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REPRESENTAÇÃO E EXPERIÊNCIA DE CORPOS MARGINALIZADOS NA DUOLOGIA SEMENTE DA TERRA, DE OCTAVIA E. BUTLER

REPRESENTATION AND EXPERIENCE OF MARGINALIZED BODIES IN OCTAVIA E. BUTLER’S EARTHSEED DUOLOGY

Resumo

Este artigo apresenta uma leitura crítica dos romances A Parábola do Semeador (2018) e A Parábola dos Talentos (2019) da autora afro-americana Octavia E. Butler, com foco na análise das diferentes representações e experiências de corpos marginalizados nessas produções distópicas. No contexto dessas narrativas, entendem-se corpos marginalizados como aqueles que mais sofrem pelos efeitos de uma exploração capitalista desenfreada, de uma crise climática sem precedentes e da incapacidade de gerência do governo. Nessa categoria, incluem-se corpos de diferentes raças, gêneros, idades, entre outros. O suporte teórico utilizado compreende principalmente noções de corpo expostas nas obras A Sociologia do Corpo, de David Le Breton (2007), Microfísica do Poder, de Michel Foucault (1998) e Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens, and Vampires, de Gregory Hampton (2010).

Palavras-chave:
Octavia E. Butler; corpos marginalizados; ficção distópica; Semente da Terra

Abstract

This article presents a critical reading of the novels Parable of the Sower (2018) and Parable of the Talents (2019) by the African-American author Octavia E. Butler, focusing on the analysis of the different representations and experiences of marginalized bodies in these dystopic productions. In the context of these narratives, it is understood that marginalized bodies are those who suffer most from the effects of an unstoppable capitalist exploitation, a climate crisis with no precedents and the inability of government administration. This category includes bodies of different races, genders, ages and others. The theoretical support used comprises mainly notions of body exposed in the works A sociologia do corpo (2007), by David Le Breton, Microfísica do Poder (1998), by Michel Foucault and Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens, and Vampires, by Gregory Hampton (2010).

Keywords:
Octavia E. Butler; marginalized bodies; dystopic fiction; Earthseed

1 Introdução

O estudo dos desdobramentos da atuação dos corpos na sociedade é um campo de análise com grande potencial de discussão. Para a literatura, essa questão igualmente representa um objeto de interesse. Como, por exemplo, pode-se observar nas pesquisas de Xavier (2021)XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021., que elege o imaginário feminino como cenário para um debate sobre diversas representações de experiências do corpo. Em Que corpo é esse?, a pesquisadora apresenta uma série de classificações para o corpo feminino, de acordo com o contexto que lhe é imposto pelas narrativas: ele pode ser invisível, subalterno, disciplinado, imobilizado, envelhecido, refletido, violento, degradado, erotizado, liberado e caluniado.

Partindo desta premissa e entendendo que essas não são classificações estanques, este artigo propõe a leitura da duologia Semente da Terra, de Octavia E. Butler (1947-2006) a partir da análise das condições de existência de uma variedade de corpos que, serão aqui denominados como marginalizados, tendo em vista que eles vivenciam, de forma mais incisiva, os efeitos da devastação climática e social presente nessa sociedade distópica, constituindo-se como vítimas do preconceito por questões de gênero, sexualidade, raça, classe social, idade e dependência química. A presença desses perfis marginalizados na obra de Butler, não pode ser considerada aleatória e, muito menos, ingênua, pois a própria autora é triplamente posta à margem no cenário literário norte-americano: como mulher, como negra e como escritora de ficção científica. Além disso, Hampton (2010, p. xiHAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010., tradução nossa), indica a relevância da corporalidade para a construção das narrativas da autora: “O corpo na ficção de Butler é indispensável para a o entendimento de como a identidade é formada e articulada”, dedicando-lhe uma longa análise, exibida no livro Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens, and Vampires.

Apesar da popularidade e respeito alcançados na atualidade, a ficção científica foi, durante muito tempo, vítima de preconceito por parte da crítica especializada. Suvin (1979)SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. Westford: Yale University Press, 1979., ao analisar o percurso trilhado pela ficção científica, comenta que o gênero costumava receber rótulos como, por exemplo, de texto paraliterário, ou então ser chamado de “baixa literatura” e literatura das massas, em oposição à valorização do cânone.

O gêmeo não-canônico e reprimido da Literatura, a qual, por falta de um outro nome, é chamado de Paraliteratura é (por bem ou por mal) a literatura que é realmente lida – em oposição à maioria da literatura ensinada nas escolas. Dentro dele, a FC é um dos maiores gêneros e, na minha opinião, o mais interessante e cognitivamente significativo (SUVIN, 1979, p. viiSUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. Westford: Yale University Press, 1979., tradução nossa).

Por estar consciente dessa marginalização, Butler criou um local inclusivo para si mesma, para autoras negras, além de viabilizar a existência e o protagonismo de personagens à margem, que quando, e se, surgiam nas narrativas, não participavam de forma ativa dos acontecimentos, permanecendo em eterna posição de subalternidade. A escolha pela ficção científica contempla, desse modo, a possibilidade de explorar a diversidade: “Não parece ter nenhum aspecto da humanidade ou do universo ao nosso redor que eu não possa explorar” (BUTLER, 2018, p. 414BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.). A abertura do gênero adquire um caráter libertário, especialmente para a autora, que nasceu no período da segregação racial nos Estados Unidos.

Durante sua carreira, Butler, natural de Pasadena, Califórnia, publicou 14 romances e uma coletânea de contos, foi premiada com três dos maiores prêmios do gênero ficção científica, Hugo, Locus e Nebula Awards, e tornou-se a primeira autora de ficção científica a receber a MacArthur Fellowship (BUTLER, 2018BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.). Igualmente louvável é o título frequentemente atribuído à autora: “mãe do Afrofuturismo”, gênero artístico conceituado como “Ficção especulativa que trata de temas afro-americanos e aborda preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século XX” (DERY, 1994, p. 180DERY, Mark. Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: DERY, Mark (ed.). Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham: Duke University Press, 1994. p. 179-222., tradução nossa). O termo foi cunhado pelo autor, crítico e ensaísta norte-americano Mark Dery e primeiramente utilizado no livro Flame Wars: The Discourse of Cyberculture (1994), no capítulo Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose, no qual a temática é discutida ao longo de entrevistas com personalidades negras atuantes no cenário artístico da década de 1990.

O termo surgiu depois da publicação da maioria das obras de sucesso de Butler. Dessa forma, sua produção literária, assim como a de Samuel R. Delany — entrevistado por Dery em 1994DERY, Mark. Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: DERY, Mark (ed.). Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham: Duke University Press, 1994. p. 179-222. —, representa um dos pilares da ficção científica negra. Entre as obras de maior destaque da autora, encontram-se A Parábola do Semeador e A Parábola dos Talentos, romances que, dentro da ficção científica, são considerados como distópicos. Segundo Sargent (1994, apud MURPHY, 2009, p. 473MURPHY, Graham J. Dystopia. In: BOULD, Mark et al. (ed.). The Routledge Companion to Science Fiction. New York: Routledge, 2009. p. 473-477., tradução nossa), a distopia pode ser explicada como “uma sociedade inexistente descrita com considerável detalhe e normalmente localizada no tempo e no espaço que o autor pretendia que um leitor contemporâneo visse como consideravelmente pior do que a sociedade em que vivia”. Murphy (2009)MURPHY, Graham J. Dystopia. In: BOULD, Mark et al. (ed.). The Routledge Companion to Science Fiction. New York: Routledge, 2009. p. 473-477. comenta que o termo começou a ser usado no final do século XIX, passando por uma série de transformações até chegar, no final do século XX, a uma narrativa nomeada “critical dystopia”, que tende “a ser menos levada pelos extremos de celebração ou desespero, mais aberta a complexidades e ambiguidades e mais encorajadora de novas performances de manobras pessoais e políticas” (MOYLAN, 2000, p. 182MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: science fiction, utopia, dystopia. Boulder: Westview, 2000., tradução nossa). Moylan inclui Butler e suas duas Parábolas nessa classificação, destacando seus efeitos.

