexicais de representação.

Como corolário da LSF, Van Leeuwen (2008)LEEUWEN, T. V. Representing Social Actors. In: Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. p. 23-55 propõe categorias de análise que visam descrever as representações de atores sociais, demonstrando a sua agência ou submissão em práticas sociais recontextualizadas em textos. Justificamos a seleção destas categorias de análise partindo do pressuposto da desqualificação de professores (APPLE; JUNCK, 1990APPLE, M. W.; JUNGCK, S. “You Don’t Have to Be a Teacher to Teach This Unit”: Teaching, Technology, and Gender in the Classroom. American Educational Research Association, v. 27, ed. 2, p. 227-251, 1990) trazida pelas tecnologias. Van Leeuwen (2008)LEEUWEN, T. V. Representing Social Actors. In: Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. p. 23-55 propõe duas categorias essenciais para análise de representações de atores sociais em textos: a exclusão e a inclusão.

A exclusão de atores sociais pode se dar por supressão ou encobrimento. Na supressão, o ator social é completamente excluído da ação social recontextualizada no texto. Já na categoria de encobrimento, o ator social é encoberto e recebe pouca evidência, embora seja mencionado, buscando desenfatizar a sua participação.

Por sua vez, a inclusão pode se dar por ativação ou passivação - “a ativação ocorre quando atores sociais são representados de forma ativa, forças dinâmicas na ação, a passivação é quando são representados como submetidos a atividade” (VAN LEEUWEN, 2008LEEUWEN, T. V. Representing Social Actors. In: Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. p. 23-55, p. 31). Para Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. Londres e Nova York: Routledge, 2003., a ativação caracteriza uma relação de poder, enquanto a passivação acentua a submissão dos atores sociais envolvidos.

Por meio dessas categorias de análise buscamos identificar as relações de poder expressas por meio da linguagem, com enfoque no campo semântico referente aos processos realizados, bem como nas questões da agência e passivação dos atores sociais envolvidos.

Metodologia da Pesquisa

O texto selecionado para a análise foi publicado na Agência de Notícias do Paraná, canal oficial do Governo do Estado, no dia 26 de outubro de 2021.A notícia é intitulada “Com plataforma digital, programa Inglês Paraná facilita aprendizado do idioma na rede estadual” e é assinada como “Editoria” da Agência Estadual de Notícias (AES).

Para a análise, o texto foi dividido em 34 excertos, cada um contendo de duas a quatro orações de modo a organizar a análise. Em seguida, os excertos foram categorizados de acordo com os participantes representados (o Estado; a tecnologia; a língua inglesa; os estudantes; os professores). Identificamos as escolhas lexicais referentes aos processos, bem como a recorrência dos processos em cada grupo de participantes, buscando descrever as representações mais salientes. Também apontamos de que formas tais participantes são incluídos ou excluídos nessa recontextualização da prática social de ensinar inglês na escola pública em um cenário de tecnologização.

Quadro 1 Ilustração de categorias de análise de atores sociais
Categorias de análise
Processos Campo semântico realizado em processos
Representação de atores sociais Inclusão Exclusão
Ativação Passivação Supressão Encobrimento
  • Fonte: Os autores, baseado em (VAN LEEUWEN, 2008LEEUWEN, T. V. Representing Social Actors. In: Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. New York: Oxford University Press, 2008. p. 23-55; FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, D. C. Linguagem e gênero social: contribuições da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional. DELTA: Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, [S. l.], v. 25, n. 3, 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/28295. Acesso em: 25 fev. 2022
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    )
  • Resultados e Discussão

    Esta seção está organizada focalizando os diferentes atores sociais representados na notícia divulgada pela AES sobre o lançamento da plataforma Inglês Paraná: primeiramente, o estado, seguido da tecnologia, da língua inglesa, dos estudantes e, por fim, dos professores.

    O estado

    A representação do “Estado” se deu por meio de diversos recursos — ora como uma coletivização: “o estado”, “a secretaria de educação/SEED”, “o Paraná”; ora como funcionalizações (e representações específicas): “o governador Carlos Massa”, “o secretário de educação Renato Feder”, e pelas nominalizações “o investimento” e “o programa”.

