Acessibilidade / Reportar erro

DESAFIOS DA (CON)VIVÊNCIA PÓS-HUMANA EM KLARA E O SOL E AFTER YANG

CHALLENGES OF POSTHUMAN (CO)EXISTENCE IN KLARA AND THE SUN AND AFTER YANG

Resumo

Este artigo objetiva investigar desafios da (con)vivência entre seres humanos e pós-humanos representados em duas obras de ficção contemporânea: o romance Klara e o Sol (2021), de Kazuo Ishiguro, e o filme After Yang (2021), de Kogonada. Os dois trabalhos narram os efeitos da presença de indivíduos pós-humanos em famílias humanas. O presente texto será organizado a partir de dois focos de análise: primeiramente, a maneira que essas obras de ficção problematizam noções de identidade humana e pós-humana, especialmente considerando questões como memória, raça e fé; e em segundo lugar, as formas que esses entes tecnológicos se inserem em um contexto familiar humano. Sendo assim, esse trabalho pretende mostrar como Klara e o Sol e After Yang são obras que testam os limites da representação pós-humana, questionando paradigmas essencialistas do humanismo.

Palavras-chave:
pós-humano; tecnologia; identidade; ficção contempo-rânea; cinema contemporâneo

Abstract

This article aims to investigate challenges of the (co)existence between humans and posthumans represented in two contemporary works of fiction: the novel Klara and the Sun (2021), by Kazuo Ishiguro, and the film After Yang (2021), by Kogonada. Both works narrate the effects of the presence of posthuman individuals in human families. The present text will be organized considering two focus points: firstly, the way in which those works of fiction problematize notions of human and posthuman identities, especially taking into account questions such as memory, race and faith; secondly, the manners in which these technological beings are inserted into the context of human families. Thus, this article intends to demonstrate how Klara and the Sun and After Yang are works which test the limits of posthuman representation, questioning essentialist humanist paradigms.

Keywords:
posthuman; technology; identity; contemporary fiction; contemporary film

A longa tradição humanista do Ocidente vem, na contemporaneidade, passando por profundas transformações. Fundada em preceitos da filosofia grega (o homem como medida de todas as coisas), passando pelos umanisti do Renascimento, até a universalidade do conceito de “humanidade” do Iluminismo, a ideia de humanismo encontra-se em um momento no qual a perspectiva do que é “humano” não parece comportar mais abordagens generalistas e totalizantes. Afinal de contas a noção de “humano” é fundada no mito daquilo que é essencial e universal. O crítico Tony Davies explica essas duas qualidades: “Essencial, porque a humanidade […] é a essência central e inseparável, a qualidade definitiva, dos seres humanos; universal, porque aquela humanidade essencial é compartilhada por todos os seres humanos” (DAVIES, 1997, p. 24DAVIES, Tony. Humanism. Londres: Routledge, 1997., minha tradução).

Contudo, essa humanidade consensual e familiar “explodiu sob a dupla pressão dos avanços científicos contemporâneos e preocupações econômicas globais” (BRAIDOTTI, 2013, p. 1BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013., minha tradução). Além disso, a diversidade de metanarrativas sobre o sentido do humano em suas mais diversas construções identitárias – raça, gênero, orientação sexual, entre outras – problematiza supostas bases referenciais em comum que denominariam toda a humanidade como espécie.

É diante desse contexto que os conceitos de pós-humanidade, pós-humanismo, ou pós-humano vêm sendo cada vez mais estudados e debatidos não só na esfera acadêmica, mas também ganhando cada vez mais complexas representações nos campos da arte e da cultura. Uma estratégia para começar a discutir essas ideias, em contraponto à tradicional filosofia humanista, é a partir do prefixo “pós”, cujo uso poderia ser compreendido pelo menos de duas maneiras. Primeiramente, o pós-humano seria aquilo que viria após o humano, i.e. depois do desaparecimento da humanidade. Por outro lado, o pós-humano também pode ser entendido como aquilo que ultrapassa o que é humano, com características superiores e geralmente responsável pelo desaparecimento da humanidade.

Diante da complexidade das questões postas com a transfiguração do humano, é importante também distinguir as noções de pós-humano, pós-humanismo e pós-humanidade. Em linhas gerais, podemos dizer que o pós-humano diz respeito a uma figura ou indivíduo, que pode ter inúmeras representações – ciborgues, monstros, zumbis, entre outros (HERBRECHTER, 2018, p. 94HERBRECHTER, Stefan. Critical Posthumanism. In: BRAIDOTTI, Rosi; HLAVAJOVA, Maria (Eds.). Posthuman Glossary. Londres: Bloomsbury, 2018, p. 94-96.). Quando falamos em pós-humanismo, estamos nos referindo a uma esfera do discurso social, quando se coloca em xeque o que significa ser humano diante de questões contemporâneas fundamentais, como o capitalismo tardio e as mudanças climáticas (HERBRECHTER, 2018, p. 94HERBRECHTER, Stefan. Critical Posthumanism. In: BRAIDOTTI, Rosi; HLAVAJOVA, Maria (Eds.). Posthuman Glossary. Londres: Bloomsbury, 2018, p. 94-96.). Já a conceituação de pós-humanidade(s) normalmente se refere a como debates acadêmicos em torno das Humanidades ou Ciências Humanas se reconfiguram diante dessa nova perspectiva. Vale a pena ressaltar, contudo, que esses conceitos são fluidos e estão em disputa permanente, com suas definições variando a partir da posição crítica adotada pelo autor.

Ainda que alguns autores argumentem a possibilidade de existência de alguns elementos do pós-humano em textos medievais e do início da modernidade, é no século XX que esse conceito se consolida como matéria para diferentes campos de estudo. Nas Humanidades, o conceito de pós-humano emerge com a publicação, em 1977, do artigo “Prometheus as Performer: Toward a Posthumanist Culture? A University Masque in Five Scenes”, do crítico Ihab Hassan. No texto, ele afirma que precisamos entender que quinhentos anos de humanismo podem estar chegando ao fim, à medida que o humanismo se transforma em algo que devemos chamar inevitavelmente de pós-humanismo (HASSAN, 1977, p. 843HASSAN, Ihab. Prometheus as Performer: Toward a Posthumanist Culture?. The Georgia Review, v. 31, n. 4, p. 830-850, 1977.).

Muitas vezes, esse fim do humanismo é associado a uma certa ideia de evolução da humanidade, no sentido de que, com o auxílio da ciência, o ser humano vai se aperfeiçoar ou até mesmo transcender. Esse ponto de vista, porém, diz respeito ao conceito de transumanismo, normalmente vinculado ao pós-humano, mas fundamentalmente diferente. Enquanto o pós-humanismo em geral está relacionado a um pós-antropocentrismo, rejeitando propostas hierárquicas que posicionam o ser humano em posição de superioridade com relação a outros seres e também dentro de sua própria espécie, o transumanismo reforça a tradição humanista ao indicar que indivíduos podem se tornar superiores ao aprimorar suas qualidades primordiais por meio de artefatos tecnológicos.