[...] explorar maneiras de mudar o sistema atual para que os povos marginalizados cultural e economicamente não apenas sobrevivam, mas também tentem avançar para a criação de uma realidade social que é moldada por um impulso para a autodeterminação humana e a saúde ecológica ao invés de um restrito pela lógica estreita e destrutiva de um sistema com a intenção apenas de aumentar a competição a fim de obter mais lucro para poucos (MOYLAN, 2000, p. 189MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: science fiction, utopia, dystopia. Boulder: Westview, 2000., tradução nossa).

Ler Butler por intermédio destas Parábolas leva à explicitação da questão do corpo e das condições de sua permanência na posição de marginalidade dentro da sociedade capitalista. Existe uma diversidade de corpos nessas narrativas, assim como uma multiplicidade de situações nas quais eles interagem e moldam suas identidades. Segundo Campello e Schmidt (2015, p. 11)CAMPELLO, Eliane; SCHMIDT, Rita Terezinha. Apresentação: Corpo e Literatura/ Body and Literature. Ilha do Desterro, Florianópolis, v. 68, n. 2, p. 9-14, maio/ago. 2015., esses discursos e representações de corpos constituem “sintomas de processos de transformação histórica, pois é neles que se inscrevem a relação subjetividade/objetividade, bem como processos de submissão ou de resistência à opressão e à dominação”. Os corpos de Butler são corpos em agonia, mas também são corpos que resistem à dor, à diáspora, às imposições do clima e do poder das instituições, buscando, na irrefutabilidade das diferenças, uma forma de união mais sólida e duradoura, que permita a manutenção da existência.

A ficção de Butler é única porque é abertamente racial, sexual e ambígua. “Sua ficção reflete interseções de teorias feministas, discursos anticoloniais, FC e escrita de mulheres negras, e se correlaciona com o que Mae Gwendolyn Henderson chama de ‘simultaneidade de discursos”’ (Melzer 38). Por causa dessa simultaneidade de discurso, a ficção de Butler é muito mais fácil de ler do que analisar e categorizar (HAMPTON, 2010, p. xiii-xivHAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010., tradução nossa).

Na sequência, de modo a contemplar separadamente a diversidade presente tanto nos corpos quanto nas experiências por eles vivenciadas ao longo dos dois romances e facilitar a árdua análise mencionada por Hampton (2010)HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010., a leitura da duologia será dividida nas seguintes seções: Butler, as Parábolas e a Semente da Terra: a autobiografia ficcional de Lauren Oya Olamina; Corpos marginalizados através das questões de classe, raça e gênero; Corpos marginalizados, resistência e adaptabilidade; Corpos marginalizados, afeto e sexualidade; Corpos marginalizados e a infância em meio ao caos; e Corpos marginalizados e o uso de entorpecentes.

2 Butler, as Parábolas e a Semente da Terra: a autobiografia ficcional de Lauren Oya Olamina

A Parábola do Semeador (Parable of the Sower) (2018), primeiro livro da duologia Semente da Terra, publicado em 1993, apresenta o início da vida da protagonista, Lauren Oya Olamina, uma jovem portadora da síndrome da hiperempatia, que faz com que seja capaz de sentir a dor e o prazer dos outros, tornando-se uma pessoa observadora e estrategista, pois sua condição representa um perigo em meio a catástrofe que a cerca. Por intermédio de seu próprio diário, a jovem intercala elementos da infância e adolescência em um cenário de crescente devastação da nação norte-americana, tanto no campo das alterações climáticas quanto dos problemas sociais, políticos, econômicos e religiosos. Lauren mora com sua família (composta do pai, o ministro batista do local, da madrasta e de seus quatro meios-irmãos) em um bairro fragilmente protegido por muros em Robledo, Califórnia. A comunidade do local é mista e formada, em sua maioria, por afro-americanos, latinos e asiáticos.

O registro escrito inicia-se em 20 de julho de 2024, dia de seu aniversário de 15 anos e um dia antes de sua cerimônia de batismo, e se encerra em 10 de outubro de 2027 com uma outra cerimônia — o funeral dos entes queridos perdidos e/ou assassinados durante os eventos catastróficos do ano de 2027. O cerimonial fúnebre, no entanto, marca também o enterro da vida na comunidade murada e a esperança de renascimento: “Para ressurgir/Das próprias cinzas//Uma fênix/Deve/Primeiro/Queimar” (BUTLER, 2018, p. 188BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.). O fogo é uma presença constante na narrativa — aparecendo em diversos momentos e com significados variados. Já no início, Lauren registra, em seu diário, um sonho profético e extremamente representativo não somente da destruição futura de sua comunidade, mas também de seu novo percurso de aprendizado (seu voo pessoal, semelhante ao de uma fênix):

Estou aprendendo a voar, a levitar. Não tem ninguém me ensinando. Estou aprendendo sozinha, pouco a pouco, a cada lição de sonho. [...] A parede à minha frente arde. O fogo surgiu do nada, atravessou a parede e começou a ir em minha direção, a me buscar. O fogo se espalha. Flutuou para dentro dele. Ele cresce ao meu redor. Eu me debato e tento me afastar, agitando as mãos no ar e no fogo, chutando, ardendo! Escuridão (BUTLER, 2018, p. 13BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

Na segunda parte do sonho, ela retorna à presença da madrasta e ambas falam sobre as mudanças observadas na sociedade ao longo dos anos. Lauren termina o sonho assumindo que, entre o brilho da iluminação proveniente das cidades e o das estrelas, ela prefere o das estrelas. Tempos depois, ela criaria uma nova religião, a Semente da Terra, “[e] o Destino da Semente da Terra é criar raízes entre as estrelas” (BUTLER, 2018, p. 100BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.), ou seja, buscar moradia fora do planeta Terra.

Além do diário, A Parábola do Semeador contempla trechos do próprio livro de orientação religiosa escrito por Lauren (Semente da Terra: Os livros dos vivos). Butler insere estes fragmentos na abertura dos capítulos e em alguns pontos-chave da narrativa. A Parábola se torna também um relato de viagem à medida que a jovem deixa sua comunidade incendiada e se desloca rumo ao norte do país, documentando sua busca por um lugar para viver e fundar sua Semente da Terra. De sua casa, ela leva apenas um pouco de dinheiro e alguns pertences que havia reunido para situações de emergência, além da companhia dos dois únicos sobreviventes que conseguiu encontrar — Harry Balter, seu amigo de infância, e Zahra Moss, a jovem esposa de um dos moradores da comunidade, morto durante o ataque do grupo incendiário. Em sua jornada, Lauren encontra e acolhe uma série de pessoas com etnias variadas e trajetórias impactantes. Eles avançam até Humboldt, onde Bankole, um dos membros do grupo e novo parceiro de Lauren, possui uma propriedade. Nesse local, Lauren funda Bolota, a comunidade que daria início à Semente da Terra.

