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“THE VISIT” (2021), DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE: FEMINISMO LITERÁRIO E FICÇÃO ESPECULATIVA

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE’S “THE VISIT” (2021): LITERARY FEMINISM AND SPECULATIVE FICTION

Resumo

Bastante difundido nos Estados Unidos, o termo “ficção especulativa” indica uma extensa produção literária na qual conjunturas, tempos e espaços alternativos têm sido imaginados, resultando em um corpus literário rico de significados. Este artigo demonstra de que forma a ficção especulativa, conceito controverso, reflete a condição humana a partir de seus mecanismos específicos. Em sequência à discussão teórica, o artigo oferece uma análise do conto “The Visit” (2021), da consagrada escritora Chimamanda Ngozi Adichie, parte da coletânea Black Stars. A investigação evidencia como “The Visit” pode ser lido como exemplo de literatura especulativa, acrescentando a ela o olhar feminista que é próprio da autora. Isso pôde ser depreendido tendo em vista que o uso artístico dos elementos especulativos resulta em uma obra que instiga leitoras e leitores a repensar os absurdos da desigualdade de gênero a partir da criação literária de um matriarcado opressor.

Palavras-chave:
ficção especulativa; história alternativa; matriarcado opressor; Chimamanda Ngozi Adichie

Abstract

Quite widespread in the United States, the term “speculative fiction” indicates an extensive literary production in which alternative conjunctures, times and spaces have been imagined, resulting in a literary corpus rich in meanings. This article demonstrates how speculative fiction, a controversial concept, reflects the human condition from its specific mechanisms. Following the theoretical discussion, the article offers an analysis of the short story “The Visit” (2021), by the renowned writer Chimamanda Ngozi Adichie, part of the anthology Black Stars. The investigation shows how “The Visit” can be read as an example of speculative literature, adding to it the author’s own feminist gaze. This could be implied from the fact that the artistic use of speculative elements results in a work that instigates readers to rethink the absurdities of gender inequality based on the literary creation of an oppressive matriarchy.

Keywords:
speculative fiction; alternate history; oppressive matriarchy; Chimamanda Ngozi Adichie

O termo, a categoria e sua (breve) história

As primeiras ponderações que deram origem a este artigo – um estudo teórico-analítico sucinto dos aspectos especulativos do conto “The Visit” (2021), de Chimamanda Ngozi Adichie – partem do caráter multifacetado do adjetivo “especulativo” em si, aqui discutido para que se possa percorrer uma trajetória responsável rumo ao uso teórico que a expressão “ficção especulativa” veio a adquirir. Cunhado nos Estados Unidos e difundido em países como Reino Unido, Austrália, Canadá, Nigéria e África do Sul, o termo ficção especulativa inclui uma extensa produção literária de escritoras e escritores canônicos e não canônicos dos últimos duzentos anos. Do século XIX, podemos citar como exemplos Mary Shelley, Júlio Verne e H. G. Wells. Das primeiras décadas do século XX, destacam-se Aldous Huxley, George Orwell, Isaac Asimov, Robert Heinlein, Kurt Vonnegut e Ray Bradbury, dentre outros. De 1970 até o presente, a ficção especulativa é frequentemente representada por nomes como Douglas Adams, Ursula K. LeGuin, Octavia E. Butler, Samuel R. Delany, Margaret Atwood, Suzanne Collins, Sheree Renée Tomas, Nalo Hopkinson e Nnedi Okorafor, e assim por diante. Mas afinal, no que consiste o entendimento da literatura dessas autoras e autores como ficção especulativa? E qual a relevância da categoria para os estudos literários?

Este artigo propõe caminhos possíveis no debate referente a estes questionamentos, mas sem a pretensão de apresentar respostas definitivas. Nele, a necessidade de se trabalhar o conceito de “especulativo” vai se desdobrar também na explanação sobre o porquê de a ficção especulativa ser considerada uma categoria controversa, mesmo no contexto em que é aceita. Isso ocorre em grande parte por ela abranger muitos subgrupos, como veremos. As controvérsias, por sua vez, não sinalizam somente dificuldades de categorização, mas também revelam a diversidade e a complexidade de uma produção literária cuja relevância se comprova pela existência de uma rede considerável de pesquisas em universidades, publicações especializadas, associações e conferências internacionais. Em seguida a essa reflexão, o artigo traz um pouco da história daquilo que se tornou ficção especulativa, a fim de contribuir para o entendimento da literatura que veio a ser qualificada como tal.

Após a devida contextualização, uma das possíveis delimitações teóricas é aplicada com a finalidade de se pensar a produtividade artística do uso de mecanismos especulativos na literatura, para depois caracterizar a instigante narrativa selecionada para a análise aqui oferecida. Afinal, quais aspectos desse conto ilustram o caráter especulativo comum aos textos literários nessa categoria? Como “The Visit” se situa em relação aos demais contos da coletânea Black Stars (2021)? À qual subcategoria pertence? De que forma ele se revela um “estranho no ninho” no conjunto da ficção publicada por Chimamanda Adichie?

“Especulativo” é um desses termos cujo uso contemporâneo ainda guarda semelhanças com seus significados primevos. Sua origem está no latim tardio, segundo Smith & Hall (SPECULATIVE, 1871SPECULATIVE. In: SMITH, William; HALL, Teophilus D. A Copious and Critical English-Latin Dictionary. New York: Harper and Brothers, 1871. Disponível em: https://latinitium.com/latin-dictionaries/?t=sh23906. Acesso em: 11 Mai. 2022.
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), que indicam speculativus como aquilo que é “contemplativo, teórico ou abstrato”, sentidos não tão distantes do entendimento central a esta discussão, que é o especulativo como um tipo de criação literária. Para além das definições ligadas à origem do termo, tem-se uma gama de registros semânticos de uso comum, dicionarizados, em que o adjetivo, o substantivo e o verbo podem ser pensados em dois grupos. No primeiro, o de acepções pejorativas, especular é detratar ou tirar vantagem. No segundo, especular carrega sentidos não pejorativos, que são os que nos interessam como alicerce para esta investigação.

Neste contexto não pejorativo, “especular” significa formular hipóteses por meio de estudos (ESPECULAR, 2008-2021ESPECULAR. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2021. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/especular. Acesso em: 04 abr. 2022.
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), nos quais observações minuciosas são feitas, resultando em reflexões intelectuais na esfera teórica, conforme Houaiss (ESPECULATIVO, 2001ESPECULATIVO. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/ apps/uol_www/v6-0/html/index.php#1. Acesso em: 04 mai. 2022.
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) e Merriam-Webster (SPECULATIVE, 2022SPECULATIVE. In: Merriam-Webster.com Dictionary, 2022. Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/speculative. Acesso em: 11 Mai. 2022.
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). Neste sentido, especulações passam a ser entendidas como um tipo de conjectura ou investigação científica não empírica de grande importância porque constituem exercícios que estimulam a criatividade por meio da troca de cogitações, vindo, portanto, a anteceder descobertas importantes e a levar a resultados práticos. Nessa linha, e indo além do uso comum do termo, Alex Wilkie et al (2017)WILKIE, Alex; SAVRANSKY, Martin; ROSENGARTEN, Marsha, (Eds.). Introduction: Beyond the Impasse of the Present. In: Speculative Research: The Lure of Possible Futures. Abingdon: Routledge, 2017. p.iii., em seu livro Speculative Research: The Lure of Possible Futures, argumentam que a pesquisa especulativa é fascinante e sedutora em sua relação com futuros possíveis, respondendo à necessidade de “não apenas explicar criticamente o papel das lógicas de cálculos e racionalidades na gestão de futuros sociais, mas desenvolver abordagens alternativas e sensibilidades que levem a sério os futuros como possibilidades e que demandam novos hábitos e práticas de atenção, invenção e experimentação” (WILKIE, 2017, p. iiiWILKIE, Alex; SAVRANSKY, Martin; ROSENGARTEN, Marsha, (Eds.). Introduction: Beyond the Impasse of the Present. In: Speculative Research: The Lure of Possible Futures. Abingdon: Routledge, 2017. p.iii.).2 2 “…to not only critically account for the role of calculative logics and rationalities in managing societal futures, but to develop alternative approaches and sensibilities that take futures seriously as possibilities and that demand new habits and practices of attention, invention, and experimentation.”