Diante dessas perspectivas, se faz necessário atestar que discursos sobre o pós-humano, portanto, não pretendem descartar o humanismo por completo e nem construir ilusões de uma humanidade artificialmente aperfeiçoada. Como indicado no texto introdutório do Cambridge Companion to Literature and the Posthuman:

Discursos pós-humanistas não propõem a transcendência do humano nem a negação do humanismo. Em vez disso, pós-humanismos críticos se relacionam com o legado humanista para criticar valores e visões de mundo antropocêntricos. Estudiosos do pós-humanismo chamam a atenção para o potencial e também para os enganos da produção de conhecimento humanista ao mesmo tempo em que problematizam a trajetória progressiva do pós-humano (CLARKE; ROSSINI, 2017, p. xivCLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.) The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman. Cambridge: Cambridge University Press, 2017., minha tradução).

Ainda assim, considerado a variedade de pontos de vista sobre o pós-humano, da mesma forma que a fluidez e contemporaneidade da temática, não podemos descartar uma certa aproximação entre o pós-humano e o transumano, especialmente no que diz respeito ao papel da tecnologia nas mudanças sobre o entendimento do que é considerado humano. A crítica literária estadunidense N. Katherine Hayles, em sua fundamental obra How We Became Posthuman, exprime muito bem a conexão entre a esfera humana e a tecnológica quando afirma:

A visão pós-humana configura o ser humano de maneira que ele pode ser perfeitamente articulado a máquinas inteligentes. No pós-humano, não há diferenças essenciais ou demarcações absolutas entre existência corpórea e simulação de computador, mecanismo cibernético e organismo biológico, teleologia robótica e metas humanas. (HAYLES, 1999, p. 2-3HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999., minha tradução).

Dessa forma, o pós-humano se caracteriza por uma imagem, real ou especulativa, que une o humano a alguma espécie ou elemento não-humano (CLARKE; ROSSINI, 2017, p. xiiiCLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.) The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.). Considerando a afirmação de Hayles, esse elemento não-humano pode ser geralmente composto de elementos artificiais criados pela tecnologia.

A história da ficção, especialmente da ficção científica, está repleta de obras que retratam a temática do pós-humano, seja por meio da descrição da vivência, seja por meio de um alerta contra os perigos da substituição de seres humanos. Do monstro de Frankenstein (1818), criado por Mary Shelley, passando pelo robô de Metropolis (1927), de Fritz Lang, até os androides de Philip K. Dick em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968) e sua adaptação cinematográfica Blade Runner – O Caçador de Andróides (1982), de Ridley Scott, seres pós-humanos instigam a imaginação em semelhantes graus de medo e fascínio.

Na ficção do século XXI, contudo, vem crescendo o número de obras que tematizam a pós-humanidade não por meio de uma narrativa de conflito com tintas apocalípticas, mas por uma investigação das consequências da convivência entre seres humanos e pós-humanos. Considerando que na atualidade assistentes virtuais cada vez mais se assemelham a seres humanos e a onipresença de artefatos tecnológicos como smartphones é um fato, parece que artistas decidiram traduzir o zeitgeist por meio das nuances que emergem dessa inter-relação entre o biológico e o tecnológico. Filmes como Frank e o Robô (2012) e Ela (2013), assim como os romances Love in the Age of Mechanical Reproduction (2013), de Judd Trichter, e Máquinas Como Eu (2019), de Ian McEwan, tratam da convivência rotineira e, muitas vezes, banal, entre um ente humano e outro pós-humano.

Dentro do contexto de narrativas contemporâneas, duas obras se destacam por retratar maneiras pelas quais indivíduos pós-humanos se inserem em contextos familiares, constroem sua subjetividade e buscam estabelecer uma convivência harmônica. Trata-se do filme After Yang (2021)AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital., do diretor sul-coreano Kogonada, e do romance Klara e o Sol (2021), do escritor britânico Kazuo Ishiguro. Além de terem sido lançadas no mesmo ano e de seus criadores possuírem origem asiática, as duas obras se assemelham pelo fato de constituírem uma complexa representação de noções de identidade, seja ela humana ou pós-humana, e também por discutir os limites dos vínculos entre seres biológicos e técnicos.

Adaptação do conto “Saying Goodbye to Yang”, do autor estadunidense Alexander Weinstein, o filme After Yang conta a história de uma família que, em uma sociedade do futuro, tem de lidar com questões profundas de identidade e relacionamentos quando seu assistente humanoide, Yang, para de funcionar. Já Klara e o Sol também se passa em um futuro não especificado, onde a chegada da androide Klara a uma família gera a necessidade de tomada de difíceis decisões que problematizam o sentido de humanidade. Nas duas obras, os entes criados pela técnica, chamados de technosapiens no filme e de Amigos Artificiais (AA) no romance, são responsáveis por fazer companhia e até mesmo educar as crianças inseridas nos respectivos ambientes familiares. Dessa forma, a (con)vivência entre humanos (biológicos) e pós-humanos (técnicos) evidenciada nas obras levanta fascinantes questionamentos sobre semelhanças e diferenças quanto à subjetividade desses indivíduos. Além disso, o relacionamento cotidiano que se desenrola não apenas com as crianças, mas também com os pais e a sociedade como um todo, revela contradições e fricções existentes em macro e microesferas.

Robôs, androides, ciborgues e avatares compõem há bastante tempo o rol de figuras-chave da ficção científica, aproximando de maneira metafórica o humano da máquina. Desde que cunhada pelo autor tcheco Karel Capek em sua peça R.U.R., de 1921, a palavra “robô” adquiriu diferentes acepções e possibilidades representativas. Podemos pensar nas histórias de Isaac Asimov e seu estabelecimento das leis da robótica, ou então no filme Robocop (1987), de Paul Verhoeven, em que um policial ciborgue configura-se como o braço armado de um governo autoritário.

Na ficção do século XXI, porém, esses seres vêm sendo articulados por meio de uma perspectiva pós-humanista crítica que questiona, acima de tudo, o que significa ser humano. A problematização de ontologias essencialistas diante do acelerado desenvolvimento tecnológico tornou-se matéria central de produções ficcionais contemporâneas. O crítico Stefan Herbrechter chega até mesmo a reconhecer o surgimento de uma literatura pós-humana, que ele define como uma “literatura […] que tenta imaginar e articular o que é ser pós-humano ou humano de outra maneira ao criar novas subjetividades” (HERBRECHTER, 2015, p. 7HERBRECHTER, Stefan. Posthumanist Literature? Unpublished keynote - Approaching Posthumanism and the Posthuman Conference. Genebra: 2015. Disponível em http://www.academia.edu/13743708/Posthumanist_Literature. Acesso em 20/05/2022. Acesso em: 23 nov. 2022
http://www.academia.edu/13743708/Posthum...
, minha tradução).