    • o programa oferta um curso online (2)

    • o investimento é de 13 milhões (3)

    • o Governador [...] ressaltou que os alunos terão a oportunidade (6)

    • [Renato Feder] criamos o inglês Paraná visando preparar nossos estudantes (12)

    • A SEED adquiriu neste mês 8.827 (32)

    Vale ressaltar o grande número de representações/agentes que caracterizam o estado, bem como a escolha da nominalização “o investimento”. O texto parece buscar fortemente representar os diferentes órgãos e pessoas envolvidas para a realização do programa. Nestas categorias, apenas dois atores sociais são representados por especificação: o Governador Carlos Massa Ratinho Junior e o Secretário de Educação Renato Feder. Os demais envolvidos (professores atuantes na Secretaria da Educação e do Esporte — SEED, por exemplo) são representados por coletivização (O Estado, a SEED). Desta maneira, é dado um destaque a pessoas específicas, representadas como as grandes responsáveis pelo projeto — consequentemente, atribuindo-lhes a agência dos demais processos representados.

    Em seguida, apresentamos os processos atribuídos aos atores sociais que representam o estado. Os processos foram reproduzidos no infinitivo, e os excertos foram indicados entre parênteses, separados por vírgula quando há mais de uma ocorrência.

    Quadro 2 Representações do estado
    Ator social Processos
    O Estado

    Ratinho (Governador)

    O estado

    O Governo

    O Paraná

    O programa

    O investimento

    Renato Feder (Secretário de Educação)

    A SEED

    ofertar (2); investir (3,33); estimular (4); facilitar (4); oportunizar (6); auxiliar (11); criar (12); preparar (12); beneficiar (13); treinar (15); implementar (15), modernizar (17, 17); inovar (17, 29); preparar (31); dar suporte (32); lançar (34); levar (34)
  • Fonte: Os autores
  • Foram identificados 20 processos associados aos atores sociais que caracterizam o Estado. Percebe-se que grande parte dos verbos identificados representa processos materiais, assim como o estado é representado como ator do processo em todas as ocorrências — com exceção de quando o estado é caracterizado por uma nominalização, como “trazer o que tem de mais moderno”, “o investimento” e “inovações que o Paraná tem lançado” (grifos nossos). No campo semântico, notamos duas tendências:

    Primeiramente, processos materiais que reforçam uma ideia de bem-estar social promovidos pelo estado por meio da integração tecnológica:

    • [...] o programa auxiliará o estudante ingressar no mercado de trabalho (11)

    • [...] o programa oferta um curso online (2)

    • [...] o programa beneficiará a 420 mil alunos e[...] 4 mil professores (13)

    • O investimento foi de R$ 34,4 milhões, atendendo 481 escolas. (33)

    • [...] a Secretaria também lançou o Programa Robótica Paraná, levando aulas de programação a alunos das escolas estaduais (34)

    Além disso, a noção de bem-estar social é reforçada pelo apelo a um teor econômico que parece estar evidenciado no processo material nominalizado (investimento). Observa-se a noção de “importar”, expressa pelo processo mental ‘se inspirar’ no excerto 17.

    • O investimento é de 13 milhões (3)

    • O investimento foi de cerca de R$ 13 milhões (14)

    • [O Governo e a SEED] estamos nos inspirando nos países de primeiro mundo para trazer o que tem de mais moderno (17)

    • A SEEDadquiriu neste mês 8.827 computadores (32) [...] o investimento foi de R$ 34,4 milhões (34)

    A segunda noção representada é a de transformação (intelectual e econômica) e projeção do futuro por meio das tecnologias, proporcionadas pelo estado:

    • [o estado tem] o objetivo de estimular e facilitar o aprendizado (4)

    • o programaauxiliará o estudante a ingressar no mercado de trabalho (11)

    • Modernizar e inovar a educação é um grande foco do Governo. (17)

    • a outras inovações que o Paraná tem lançado (29)

    Vale notar também que o estado consta como agente ativo em 16 dos 34 exemplos. Desta forma, fica evidente que existe um destaque e promoção de instâncias estatais como os principais agentes sociais das políticas e práticas educacionais envolvidas.