Wilkie et al (2017)WILKIE, Alex; SAVRANSKY, Martin; ROSENGARTEN, Marsha, (Eds.). Introduction: Beyond the Impasse of the Present. In: Speculative Research: The Lure of Possible Futures. Abingdon: Routledge, 2017. p.iii. se referem ao “especulativo” no âmbito da pesquisa científica, mas suas ponderações nos ajudam a pensá-lo no tocante à criação literária. Como veremos, o “especulativo” na expressão “ficção especulativa” está alinhado com as definições que aqui denominei não pejorativas, pois esta literatura vai envolver formulações de situações hipotéticas ricas em detalhes, levando a conjecturas e reflexões de alguma forma ligadas a novos futuros. Nesta linha, pode-se afirmar desde já que a relevância da criação literária especulativa está, em grande parte, ligada a seu potencial transformador, visto que estimula a reflexão crítica sobre questões da condição humana aparentemente imutáveis. Como destaca R. B. Gill (2013)GILL, R. B. The Uses of Genre and the Classification of Speculative Fiction. Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, Manitoba, University of Manitoba, Canada, v. 46, n. 2, p. 71–85, 2013. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/44030329. Acesso em: 14 mai. 2022.
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na epígrafe deste artigo, a representação especulativa trabalha fora da cadeia de causas e efeitos considerada realista. Isto origina narrativas de livre formulação, capazes de repensar conjunturas sem os parâmetros restritivos da realidade vigente.

Para fazê-lo, a ficção especulativa lança mão, dentre vários mecanismos, de tempos, espaços e conjunturas com regramentos que extrapolam o convencional, de maneira que sua leitura conduza à problematização do status quo e à reflexão sobre ordenamentos sociais alternativos às realidades de leitoras e leitores, abrindo, assim, brechas para revisões daquilo que aparenta ser inerente ao mundo contemporâneo.

Não há consenso sobre quando exatamente o adjetivo “especulativa” e o substantivo “ficção” foram reunidos em uma única expressão. Alexander Meireles da Silva (2019)SILVA, Alexander Meireles. Ficção especulativa. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO, Filipe; GARCÍA, Flavio; FRANÇA, Júlio (Eds.). Dicionário digital do insólito ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/f/fccao-especulativa/. Acesso em: 15 abr. 2022.
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, um dos principais pesquisadores no Brasil refletindo sobre esta questão, registra o uso da expressão “ficção especulativa” desde o fim do século XIX. Um consenso entre os especialistas é o fato de que Robert A. Heinlein tenha sido um dos principais divulgadores da noção de ficção especulativa no século XX. Em 1947, Heinlein publica um curto ensaio intitulado “On the Writing of Speculative Fiction”, em que inicia seu texto afirmando: “Há pelo menos duas maneiras principais de escrever ficção especulativa – escrever sobre pessoas ou escrever sobre gadgets” (HEINLEIN, 1993, n. p.HEINLEIN, Robert A. On the Writing of Speculative Fiction. In: Writing Science Fiction & Fantasy: 20 Dynamic Essays by the Field’s Top Professionals. New York: St. Martin’s Griffin, 1993. Disponível em: https://staging.paulrosejr.com/wp-content/uploads/ 2016/12/on_the_writing_of_speculative_ficiton.pdf. Acesso em: 04 abr. 2022.
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). Gadgets são dispositivos tecnológicos como máquinas do tempo, tele-transportadores, carros voadores, replicadores ou neutralizadores, recorrentes na ficção científica, que podemos chamar de elementos não realistas de cunho tecnológico. Escrever “sobre pessoas”, como Heinlein diz, é problemático como categoria porque é amplo demais: a priori, toda literatura é sobre pessoas. Porém, no contexto da discussão de Heinlein, e que nós reiteramos aqui, ele se refere ao foco que narrativas não miméticas têm na condição humana, mesmo que elas venham com a presença de elementos científico-tecnológicos não existentes. Também se pode destacar no ensaio de Heinlein, já bastante mencionado por teóricos que vieram depois, que seu argumento se baseia na noção de uma ficção especulativa no interior da ficção científica, uma “postura restritiva” que não se sustentará, conforme avalia Alexander Meireles da Silva (2019)SILVA, Alexander Meireles. Ficção especulativa. In: REIS, Carlos; ROAS, David; FURTADO, Filipe; GARCÍA, Flavio; FRANÇA, Júlio (Eds.). Dicionário digital do insólito ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/f/fccao-especulativa/. Acesso em: 15 abr. 2022.
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.

Independentemente da classificação de qual seja categoria ou subcategoria, Heinlein prossegue no sentido de estabelecer certa diferença entre ficção científica e ficção especulativa no tocante à plausibilidade do elemento tecnológico. Para ele, haveria um grupo relevante de histórias não consideradas ficção científica porque lidariam com ciência ou tecnologia plausíveis a seu tempo. Tais narrativas então poderiam ser chamadas de especulativas, desde que trouxessem em suas premissas as noções do “suponha que” ou o famoso questionamento “o que aconteceria se...?”. Já as histórias que extrapolariam a ciência e a tecnologia de seu tempo, referenciando o futuro, seriam denominadas histórias especulativas de ficção científica, pois a extrapolação do presente produziria novas situações que, por sua vez, criariam novos problemas humanos: “E nossa provisão é sobre como os seres humanos lidam com esses novos problemas” (HEINLEIN, 1993, p.111HEINLEIN, Robert A. On the Writing of Speculative Fiction. In: Writing Science Fiction & Fantasy: 20 Dynamic Essays by the Field’s Top Professionals. New York: St. Martin’s Griffin, 1993. Disponível em: https://staging.paulrosejr.com/wp-content/uploads/ 2016/12/on_the_writing_of_speculative_ficiton.pdf. Acesso em: 04 abr. 2022.
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).

Nas décadas que se seguem aos anos 1940, a evolução no entendimento da noção de ficção especulativa vai mudar em termos de abrangência. O conceito vai deixando de ser exclusivamente associado à premissa da presença de elementos não realistas científicos e tecnológicos, já que o exercício da especulação por meio da imaginação literária pode ser feito sem estes elementos. Em outras palavras, noções e aspectos especulativos não estão restritos à imaginação científico-tecnológica. Assim, a partir desta percepção, o conceito de ficção especulativa passa a fazer sentido se for expandido para englobar outros subgêneros como a fantasia e a literatura distópica, ambas altamente especulativas.