Se expandirmos o conceito de Herbrechter para além da literatura, podemos ver que outros tipos de ficção, como o cinema, também vêm se debruçando sobre a criação de possíveis novas subjetividades no contexto pós-humano. Essas ficções, de forma geral, levantam questões sobre o excepcionalismo do ser humano como criatura produtora de sentidos e dotada de rica vida interior. Mais do que isso, essas obras literárias e fílmicas contemporâneas vão além da tradicional representação do desejo de seres pós-humanos em se tornarem humanos, em uma espécie de atualização da história de Pinóquio (como, por exemplo, no filme A.I.Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, de 2001). Pelo contrário, criações como After Yang e Klara e o Sol investigam como esses indivíduos tecnológicos buscam o autoconhecimento, almejando compreender o que são, notadamente despidos de um anseio último de alcançar a humanidade.

O filme de Kogonada e o romance de Ishiguro podem ser lidos como representações do que Rosi Braidotti chama de “pós-humanismo pós-antropocêntrico” (BRAIDOTTI, 2013, p. 92BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.). Diante dessa perspectiva, a autora afirma:

A ‘vida’, longe de ser codificada como propriedade exclusiva ou direito inalienável de uma espécie, a humana, sobre todas as outras ou de ser sacralizada como um dado pré-estabelecido, é postulada como um processo interativo e aberto. Essa abordagem vitalista com relação à matéria viva desloca o limite entre a porção da vida – tanto orgânica quanto discursiva – que tem tradicionalmente sido reservada para o antropos e […] o escopo mais amplo da […] vida não-humana (BRAIDOTTI, 2013, p. 92BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013., minha tradução).

Nesse sentido, a categoria universalizante de “humano” (ou até mesmo de “Homem”, em uma perspectiva iluminista) é desafiada, abrindo possibilidades de considerar subjetividades para além do antropos. Com relação a indivíduos tecnológicos, Braidotti chega a conceber, com referência a Deleuze e Guattari, um “devir-máquina”, que se configura como uma “implosão na divisão entre humanos e circuitos tecnológicos, introduzindo relações mediadas biotecnologicamente como basilares para a constituição do sujeito” (BRAIDOTTI, 2013, p. 67BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013., minha tradução).

No filme After Yang, as subjetividades humanas e não-humanas são evidenciadas em um ambiente familiar, situado em um futuro próximo, porém não-especificado. Um casal estadunidense, formado por um pai branco, Jake (Colin Farrell), e uma mãe negra, Kyra (Jodie Turner-Smith), compram um robô humanoide chamado Yang (Justin H. Min) para ajudar na elaboração de uma identidade asiática para sua filha chinesa adotada, Mika (Malea Emma Tjandrawidjaja). Quando Yang inesperadamente para de funcionar (ele foi comprado de segunda mão), Jake busca resolver o problema de diversas maneiras, o que o leva a revelações de que Yang possuía uma vida interior riquíssima que ele mal podia imaginar.

Yang é ao mesmo tempo um irmão mais velho, um assistente cultural e um baby-sitter para Mika. Mesmo assim, sua posição servil como technosapiens jamais é questionada pelos pais, sendo visto como uma espécie de ajudante maquínico sem muita complexidade. Quando Jake tenta consertar Yang – primeiramente por meio da loja onde o comprou, depois com um técnico do mercado negro e por fim com a diretora de um museu dedicado a androides – ele descobre um dispositivo que armazena gravações em vídeo feitas por Yang. O acesso de Jake a essas gravações revela que Yang é dotado de uma extremamente complexa subjetividade pós-antropocêntrica. Esse aspecto do personagem é gradualmente apresentado pelo filme essencialmente de duas formas: em primeiro lugar, por meio da memória como elemento essencial do sujeito, e também pela possível composição de uma identidade racial pós-humana.

O tema da memória é bastante presente em narrativas de ficção científica. Dos androides com implantes de lembranças no romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, ao apagamento de lembranças românticas no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, a memória vem sendo representada com tal maleabilidade em diferentes ficções que ela própria se torna um texto. Contudo, a ficção científica tende a dotar a memória de um caráter essencialmente humano, mesmo quando presente em indivíduos não-humanos. No caso do romance de Dick, as memórias dos androides não pertencem a eles, mas são implantes de lembranças de seres humanos. No filme Robocop, são as lembranças do protagonista quando ainda era humano que o fazem se rebelar contra um sistema injusto e autoritário. Já no filme Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve, há uma clara distinção qualitativa entre memórias “reais” (vivências de seres humanos) e memórias “falsas” (criadas tecnicamente e implantadas em androides).

Em After Yang, as memórias de Yang em nenhum momento são vistas como falsas ou consideradas menos valiosas pelo fato de pertencerem a um ser não-humano. Pelo contrário: elas demarcam uma porta de entrada para um mundo interior rico, denso e inesperado para a maioria dos personagens da história. Por meio de um dispositivo retirado do corpo de Yang, Jake é capaz de assistir às memórias do technosapiens como se elas fossem um filme. As lembranças de Yang são organizadas visualmente de forma a parecer uma floresta, ou uma representação do universo, em que cada pequeno ponto é um momento específico do passado. Jake então descobre detalhes sobre a família que foi proprietária de Yang anteriormente, sobre os lugares que ele visitou e, especialmente, sobre a atenção especial (seria amor?) que Yang dedicou a uma jovem misteriosa, Ada (Haley Lu Richardson).

Lentamente, Jake passa a desconsiderar a urgência do conserto de Yang (ou seja, o seu corpo) para mergulhar nas memórias de Yang (ou seja, o que compõe sua subjetividade pós-humana, o que poderíamos entender como sua alma). Essa atitude, de certa forma, confirma o que diz o crítico Scott Bukatman:

Numa era de transformação corporal, mudança e dissolução, o fato da existência não garante uma identidade. A memória torna-se constitutiva do eu – sua continuidade implica um tipo de imortalidade, e as vicissitudes da carne tornam-se irrelevantes. (BUKATMAN, 1997, p. 78BUKATMAN, Scott. Terminal Identity. Londres: Duke University Press, 1997., minha tradução)

Por meio do acesso às suas memórias, Jake percebe que na verdade não conhecia Yang. A posição de subserviência que o androide adotava no meio familiar (e que era esperada dele) na verdade escondia conflitos interiores que ele não se permitia exprimir. Além disso, nota-se que, diferentemente de outras obras de ficção científica (como as já citadas Robocop e Blade Runner 2049), a presença ou influência de seres humanos é mínima ou completamente irrelevante para definir a qualidade ou suposta autenticidade da formação das memórias de Yang. Suas experiências são formadas por meio da maneira individual e subjetiva que ele vê o mundo, destituídas de elemento residual humano.