    A tecnologia

    A representação da “tecnologia” se concretizou em agentes similares: “plataforma digital”, “curso on-line”, “plataforma de ensino on-line”, “plataforma”, ‘’aplicativo”, ‘’sistema” e ‘’sistema digital”.

    Com diferentes termos utilizados para se referir à “Plataforma digital” desenvolvida pelo Estado, o texto ilustra a tecnologia digital existente na iniciativa e representa a modernização que busca enfatizar. Além disso, a nominalização “o investimento” surge mais uma vez como forma de demonstrar os esforços financeiros empenhados na implementação da plataforma.

    • O investimento foi de cerca de R$ 13 milhões, aplicados especialmente no desenvolvimento do sistema digital. (14)

    • [...] a plataforma se soma a outras inovações que o Paraná tem lançado para criar uma educação de referência internacional. (29)

    Apresentamos a seguir, no Quadro 3, os processos atribuídos aos atores sociais que representam a tecnologia. Assim como anteriormente, os processos foram reproduzidos no infinitivo, e os excertos indicados entre parênteses foram separados por vírgula no caso de mais de uma ocorrência.

    Quadro 3
    Representações da tecnologia

    Identificamos 11 processos voltados aos atores sociais que ilustram a tecnologia, todos com carga positiva e de caráter agregador, por meio dos verbos utilizados. Ao declarar que a plataforma “facilita o aprendizado do idioma”, “se soma às aulas de inglês da escola”, “estimulando o aprendizado”, denota-se que a plataforma será capaz de trazer benefícios inovadores para o ensino e aprendizagem da língua estrangeira.

    • Com plataforma digital, programa Inglês Paraná facilita aprendizado do idioma (1)

    • [...] a iniciativa disponibiliza uma plataforma de ensino online que se soma às aulas de inglês da escola estimulando o aprendizado (5)

    A tecnologia, por meio dos atores sociais “sistema e plataforma”, ilustra o processo de “ofertar” um curso completo, implicando uma insuficiência das práticas de ensino já existentes. Da mesma forma, ao “treinar” os professores para o uso do sistema, coloca-se o professor como um ator social passivo. A plataforma seria o agente do ensino e aprendizagem, e o professor é colocado como um instrutor que maneja o sistema já programado. A palavra “treinar” pode assumir uma conotação instrumental no cenário educacional.

    • O sistemaoferta um curso completo de inglês (8)

    • A secretaria treinou os professores para o uso da plataforma (14)

    A plataforma é, mais uma vez, colocada como agente no processo de ensino com os verbos “permite” e “adequa”. Segundo o texto, a plataforma “permite” ao professor acessar informações individualizadas de cada aluno, “avaliando” sua evolução, ou seja, o professor é mais uma vez colocado como sujeito passivado na situação, apenas manejando um sistema.

    • A plataforma também permite ao professor acessar informações individualizadas sobre cada estudante, avaliando sua evolução (21)

    • Ela acrescenta que o sistema é ótimo para estudar, já que se adequa às necessidades de cada aluno. (25)

    Em continuidade, é colocado que a plataforma “tem” uma linguagem voltada para o mundo corporativo, além de “se somar” a outras inovações e “criar” uma educação de referência internacional. A tecnologia é mais uma vez vista como solução para todos os problemas de ensino de inglês na escola, tendo o poder de renovação e criação de um cenário onde o inglês seja aprendido de forma antes não realizada.

    • A plataformatem uma linguagem voltada ao mundo corporativo (24)

    • Ela acrescenta que o sistema é ótimo para estudar, já que se adequa às necessidades de cada aluno. (25)

    A tecnologia é colocada como um sujeito ativo, por meio da plataforma on-line resultante dos investimentos do governo. Nessa representação, a tecnologia parece ser capaz de modernizar, beneficiar e facilitar o aprendizado de língua inglesa como nunca. Ao professor, então, cabe o papel de um técnico que simplesmente maneja a plataforma para que a aprendizagem possa ocorrer. Fica clara a ênfase do estado em se projetar como o principal agente social, um agente transformador do ensino/aprendizagem por meio da tecnologia.