Um momento significativo no caminho histórico trilhado pelo termo é, sem dúvidas, a década de 1960, cujo caráter crítico e questionador do sistema influencia a ideia de ficção especulativa. A contracultura pavimenta o caminho para a revisão da noção de ficção especulativa a partir de Judith Merril que, na introdução ao livro SF: The Best of the Best, reflete sobre a ideia de uma categoria inclusiva a partir da abreviação SF. Merril complica a vida dos que desejam categorias de visibilidade simples e de fronteiras claramente definidas: “FC é uma abreviação para Ficção Científica (ou Fantasia Científica). Fantasia Científica (ou Ficção Científica) é realmente uma abreviação também. Aqui temos algumas coisas que esta abreviação pode significar” (MERRIL, 1959, n.p.MERRIL, Judith. Introduction. In: SF: the Best of the Best (New York: Delacorte Press, 1967). Disponível em: https://www.bl.uk/collection-items/judith-merrils-definition-of-sf-science-fiction. Acesso em: 04 abr. 2022.
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, grifo da autora).

A autora segue defendendo a ideia de que na sigla SF para science fiction, a letra “S” poderá ser de science (ciência), space (espaço), satellites (satélites), starships (naves estelares), e solar exploring (exploração solar), além de semântica, sociologia, sátira, spoofing, suspense e serendipidade. A letra “F” em “SF”, para Merril, é ainda mais diversificada, podendo incluir: fantasia, ficção, fábula, folclore, fairy tale (conto de fadas), futuro, forecast (previsão) etc.: “Misture bem. O resultado é SF, ou speculative fun (diversão especulativa” (MERRIL, 1959, n.p.MERRIL, Judith. Introduction. In: SF: the Best of the Best (New York: Delacorte Press, 1967). Disponível em: https://www.bl.uk/collection-items/judith-merrils-definition-of-sf-science-fiction. Acesso em: 04 abr. 2022.
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), finaliza a autora.

Radicalmente inclusiva e plural, a discussão feita por Merril expande a sigla SF para muito além de sua superfície como simples acrônimo de Science Fiction, que a princípio ela já considerava também Science Fantasy ou Fantasia científica. Merril reflete criativamente firmando o principal motivo pelo qual temos hoje a expressão ficção especulativa como guarda-chuva para todos os gêneros narrativos não miméticos que lutavam e lutam por mudanças sociais, conforme avalia Marek Oziewicz, em “Speculative Fiction” (2017). O autor destaca como o trabalho de Judith Merril pode ser considerado um incentivador no desenvolvimento de uma produção substancial de ficção especulativa feminista nas décadas seguintes, permanecendo “uma influência duradoura para várias escritoras, incluindo Ursula K. Le Guin, Doris Lessing e Margaret Atwood” (p. 4-5).

Publicado em 2017, o artigo de Oziewicz é bastante relevante na elucidação deste conceito teórico, merecendo, portanto, um comentário mais detalhado. O autor realiza a tarefa de percorrer a trajetória da categoria, delimitando-a em seus diferentes tempos históricos e localizando-a em três momentos: a) quando entendida como um subgênero de ficção científica com foco nas questões humanas e não tecnológicas; b) como gênero distinto e oposto à ficção científica em seu foco exclusivo em futuros possíveis e c) como uma supercategoria para todos os gêneros que deliberadamente se afastam do real.

É o terceiro momento, que vê a ficção especulativa de forma abrangente, que nos parece o mais relevante no século XXI. Oziewicz confirma esta noção de supercategoria como uma espécie de linha de chegada após um percurso de oito décadas: “uma categoria inerentemente plural, a ficção especulativa é um modo de experimentação do pensamento que abrange uma visão aberta do real” (OZIEWICZ, 2017, p. 3OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
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), explica o autor. Para ele, a importância de uma literatura que não deseja mimetizar a realidade consensual está cada vez mais evidente. Ela se torna um modo de expressão de grupos marginalizados, tendo em vista que o padrão literário mimético, que tende a ser norma no mundo ocidental, é quebrado pela visão especulativa de autoria indígena, negra, feminina e das comunidades estadunidenses hifenizadas, como os asiático-americanos. Essas autoras e autores têm urgência em imaginar futuros distintos que os incluam e não repliquem a invisibilização dos grupos minoritários a que pertencem, o que já predomina na literatura mainstream.

Outro aspecto que evidencia a importância da ficção especulativa, segundo Oziewicz, se vincula ao debate do que é realidade e, por consequência, ao realismo nas artes, que trata da busca ocidental pela verossimilhança, a partir da qual se infere que arte relevante seria a que alcançasse o efeito da “correspondência direta com a vida” (OZIEWICZ, 2017, p. 2OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
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). Essa crença teria afastado a atenção dos textos literários não-miméticos. Entretanto, constatou-se, por meio do debate teórico das últimas décadas do século XX para cá, que realidade objetiva e inequívoca é uma suposição que não se sustenta e que representações literárias da realidade sempre estiveram sujeitas a estilizações e convenções, conforme Erich Auerbach, citado por Oziewicz (2017, p. 2)OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
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. Assim, o potencial das literaturas não miméticas, que constituem a ficção especulativa, começa a ser reconhecido e a adquirir prestígio nos centros de pesquisa, já que ela passa a ser redefinida como arte que fornece um tipo específico de resposta à realidade, uma arte que “extrai sua seiva criativa do impulso não mimético”. (OZIEWICZ, 2017, p. 2OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
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).

Uma vez reconhecido seu potencial, a ficção especulativa como supercategoria apresenta o desafio da inclusão dos inúmeros subtipos que deliberadamente se “afastam do real”. Trata-se da tentativa dos que defendem a categoria de abarcar a variedade das narrativas que não desejam ser a imitação da “realidade consensual da experiência cotidiana” (OZIEWICZ, p. 2, 2017OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
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). Sendo assim, ficção especulativa hoje abriga:

... desde fantasia, ficção científica e horror aos seus derivados, gêneros híbridos e cognatos, incluindo gótico, distopia, zumbi, vampiro e ficção pós-apocalíptica, histórias de fantasmas, ficção estranha, contos de super-heróis, história alternativa, steampunk, slipstream, realismo mágico, contos de fadas recontados ou fragmentados e muitos mais.

Vê-se, por esta lista oferecida por Oziewicz, que a categoria ficção especulativa não se firma no século XXI com delimitações facilmente estabelecidas, e que não está fechada, podendo continuar a se expandir ao gosto da criatividade literária. Por um lado, a imensidão, como sabemos, pode ser problemática para os estudos literários profissionais, em que pesquisadores estão sempre em busca de delimitações precisas para pesquisas com prazos e objetivos pré-definidos. Por outro, pode-se afirmar que havia uma necessidade de um termo geral que abarcasse tantas formas narrativas não miméticas. Talvez devido a isso, R. B. Gill (2013)GILL, R. B. The Uses of Genre and the Classification of Speculative Fiction. Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, Manitoba, University of Manitoba, Canada, v. 46, n. 2, p. 71–85, 2013. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/44030329. Acesso em: 14 mai. 2022.
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sugere partirmos de uma acepção aberta: “vamos estipular uma definição de ficção especulativa como trabalhos que apresentam modos de ser que contrastam com os de seus leitores” (GILL, 2013, p. 72-3GILL, R. B. The Uses of Genre and the Classification of Speculative Fiction. Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, Manitoba, University of Manitoba, Canada, v. 46, n. 2, p. 71–85, 2013. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/44030329. Acesso em: 14 mai. 2022.
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). Além de ampla, trata-se de uma definição que insere na discussão a questão do quão relativo o elemento especulativo pode ser, dependendo do ponto de vista da leitora e do leitor. Essa amplitude e essa relatividade também são pensadas por Oziewicz, que vê narrativas especulativas como as que subvertem certa mentalidade pós-iluminista que há muito viria excluindo da “Literatura” histórias que se afastam de uma ideia problemática de realidade consensual, ou que abraçam versões de realidade que são diferentes da empírico-materialista ocidental.