Essa perspectiva pós-antropocêntrica de entender a subjetividade pós-humana é ainda mais evidente quando After Yang aborda questões de identidade racial. Como afirmamos, o objetivo central da aquisição de Yang pelo casal humano é auxiliar na educação de sua filha chinesa, ensinando-a sobre a herança cultural da China. Yang é descrito como uma categoria específica de technosapiens denominada “techno cultural”, usado especificamente para aprendizado de idiomas ou em casos de adoção intercultural, como no caso de Mika. Sendo assim, o filme evidencia já de início as distinções étnico-raciais da família: o pai branco, a mãe negra, a filha chinesa e o “filho” mais velho pós-humano. Mas seria Yang também asiático?

Essa é uma questão central que o filme aborda de diferentes formas. Além de possuir o fenótipo asiático, Yang é dotado em sua memória de “curiosidades chinesas” (Chinese fun facts), pequenas informações sobre a história ou cultura da China que ele usualmente apresenta à menina Mika. Essas curiosidades (como uma referência a um filósofo chinês ou a um hábito antigo da China) são, contudo, trivialidades retóricas com pouca profundidade. Yang compreende a superficialidade de seu conhecimento sobre a China, e sente-se decepcionado. Isso é evidenciado em uma cena bastante poética em que ele conversa com Jake sobre o hábito chinês de tomar chá. Yang diz: “Eu gostaria que o chá chinês não fosse simplesmente fatos para mim […] Eu gostaria de sentir algo profundo sobre o chá. Eu gostaria de ter uma memória real sobre o chá na China – sobre um lugar, sobre um tempo” (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital., minha tradução). O personagem, portanto, reconhece o quanto, na superfície, serve como um representante do que outros (não-asiáticos) consideram como asiático, mas ele próprio tem dúvidas quanto a isso pois carece de experiências genuínas dessa cultura.

Ao abordar essa temática, After Yang estabelece um fascinante contraponto ao discurso cultural conhecido como tecno-orientalismo, um conceito normalmente associado a narrativas de ficção científica. O crítico de cinema Leo Kim explica o termo da seguinte forma:

[Tecno-orientalismo] se refere às maneiras pelas quais as mídias de massa aliam visões e ansiedades sobre o futuro a estereótipos asiáticos reducionistas. O ápice desse fenômeno é o que Kogonada chama de “o robô asiático”, um personagem que fortemente reforça os tradicionais tropos racistas de asiáticos como pessoas que trabalham duro mas que prescindem de complexas vidas internas – como prodígios da matemática que parecem máquinas capazes de executar tarefas, mas incapazes de pensar por si próprios (KIM, 2022KIM, Leo. After Yang intentionally subverts sci-fi’s fetishistic ‘hollow Asian’ trope. Poligon. 2022. Disponível em: https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope. Acesso em: 22 nov. 2022.
https://www.polygon.com/22971003/after-y...
, minha tradução).

O filme de Kogonada pode ser interpretado como uma resposta a essa ideia de asiáticos (humanos ou pós-humanos) que realizam funções árduas, mas parecem destituídos de profundidade. Yang, inicialmente visto pela família por essa ótica tecno-orientalista, acaba demonstrando ser capaz de desenvolver uma identidade questionadora e cheia de significado.

É interessante notar que Jake, ao acessar as memórias de Yang e descobrir a subjetividade complexa do technosapiens, imediatamente imagina que isso seria indicativo de um desejo de ser humano por parte de Yang. Na visão de Jake, uma vida interior multifacetada só poderia ser encontrada na humanidade ou, pelo menos, no reflexo de um desejo de humanidade. O personagem desconhece que a “a subjetividade não é uma prerrogativa exclusiva do antropos” (BRAIDOTTI, 2013, p. 82BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013., minha tradução). Curiosamente, isso demonstra uma limitação do humano, que não é capaz de imaginar uma subjetividade para além da sua. Na verdade, podemos entender que Yang se questiona não porque anseia atingir a humanidade, mas porque procura melhor compreender sua condição pós-humana. O melhor exemplo disso é quando Jake questiona Ada, a jovem por quem Yang revelou demonstrar afeto, sobre a possibilidade de o androide contestar sua própria identidade:

  • – Yang nunca teve dificuldade em ser um techno?

  • – O que você quer dizer?

  • – Quero dizer, ele alguma vez quis ser humano?

    […]

  • – Isso é uma coisa tão humana de se perguntar, não é mesmo? Nós sempre presumimos que outros seres gostariam de ser humanos. O que há de tão bom em ser humano?

  • – Então ele nunca teve dificuldade com isso? Ele nunca se questionou?

  • – Não para mim.

  • – Entendo.

  • – Ele se questionava se ele era chinês. […] O que torna alguém asiático?

    Ele se perguntava sobre isso o tempo todo.

    (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital., minha tradução).

Por meio da revelação de Ada sobre os questionamentos de Yang, fica claro que o personagem não tinha dúvidas sobre sua condição pós-humana e, aparentemente, isso não era razão de conflito para ele. A razão de sua preocupação era o reconhecimento da autenticidade do seu eu asiático. Apesar de possuir as características físicas comuns a nascidos naquele continente e saber diversas “curiosidades” sobre a China, ele se debatia sobre sua real identidade racial/cultural. Yang, portanto, subverte o que normalmente se considera uma categoria universal (ser humano) e uma categoria mais específica (etnia, raça ou cultura). Para o personagem, a própria definição de quem ele é está essencialmente associada à sua origem. Como bem resume o crítico Leo Kim:

Ao simultaneamente levantar e relacionar questões de herança cultural e humanidade, Kogonada ilustra um fato que a ficção científica tem ignorado: essas questões de humanidade não foram historicamente aplicadas a todos igualmente […]. [O filme] reage à falsa noção de que questões de humanidade e raça são de alguma forma mutualmente excludentes (KIM, 2022KIM, Leo. After Yang intentionally subverts sci-fi’s fetishistic ‘hollow Asian’ trope. Poligon. 2022. Disponível em: https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope. Acesso em: 22 nov. 2022.
https://www.polygon.com/22971003/after-y...
, minha tradução).

Questões de humanidade (e pós-humanidade) para além do antropocentrismo também são centrais no romance Klara e o Sol, de Kazuo Ishiguro. Situada em um futuro indeterminado, a história é narrada por Klara, uma Amiga Artificial (AA) adquirida para fazer companhia a Josie, uma jovem de 14 anos que sofre de uma doença misteriosa e debilitante. Klara é bastante observadora, altruísta e totalmente dedicada ao bem-estar de Josie. Personagens cuja existência parece estritamente voltada a servir outrem são muito presentes nos romances de Ishiguro – do mordomo Stevens de Os Vestígios do Dia (1989) à cuidadora Kathy H. de Não Me Abandone Jamais (2005). Essa atitude abnegada da protagonista, porém, contrasta com o mundo de tintas distópicas construído pelo autor. Nele, movimentos de inclinação fascista são presentes e indivíduos pós-humanos tomaram o lugar de vários seres humanos, o que cria um estado de constante tensão social entre esses dois tipos de indivíduos. Além disso, vários seres humanos passam por um processo de manipulação genética que os torna “elevados”, ou seja, possibilita maior possibilidade de ascensão social. Isso cria um sistema de castas – as pessoas são estratificadas pelos uniformes que usam – claramente dividindo indivíduos em superiores e inferiores.