    A língua inglesa

    A representação do “Inglês” na notícia selecionada ocorreu em excertos que ora faziam alusão ao inglês como idioma, ora como disciplina escolar. As representações utilizadas foram: “idioma”, “inglês”, “aulas de inglês”, “segunda língua”, “disciplina” e “língua estrangeira”.

    Os processos mais evidentes desse participante são relativos ao programa como propiciador de uma aprendizagem de forma diferenciada, por meio de processos como “ofertar”, “ter a oportunidade de aprender”, “dar a oportunidade”, “garantir”, “permitir a compreensão”. A ideia passada é a de que os alunos terão o privilégio de ter acesso a tal forma de ensino, assim como fica claro que o governo do estado será o benfeitor que dará a oportunidade, garantirá e permitirá que os alunos possam finalmente aprender o inglês.

    • Programa oferta um curso online completo de inglês [...] (2)

    • [...] o governador Carlos Massa Ratinho Junior ressaltou que os alunos terão a oportunidade de aprender inglês de forma moderna [...] (6)

    • [...] ela (a plataforma do curso online de inglês) dá a oportunidade de ele (o aluno) se transformar em um cidadão do mundo: (7)

    • A segunda língua, em especial o inglês, é importante para [...] garantir um bom emprego que tenha essa exigência” (7)

    • Ela pontuou que o conhecimento de inglês colabora para sua futura colocação nos meios acadêmico e profissional, permitindo a compreensão de artigos científicos. (23)

    Além disso, há a noção de que o aprendizado de inglês por meio da plataforma será benéfico e transformador, como expresso nos processos “facilitar”, “estimular”, “se somar”, “impulsionar”, “transformar”, “beneficiar”, atrelados a ideia de que o inglês será mais bem aproveitado por alunos e por professores.

    • Com plataforma digital, programa inglês Paraná facilita aprendizado do idioma (1)

    • Com o objetivo de estimular e facilitar o aprendizado do inglês…” (4)

    • [...] a iniciativa disponibiliza uma plataforma de ensino online que se soma às aulas de inglês da escola, estimulando o aprendizado com atividades audiovisuais na escrita, leitura, fala e escuta.

    • [...] a oportunidade de aprender inglês de forma moderna, impulsionando sua formação para o futuro. (6)

    • [...] ela [a plataforma online de inglês] dá a oportunidade de ele [o aluno] se transformar em um cidadão do mundo: (7)

    • O programa beneficiará inicialmente até 420 mil estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental até o 3º ano do Ensino Médio e mais de 4 mil professores da disciplina na rede estadual. (7)

    Segundo o texto, o diferencial do programa é que ele poderá, a partir da iniciativa do estado, trazer características de modernização ao ensino da língua inglesa, com ares de futuro, apregoando uma transformação do aluno em um cidadão capaz de atuar na esfera global. A plataforma, pensada para estimular e facilitar o aprendizado do inglês e complementar o ensino já ofertado pela escola poderá, segundo o texto, estimular os alunos a ter um melhor desempenho nas atividades.

    A seguir, no Quadro 4, apresentamos os processos relativos aos atores sociais que ilustram o inglês como participante da representação jornalística analisada. Mais uma vez, reproduzimos os processos no infinitivo, com seu complemento quando necessário para a compreensão total.

    Quadro 4
    Representações da Língua Inglesa

    Identificamos 15 processos que se referem à língua inglesa. A grande maioria deles projetam sentidos positivos, benéficos, agregadores à aprendizagem da língua inglesa, com poder transformador, capaz de motivar e estimular os alunos. A língua é um objeto do programa do estado que, por meio da tecnologia, tem o papel de colaborar e permitir que a aprendizagem aconteça.

    Percebemos que a língua inglesa é construída no texto como um objeto resultante do uso da tecnologia, representada pela plataforma on-line e pelos investimentos do governo para sua execução.

    Os estudantes

    A representação dos estudantes se deu de diversas formas: ora por meio de funcionalizações (os estudantes, os alunos); ora por classificações (jovens paranaenses, futuros profissionais); algumas vezes assimilados (a escola), especificados (Joana), e pela nominalização “o aprendizado”. No Quadro 5, a seguir, descrevemos os processos realizados por esse agente. Mais uma vez, os processos estão representados com o verbo no infinitivo. Nas ocorrências nas quais esse agente é passivado, incluímos os processos no particípio ou o pronome pessoal reflexivo.