Esta discussão pode se tornar ainda mais complexa. A movimentação em torno da literatura de ficção especulativa, e da categoria que ela representa, nas últimas décadas ganha contornos transdisciplinares ao ser associada a outras linhas de investigação teórica da segunda metade do século XXI, como os estudos culturais, os pós-coloniais e os feministas. Amplamente aplicados na pesquisa em literatura, eles não raro têm sido vinculados aos estudos de ficção especulativa. Nas interseções entre esses campos, a representação especulativa adentra debates sobre poder, raça e racismo, gênero, classe social e xenofobia, por exemplo.

No contexto da expansão da ficção especulativa para além de uma categoria, o encontro transdiciplinar mais surpreendente talvez seja o WhatIF Lab: The Ursula Project - Speculative Fiction Storytelling for Technology Foresight.(Laboratório E-SE: Projeto Úrsula – Narração de Ficção Especulativa para Antecipação Tecnológica). Trata-se de um convênio entre a Universidade de Queensland e o Departamento Australiano de Defesa, Ciência e Tecnologia, lançado em 2022. O projeto parte da pergunta-premissa da ficção especulativa, what if? (e se...?), para a realização de oficinas que reúnem escritores e estrategistas do governo. Na interação, a imaginação literária especulativa é utilizada para a capacitação de funcionários do Departamento de Defesa, a fim de que possam ser preparados para possíveis efeitos disruptivos das novas tecnologias em conjunturas futuristas. Segundo a página eletrônica da Universidade de Queensland, “este projeto ajudará a colocar as artes criativas – e a ficção especulativa em particular [...] – no centro da pesquisa sobre os problemas mais difíceis que o mundo enfrenta atualmente” (WHATIF..., 2022, n.p.WHATIF LAB: The Ursula Project - Speculative Fiction Storytelling for Technology Foresight. The University of Queensland: Faculty of Humanities and Social Sciences, 2022. Disponível em: https://hass.uq.edu.au/ursula-project-speculative-fiction-storytelling-technology-foresight. Acesso em: 27 dez. 2022.
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). Além de ser um exemplo da transdisciplinaridade envolvendo a ficção especulativa, esse projeto corrobora, principalmente, o argumento da relevância adquirida contemporaneamente pelas narrativas que se utilizam de mecanismos especulativos.

“The Visit” no conjunto das narrativas de Black Stars

“The Visit” é um conto lançado em 31 de agosto 2021 pela Editora Amazon Original Stories, somente em formato digital, como parte integrante de uma antologia intitulada Black Stars, dedicada exclusivamente à ficção especulativa de autoria negra. A iniciativa da Editora segue uma tendência das últimas décadas, na qual pode-se citar o pioneirismo de Sheree R. Thomas, que no ano 2000THOMAS, Sheree R. Dark Matter: A Century of Speculative Fiction from the African Diaspora. New York: Grand Central, 2000. organizou Dark Matter: A Century of Speculative Fiction from the African Diaspora. Após significativa repercussão, Tomas lançou outra antologia, Dark Matter: Reading the Bones (2005), dando continuidade ao projeto de tornar mais visível a ficção especulativa de autoria negra.

A autora de “The Visit”, Chimamanda Ngozi Adichie, atualmente está entre as mais influentes do mundo, aclamada, premiada e reconhecida, com suas obras traduzidas em mais de 30 línguas. Em Black Stars, Adichie compartilha o espaço com mais cinco autoras e autores negros contemporâneos: Nnedi Okorafor, Nalo Hopkinson, Nisi Shawl, C.T. Rwizi e Victor Lavalle. Chama a atenção como Black Stars é anunciada pela editora:

Estrelas negras: uma galáxia de novos mundos. O céu não é o limite. De um beco em Nova York a um buraco de minhoca interestelar, o caminho para o futuro parece diferente para todos. Esses contos cósmicos de alguns dos autores negros mais influentes da atualidade revelam um universo de possibilidades.

Esse texto promocional faz promessas de narrativas futuristas “interestelares”, de “novos mundos”, qualificando os textos reunidos como contos “cósmicos”, o que não se constitui em uma descrição precisa. Como todo texto publicitário, foi pensado para atrair consumidores, em especial os de ficção científica, que aumentam na atualidade. A leitura atenta dos cinco contos confirma, por exemplo, que o aspecto futurista está claramente presente em três deles, mas não em “The Black Pages”, de Nnedi Okorafor e em “The Visit”, de Chimamanda Adichie, que se diferenciam das demais histórias pela ausência de elementos tecnológicos e futuristas. Então, desde o curto texto publicitário introdutório, já se verifica que a controvérsia das categorias literárias está presente até mesmo no pequeno universo dos cinco contos de Black Stars. Por outro lado, pode-se concordar com alguns pontos do texto que promove a coletânea Black Stars se entendermos o que esse conjunto de histórias, todas bem construídas, têm em comum: as autoras estão realmente dentre as escritoras negras mais influentes da atualidade, cada narrativa de fato aponta caminhos diferentes a partir de imaginações distintas que também revelam um “universo de possibilidades”.

Outro dado interessante que deixa clara a controvérsia das categorias literárias é a informação sobre as vendas, fornecida pela editora na plataforma online, que pretende destacar o sucesso de “The Visit” em relação aos demais contos, mas acaba revelando outro indicativo. No momento em que este artigo é escrito, o conto está, segundo informações oficiais da Amazon Original Stories, em primeiro lugar de vendas em três categorias: Ficção Científica Distópica, Coleções e Antologias de Fantasia e Importados de História Alternativa. Podemos atribuir o primeiro lugar não necessariamente a uma questão de qualidade literária superior detectada por consumidores, mas ao fato de que Adichie é globalmente mais conhecida que as demais autoras. Mas não é o “sucesso de vendas” que interessa pensar aqui mas, sim, o porquê da inclusão de “The Visit” nestas três categorias. Isto reflete, em primeiro lugar, um tipo de referenciação que leva em conta critérios comerciais, que certamente visam a favorecer a divulgação da obra para um maior número de leitores, no colossal emaranhado do sistema de buscas digitais por produtos literários, no âmbito dos milhões de títulos comercializados pela Amazon. Esta estratégia comercial resulta no fato de que a busca digital feita por interessados em ficção científica, distopia, fantasia e história alternativa, traga “The Visit” no topo de seus resultados. Em segundo lugar, a decisão de incluir “The Visit” nestas categorias pode não ser somente comercial, mas também devido à dificuldade de definir a subcategoria e a permeabilidade entre elas, que se encontram debaixo do grande guarda-chuva da ficção especulativa, condição que mencionei na seção anterior deste artigo.