Klara, sendo uma AA, é tida como de ainda menor importância. Contudo, à medida que ela se relaciona com outros personagens (todos humanos), é possível observar que sua identidade pós-humana vai se moldando por meio de transformações afirmativas nas estruturas de sua subjetividade (BRAIDOTTI, 2013, p. 66BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.). Isso se dá pelo menos de duas maneiras: primeiro, pela sensibilidade empática com relação às demais personagens, especialmente Josie; e também por sua inabalável fé nos desígnios de uma força superior, o Sol.

À primeira vista, a atitude de empatia e cuidado de Klara com relação a Josie pode ser entendida como representação dos aspectos mais pragmáticos das Leis da Robótica de Asimov, já que ela, sendo uma AA, não pode ferir nem desobedecer a um ser humano. No entanto, a protagonista em diversos momentos do romance comporta-se de acordo com sua própria vontade, desconsiderando as ordens dos humanos, justamente para agir em favor deles. Sendo assim, ela viola uma Lei da Robótica, mas por outro lado demonstra algo que vai além dos critérios de Asimov: afeto.

Um bom exemplo disso é quando Klara decide ir ao celeiro de um certo sr. McBain, distante do local onde mora, acreditando que lá pode encontrar ajuda para a cura de Josie. Ela decide ir por conta própria, informando suas intenções apenas a Rick, o jovem que é melhor amigo de Josie e que nutre um certo sentimento romântico pela menina. Klara diz a Rick:

“Eu gostaria de atravessar os campos para ir até o celeiro do sr. McBain. Acredito que Rick tenha estado lá pelo menos uma vez. Josie me contou.”

“Você está falando daquele celeiro? A gente foi mesmo lá uma vez, quando a gente ainda era bem pequeno. Antes de ela ficar doente. Depois fui lá outras vezes, sozinho. Não tem nada de especial. É um lugar bom para sentar à sombra se a pessoa estiver andando por lá. Como isso vai ajudar a Josie?”

“Ainda não posso confidenciar, caso venha a ser um segredo que precise ser mantido. Talvez eu já esteja passando dos limites só de ir ao celeiro do sr. McBain. Mas sinto agora que devo tentar.” […] Mas, por favor, não devo confidenciar ou poremos em risco a ajuda especial que Josie pode receber” (ISHIGURO, 2021, p. 83ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

A ida de Klara ao celeiro é uma ação individual que independe de qualquer ordem humana. O que a impele é o entendimento de que ela vislumbrou uma possibilidade muito forte de restituir a saúde de Josie. Nesse caso, é possível interpretar que seu altruísmo tem procedência sobre sua submissão. Diferente de outras histórias de ficção científica em que a subjetividade pós-humana leva a um forte desejo de autopreservação (como os replicantes de Blade Runner, por exemplo), o afeto de Klara por Josie a encoraja a agir por conta própria para ajudar outro ser.

Por outro lado, é importante ressaltar que o sujeito pós-humano é um amálgama […] cujos limites passam por contínuas construções e reconstruções (HAYLES, 1999, p. 3HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.). Isso significa que a identidade de Klara não é fixa e nem seu interesse em salvar Josie é único. Seus desejos não são exclusivos – eles dependem da rede de contato humana onde está inserida que informa seus modos de agenciamento. Isso fica claro quando ela afirma para Chrissie, mãe de Josie: “Acredito que tenho muitos sentimentos. Quanto mais eu observo, mais sentimentos ficam disponíveis para mim” (ISHIGURO, 2021, p. 58ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Portanto, os sentimentos de Klara, i.e. sua vida interior construída subjetivamente, dependem muito do que ela observa do mundo a sua volta, composto de humanos e pós-humanos. Hayles resume a questão muito bem quando afirma:

A suposição de que há agência, desejo ou vontade pertencentes ao self e claramente distintos da “vontade dos outros” é posto à prova no pós-humano […] Se “a essência humana é liberdade da vontade dos outros”, o pós-humano é “pós” não porque é necessariamente não-livre, mas porque não existe maneira a priori de identificar uma vontade própria que pode ser claramente distinguida de uma vontade alheia (HAYLES, 1999, p. 3-4HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.).

Dos “sentimentos” desenvolvidos por Klara, um dos mais fortes é a crença nos desígnios de uma força superior, representada pelo Sol (sempre escrito no romance com maiúscula). Os AA funcionam por meio da energia solar, e eles perdem potência e vitalidade sem os raios de sol. Dessa forma, desde o início do romance, o Sol é descrito por Klara como uma espécie de deus pagão (WOOD, 2021WOOD, James. Kazuo Ishiguro Uses Artificial Intelligence to Reveal the Limits of Our Own. The New Yorker, v. 97, n. 3, p. 56, 8 mar. 2021.). Na primeira parte do romance, quando a protagonista ainda se encontrava em exposição em uma loja de AAs, ela menciona o quanto o Sol lhe dá “nutrição” e “bondade”, e do quanto a luz solar lhe é vital: “um AA ia se sentindo mais e mais letárgico depois de algumas horas longe do Sol, e começava a pensar que havia algo de errado com ele — algum defeito que só ele tinha” (ISHIGURO, 2021, p.4ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). O poder do Sol alcança dimensões religiosas quando Klara vê um morador de rua, que ela dava certo como morto na calçada, miraculosamente se levantar depois de uma forte luz solar incidir sobre ele.

Dessa forma, Klara acredita que o Sol pode restituir a saúde de Josie. Ela então se dirige ao celeiro (local onde vê, de sua janela, o sol se pôr) e pede ao Sol para que Josie seja curada. O simbolismo de fé envolvido nesse episódio, que ocorre mais de uma vez, é evidente: a ida de Klara ao celeiro é narrada como uma peregrinação a um lugar sagrado, enquanto o pedido da personagem ao Sol ganha tons de oração. O aspecto religioso é ainda mais destacado quando Klara, em seu pedido ao Sol, tenta fazer uma barganha – a ideia de que é necessário um sacrifício individual para que sua oração seja atendida. Nesse caso, ela promete que destruiria uma máquina poluidora que ela acredita desagradar ao Sol. Ela diz:

Sei quão impertinente e rude eu fui vindo até aqui. O Sol tem todo o direito de estar bravo, e compreendo plenamente que se recuse a sequer considerar meu pedido. Ainda assim, dada a sua imensa gentileza, pensei em pedir que adie sua jornada por mais um instante. Para ouvir mais uma proposta. Digamos que eu pudesse fazer alguma coisa especial para agradá-lo. Que lhe trouxesse grande satisfação. Se eu fosse capaz desse feito, em troca você cogitaria oferecer uma gentileza especial a Josie? Exatamente como fez aquela vez pelo Mendigo? […] Sei como o Sol detesta Poluição. Como ela o entristece e o irrita. Bem, já vi e identifiquei a máquina que cria a Poluição. Digamos que eu consiga encontrar e destruir essa máquina. Dar um fim à Poluição que ela emite. Nesse caso, você cogitaria oferecer sua ajuda especial a Josie? (ISHIGURO, 2021, p. 97ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

É interessante notar que nenhum outro personagem do romance, em especial os humanos, apresenta um aspecto subjetivo próximo de uma dimensão espiritual. Mais do que isso: eles nem mesmo parecem capazes de ter esperança diante da situação de Josie. De certa forma, “a esperança torna-se não uma consequência de necessariamente ter mais conhecimento, mas de uma abertura não-humana à possibilidade” (MABROUK, 2022, p. 453MABROUK, Dalia Mohamed Mostaf. Is the digital age disrupting our emotional feelings with reference to Kazuo Ishiguro’s novel Klara and the Sun? World Journal of Advanced Research Reviews, v 14, n. 1, p. 449-464, 2022. DOI: https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1.0278
https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1...
).

Provavelmente, a maior semelhança narrativa entre After Yang e Klara e o Sol é o fato de ambas as histórias terem como foco central a inserção de indivíduos pós-humanos no meio de um ambiente familiar humano. No caso do filme de Kogonada, Yang é um technosapiens visto como um irmão mais velho de Mika, responsável por educá-la sobre sua herança chinesa. No romance de Ishiguro, Klara é uma Amiga Artificial incumbida de fazer companhia a Josie, auxiliando-a durante um delicado problema de saúde.

As famílias dessas obras não se caracterizam por longas demonstrações de afeto e nem poderiam ser consideradas calorosas. No filme, a relação entre o pai, a mãe e filha é quase que utilitário, com o casal discutindo quem vai levar a criança para a escola ou cuidará dela agora que Yang não poderá mais ajudá-los. No romance, a família composta simplesmente de Josie e sua mãe (o pai é divorciado e mora longe) vive sob a sombra da doença da menina e com a morte misteriosa de sua irmã mais nova, Sal, raramente mencionada.

É interessante notar que tanto Yang quanto Klara são vistos pelos membros dessas famílias como instrumentos para servir conforto e fortalecer seus vínculos. É como se a marcação da diferença com o pós-humano pudesse contribuir para a aproximação entre humanos. No entanto, tanto o filme quanto o romance problematizam esse ponto de vista, ilustrando o quanto a subjetividade pós-humana reconfigura as relações familiares.

Em After Yang, a natureza multicultural da estrutura familiar em si já chama atenção, pois não apenas cada membro dela pertence a uma categoria racial diferente, como os pais estão completamente dedicados a ensinar a cultura chinesa a sua filha. O filme não aborda esse aspecto diretamente, mas há diversos elementos (um pôster, um breve diálogo) que indicam que houve uma guerra entre o Ocidente e a China. O fato de o casal ter adotado uma criança chinesa pode ilustrar o início de uma nova fase de paz global, ou por outro lado, uma certa atitude desafiadora à visão do asiático como inimigo.

A presença de Yang complica ainda mais as relações. Ele é um indivíduo pós-humano cuja função básica é educar a menina Mika. A relação dos dois, mostrada em flashbacks, é uma das mais afetuosas do filme. De certa forma, a identificação entre eles se dá pela identidade asiática, mas também por uma sensação de distanciamento com relação àquela família. Sua condição de adotada perturba fortemente o comportamento de Mika (quando colegas de escola perguntam onde estão seus pais “de verdade”, por exemplo), e é Yang que melhor compreende sua sensação de inadequação. Em uma bela cena em um jardim, ele se utiliza da metáfora de enxertos vegetais, aliando-a à cultura chinesa, para explicar a situação de Mika:

  • – Veja, esse galho é de uma árvore diferente […] Agora está se tornando de verdade uma parte dessa árvore […] Você está conectada à mamãe e ao papai assim como esse galho. Você é uma parte da árvore genealógica. De verdade.

  • – Então você também é. Por que eles fazem isso? Por que eles colocam galhos em árvores diferentes?

  • – Chama-se enxerto. Eles fazem isso para criar algo novo […] É uma técnica antiga usada na China há 4000 anos.

    (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital.).

Seguindo a metáfora de Yang, a árvore familiar é composta de diferentes galhos, e o galho que representa Mika foi “enxertado” naquela família para criar algo novo. A menina, porém, destaca que Yang também é parte daquela família. Isso fica claro em vários momentos da trama quando ela e outros personagens o consideram como “irmão mais velho”, ou então quando Mika usa expressões como “os nossos pais” ao conversar com Yang.

É fascinante como o personagem tem, regularmente, de lidar com essa ambiguidade com relação a sua posição na família. Ao mesmo tempo em que é obrigado a adotar uma certa função subserviente como mero ajudante e tutor de Mika, Yang em diversos momentos também é visto como parte integrante daquela estrutura familiar. Chama atenção o fato de que o personagem justamente para de funcionar ao final da vibrante cena dos créditos iniciais do filme, quando a família está participando, virtualmente, de uma competição de dança sincronizada com milhares de outras famílias. Naquele momento, em que a união familiar é epitomizada na habilidade de todos executarem uniformemente os mesmos movimentos, Yang continua dançando mesmo depois da família ser eliminada da competição – uma falha mecânica que pode ser lida como um ato de desobediência, mas também representativa da disjunção que ele sente com relação àquele ambiente familiar.

No romance de Ishiguro, a (con)vivência familiar de Klara ganha contornos ainda mais enigmáticos à medida que segredos vêm à tona. Em primeiro lugar, é importante destacar que a doença de Josie está diretamente ligada ao fato de ela ser uma criança “elevada”, i.e. passou por um processo de manipulação genética que, naquela sociedade, a torna mais apta a ir para as melhores universidades e ter os melhores empregos. Porém, é sabido que uma doença debilitante, muitas vezes fatal, ocorre em decorrência desse procedimento. Essa foi a causa da morte de Sal, imã mais nova de Josie. Tal fato não impede que a mãe da menina faça com que a filha participe desse experimento social para que esta seja bem-sucedida, mesmo que, paradoxalmente, corra o risco de ter de pagar com a própria vida.

À medida que a saúde de Josie se deteriora e a maioria dos personagens à sua volta vai perdendo as esperanças, uma solução fundada em preceitos transumanos se apresenta. Sem o conhecimento de Josie, sua mãe busca o auxílio do sr. Capaldi, um cientista/artista que constrói um modelo 3D inteligente da menina, com suas mesmas características físicas. O objetivo é que, após a morte de Josie, o “programa” de Klara (ou seja, sua subjetividade) seja inserido no modelo, e assim essa versão transumana de Josie ocupe o lugar da versão humana que viria a morrer. Assim, Klara descobre que sua função desde o início não era simplesmente cuidar e fazer companhia a Josie, mas sim observá-la para que esse conhecimento pudesse servir de software para o hardware – o modelo 3D – criado pelo Sr. Capaldi.