    Quadro 5
    Representações dos Estudantes

    No campo semântico, podemos observar três tendências: primeiramente, observamos processos relacionados aos benefícios cedidos aos estudantes (é ofertado, são auxiliados, recebem suporte, são atendidos). Além disso, identificamos processos que defendem o caráter transformador da inserção das tecnologias em sala de aula (são estimulados, se impulsionam, crescem, são motivados, se desenvolvem, se transformam). Por último, podemos observar processos materiais esperados dos estudantes, que condicionam o aproveitamento do “benefício” e permitem que a “transformação” ocorra: “fazem, acessam, baixam, estudam”.

    A primeira tendência pode ser observada em 15 dos 25 excertos onde estudantes são representados como atores passivos e beneficiados pelos processos realizados pelo Estado ou pela Plataforma.

    • o objetivo de estimular e facilitar o aprendizado do inglês para os alunos da rede estadual paranaense (4)

    • O sistema oferta um curso [ao jovem] (8)

    • programa beneficiará inicialmente até 420 mil estudantes (13)

    • trazer o que tem de mais moderno para os jovens paranaenses (17)

    A segunda tendência pode ser observada nos excertos que, em grande parte, também representam os estudantes como passivos no processo, a quem é concedido o benefício de se transformar por meio da tecnologia e da língua inglesa:

    • alunos terão a oportunidade de aprender inglês de forma moderna, impulsionando sua formação para o futuro. (6)

    • [a língua inglesa] é importante para o crescimento profissional desse jovem. [a língua inglesa] dá a oportunidade de ele se transformar em um cidadão do mundo: onde for, estará preparado para viajar, fazer um curso fora ou garantir um bom emprego que tenha essa exigência (7)

    • [ensino] que desenvolve autonomia e protagonismo no aluno (19)

    Por fim, podemos observar discursos de autonomia e condicionalidade em processos existenciais, materiais e comportamentais que têm os estudantes como agentes, para que possam desfrutar do benefício e da oportunidade:

    • os estudantes devem concluir todas as lições, atividades e testes de cada estágio de aprendizado. (10)

    • eles [alunos] podem se enquadrar no nível de inglês que já possuem – ou começar do zero”. [...] [Os alunos] estão mais motivados, não ficam apenas esperando o que o professor vai trazer (20)

    • Baseados nas aulas que o aluno faz em casa, os professores podem criar instrumentos avaliativos. [...] Em sala, eu projeto no quadro as lições da plataforma para os alunos e eles podem acessar pelo celular (22)

    • [...] Eu costumo estudar no computador, e baixo lições offline no aplicativo. [...] Isso ajuda porque, quando estou meio sem nada para fazer e sem internet, aproveito para fazer as atividades (25)

    • [o estado] queremos alunos falando inglês, escrevendo bem, sabendo programar, aprendendo matemática e a administrar seu dinheiro” (30)

    Os professores

    Os professores foram representados em 11 dos 34 excertos, majoritariamente de forma coletiva (os professores), por meio do encobrimento (as aulas de inglês da escola, o trabalho, o aprendizado), e na forma de generalizações (escolas). Em alguns dos excertos, o texto representa uma professora especificada (Carolina, eu, ela).

    Quadro 6 Representações dos professores
    Ator social Processos
    O professor

    Professores

    Pronome pessoal

    As aulas de inglês da escola

    O aprendizado

    O trabalho

    Escolas

    Carolina (eu, ela)

    é facilitado (1,21); são ofertados (2); tem a plataforma “somada” a eles (5); são beneficiados (13); são treinados (15); complementam (16); torna-se mediador (19); desenvolve (19); traz (20); podem criar (21); projetam (21); são atendidos (32)
  • Fonte: Os autores
  • O campo semântico criado pela representação dos professores e de seu ofício (o trabalho é facilitado, são ofertados, são beneficiados, são atendidos) reforça a ideia da tecnologia como benéfica aos professores. Assim como o grupo de estudantes, os professores também são representados passivamente, como beneficiários dos processos realizados pela tecnologia e pelo estado, ou são encobertos (as aulas de inglês, o trabalho).