A Parábola dos Talentos (Parable of the Talents) (2019), publicado em 1998, continuação da saga, segue os mesmos moldes de diário, alternado com trechos do livro religioso. Todavia, amplia a visão dos acontecimentos ao adicionar os diários de outros personagens: Bankole, agora marido de Lauren, Marcus, irmão da protagonista, e Larkin/Asha Vere, filha do casal. A partir desse momento, o ponto de vista de Lauren deixa de ser a única versão dos acontecimentos. Larkin recolhe todos esses registros e organiza-os com a intenção de reconstruir a própria história. Se no primeiro volume as cenas de brutalidade produzem choque, nesse romance, Butler vai além, mergulhando no universo da subjugação dos corpos através do processo de escravização, lembrando relatos dos campos de concentração nazistas.

As entradas do diário de Lauren começam no dia 26 de setembro de 2032, assim como em A Parábola do Semeador, na data de uma comemoração – o aniversário de 5 anos de Bolota. Mais uma vez, surge um sonho profético, em que Lauren observa o progressivo desaparecimento de seus familiares em Robledo, assim como de si mesma, antecipando o destino de Bolota. Apesar de a situação estar longe da perfeição para os habitantes da comunidade, esses 5 anos representam um período relativamente tranquilo.

No entanto, as eleições presidenciais trazem uma alteração de cenário, permitindo a ascensão do texano Andrew Steele Jarret, líder-fundador da Igreja da América Cristã, que prega um retorno à adoração de um Deus único e condena outras formas de religião como a de Lauren. Com a mudança de governo, surgem os seguidores de Jarret, que passam a espalhar o horror novamente pelo país: “Os simpatizantes de Jarret são conhecidos por, de vez em quando, formarem multidões e queimarem pessoas em cruzes sob acusações de bruxaria” (BUTLER, 2019, p. 33BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Nesse meio-tempo, Lauren, já grávida, reencontra seu irmão favorito, Marcus, que havia conseguido salvar-se do incêndio em Robledo. Ela o compra de um senhor de escravizados e leva-o para Bolota. Marcus rejeita a Semente da Terra, pois é fiel à religião do pai, e foge em busca de pregá-la. Lauren dá à luz sua filha, Larkin, e Bankole tenta tirar a família da propriedade, pois entende o quanto a figura da esposa ameaça a “estabilidade” de Jarret. Lauren recusa e o desenrolar dos acontecimentos é trágico: a comunidade é tomada, muitos moradores são mortos (inclusive Bankole) e outros escravizados. As crianças são levadas para lares adotivos cristãos, Larkin passa a ser Asha Vere, filha adotiva de uma mãe severa e um pai molestador.

Apesar de todo o sofrimento e a busca pela filha, Lauren consegue prosperar, e, no final, ocorre a consolidação da Semente da Terra e a realização de seu Destino (fato que encerra o diário em 20 de julho de 2090) rumo à colonização extrassolar. Já em idade avançada, ela não pode acompanhar o grupo. Assim termina a duologia, sem uma reconciliação entre mãe e filha, entre irmã e irmão, deixando em aberto as realizações da Semente da Terra.

O falecimento precoce da autora impediu a continuação da história. Contudo, mesmo se Butler vivesse por mais alguns anos, a saga talvez não fosse concluída, pois passaram-se 7 anos até que a autora voltasse a publicar, dessa vez seu último livro, Fledgling (2005). Butler passou por um longo bloqueio criativo que não lhe permitiu dar continuidade ao manuscrito da próxima parábola, The Parable of the Trickster. Canavan, ao pesquisar os arquivos pessoais de Butler, acrescenta uma informação curiosa a respeito do processo criativo da autora, o que pode ter inviabilizado a conclusão da trilogia:

Quando ela começou a série Parábolas [...] era a narrativa do Impostor, não a narrativa de Olamina, a sua preocupação — e quando ela recuou para contar a história da infância e juventude de Olamina primeiro, era apenas para contar melhor e de forma mais completa a história do Impostor (CANAVAN, 2019, p. 4CANAVAN, Gerry. Eden, Just Not Ours Yet: On Parable of the Trickster and Utopia. English Faculty Research and Publications, v. 48, n. 1, p. 59-75, 2019., tradução nossa).

3 Corpos marginalizados através das questões de classe, raça e gênero

O aspecto central da discussão sobre marginalização e subjugação de corpos nas Parábolas diz respeito à intersecção entre classe, raça e gênero e, consequentemente, constitui-se como a seção mais longa desta análise, além de levar ao surgimento das outras: “Os corpos são sempre irredutivelmente sexualmente específicos, necessariamente entrelaçados a particularidades raciais, culturais e de classe” (GROSZ, 2000, apud XAVIER, 2021, p. 21XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.). Em complemento, Hampton (2010, p. xxiii)HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010. acrescenta que

[a] ficção de Butler apresenta métodos de imaginar o corpo que nos permitem entender como e por que o corpo deve ser categorizado. A partir dessa janela, os leitores de seu trabalho podem explorar melhor o significado de várias identidades, como raça, sexo e gênero. Esses termos são vistos pelo que são, marcadores arbitrários destinados a dar estabilidade ao que é instável e ambíguo.

Apesar de originalmente pertencer à classe média, a protagonista de Butler, ao ser lançada ao mundo sem qualquer perspectiva após o incêndio de seu bairro, perde esse status e passa a ser uma moradora de rua, com mais conhecimento e com alguma reserva de dinheiro, mas ainda assim uma indigente no novo cenário norte-americano, tal como as pessoas que a acompanham. A raça é também central, já que a maioria dos marginalizados é afrodescendente, hispânica, asiática ou fruto de relações interraciais, sendo alvo de um novo processo de escravização. A condição feminina representa um agravante nesse contexto, sendo as mulheres vítimas de todo tipo de violência e humilhação.

Começando pela questão da classe, destaca-se o gradativo desaparecimento da classe média (com bons empregos, diploma universitário, moradores de comunidades muradas) à medida que a pobreza avança junto com a violência e o abuso de entorpecentes. A pouca estabilidade que essa classe possui é perdida quando desabrigados e grupos violentos passam a invadir esses espaços fragilmente cercados e, com o surgimento de cidades como Olivar, novos centros operários que passam a aceitar famílias brancas como trabalhadores em condição análoga à escravidão:

Qualquer pessoa contratada pela KSF teria dificuldade para sobreviver com o salário oferecido. Não demoraria muito e acredito que os novos contratados estariam devendo para a empresa. É um truque antigo de cidades operárias — deixar as pessoas com dívidas, prendê-las e explorá-las. Escravidão ligada à dívida. [...] Leis trabalhistas, estaduais e federais não são mais o que já foram (BUTLER, 2018, p. 151BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

Se, para a maioria dos corpos brancos e instruídos da classe média, a submissão parece ser um tanto branda e disfarçada de oportunidade de emprego, a situação dos corpos das múltiplas raças marginalizadas é mais grave: eles são destinados à miséria das ruas e, posteriormente, se capturados para a prostituição ou por punição devido à intolerância religiosa (caso dos moradores de Bolota), passam a ocupar posições que, além de retomarem a escravização da população africana no processo de colonização europeia, dialogam com as perversidades do regime nazista. Em vez de grilhões, chicotes, tatuagens e pijamas listrados, o artifício central é a utilização das coleiras disciplinadoras, que

[...] podem ser usadas por meses ou anos, e usadas com frequência para infligir castigo. São programadas para resistir à remoção ou destruição, provocando dores fortes o bastante para causar perda da consciência. Soube também que algumas coleiras podem inclusive oferecer recompensas simples e deliciosas de prazer por bom comportamento, causando mudanças na química cerebral e estimulando quem as usa a produzir endorfinas (BUTLER, 2019, p. 116BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Ao ser utilizada para “recompensar” esses corpos, a coleira é vista como uma forma de deixá-los mais dóceis, criando um vínculo com seus “domesticadores”; uma perversidade que visa abolir o corpo como instrumento de realização de si, captador de experiências, sobrecarregando-o como vetor da realização do Outro que o domina, seja pelo prazer do acesso via sexo, violência ou exploração do trabalho.