O papel de Klara naquela família é então entendido como crucial. Ela deve cuidar de Josie nos seus últimos anos de vida ao mesmo tempo que aprende tudo sobre ela (de seus gestos e modos de andar até seus hábitos e opiniões), para que “continue” a menina depois de sua morte. Nesse caso, é como se a identidade pós-humana de Klara fosse interpretada como um processo/devir de Josie – ela é a ponte entre a Josie biológica e a Josie transumana do modelo 3D.

No entanto, é dada a Klara a opção de participar ou não do experimento. Os argumentos de convencimento usados por Chrissie, mãe de Josie, são voltados para a ideia de que quando Klara se tornar a versão transumana de Josie, ela será finalmente inserida no âmbito familiar, e receberá um amor aparentemente genuíno. Chrissie diz:

Estou pedindo pra você fazer o que está ao seu alcance. E pensar no que isso vai significar para você. Nada neste mundo vai ser mais amado que você. Talvez um dia eu me relacione com outro homem. Quem sabe? Mas eu te prometo que nunca vou amar esse homem do jeito que vou amar você. Você vai ser a Josie e eu sempre vou te amar mais que tudo. Então faz isso por mim. Estou pedindo pra você fazer isso por mim. Continuar a Josie pra mim (ISHIGURO, 2021, p. 124ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

Nota-se que Chrissie apela para o lado sentimental, mas ela própria parece não perceber (ou prefere não ver) que esse amor futuro não será particularmente voltado para Klara, mas sim para uma versão de Josie que ela vê como uma “continuação”. Klara, como indivíduo, continuará sem receber esse amor. O tom de súplica de Chrissie para Klara também em muito lembra a oração de Klara para o Sol, sendo perceptível que nos dois casos – seja quando Klara é aquela que roga ou aquela que é rogada – o objetivo é o mesmo: salvar Josie. Porém, no primeiro caso, esse salvamento tem a ver com a crença em uma força superior, enquanto no segundo, a crença está na técnica e na ciência. Essa dualidade fé/tecnologia é explicitada pelo cientista sr. Capaldi: “A segunda Josie não será uma cópia. Será exatamente a mesma, e você terá todo o direito de amá-la assim como ama a Josie agora. Não é de fé que você precisa. É de racionalidade” (ISHIGURO, 2021, p. 122ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

Tanto a ideia de “enxerto” explanada por Yang, quanto a possibilidade de “continuar” uma vida humana, apresentada a Klara, colocam em xeque pontos de vista essencialistas com relação à existência. Esses dois personagens pós-humanos estão inseridos em narrativas que reformulam subjetividades e que apresentam alternativas de (re)configuração identitária para além do anthropos. Como afirma Rossini, o pós-humano:

Desestabiliza os aparentemente seguros limites entre o eu e o outro, tornando mais difícil identificar uma essência fundamental que constitui a “verdadeira” humanidade – se é que alguma vez existiu tal coisa […] A tecnociência está […] erodindo a categoria delimitada, autodeterminada e suprema categoria de “Homem” e oferecendo à humanidade em seu lugar uma existência prostética […] que está perpetuamente em (des)construção (ROSSINI, 2017, p. 153ROSSINI, Manuela. Bodies. In: CLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.). The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 153-169).

O personagem que talvez melhor expresse sua perplexidade diante da dissolução de paradigmas humanistas posta pelo pós-humano seja Paul, o pai de Josie em Klara e o Sol. O personagem não apenas se opõe fortemente ao plano de Capaldi e de sua ex-esposa de “continuar” Josie, como também não acredita que tal experimento seja bem-sucedido. O motivo de sua descrença é justamente a ideia de que há uma essência humana, incapaz de ser reproduzida ou até mesmo acessada. Isso fica claro quando Paul pergunta a Klara:

Você acredita no coração humano? Não estou falando do órgão em si, claro. Estou falando no sentido poético. O coração humano. Você acha que existe uma coisa assim? Uma coisa que faz com que cada um de nós seja especial, único? E digamos que exista. Você não acha então que, para de fato aprender a Josie, você teria que aprender não só os maneirismos dela, mas também o que ela tem de mais profundo? Você não teria que aprender o coração dela? […] E isso seria difícil, não? É algo que foge ao alcance até mesmo das suas maravilhosas capacidades. Porque uma imitação não bastaria, por melhor que fosse. Você teria que aprender o coração dela, e aprender por completo, senão você nunca vai se tornar a Josie nos aspectos que realmente importam (ISHIGURO, 2021, p. 127ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

Paul acredita, portanto, que há um significado íntimo em cada ser humano que é ao mesmo tempo inimitável e inalcançável pela técnica pós-humana. Klara, a princípio, parece discordar do personagem, pois vê no experimento uma possibilidade de salvar Josie, sempre seu maior objetivo. Porém, posteriormente ela retoma sua fé no Sol, e mais uma vez pedindo com vigor, suplica à esfera celeste pela vida de Josie justamente quando a menina parece próxima da morte. Milagrosamente, Josie tem sua saúde restaurada quando o Sol banha todo seu quarto em um episódio narrado quase que magicamente. O romance não fornece uma explicação definitiva como Josie foi curada e se o Sol realmente teve a ver com isso – afinal de contas, é assim que funcionam os milagres.

Ao final do romance, Klara chega então a uma conclusão sobre a possível existência de uma essência humana única. A personagem diverge de Paul sobre a particularidade do “coração humano”, mas também discorda de Capaldi quando ele afirmou que a tecnologia em si é capaz de suplantar qualquer noção de algo único e inacessível na humanidade. Ela diz: “Havia, sim, algo muito especial, mas não dentro de Josie. Era dentro das pessoas que a amavam” (ISHIGURO, 2021, p. 176ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol. Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.).

O entendimento de Klara pode ser lido como iminentemente pós-humano, pois vai ao encontro do que disse Hayles, como vimos, sobre a impossibilidade de separar a vontade própria da vontade dos outros na pós-humanidade (HAYLES, 1999, p.3-4HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.). Klara reconhece que é a união entre a técnica e a fé, assim como a rede de afetos e relações que circunda Josie, que configura uma subjetividade múltipla para além do essencialismo humanista. Da mesma forma, em After Yang, é apenas após (como indica o título do filme) o não-funcionamento do technosapiens que a família de Mika, de forma coletiva, passa a compreender quem ele era e o que ansiava. A metáfora da árvore com vários galhos torna-se inequívoca, não há apenas um cerne individual, mas diferentes perspectivas subjetivas que formam o ser.