    • Programa oferta um curso online [...] para mais de 4 mil professores. (2)

    • plataforma de ensino online que se soma às aulas de inglês da escola (5)

    • Com certeza o trabalho ficou mais facilitado” (21)

    Quando representados como agentes ativos nos processos, o campo semântico traz a ideia do professor como um complementador do que é dado pela tecnologia, no qual o trabalho consiste na projeção da plataforma a na criação de instrumentos avaliativos.

    • sendo complementado pelos professores na sala de aula (16)

    • [com a plataforma] o professor se torna um mediador do conhecimento, o que desenvolve autonomia e protagonismo no aluno. (19)

    • [os alunos] não ficam apenas esperando o que o professor vai trazer (20)

    • Baseados nas aulas que o aluno faz em casa, os professores podem criar instrumentos avaliativos, fazendo avaliações que são transformadas em nota. Em sala, eu projeto no quadro as lições da plataforma para os alunos e eles podem acessar pelo celular, ou via computador em sala (21)

    É interessante notar que, nesse texto, os professores não são agentes ativos em processos geralmente relacionados à profissão (como, por exemplo, ensinar ou instruir). Os processos realizados por professores são “complementar” a plataforma e reproduzi-la (eu projeto), e avaliar seus alunos com base na plataforma.

    A desqualificação do professor também fica claramente representada no excerto 21, que menciona que os alunos “não vão ficar esperando o que o professor vai trazer”. Dessa forma, o texto reforça a negação do protagonismo do professor. Esse discurso, ainda, é mascarado com a colocação de que “o professor se torna um mediador do conhecimento”. Em nossa concepção, essa colocação remete a uma visão tecnicista do professor como um mero aplicador de ferramentas.

    O Quadro 7 a seguir resume os atores sociais representados na notícia analisada, o número de processos únicos realizados por cada um eles, a recorrência de sua representação no texto, bem como uma síntese dos campos semânticos expressos.

    Quadro 7
    Resumo das representações

    Considerações finais

    Neste artigo, buscamos analisar criticamente o discurso da mídia estatal em relação a Plataforma Inglês Paraná, divulgado na rede de notícias do Governo do Estado do Paraná. Tivemos como objetivo analisar as representações do estado, da tecnologia, da língua inglesa, dos alunos e dos professores no texto escolhido.

    Por meio da Análise Crítica de Discurso, identificamos a representação do Estado como um agente beneficiador dos demais atores sociais representados — salientando o papel da tecnologia e da língua inglesa na criação destes benefícios. A tecnologia e a língua inglesa, aliadas, são representadas como agentes transformadores e aprimoradores de processos educacionais e formação de profissionais qualificados.

    Os alunos, por sua vez, são representados como os grandes beneficiários da inserção da tecnologia educacional. Parte-se do pressuposto de que a inserção da tecnologia irá fomentar autonomia no processo educacional, qualificando os alunos para a vida profissional e social. Percebe-se aqui o discurso da de-escolarização, mencionado por Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28.. Reproduz-se o discurso de que a tecnologia propicia o aprendizado sem a mediação do professor, de forma individualizada, assumindo que estudantes de ensino fundamental e médio tenham completa autonomia em relação a suas experiências educacionais.

    Ademais, esta inclusão da tecnologia é travestida como uma política social: o texto afirma que essa política educacional atende “481 escolas” (excerto 33), sem explicitar que esse número é pouco expressivo, dada a existência de 2.116 escolas estaduais no Paraná. Apenas 22,73% das escolas paranaenses receberão o “benefício”, e uma pequena parcela de alunos poderá “desenvolver sua autonomia” e se tornar “profissionais qualificados”.

    Além disso, percebemos o discurso de desqualificação dos professores. A Plataforma é representada como um recurso que vem suprir lacunas e facilitar o trabalho docente. Nesse cenário, os professores são representados como beneficiários desse processo, embora isso signifique uma visão tecnicista do trabalho docente. Esse posicionamento fica claro na escolha lexical “treinar” professores, em detrimento de “formar” professores. Esse discurso reforça a ideia da simplificação do trabalho docente por meio da inserção (e imposição) de ferramentas.