Uma última conjectura sobre os rótulos utilizados pela editora para “The Visit”, no conjunto das narrativas de Black Stars, diz respeito a pensar a categoria – ou categorias – em que o conto realmente está, independentemente dos critérios comerciais, mas tendo em vista a discussão acadêmico-científica empreendida por especialistas da área. A análise de “The Visit” vai demonstrar sua face especulativa e também que o conto se acomoda na subcategoria “história alternativa”, em que enredos são elaborados no sentido de reescrever e divergir de fatos ou questões históricas estabelecidas como consensuais, trazendo ambientações distintas daquelas às quais se atribui o rótulo de “realidade”. A premissa para a ficção especulativa do tipo história alternativa é a reimaginação de determinado fato passado para, a partir disso, reimaginar também como a sociedade vai prosseguir de maneira distinta do que conhecemos, como explica Harry Turtledove (2002)TURTLEDOVE, Harry. The Best Alternate History Stories of the 20th Century: Stories New York: Random House Publishing Group, 2002.: “Ela [a ficção de história alternativa] geralmente muda uma coisa no passado mais distante e especula sobre o que poderia ter acontecido no passado mais próximo ou no presente” (TURTLEDOVE, 2002, p. ixTURTLEDOVE, Harry. The Best Alternate History Stories of the 20th Century: Stories New York: Random House Publishing Group, 2002.). Desse modo, o famoso questionamento-premissa da ficção especulativa — o que aconteceria se...? — no caso da subcategoria história alternativa fica mais específico: o que aconteceria se determinado fato ou questão histórica tivesse se dado de outro modo?

“The Visit”: um matriarcado opressor imaginado

Em “The Visit”, Chimamanda Adichie narra a história de Obinna, casado, pai de dois filhos, homem de classe média alta, morador em uma região abastada de Lagos, Nigéria. Obinna se encontra bastante ansioso para receber a visita do amigo Eze, vindo dos Estados Unidos, a quem deseja impressionar. Na expectativa da visita, ele passa a se informar sobre questões contemporâneas, que acredita que serão abordadas pelo amigo, porque não deseja parecer desatualizado. Ele troca as cortinas e pondera sobre o estilo de sua casa: “A borda dourada dos móveis seria um pouco brega? Pelo menos o quadro na parede, um Bruce Onobrakpeya, impressionaria Eze” (ADICHIE, 2021, p. 7ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.), avalia o inseguro Obinna.

Na chegada de Eze, os amigos, que não se veem desde os tempos da universidade, retomam o clima de amizade dos velhos tempos. O visitante elogia a casa e a comida, assim como a forma física de Obinna, deixando-o menos inseguro. O contato entre ambos, entretanto, evolui para diálogos mais intensos, que remexem questões do passado que perturbam a estabilidade do presente de Obinna:

“Por que você parou de escrever poesia?” Eze perguntou.

“Eu realmente não era assim tão bom.”

“Você era, sim.”

Eze o estava observando. Obinna sentiu como se Eze estivesse descortinando algo sobre ele, que estivesse vendo por baixo de sua máscara, o vazio que sentia de vez em quando, o desejo temeroso de tentar escrever novamente. (ADICHIE, 2021, p. 14ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.)

O questionamento de Eze sobre Obinna ter deixado de escrever seus poemas soa como uma cobrança para ele, constituindo um exemplo de vários em que Eze o provoca, gerando tensão entre ambos. Sendo progressista, um questionador do sistema, Eze não se conforma com o fato do amigo não ter seguido sua vocação de poeta para se encaixar nos moldes sociais. Por outro lado, Obinna é o tipo que tende a aceitar o mundo e os fatos do jeito em que eles se apresentam, sufocando suas frustrações e se adaptando às convenções sociais.

Assim inicialmente descrito, “The Visit” já despertaria interesse por ser uma narrativa articulada à discussão da condição humana, uma narrativa “sobre pessoas”, como diria Heinlein e outros dos primeiros teóricos articuladores do conceito de ficção especulativa. No entanto, seu artifício principal, responsável pelo forte apelo junto às leitoras e leitores, é sua ambientação inusitada, fruto da imaginação da autora: Obinna e Eze são dois personagens homens inseridos em uma sociedade matriarcal detalhadamente descrita, na qual testemunhamos mulheres exercendo um poder opressivo e homens submissos. Por exemplo, a presidência dos Estados Unidos, assim como a da Nigéria, é ocupada por mulheres. Além das posições de poder político, elas são executivas em grandes empresas, profissionais liberais e são maioria na polícia, tendo liberdade para ir e vir sem limitações. São as mulheres que tomam a iniciativa de cortejar os homens e eventualmente pedi-los em casamento. Os homens, por sua vez, são educados para conseguir boas esposas e para não trabalhar além dos limites do lar, devendo se manter bonitos para as mulheres. Sua mobilidade, tanto quanto suas escolhas de vida, são restritas pelas convenções sociais, incluindo as religiosas.

Nesse matriarcado, o protagonista Obinna é um marido obediente, dono de casa, que cuida dos filhos e dos afazeres domésticos. É casado com a poderosa executiva Amara, a provedora do lar, a quem tenta agradar de todas as formas, providenciando a comida de que ela gosta e dando toda atenção a ela em casa. Amara é diretora em uma multinacional, onde frequentemente trabalha até tarde, já tendo traído Obinna com amantes jovens e bonitos. Em relação a Obinna, Eze é o típico foil character ou personagem contrastante, estratégia criativa na literatura para realçar as características do protagonista por meio de uma oposição óbvia, que induz os leitores a uma comparação. Eze, portanto, está em contraste com Obinna: é o solteiro que resistiu ao casamento, apesar de a namorada ter feito o pedido. Mas no geral Eze é o que não aceita a dominação do sexo forte, as mulheres, que vai morar no exterior a fim de escapar do contexto sexista opressor de seu próprio país. Construído assim, Eze cumpre o propósito de enfatizar a submissão de Obinna à esposa Amara, ao casamento como instituição e ao matriarcado dominante.

Ficção especulativa de história alternativa

A apreciação crítica dos elementos usados por Adichie na elaboração de “The Visit” não deixa dúvidas de que o conto tipifica a categoria ficção especulativa, dentro do recorte conceitual aqui considerado. Em “The Visit”, a conjectura geral se baseia na hipótese de como seria a vida dos homens em uma sociedade global contemporânea regida por um matriarcado. Como vimos, especulação implica um exercício minucioso, com detalhes sobre a hipótese formulada. Neste quesito, “The Visit” é um conto especialmente rico de exemplos construídos na linha da chamada gender roles reversal ou reversão dos papeis de gênero, estratégia que opera em toda a narrativa.

Já na abertura, o protagonista assiste às notícias na TV sobre o “Ato Masturbatório Masculino”, uma lei de quarenta anos sendo contestada por homens nas ruas, mantida ilegal pelo Supremo Tribunal, com previsão de prisão de até quinze anos para os infratores. A repressão à masturbação é um paralelo evidente à repressão ao aborto na comparação com a vida real contemporânea. Em outra passagem, Eze conta a Obinna que o motivo verdadeiro que o trouxe à Nigéria é tentar um tratamento alternativo para seu problema de próstata: “Não há tratamento real para problemas de próstata. A medicina moderna simplesmente ignorou os problemas de saúde que afetam apenas homens” (ADICHIE, 2021, p. 12ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.), diz Eze, em tom de indignação. Aqui temos uma reversão do preconceito de gênero na medicina, que alude diretamente ao fato real do sexismo já denunciado nas questões de saúde, em que o corpo do homem é tomado como parâmetro em pesquisas, o que negligencia as especificidades da biologia feminina.