Nas questões de classe e oportunidade de trabalho destacadas, evidenciase o papel da segunda parte dessa tríade — o racismo:

é derivado do imaginário do corpo. A “raça” é uma espécie de clone gigantesco que, na imaginação do racismo, faz de cada um dos membros fictícios que a compõem um eco incansavelmente repetido. A história individual, a cultura, a diferença são neutralizadas, apagadas, em prol do imaginado corpo coletivo, subsumido sob o nome de raça (LE BRETON, 2007, p. 72LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007., grifo nosso).

Esse apagamento representa o que Butler procura evitar ao criar personagens de múltiplas raças e permitir que contem suas histórias para que sejam discutidas em função de uma longa trajetória de negação histórica. Lauren e Bankole são exemplos disso: “[n] ossos sobrenomes nos uniram no ato. Nós dois somos descendentes de homens que assumiram sobrenomes africanos durante os anos 1960. O pai dele e o meu avô tinham mudado de sobrenome legalmente, e ambos escolheram substitutos iorubá” (BUTLER, 2018, p. 284-285BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

Sobre a discriminação, Le Breton (2007, p. 72-73)LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007. comenta:

O processo de discriminação repousa no exercício preguiçoso da classificação: só dá atenção aos traços facilmente identificáveis (ao menos a seu ver) e impõe uma versão reificada do corpo. A diferença é transformada em estigma. O corpo estrangeiro torna-se o corpo estranho. A presença do Outro se resume à presença de seu corpo: ele é seu corpo. A anatomia é seu destino. O corpo não é mais moldado pela história pessoal do ator numa dada sociedade, mas ao contrário, aos olhos do racista, são as condições de existência do homem que são os produtos inalteráveis de seu corpo.

Portanto, em uma sociedade racista, não há a possibilidade de existência igualitária para esses corpos. Não importa sua atuação no meio, eles sempre serão limitados à margem. Esse fato pode ser analisado a partir da ascensão de Marcus na Igreja da América Cristã em contraste com um comentário tecido no apêndice de A Parábola dos Talentos: “Mesmo fora de Bolota, no regime opressivo do partido/religião da América Cristã moldado como um regime fascista, a raça de um homem negro não o impede de subir ao topo da hierarquia desta igreja” (BUTLER, 2019, p. 553-554BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.). A partir de Le Breton, essa declaração deve ser tomada com mais atenção, tendo em vista a interdição de lugares de poder dentro do regime administrado pela Igreja, a ascensão pode ser vista como uma submissão ao sistema hegemônico criado pela entidade intolerante. Nas palavras do próprio Jarret e com comentários de Lauren:

“Unam-se a nós! Nossas portas estão abertas a todas as nacionalidades, a todas as raças! Deixe seu passado de pecado para trás e torne-se um de nós. Ajude-nos a tornar a América grande novamente”. Ele tem sucesso notável com essa abordagem de incentivo e medo. Una-se a nós e prospere, caso contrário, o que acontecer com você por resultado de sua teimosia e pecado é problema seu (BUTLER, 2019, p. 34BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019., grifos da autora).

Ainda em favor de Marcus, há o trunfo de possuir um corpo belo, apreciado por todas as raças, o que pode ser visto como uma maneira de manter-se relevante, como se a beleza representasse a “absolvição” dos pecados de sua existência indesejável. Apesar de também potencializar a objetificação sexual do corpo negro, o que de fato ocorre com Marcus, pois o rapaz é capturado e prostituído quando perde sua família. “O tratamento do corpo de Marcus sugere que o gênero não garante a segurança ou a visibilidade do corpo” (HAMPTON, 2010, p. 126HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010.) quando outros aspectos entram em jogo na relação entre corpos (como raça, força, idade, condição social).

Por último nesta tríade, encontra-se a questão de gênero. Como demonstrado, “Butler engaja a problemática da construção de gênero ao colocar os corpos masculinos em situações perigosas tradicionalmente reservadas aos corpos femininos” (HAMPTON, 2010, p. 126HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010.), além de apostar no protagonismo feminino de Lauren. Pouca objeção é feita em relação à sua liderança dentro de Bolota, mesmo sendo ela uma mulher jovem e negra, provando o que Le Breton (2007, p. 66)LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007. pontua em relação ao gênero:

As características físicas e morais, qualidades atribuídas ao sexo, dependem das escolhas culturais e sociais e não de um gráfico natural que fixaria ao homem e à mulher um destino biológico. A condição do homem e da mulher não se inscreve em seu estado corporal, ela é construída socialmente.

Isso se sustenta dentro da comunidade, por ela ser formada por um grupo diverso e cansado de ser explorado por uma estrutura de poder pautada na dominância masculina e que apenas servia para lhes oprimir, ao passo que, mesmo com reservas a serem consideradas em relação à doutrina de Lauren, ela lhes oferece um espaço para que circulem sem maiores prejuízos. Hampton (2010, p. 24)HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010., inclusive, situa a liderança de Lauren antes mesmo de deixar Robledo, pontuando que, após a morte do pai, ela assume o papel de matriarca da comunidade.

A própria Lauren é bastante consciente das relações de gênero, pois entende que viajar como um homem em vez de expor a identidade feminina é uma garantia de segurança. Seu sexo é visto como inferior, frágil e subjugável dentro do sistema social. Nesse sentido, Butler molda o corpo de sua protagonista de forma a deixá-lo com uma aparência andrógina, facilmente maleável em momentos de necessidade. Em relação à questão de tamanho, força e traços, ele se destaca em comparação ao das outras mulheres, normalmente descritas como pequenas, frágeis, delicadas e atraentes, sempre vítimas do desejo masculino. “Mesmo que as diferenças de altura, peso, longevidade etc. possam ser observadas de acordo com os sexos, em dada sociedade, não é menos verdade que, na prática da vida quotidiana dos atores, não se trata de uma lei intocável, mas de tendências” (LE BRETON, 2007, p. 66LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.).