    Ademais, a análise revela os interesses mercadológicos por trás dessa iniciativa: as representações manifestadas no texto parecem conceber o papel da língua inglesa como uma condição para o trabalho, ao invés de uma concepção que priorize a formação cidadã e crítica. Desse prisma, a língua inglesa (bem como a educação como um todo) é vista como uma mercadoria a ser vendida, atuando como agente que irá incluir ou excluir “futuros profissionais” de práticas sociais do mundo do trabalho.

    Em suma, devemos lembrar que tais discursos sobre a tecnologia educacional são reiterados pela academia e pelos meios de comunicação. Fica evidente a noção de senso comum de que a tecnologia é inerentemente benéfica para a educação, desqualificando professores ao tratá-los como substituíveis e incompletos. Logo, defendemos que pesquisas que abordem a tecnologia em sala de aula sejam orientadas por epistemologias críticas, visando mitigar tais interpretações desqualificadoras e excludentes. Reiteramos o posicionamento expresso por Selwyn (2013)SELWYN, N. Discourses of digital “disruption” in education: a critical analysis. In: Fifth International Roundtable on Discourse Analysis, City University Hong Kong, Maio 23-25, 2013. 2013. p. 1-28.: É preciso reconhecer o interesse mercadológico por trás da visão individualista e onipresente do papel das TDICs em ambientes educacionais, bem como contrapor discursos acadêmicos que se alinham a esses interesses corporativos da indústria de tecnologia educacional. Educadores e pesquisadores podem realizar um papel importante na defesa das tecnologias para agendas de justiça social e igualdade. Tais questões precisam urgentemente vir à tona em resposta ao senso comum, buscando a conscientização sobre relações de poder e conflitos de interesse que permeiam o campo educacional.

    Agradecimentos

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

    Notas

    • 1
      Como evidenciado, por exemplo, no relatório sobre as Olimpíadas de Inglês realizadas pela Embaixada Americana, em parceria com a corporação educacional ChatClass. Segundo o relatório, 47% dos alunos declararam ter uma “motivação muito alta” pela aprendizagem com recursos tecnológicos.
    • 2
      [No colégio] ampliamos os horizontes dos nossos alunos com uma proposta pedagógica em constante evolução [...] Estamos conectados com o nosso tempo, apresentando projetos inovadores que transformam nossos alunos em exploradores confiantes e seguros no mundo moderno.
    • 3
    • 4
    • 5
      O “Aula Paraná” (aulaparana.pr.gov.br/) se refere ao programa do governo estadual de disponibilizar aulas em canais de televisão e no Youtube durante o período de distanciamento social. A plataforma “Inglês Paraná” (http://corporate.ef.com/inglesparana), por sua vez, é um aplicativo terceirizado que disponibiliza atividades baseadas em vídeos e exercícios. Recentemente, a resolução de exercícios oriundos da plataforma, explanados pelo professor, tem sido televisionada.
    • 6
      O autor que embora as condições materiais de instituições de ensino tenham se transformado, as relações sociais inerentes a escola e a relações de poder nela imbuído são fruto de padrões historicamente construídos, como por exemplo, uma interação monológica na sala de aula, políticas top-down quanto escolhas curriculares e, em geral, um ensino voltado a atender demandas do mercado em detrimento de uma formação cidadã crítica.
    • 7
      Deskilled, no original. O termo “deskilling”, se refere a substituição da força de trabalho por uma tecnologia que não necessita de qualificação para operála. Neste texto, utilizaremos o termo “desqualificado” ou “desqualificação” nos referindo a este fenômeno.
    • 8
      Re-schooling.
    • 9
      De-schooling.
    • 10
    • 11
      É relevante ressaltar que o programa pode representar “o investimento”, bem como “a tecnologia”. Fizemos a inclusão levando em consideração o processo que este agente realiza.
    • 12

    Referências

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    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2023
    • Data do Fascículo
      Sep-Dec 2022

    Histórico

    • Recebido
      26 Fev 2022
    • Aceito
      23 Maio 2022
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