Também as convenções sociais imaginadas para “The Visit”, baseadas nessa reversão dos papeis de gênero, detalham criativamente a hipótese especulativa formulada por Adichie. Elas limitam as vidas dos homens, explicitando como o mundo seria se eles fossem sujeitos às restrições normalmente impostas às mulheres. Um exemplo central na narrativa, que ajuda a construir seu clímax, é o convite feito por Eze a Obinna para irem a um clube noturno na ausência de Amara: “Eu como um homem casado não posso simplesmente ir a um clube sem minha mulher. Não fica bem” (ADICHIE, 2021, p. 15ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.), argumenta Obinna, surpreso. Apesar disso, eles vão e se divertem, mas na volta para casa são parados pela polícia, cuja comandante, comentando com as outras policiais mulheres, critica a regata e os shorts justos usados por Eze, perguntando o porquê de ele estar vestido como um prostituto. Para tentar se livrar da situação, Obinna informa que sua esposa o espera em casa:

“Você é casado?” A policial recuou um pouco.

“Sim, senhora.”

“Vocês dois?”

“Sim, senhora, mas a esposa do meu amigo está em Abuja. Ele veio a Lagos para a festa de aniversário hoje.”

“Você não parece casado”, disse a policial a Eze.

“Se eu soubesse que você era o marido de alguém, pelo menos lhe mostraria algum respeito, mesmo que você esteja vestido como um prostituto” (ADICHIE, 2021, p. 17ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.).

O tratamento humilhante que Obinna e principalmente Eze recebem da polícia remete ao equivalente da vida real, em que homens na condição de policiais se sentem no direito de abordar mulheres criticando sua forma de se vestir e humilhando-as. Mas no universo dos papeis de gênero reversos, os homens são o sexo frágil, o alvo dos abusos. Por isso Obinna mente como parte de um plano para sair da situação, que pode facilmente se complicar, dizendo que sua esposa estaria em casa o esperando e que Eze é casado com uma mulher em Abuja. A estratégia baseia-se na crença de que homens casados nesse matriarcado seriam um pouco mais respeitados que os solteiros, e a polícia evitaria abusar de maridos de mulheres poderosas, que poderiam retaliar agressões ou violências desse tipo.

Há ainda outros exemplos, menos centrais na narrativa adichieana, mas igualmente curiosos, que compõem o rico conjunto de detalhes que constituem a face especulativa do conto “The Visit”, construído na ideia da reversão dos papeis de gênero: a excessiva preocupação dos donos de casa com empregados, filhos e a administração do lar, o ciúme doentio que têm de seus empregados domésticos, secretários das esposas e homens jovens e solteiros, que se insinuam para mulheres poderosas com roupas sensuais, e a competição entre homens pela atenção das mulheres; todos são exemplos em relação reversa com a conjuntura machista e patriarcal vigente.

Tendo em vista os aspectos acima elencados, selecionados do texto literário em estudo, pode-se afirmar que “The Visit” é uma construção ficcional com representações especulativas de situações e de aspectos que não mimetizam a realidade. Ao contrário disso, quando a autora propõe um matriarcado opressor, ela se afasta de maneira deliberada de parâmetros do real, que é o que se espera da ficção especulativa. Além disso, cabe acrescentar como tais evidências também são demonstração de que “The Visit” pertence à subcategoria de história alternativa, dentro da ficção especulativa, como anunciei na seção anterior deste artigo. Em concordância com o que preconizam os teóricos do assunto, como o citado Turtledove (2002)TURTLEDOVE, Harry. The Best Alternate History Stories of the 20th Century: Stories New York: Random House Publishing Group, 2002., a ficção especulativa de história alternativa parte de uma mudança no passado previamente determinada. No conto adichieano, ela é a ideia de uma sociedade que se desenvolveu tendo as mulheres como protagonistas de um poder opressivo desde sempre. Dada a premissa histórica, Adichie vai especular as consequências dela, desenvolvendo criativamente as restrições sofridas pelos homens no presente.

O tempo presente, por sinal, é uma importante característica de “The Visit”, além de ser um aspecto básico nas narrativas de história alternativa, como destacou Turtledove (2002)TURTLEDOVE, Harry. The Best Alternate History Stories of the 20th Century: Stories New York: Random House Publishing Group, 2002.. Nota-se que o matriarcado imaginado não traz elementos futurísticos de cunho científico ou tecnológico afastando-se, portanto, do que se entende por ficção científica. O protagonista Obinna, por exemplo, assiste à CNN em uma TV regular e Amara lê notícias em um IPad aparentemente normal. Não há robôs cuidando da casa e nem personagens viajando em meios de transporte futuristas. Diante disso, fica evidente que não cabe entender “The Visit” como ficção científica.

Descartados o futuro e o futurismo, fica outra constatação significativa, a de que o poder matriarcal que figura no presente não é resultante de uma transformação ocorrida ao longo de um período de tempo, em um processo histórico no qual uma sociedade patriarcal tivesse se modificado para se transformar em matriarcal. De fato, o matriarcado no conto existe dentro de uma normalidade sócio-histórica, sem nunca ter sido precedido por um patriarcado, indicando que esse regime social de mulheres exercendo uma autoridade absoluta é imaginado como uma tradição arraigada.

Alguns indícios disso estão nos valores sociais propagados pelo pai de Eze, que censura as maneiras do ainda jovem e solteiro Obinna, ao comer uma fruta: “Não seja tão incivilizado, Obinna!” […] “Não lamba seus dedos como um bicho do mato. Como você vai arranjar uma esposa com esse tipo de comportamento?” (ADICHIE, 2021, p. 4ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.). Nesta passagem, Obinna se lembra de uma censura que sofreu do pai de Eze, em que a defesa da necessidade dos homens jovens de se comportarem para conseguir se casar, é feita com a assertividade de quem transmite um costume pré-existente e consensual. Obinna continua se lembrando como o pai de Eze “educa” o filho e o amigo do filho sobre o casamento, explicando que um homem de 28 anos sem esposa é inútil como um pneu furado. Eze então conta ao amigo Obinna que seu pai poderia ter tido uma carreira como ator de teatro, mas sua mãe o proibiu assim que se casaram: “ele teve que desistir de atuar porque homens casados que eram atores eram considerados promíscuos” (ADICHIE, 2021, p. 5ADICHIE, Chimamanda N. The Visit. In: Black Stars. Seattle: Amazon Original Series, 2021.), explica Eze. A visão de mundo do pai de Eze sobre a obrigação do casamento e a segurança que ele representa para os homens, assim como as imposições das esposas aos maridos, retratam o casamento e a submissão às esposas como um costume transmitido de geração em geração, o qual se pretende conservar e incutir nas novas gerações.

Assim sendo, é relevante destacar o objetivo estratégico da autora ao escolher representar um matriarcado não como decorrência de um ativismo transformador, mas feito de normalidade, oriundo de uma tradição arraigada. O matriarcado tradicional de “The Visit” tende a gerar um impacto diferente em leitoras e leitores. Para as leitoras mulheres, a reversão dos papeis de gênero que dá poderes opressivos ao gênero feminino provocaria um choque ao desnaturalizar os abusos machistas que as mulheres enfrentam cotidianamente e tenderiam a normalizar, evitando pensar e falar a respeito, talvez por considerarem intimamente que mudar o sistema patriarcal seja uma luta vã. Mas a leitura do conto pode resultar na reflexão sobre a necessidade de não se normalizar o machismo cotidiano e, sim, combatê-lo. Os leitores homens, por sua vez, ao se verem nas peles de Obinna e Eze, poderão experimentar sentimentos iniciais de desconforto, evoluindo para indignação e repulsa, ao mesmo tempo em que poderão ter alguns de seus pilares de normalidade abalroados. Mas, ainda que o conto possa causar incômodo e indignação, o objetivo principal não parece ser esse, assim como também não é pregar a implantação literal de um matriarcado opressor, como poderiam entender os desavisados que, com a menor das cogitações, se sentem ameaçados. O objetivo principal verdadeiramente seria conduzir a uma reflexão por meio do efeito. Ao trocarem de posição histórica, passando a ser os oprimidos e não opressores, os homens conjeturariam sobre o quão absurdo é para seres humanos sujeitarem-se à desigualdade e à submissão por causa de seu gênero.