Apesar do foco no aspecto positivo da liderança de Lauren, há alguns casos que merecem menção pela gravidade e impacto que causam, como o estupro infantil naturalizado, observado no trecho em que Lauren retorna ao seu bairro incendiado em busca de seus familiares: “A pequena Robin Balter, nua, imunda, com sangue entre as pernas, fria, magricela, entrando na puberdade” (BUTLER, 2018, p. 200BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

Há também a venda de meninas e mulheres por parte de seus familiares, caso de Zahra, que, além de tudo, foi vendida a um lar poligâmico, algo que Lauren deixa claro estar expandindo-se nos tempos de crise, mostrando o poder da classe social e do sexo sobre as vontades individuais:

Richard Moss criou a própria religião, uma combinação do Antigo Testamento e das práticas históricas da África Ocidental. Ele diz que Deus quer que os homens sejam patriarcas, dominadores e protetores de mulheres, e pais do máximo de crianças possível. É engenheiro das grandes empresas de água comercial, por isso consegue escolher mulheres bonitas, jovens e sem-teto, vivendo com elas em relacionamentos poligâmicos. [...] Ouço dizerem que tem muita coisa desse tipo acontecendo em outros bairros. Alguns homens de classe média provam que são homens tendo muitas mulheres em relacionamentos temporários ou permanentes (BUTLER, 2018, p. 49-50BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

E, por fim, há o caso de May, uma das moradoras de Bolota, que teve sua língua cortada na época do aumento da repressão à mulher:

Eu soube que em algumas das cidades mais religiosas, a repressão às mulheres tem sido cada vez mais extrema. Uma mulher que expressa suas opiniões, que é “irritante”, que desobedece ao marido ou que “deixa de lado sua condição de mulher” e “age como homem” pode acabar com a cabeça raspada, a testa marcada, a língua cortada ou, no pior caso, pode ser apedrejada até a morte ou queimada (BUTLER, 2019, p. 73-74BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Em suma, em períodos de crise e intolerância, o corpo marginalizado é o mais afetado e o que possui menor probabilidade de sobrevivência. Ao investigar a fundo as três partes dessa tríade, é razoável considerar que é sobre o corpo feminino que recaem as maiores provações, onde classe, raça e gênero encontram seu ponto máximo de exclusão e subjugação.

4 Corpos marginalizados, resistência e adaptabilidade

Após a reflexão sobre o processo de submissão de corpos marginalizados a partir das Parábolas de Butler, faz-se necessário discutir o caminho acessório que todo exercício de poder possui o potencial de fazer surgir: o processo de resistência de corpos que, para alcançarem esse feito, utilizam a adaptabilidade como ferramenta, tendo, na coletividade, sua realização. Hampton nomeia os corpos que resistem e se deslocam como “híbridos”, valorizando, ainda, o processo migratório no estabelecimento de novas comunidades:

Na ficção de Butler, “híbrido” é um termo que consistentemente se refere a identidades que são biológica e culturalmente indistintas. A indefinição ou mistura de identidades de personagens na ficção de Butler é facilitada pela migração por terra ou pelo espaço. Ser identificado como um híbrido na ficção de Butler é, muitas vezes, sinônimo de se tornar um sobrevivente [...] (HAMPTON, 2010, p. 100HAMPTON, Gregory Jerome. Changing Bodies in the Fiction of Octavia Butler: Slaves, Aliens and Vampires. Lanham: Lexington Books, 2010., tradução nossa).

Em adição, Le Breton (2007)LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007. destaca o aspecto social e cultural do corpo, porém não despreza a questão da adaptabilidade. A adaptabilidade, ou melhor dizendo, a mudança, foco da religião da protagonista, configura-se como instrumento vital destes indivíduos em tempo de ruptura e caos:

A sociologia do corpo aponta a importância da relação com o outro na formação da corporeidade; constata de forma irrestrita a influência dos pertencimentos culturais e sociais na elaboração da relação com o corpo, mas não desconhece a adaptabilidade que, algumas vezes, permite ao ator integrar-se em outra sociedade (migração, exílio, viagem) e nela construir, com o passar do tempo, suas maneiras de ser calcadas em outro modelo. Se a corporeidade é matéria de símbolo, ela não é uma fatalidade que o homem deve assumir e cujas manifestações ocorrem sem que ele nada possa fazer. Ao contrário, o corpo é objeto de uma construção social e cultural (LE BRETON, 2007, p. 65LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.).

De maneira geral, em uma sociedade restritiva, o social funciona como um espelho (LE BRETON, 2007LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.). Para a aceitação em grupo, é preciso pertencer à mesma ideologia, caso contrário, a simples presença causa um mal-estar que pode levar a formas violentas de exclusão ou extermínio.

A impossibilidade de identificação com o outro está na origem de qualquer prejuízo que pode encontrar um ator social pelo caminho: porque é velho ou moribundo, enfermo, desfigurado, de pertencimento religioso ou cultural diferente etc. A modificação desfavorável é socialmente transformada em estigma, a diferença gera a contestação (LE BRETON, 2007, p. 75LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.).

Em Bolota, o espelho, como tradicionalmente visto, é desprezado, e as diferenças são bem-vindas; o papel de todos passa a ser ensinar e aprender em conjunto. As diferenças raciais, culturais, sociais e físicas são moeda de troca para o aperfeiçoamento geral do grupo. Para Le Breton (2007, p. 7LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007., grifo nosso),

[d]o corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade.

Em Microfísica do Poder (1998), Foucault analisa o poder em relação ao domínio da corporeidade, apontando para uma revolta dos corpos como efeito do controle exercido sobre eles. No caso de Lauren e da Semente da Terra, pode-se considerar a criação da nova doutrina religiosa como uma resposta às limitações e ao poder exercido pela religião batista dentro de seu lar. O corpo, encarcerado nos limites do muro que o separa dos acontecimentos do mundo exterior e no conformismo saudosista da comunidade, promoveu uma revolta que resultou na doutrina. Foucault (1998, p. 146)FOUCAULT, Michel. Poder-Corpo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. ed. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. p. 145-152., no entanto, salienta que “a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e a batalha continua”, exatamente como ocorre no segundo volume de Butler, com a ascensão do presidente Jarret e de sua Igreja da América Cristã, inclusive acentuando a repressão aos corpos.

Todavia, outro aspecto destaca-se do poder abordado pelo autor — seu caráter positivo: “Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo [...] e também a nível do saber” (FOUCAULT, 1998, p. 148FOUCAULT, Michel. Poder-Corpo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. ed. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. p. 145-152.). Como resultado disso, deduz-se que “as dificuldades que se enfrenta para se desprender dele vêm de todos esses vínculos” (FOUCAULT, 1998, p. 149FOUCAULT, Michel. Poder-Corpo. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. ed. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. p. 145-152.), ou seja, a ascensão de Jarret oferece o “controle” do caos e o retorno a uma América poderosa e influente. Marcus é a prova da validação dessa promessa, pois ele procura, na submissão ao sistema de Jarret, a restauração da ordem, algo que considera inexistente na pequena comunidade de Lauren, que reconhece a importância do caos para a reorganização social. Pela leitura dos diários de Marcus e Lauren, Larkin é capaz de reconstituir a diferença entre os dois e entender por que ela os mantinha afastados:

Ela [Lauren] via o caos como natural e inevitável, e como argila para ser moldada e direcionada. [...] E assim, ela tentou se adaptar e crescer. [...] Caos. Independentemente da lógica de minha mãe, ela decidiu que sabia o que havia de errado com seu mundo, e sabia o que o consertaria: a Semente da Terra. [...] Meu tio Marc, por outro lado, detestava o caos. Não era uma das faces de seu deus. Não era natural. Era demoníaco. Ele detestava o que o caos tinha feito com ele, e precisava provar que não era o que o tinha sido forçado a se tornar (BUTLER, 2019, p. 150-151BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Tanto Lauren quanto Marcus buscam o poder por pensarem ser essa a única forma de exercer o controle de suas vidas fragmentadas. O poder não é exclusivo do Estado ou da classe dominante, mas algo comum a qualquer instituição ou nível da sociedade, como explica Foucault. Ele tem diferentes facetas, e, muitas vezes, os que a ele são submissos nem mesmo o enxergam. Em A Parábola dos Talentos, Butler procura evidenciar essa questão ao explicitar a forma como sua protagonista governa o espaço pertencente à comunidade. Lauren, apesar de não utilizar a violência contra os membros de Bolota, possui uma série de regras, oferecendo recompensa aos que as cumprem e desvantagem aos que não aceitam sua Semente da Terra como doutrina religiosa: para ter direito a voto e participação plena nos lucros da comunidade, é preciso aceitá-la como religião, fato que causa desconforto em muitos habitantes do local, pois após um longo período de submissão, pensavam ter alcançado a liberdade. É uma espécie de segregação, não totalmente diferente de qualquer outra forma de dominação. Na verdade, isso prova que o poder mantém sua essência, mesmo quando exercido por corpos marginalizados.

5 Corpos marginalizados, afeto e sexualidade

As relações de afeto entre personagens, sejam elas voltadas para o cuidado do outro com a formação de vínculos quase familiares, ou para a satisfação sexual, juntamente com a resistência e a adaptabilidade, são essenciais para a manutenção da existência de corpos marginalizados. Em um ambiente de dissolução de famílias e da ausência de um sentido de pertencimento como um todo, é na experiência de sentir o outro que muitas vezes um corpo se realiza, ou seja, é pelo toque que a vida volta a fazer sentido, tendo em vista que “[a]ntes de qualquer coisa, a existência é corporal. [...] o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE BRETON, 2007, p. 7LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.). Trata-se de uma forma eficaz para acalmar as emoções ou direcioná-las para outro contexto, além de, em termos de sexo consentido, constituir um exercício da liberdade individual, normalmente negada aos corpos marginalizados.

Após a saída de Robledo, Harry e Zahra acabam conectando-se, apesar do perigo de uma união interracial, e passam a ser o primeiro casal de A Parábola do Semeador formado durante o processo de migração até Humboldt. Em uma conversa com Lauren, Zahra comenta sobre seus sentimentos e a razão para o envolvimento com Harry: “As coisas me pegaram de surpresa ontem à noite. Eu... eu precisava de algo, de alguém” (BUTLER, 2018, p. 252BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.), pois ela havia perdido praticamente tudo que a definia como humana. Posteriormente, Lauren une-se a Bankole e os hiperempatas e ex-escravizados, Grayson Mora e Emery Solis, fazem o mesmo. Outros laços de afeto também são desenvolvidos nessa jornada: um relacionamento de mãe e filho entre Allie Gilchrist (de luto pelo filho e pela irmã) e Justin Rohr (um menino órfão encontrado pelo grupo) e, por fim, a relação fraterna entre Doe Mora e Tory Solis, filhas de Grayson e Emery.

Já em A Parábola dos Talentos, outra relação importante é estabelecida entre os agora membros de Bolota, um vínculo entre famílias que Lauren procurou lapidar por meio da criação da cerimônia de boas-vindas aos bebês (semelhante ao batismo da religião cristã):

Muitos membros de nossa comunidade vieram a nós sozinhos ou só com crianças pequenas, e me parece que é melhor fazer o que eu puder para criar laços de família que abranjam mais do que a típica relação padrinho-afilhado. Com frequência, no meu antigo bairro em Robledo, isso não era um relacionamento de verdade. [...] Quero que isso seja levado a sério aqui. Deixei isso claro a todo mundo. Ninguém tem que assumir a responsabilidade de se unir a outra família dessa maneira, mas todo mundo que assume essa responsabilidade estabeleceu um compromisso real (BUTLER, 2019, p. 94BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Butler (2019, p. 293)BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019. também abre espaço para a circulação de corpos homossexuais ao introduzir a relação entre Allie Gilchrist e Mary Sullivan após a invasão dos apoiadores de Jarret: “Mary Sullivan e Allie unem seus cobertores e fazem amor na calada da noite. Isso as conforta. Elas se deitam perto de mim, e eu as escuto. Não são as únicas que fazem isso, mas são o único casal, até agora, que permanece unido”. Apesar de, no grupo, isso não ser um problema, na comunidade agora chamada de Campo Cristão de Reeducação, a relação é delatada para os Cruzados, que as punem tanto que Mary sucumbe e Allie sobrevive com sequelas. A própria Lauren cogita relacionar-se com Nia Cortez, uma das pessoas que lhe dá abrigo em troca de trabalho durante seu retorno às estradas. Essas são provas de que, para Butler, o afeto homoafetivo não é condenável, e sim visto de forma natural, de acordo com a vontade dos corpos. Nas Parábolas não existem regras para relações de afeto, exceto as da América Cristã, que, ironicamente, viola os corpos marginalizados, esquecendo-se das leis divinas que tanto prega.

6 Corpos marginalizados e a infância em meio ao caos

De acordo com Le Breton (2007, p. 8)LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007., “[a]o nascer, a criança é constituída pela soma infinita de disposições antropológicas que só a imersão no campo simbólico, isto é, a relação com os outros, poderá permitir o desenvolvimento”. O sociólogo ainda salienta que “esse processo de socialização da experiência corporal é uma constante da condição social do homem que, entretanto, encontra, em certos períodos da existência, principalmente na infância e na adolescência, os momentos fortes” (LE BRETON, 2007, p. 8LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.).

A partir dessas afirmações, faz-se uma leitura da forma como corpos marginalizados desde a infância são apresentados nas Parábolas. Nesse quesito, três situações destacam-se: a desvalorização total destes corpos, a importância de seu preparo para a melhoria do futuro e a restrição de experiências com outros corpos e cenários.

No primeiro caso, ambos os romances trazem representações muito fortes da condição de abandono de crianças, sejam as que vivem na rua e não possuem roupas, educação e alimentação, sendo também vítimas de abusos sexuais ou até mesmo vendidas pelos pais, até o caso da pequena Amy Dunn, vizinha de Lauren em Robledo, em A Parábola do Semeador:

Fico me perguntando o que vai acontecer com a pobre Amy Dunn. Ninguém se importa com ela. A família a alimenta e, de vez em quando, a mantém limpa, mas eles não a amam, nem mesmo gostam dela. A sua mãe, Tracy, tem só um ano a mais do que eu. Tinha treze quando Amy nasceu. Doze quando seu tio de 27 anos, que a vinha estuprando por anos, conseguiu engravidá-la (BUTLER, 2018, p. 45BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

De fato, a menina acabou sendo morta por uma bala que atravessou os muros do bairro. O descaso com Amy é também o descaso com sua mãe, uma adolescente estuprada desde a infância por um membro da família. Ironicamente, apesar de a comunidade murada tentar manter o mal de fora, convivia com ele de forma pacífica debaixo do próprio nariz. Lauren preocupava-se com a menina, inclusive havia começado a ensiná-la na escola da madrasta antes mesmo da idade permitida. Isso, aliás, leva ao segundo caso: a educação como forma de moldar os corpos para a garantia de um futuro para a humanidade.