Nesse sentido, vale retomar uma das categorias erroneamente atribuídas a “The Visit” na Amazon, a de Ficção Científica “Distópica”: distopia para quem? Afinal, essa narrativa somente poderia ser entendida como distópica a partir de uma perspectiva masculina machista e privilegiada. Afinal, distopias se caracterizam, conforme M. H. Abrams (1999, p. 328)ABRAMS, M. H. Utopias and Dystopias. In: A Glossary of Literary Terms. 7. ed. Fort Worth: Harcourt Brace College Pub., 1999. p. 328., por especularem mundos futuros indesejáveis, de tendências sinistras, em geral tirânicos e dominados pelo medo, angústia e opressão. Em outras palavras, “The Visit” seria distópica apenas do ponto de vista de homens que veem a ideia da perda de seu poder patriarcal e seus espaços de privilégio como ameaça, principalmente se esse poder opressivo for substituído por outro de igual teor, como ocorre no conto, em que Adichie transfere para os homens as rotinas de abuso, violência e submissão sofridas pelas mulheres na realidade concreta.

Adichie sendo Adichie ou um novo experimento literário?

Apesar das controvérsias e ambiguidades da ficção especulativa, “The Visit”, nos termos do recorte eleito para esta investigação, pode seguramente ser lido como um típico representante dessa categoria. Conforme discutido na seção inicial do artigo, especulações possuem relevância por estimularem a criatividade por meio da cogitação, antecedendo descobertas e levando a resultados práticos. “The Visit” cumpre esse objetivo porque instiga a reflexão sobre o absurdo do patriarcalismo do dia a dia, ao compelir-nos a visualizar e a sentir a opressão de gênero que recai sobre as mulheres por meio da reversão dos papeis de gênero, levando-nos a querer mudar a realidade.

Também é pertinente retomar Wilkie et al (2017)WILKIE, Alex; SAVRANSKY, Martin; ROSENGARTEN, Marsha, (Eds.). Introduction: Beyond the Impasse of the Present. In: Speculative Research: The Lure of Possible Futures. Abingdon: Routledge, 2017. p.iii., que destacam o quanto a pesquisa especulativa fascina por vislumbrar futuros possíveis e como ela pode oferecer alternativas melhores, para enfatizar que o conto aqui analisado se coaduna com as noções de atenção, invenção e experimentação de que falam esses autores. Como pudemos ver, “The Visit” é uma construção artístico-literária que ilustra a necessidade de imaginarmos um mundo mais justo e menos desigual.

Essa imaginação literária de caráter transformador é conhecida de leitoras, leitores, pesquisadoras e pesquisadores da “literatura movente de Chimamanda Adichie” (BRAGA, 2019BRAGA, Cláudio. R. V. A literatura movente de Chimamanda Adichie: pós-colonialidade, descolonização cultural e diáspora. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.), mas, no conjunto da obra da escritora, “The Visit’ aparenta ser ao mesmo tempo familiar e um estranho no ninho. No primeiro caso, sendo uma narrativa de cunho feminista, o conto traz os questionamentos a que estamos habituados na ficção de Adichie: os desequilíbrios gerados por estruturas que dão poder a um gênero em detrimento de outro, que minam a igualdade de direitos, sejam civis, políticos, econômicos ou sociais. Nessa hipótese, estamos falando do já manifesto apelo para a reflexão e para a mudança, para o reposicionamento e para a ressignificação, conforme já avaliado em A literatura movente de Chimamanda Adichie: pós-colonialidade, descolonização cultural e diáspora (2019). Nesse livro, o fazer literário adichieano é tratado “como iniciativa de descolonização cultural” (BRAGA, 2019, p. 161BRAGA, Cláudio. R. V. A literatura movente de Chimamanda Adichie: pós-colonialidade, descolonização cultural e diáspora. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.), objetivo que pode também ser alcançado por meio do uso de mecanismos especulativos por escritores pós-co-loniais, como Oziewicz (2017)OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
https://oxfordre.com/literature/view/10....
também crê.

Desde Hibisco roxo, seu primeiro romance, Adichie tematizou a desigualdade de gênero, mas sempre no modo realista, por meio de personagens mulheres, a maioria protagonistas, lidando com as restrições do patriarcado que assegura privilégios e poderes aos homens. Foi sua perspicácia no desenvolvimento desses temas que a fez ficar globalmente conhecida, a partir de uma literatura que não somente expõe as consequências do machismo estrutural, mas “encoraja uma [ainda que] discreta revolução, junto a suas leitoras e leitores” (BRAGA, 2019, p. 161BRAGA, Cláudio. R. V. A literatura movente de Chimamanda Adichie: pós-colonialidade, descolonização cultural e diáspora. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.). Assim, no tocante ao seu aspecto marcadamente feminista, “The Visit” seria Adichie sendo ela mesma, promovendo, novamente por meio de sua arte literária, as reflexões a que estamos acostumados.

Entretanto, dessa vez a criatividade adichieana não arquitetou uma trama de cunho realista, como as que geralmente partem de contextos patriarcais dos cotidianos nigeriano e estadunidense para propor, de alguma forma, sua transformação por meio de uma modificação nos costumes. “The Visit” não imita uma “realidade consensual da experiência cotidiana”; pelo contrário, o conto é resultado de uma construção feita de elementos especulativos. E isso é algo que se configura em novidade no conjunto de histórias publicado pela escritora, fazendo desse conto um experimento literário bem-sucedido.

Tal novidade aparentemente sinalizaria uma mudança de posicionamento por parte de Adichie, em relação ao valor da ficção não realista, pelo que se lê em “Isn’t Realist Fiction Enough? On African Speculative Fiction” (2019). Nesse artigo, o autor Joshua Yu Burnett faz a defesa da ficção especulativa feita na África e por africanos como tão relevante quanto a ficção realista. O surpreendente é que o artigo de Burnett foi motivado por uma declaração de Chimamanda Adichie de 2010 quando, ao ser questionada sobre autores nigerianos escrevendo fantasia e ficção científica, ela responde que não tem conhecimento dos trabalhos, perguntando-se se ficção realista não bastaria. O posicionamento, para Burnett, não é aceitável, porque desconsideraria que a pluralidade de categorias literárias africanas é necessária para fazer jus à rica diversidade cultural da Nigéria e da África como um todo: “descartar a ficção especulativa, ou relegá-la a segundo plano de importância em relação à ficção realista no contexto africano, é admitir a superioridade essencial do romance realista ocidental tradicional sobre outras formas de escrita e de contar histórias” (BURNETT, 2019, p. 120BURNETT, Joshua Yu. Isn’t Realist Fiction Enough? On African Speculative Fiction. Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal. Manitoba: University of Manitoba, v. 52, n. 3, p. 119-135, 2019. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/26781582. Acesso em: 14 mai. 2022.
https://www.jstor.org/stable/26781582...
). Nesta perspectiva, Burnett corrobora o já citado ponto de vista de Oziewicz (2017)OZIEWICZ, Marek. Speculative Fiction. In: Oxford Research Encyclopedia of Literature. Oxford: Oxford University Press. Disponível em: https://oxfordre.com/literature/view/10.1093/acrefore/9780190201098.001.0001/acrefore-9780190201098-e-78. Acesso em: 4 abr. 2022.
https://oxfordre.com/literature/view/10....
, no referente à importância da ficção especulativa como transgressora de uma perspectiva literária realista dominante no ocidente.

Onze anos depois do questionamento, a publicação de “The Visit” indica que Adichie talvez tenha mudado a opinião que tinha antes; o fato de ter escrito e publicado ficção especulativa dá a entender que ela passou a considerar válida a expressão literária não mimética. Em qualquer hipótese, nesse que é o único experimento adichieano de ficção especulativa, a autora permanece fiel a seu projeto literário geral, que busca explicitar os absurdos da desigualdade de gênero. Em outras palavras, Adichie estaria cumprindo a velha missão por meio de um formato literário para ela diferente. Conforme demonstrado, o poder matriarcal opressor que prevalece no contexto ficcional da narrativa constitui uma estratégia de choque para explicitar a desigualdade contra a mulher nas realidades diárias em várias culturas do mundo. Para causar esse impacto, a escritora substitui suas conhecidas heroínas – podemos lembrar Ifemelu, Nwamgba, Kambili, Olanna, Kainene, Afamefuna, Chika, Chinaza, Nkem e Ukamaka, sempre revidando o machismo estrutural – por dois homens, Obinna e Eze, que têm que lidar com uma opressão exercida contra seu próprio gênero. A essa altura, está notório que os protagonistas de “The Visit” podem ser homens, mas as circunstâncias opressoras criadas para eles possuem o propósito de ser um paralelo à condição da mulher na sociedade contemporânea.

Tendo em vista estas últimas constatações, é preciso tipificar o conto “The Visit” também no domínio do feminismo literário contemporâneo, tratando-o, portanto, como uma “narrativa especulativa do subtipo história alternativa com viés feminista”. Esta denominação pode soar extensa, mas que é necessária para fazer jus à abrangência de uma narrativa que reúne mecanismos especulativos para refletir criativamente sobre os absurdos da desigualdade de gênero e da submissão a partir de um matriarcado opressor literariamente imaginado.

Notas

  • 1
    “The key emphasis […] is on speculative representation of what would happen had the actual chain of causes or the matrix of reality been replaced with other conditions.”
  • 2
    “…to not only critically account for the role of calculative logics and rationalities in managing societal futures, but to develop alternative approaches and sensibilities that take futures seriously as possibilities and that demand new habits and practices of attention, invention, and experimentation.”
  • 3
    “There are at least two principal ways to write speculative fiction--write about people or write about gadgets.”
  • 4
    “And our store is about how human beings cope with those new problems.”
  • 5
    SF is an abbreviation for Science Fiction (or Science Fantasy). Science Fantasy (or Science Fiction) is really an abbreviation too. Here are some of the things it stands for.”
  • 6
    “Mix well. The result is SF, or Speculative Fun…”
  • 7
    “A lasting influence on a number of female writers, including Ursula K. Le Guin, Doris Lessing, and Margaret Atwood.”
  • 8
    “A n inherently plural category, speculative fiction is a mode of thought-experimenting that embraces an open-ended vision of the real.”
  • 9
    “direct correspondence to life.”
  • 10
    “draws its creative sap from the non-mimetic impulse.”
  • 11
    “…from fantasy, science fiction, and horror to their derivatives, hybrids, and cognate genres, including the gothic, dystopia, zombie, vampire and post-apocalyptic fiction, ghost stories, weird fiction, superhero tales, alternate history, steampunk, slipstream, magic realism, retold or fractured fairy tales, and many m o r e .”
  • 12
    “…let us stipulate a definition of speculative fiction as works presenting modes of being that contrast with their audiences.”
  • 13
    “This project will help place the creative arts – and speculative fiction in particular […] – at the heart of research about the most difficult problems facing the world right now.”
  • 14
    Recentemente, no final de 2022, Tomas lançou, em parceria com Oghenechovwe D. Ekpeki e Zelda Knight, uma nova antologia: Africa Risen: A New Era of Speculative Fiction. Outros exemplos de antologias que marcam a visibilização da ficção especulativa de autoria africana e afrodiaspórica são: Terra Incognita: New Short Speculative Stories from Africa (2015), de Nerine Dorman (Org.), Dominion: An Anthology of Speculative Fiction from Africa and the African Diaspora (2020), de Zelda Knight, Oghenechovwe D. Ekpeki e Joshua Omenga, e a série antológica The Year’s Best African Speculative Fiction, publicada anualmente também por Ekpeki, às vezes em parceria com outros organizadores.
  • 15
    Informações biográficas sobre Chimamanda Adichie e suas obras podem ser encontradas em seu site oficial, Chimamanda.com, (em inglês), ou em A literatura movente de Chimamanda Adichie: pós-colonialidade, descolonização cultural e diáspora (2019), de Cláudio R. V. Braga, publicado pela Editora Universidade de Brasília.
  • 16
    “Black Stars: a galaxy of new worlds. The sky is not the limit. From an alley in New York to an interstellar wormhole, the path to the future looks different for everyone. These cosmic short stories from some of today’s most influential Black authors reveal a universe of possibilities.” Disponível em: <https://www.amazon.com/Black-Stars/dp/B09B1F2XPZ>.
  • 17
    No que se refere a “The Visit”, demonstro adiante, dentro dos objetivos deste artigo, a natureza de seu caráter especulativo, ao passo que “The Black Pages”, de Nnedi Okorafor, é foco de estudos em andamento.
  • 18
    Apesar de pertencerem a uma única coletânea, os contos de Black Stars são comercializados separadamente, o que possibilita compará-los em termos de quais vendem mais e quais vendem menos.
  • 19
    “It usually changes one thing in the more distant past and speculates about what would have happened in the nearer past or the present.”
  • 20
    “Was the gilt edge on the furniture a little tacky? At least the painting on the wall, a Bruce Onobrakpeya, would impress Eze.” Esta e as demais traduções do conto “The Visit” oferecidas neste artigo são nossas.
  • 21
    ““Why did you stop writing poetry?” Eze asked.
    “I really wasn’t that good.”
    “You were.”
    Eze was watching him. Obinna felt as if Eze was uncovering something about him, was seeing beneath his mask, to the emptiness he felt from time to time, the fearful desire to try to write again.”
  • 22
    “There’s no real treatment for prostate issues. Modern medicine has simply ignored the health problems that affect only men.”
  • 23
    “I can’t just go to a club as a married man without my wife. It won’t look good.”
  • 24
    “0“You are married?” The policewoman reared back slightly.
    “Yes, madam.”
    “Both of you?”
    “Yes, madam, but my friend’s wife is in Abuja. He just came to Lagos for the birthday party today.”
    “You don’t look married,” the policewoman said to Eze.
    “If I had known you were somebody’s husband, I would at least show you some respect, even if you are dressed like a prostitute.””
  • 25
    ““Don’t be so uncivilized, Obinna!” […] “Don’t lick your fingers like a bush boy. How will you find a wife with this kind of behavior?””
  • 26
    “…he had to quit acting because married men who were actors were considered promiscuous.”
  • 27
    “To dismiss speculative fiction, or to relegate it as secondary in importance to realistic fiction within the African context, is to assume the essential superiority of the traditional Western realistic novel over other forms of writing and storytelling.”

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2022
  • Aceito
    19 Jan 2023
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