Butler, tanto em entrevistas quanto em seus próprios romances, sempre dedicou espaço especial para a questão da educação: “Eu escolhi escrever dessa maneira sobre a educação nos dois livros porque estava escutando e lendo coisas com tanto desprezo pela educação pública” (BUTLER, 2019, p. 544BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.). Nas Parábolas, o ensino gratuito torna-se raro (apesar de a educação ser obrigatória), sendo acessível apenas a uma minoria com recursos. Lauren dedica-se, então, a educar as crianças de sua comunidade em Bolota e, posteriormente, com o avanço da Semente da Terra, custeia seus estudos para que as mais capazes promovam o Destino. Apesar da garantia de instrução dentro da doutrina de Lauren, as crianças trabalham juntamente com os adultos, não sendo totalmente livres para viver essa fase. Talvez isso se deva aos tempos difíceis e à possibilidade de perderem tudo de uma hora para a outra, contudo, não deixa de ser uma forma de controle precoce dos corpos. A própria Lauren admite que as crianças são mais facilmente moldáveis que os adultos e, portanto, é mais produtivo investir nelas.

Os feitos e gestos da criança estão envolvidos pelo padrão cultural (ethos) que suscita as formas de sua sensibilidade, a gestualidade, as atividades perceptivas, e desenha assim o estilo de sua relação com o mundo. A educação nunca é uma atividade puramente intencional, os modos de relação, a dinâmica afetiva da estrutura familiar, a maneira como a criança se situa nessa trama e a submissão ou resistência que a ela opõe aparecem como coordenadas cuja importância é mais e mais considerada na socialização (LE BRETON, 2007, p. 8-9LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.).

Por outro lado, aproveitando a consideração de Le Breton, é possível analisar o terceiro caso: Larkin, a filha roubada de Lauren. A jovem não se submete completamente ao sistema de dominação imposto por sua família adotiva e, quando passa a controlar seu medo, avança os limites impostos ao seu corpo:

Tive minha primeira experiência sexual prazerosa usando uma Máscara de Sonhos com uma sinopse propositalmente errada. Nela, estava escrito: “A história de Moisés”. Na verdade, era a história de uma garota que fazia sexo intenso com seu pastor, com os diáconos e com todo mundo que conseguisse seduzir. Eu tinha onze anos quando descobri aquela Máscara. Se Kayce [mãe adotiva] tivesse tomado conhecimento do que se tratava, poderia ter feito muito mais do que me estapear (BUTLER, 2019, p. 365BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.).

Posteriormente, Larkin deixa a casa da família sem estar casada, o que a leva a uma exclusão dentro da comunidade cristã. Esse fato configura-se como prova de que a “educação”, por si só, não garante a submissão do corpo jovem, e a identificação é também uma forma de adequação ao coletivo. Na comunidade de Lauren, existe um senso de união, um abrigo das atrocidades do mundo e uma autoridade muito mais sensível e sedutora, tornando a sujeição infantil muito mais fácil do que no ambiente hostil ocupado por sua filha.

É necessário, no entanto, reforçar que, apesar de a aprendizagem corporal ser impactante na infância e na adolescência, ela se desenvolve durante toda a vida, atuando à medida que as condições exteriores impactam os corpos: “Se a ordem social se infiltra pela extensão viva das ações do homem para assumir força de lei, esse processo nunca está completamente acabado” (LE BRETON, 2007, p. 9LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.). O corpo torna-se, então, palco de disputas entre o apreendido e o apreensível.

7 Corpos marginalizados e o uso de entorpecentes

Outro tema bastante explorado é o aumento do consumo de entorpecentes, dois em especial: o Paracetco (utilizado pela mãe de Lauren), um remédio inicialmente usado para minimizar os efeitos do Mal de Alzheimer e posteriormente adaptado por viciados para melhorar o desempenho do cérebro, e a piro, descoberta por acidente em um laboratório caseiro na tentativa de reproduzir o efeito de uma das drogas caras vendida nas ruas.

A escolha por situar esses corpos neuroquimicamente destruídos na questão da marginalidade explica-se pela condição de que esses indivíduos, em muitos casos, mesmo sendo originários de outras realidades sociais, ao adentrarem o mundo das drogas, deixando o conforto de seus lares, passam a ser mais um grupo de corpos dilacerados pelos efeitos da devastação da nação.

Quando as pessoas fazem uso do Paracetco, como efeito colateral, seus filhos podem nascer com a síndrome de hiperempatia, “o que os médicos chamam de ‘síndrome orgânica ilusória” (BUTLER, 2018, p. 22BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.). Um corpo hiperempático, como o de Lauren, é palco da acentuação da dor e do prazer, pois ele é capaz de replicar as sensações dos corpos que o circundam. Em períodos de guerra e escravização, esses corpos são duplamente massacrados (pela sua dor e a do outro), ao mesmo tempo que possuem o potencial de evitar ou minimizar o sofrimento alheio como forma de proteção. De uma maneira ou de outra, os hiperempatas possuem uma maior consciência dos limites do corpo, e sua conduta social está intrinsecamente relacionada a essa sensibilidade.

Já a piro é uma droga consideravelmente mais perigosa, pois induz, em seus usuários, a vontade de observar o fogo, em uma espécie de prazer semelhante ao sexual, o que faz com que produzam incêndios para a própria satisfação. Enquanto os efeitos mais graves do prazer imediato proporcionado pelo Paracetco só são sentidos nas gerações seguintes, com a piro, os efeitos desafiam de forma imediata os limites do corpo do usuário e dos que estiverem em seu caminho:

O inventor cometeu um erro químico muito pequeno e acabou conseguindo a piro. Isso aconteceu na Costa Leste e causou um aumento imediato no número de incêndios criminosos sem motivo, grandes e pequenos. A piro seguiu seu caminho em direção ao oeste sem causar tanto estrago quanto poderia ter causado. Agora, sua popularidade está aumentando. E no sul da Califórnia, um lugar muito seco, ela pode causar uma verdadeira orgia incendiária (BUTLER, 2018, p. 178BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.).

Porém, é necessário ressaltar, ainda, outro agravante: enquanto com os “herdeiros” do Paracetco há uma abertura para o afeto, com os piromaníacos não há razão para relações desse tipo, pelo contrário, eles são capazes de roubar, incendiar ou vender seus próprios companheiros para a manutenção da única relação que seus corpos parecem tolerar: “Às vezes, os tintas [piromaníacos] gostam tanto do fogo que se aproximam demais dele. E seus amigos nem sequer os ajudam. Simplesmente os observam queimar” (BUTLER, 2018, p. 139BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.). Os piromaníacos são caracterizados por Butler (2018, p. 138)BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola do Semeador. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018. como uma espécie de skinheads às avessas: “Eles raspam os cabelos, até as sobrancelhas, e pintam a pele de verde, azul, vermelho ou amarelo. Comem fogo e matam pessoas ricas”.

Le Breton (2007, p. 88-89)LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007. explica, de forma bastante elucidativa, a raiz da busca por atividades nocivas (podendo, nesse aspecto, incluir-se o uso de entorpecentes), observando uma relação direta com as condições em que precisam lidar com a perda ou o embaçamento de estruturas que promovem uma certa ordem social:

A paixão moderna pelas atividades de risco nasce da profusão dos sentidos que o mundo contemporâneo sufoca. A perda de legitimidade dos referenciais de sentido e de valores, sua equivalência geral numa sociedade onde tudo se torna provisório, desestabiliza o panorama social e cultural. A margem de autonomia do ator se amplia, mas traz consigo o medo ou o sentimento de vazio. [...] Quando os limites dados pelo sistema de sentidos e valores perdem sua legitimidade, as explorações dos “extremos” ganham impulso: busca de performances, de proezas, de velocidade, de imediatismo, de frontalidade, aumento do risco, uso exagerado dos recursos físicos.

8 Conclusão

A classificação de corpos marginalizados adotada no artigo não pretende, de forma alguma, esgotar a questão da corporeidade na duologia Semente da Terra. A intenção foi apontar algumas possibilidades de leitura das posições e experiências às quais esses corpos são submetidos dentro das narrativas e, a partir dessa análise, compreender como o sistema de relações entre eles se estabelece, principalmente no que tange à comunidade religiosa criada por Lauren, já que a maioria desses corpos se reúne em torno de sua doutrina.

O corpo está em constante movimento, desloca-se de um processo a outro, não é imutável; é moldável e resiste acompanhado das cicatrizes que o constituem e influenciam suas experiências futuras. Se, por um lado, foi desprezado e subjugado em detrimento da mente, sendo concebido como uma condição meramente biológica detentora do pecado, por outro, ele se rebela e se inscreve na história. Butler é exemplo disso, um corpo negro, feminino e pertencente à classe trabalhadora que, na ausência de reconhecimento, forjou criativamente seu próprio espaço, marcando assim um local de (r)existência para uma comunidade tão diversa quanto aquela presente em suas Parábolas.

A abertura dos estudos do corpo através de textos literários representa uma área que, apesar de muito bem explorada academicamente, ainda é capaz de se expandir muito mais. A diversidade de corpos e experiências possíveis de serem vividas e narradas é relativamente extensa, e, à medida que novas narrativas vão surgindo, outras questões e diálogos são postos em cena, pois a flexibilidade do movimento de corpos é infinita. É importante salientar, no entanto, que corpos marginalizados, vítimas de abuso e negligência por parte do governo de seus países, tal como são caracterizados nos romances de Butler, precisam de mais atenção, pois representam um sintoma de que a sociedade está em colapso iminente. Como Larkin sabiamente conclui, não é de uma solução escapista que necessitamos, algo como um botão que seria capaz de resetar uma longa narrativa histórica de catástrofes, mas de reorganização de estruturas que até o momento foram construídas para cercear em vez de integrar.

Notas

  • 1
    Todos os corpos em análise na duologia Semente da Terra estão inseridos nesta conceituação e, mesmo que o vocábulo não seja retomado com frequência no texto (por escolha estilística), em cada uma das seções serão abordados diferentes aspectos da marginalização desses corpos, bem como dos movimentos que eles realizam com o intuito de resistir às imposições do sistema social em que vivem.
  • 2
    Do original: “The body in Butler’s fiction is indispensable in understanding how identity is formed and marshaled”.
  • 3
    Do original: “The noncanonic, repressed twin of Literature which, for want of another name, one calls Paraliterature is (for better or worse) the literature that is really read – as opposed to most literature taught in schools. Within it, SF is one of the largest genres, and to my mind the most interesting and cognitively most significant one”.
  • 4
    Do original: “Speculative fiction that treats African-American themes and addresses African-American concerns in the context of twentieth-century technoculture”.
  • 5
    Do original: “a non-existent society described in considerable detail and normally located in time and space that the author intended a contemporaneous reader to view as considerably worse than the society in which the reader lived”.
  • 6
    Do original: “to be less driven by extremes of celebration or despair, more open to complexities and ambiguities, and more encouraging of new riffs of personal and political maneuvers”.
  • 7
    Do original: “go on to explore ways to change the present system so that such culturally and economically marginalized peoples not only survive but also try to move toward creating a social reality that is shaped by an impulse to human self-determination and ecological health rather than one constricted by the narrow and destructive logic of a system intent only on enhancing competition in order to gain more profit for a select few”.
  • 8
    Do original: “Butler’s fiction is unique because it is openly racial, sexual, and ambiguous. ‘Her fiction reflects intersections of feminist theories, anti-colonial discourses, SF, and black women’s writing, and correlate with what Mae Gwendolyn Henderson calls ‘simultaneity of discourses’ (Melzer 38). Because of this simultaneity of discourse Butler’s fiction is much easier to read than to analyze and to categorize”.
  • 9
    O conceito será aprofundado na seção 7 deste artigo.
  • 10
    Do original: “ When she began the Parables series [...] it was the Trickster narrative, not the Olamina narrative, she was concerned withand when she stepped back to tell the story of Olamina’s childhood and young adulthood first it was only ever to tell the Trickster story better and more fully”.
  • 11
    A partir deste momento, a análise das duas Parábolas será mesclada, com o intuito de acompanhar a evolução dos acontecimentos e favorecer a exposição dos argumentos. No caso de dúvidas do leitor, recomenda-se uma releitura da seção 2 deste artigo, além do acompanhamento das citações dos dois romances – o ano de 2018 corresponde à primeira parte da duologia e o ano de 2019 corresponde à segunda.
  • 12
    Do original: “Butlers fiction presents methods of imagining the body that allow us to understand how and why the body must be categorized. From this window readers of her work are better able to explore the meaning of various identities such as race, sex, and gender. These terms are seen for what they are, arbitrary markers designed to give stability to that which is unstable and ambiguous”.
  • 13
    Do original: “The treatment of Marcus’s body suggests that gender does not ensure the safety or visibility of a body”.
  • 14
    Do original: “Butler engages the problematic of gender construction by placing male bodies in dangerous situations traditionally reserved for female bodies”.
  • 15
    Do original: “In Butler’s fiction ‘hybrid’ is a term that consistently refers to identities that are biologically and culturally blurred. The blurring or mixing of character identities in Butler’s fiction is facilitated by migration over land or through space. To be identified as a hybrid in Butler’s fiction is, often times, synonymous with becoming a survivor”.

Referências

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  • BUTLER, Octavia Estelle. A Parábola dos Talentos. Tradução: Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.
  • CANAVAN, Gerry. Eden, Just Not Ours Yet: On Parable of the Trickster and Utopia. English Faculty Research and Publications, v. 48, n. 1, p. 59-75, 2019.
  • CAMPELLO, Eliane; SCHMIDT, Rita Terezinha. Apresentação: Corpo e Literatura/ Body and Literature. Ilha do Desterro, Florianópolis, v. 68, n. 2, p. 9-14, maio/ago. 2015.
  • DERY, Mark. Black to the Future: Interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: DERY, Mark (ed.). Flame Wars: The Discourse of Cyberculture. Durham: Duke University Press, 1994. p. 179-222.
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  • LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução: Sônia M.S. Fuhrmann. Petrópolis: Vozes, 2007.
  • MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: science fiction, utopia, dystopia. Boulder: Westview, 2000.
  • MURPHY, Graham J. Dystopia. In: BOULD, Mark et al. (ed.). The Routledge Companion to Science Fiction. New York: Routledge, 2009. p. 473-477.
  • SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. Westford: Yale University Press, 1979.
  • XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2022
  • Aceito
    22 Jul 2022
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