Em resumo, acreditamos que o filme After Yang e o romance Klara e o Sol apresentam importantes contribuições para a discussão da pós-humanidade no contemporâneo. Os dois trabalhos testam os limites da representação pós-humana ao explorar as subjetividades de indivíduos constituídos a partir da técnica e de sua relação, seja ela familiar, afetiva ou identitária, com seres humanos. Diante da reconfiguração de paradigmas humanistas e da consolidação, na crítica, de perspectivas pós-antropocêntricas, essas obras abrem preciosas oportunidades de imaginar a ficção pós-humana.

Notas

  • 1
    No original: “Essential, because humanity […] is the inseparable and central essence, the defining quality, of human beings; universal, because that essential humanity is shared by all human beings” (DAVIES, 1997, p. 24DAVIES, Tony. Humanism. Londres: Routledge, 1997.).
  • 2
    No original: “Exploded under the double pressure of contemporary advances and global economic concerns” (BRAIDOTTI, 2013, p. 1BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.).
  • 3
    No original: “Posthumanist discourses promote neither the transcendence of the human nor the negation of humanism. Rather, critical posthumanisms engage with the humanist legacy to critique anthropocentric values and worldviews. Posthumanist scholars have brought attention to the potential as well as the fault lines of humanist knowledge production while also problematizing the narrative of the progressive trajectory of the posthuman” (CLARKE; ROSSINI, 2017, p. xivCLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.) The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.).
  • 4
    No original: “The posthuman view configures human being so that it can be seamlessly articulated with intelligent machines. In the posthuman, there are no essential differences or absolute demarcations between bodily existence and computer simulation, cybernetic mechanism and biological organism, robot teleology and human goals” (HAYLES, 1999, p. 2-3HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.).
  • 5
    As três leis da robótica, como estabelecidas por Asimov em um conto de 1942 e depois reeditadas em Eu, Robô, são: (1) Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano seja ferido; (2) Um robô deve obedecer às ordens de seres humanos, exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei; (3) Um robô deve proteger sua própria existência contanto que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis.
  • 6
    No original: “Literature […] that tries to imagine and to articulate what it is like to be posthuman or human otherwise by creating new subjectivities” (HERBRECHTER, 2015, p. 7HERBRECHTER, Stefan. Posthumanist Literature? Unpublished keynote - Approaching Posthumanism and the Posthuman Conference. Genebra: 2015. Disponível em http://www.academia.edu/13743708/Posthumanist_Literature. Acesso em 20/05/2022. Acesso em: 23 nov. 2022
    http://www.academia.edu/13743708/Posthum...
    ).
  • 7
    No original: “‘Life’, far from being codified as the exclusive property or the unalienable right of one species, the human, over all others or of being sacralized as a pre-established given, is posited as process, interactive and open-ended. This vitalist approach to living matter displaces the boundary between the portion of life – both organic and discursive – that has traditionally been reserved for anthropos […] and the wider scope of […] non-human life” (BRAIDOTTI, 2013, p. 92BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.).
  • 8
    No original: “Cracks open the division between humans and technological circuits, introducing biotechnologically mediated relations as foundational for the constitution of the subject” (BRAIDOTTI, 2013, p. 67BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.).
  • 9
    No original: “In an era of bodily transformation, change and dissolution, the fact of physical existence doesn’t guarantee selfhood. Memory become constitutive of the self – its continuity implies a kind of immortality, and the vicissitudes of the flesh become irrelevant” (BUKATMAN, 1997, p. 78BUKATMAN, Scott. Terminal Identity. Londres: Duke University Press, 1997.).
  • 10
    No original: “I wish Chinese tea wasn’t just facts for me […] I wish I felt something deeper about tea. I wish I had a real memory of tea in China – of a time, of a place” (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital.).
  • 11
    No original: “[Techno-orientalism] refers to the ways in which popular media has blended visions and anxieties of the future with reductive Asian stereotypes. At the height of this phenomenon lies what Kogonada calls “the Asian robot,” a character that strongly heightens the traditional racist tropes of Asians as hardworking but lacking rich internal lives — as machinelike math whizzes capable of executing tasks, but unable to think for themselves” (KIM, 2022KIM, Leo. After Yang intentionally subverts sci-fi’s fetishistic ‘hollow Asian’ trope. Poligon. 2022. Disponível em: https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope. Acesso em: 22 nov. 2022.
    https://www.polygon.com/22971003/after-y...
    ”.
  • 12
    No original: “Subjectivity is not the exclusive prerogative of anthopos” (BRAIDOTTI, 2013, p. 82BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013.).
  • 13
    No original: “- Did Yang ever struggle with being a techno? - What do you mean? - I mean, did he ever want to be human? […] - That’s such a human thing to ask, isn’t it? We always assume other beings would want to be human. What’s so great about being human? - So he never struggled with it? He never questioned it? - Not to me. - I see. - He did question if he was Chinese. […] What makes someone Asian? He’d ask that all the time” (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital.).
  • 14
    No original: “By simultaneously raising and relating questions of heritage and humanity, Kogonada sheds light on a fact that science fiction has often ignored: these questions of humanity haven’t historically been applied to everyone equally […]. [The movie] also pushes back against the false notion that questions of human identity and race are somehow mutually exclusive, as if serious artists should choose one or the other to explore” (KIM, 2022KIM, Leo. After Yang intentionally subverts sci-fi’s fetishistic ‘hollow Asian’ trope. Poligon. 2022. Disponível em: https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope. Acesso em: 22 nov. 2022.
    https://www.polygon.com/22971003/after-y...
    ).
  • 15
    No original: “The presumption that there is an agency, desire, or will belonging to the self and clearly distinguished from the “wills of others” is undercut in the posthuman […] If “human essence is freedom from the wills of others,” the posthuman is “post” not because it is necessarily unfree but because there is no a priori way to identify a self-will that can be clearly distinguished from an other-will” (HAYLES, 1999, p. 3-4HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.).
  • 16
    No original: “Hope becomes not a function of necessarily knowing more, but of an inhuman openness to possibility” (MABROUK, 2022, p. 453MABROUK, Dalia Mohamed Mostaf. Is the digital age disrupting our emotional feelings with reference to Kazuo Ishiguro’s novel Klara and the Sun? World Journal of Advanced Research Reviews, v 14, n. 1, p. 449-464, 2022. DOI: https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1.0278
    https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1...
    ).
  • 17
    No original: “- You see, this branch is from a different tree […] Now it’s becoming an actual part of this tree […] You’re connected to Mom and Dad just like this branch. You’re a part of the family tree. For real. - Then, so are you. Why do they do it? Why do they move branches to different trees? - It’s called grafting. They do it to make something new. […] It’s an ancient technique that was used in China over 4,000 years ago” (AFTER Yang, 2021AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital.).
  • 18
    No original: “Destabilize apparently secure boundaries between self and other, making it more and more difficult to identify a core essence that constitutes “true” humanness – if ever there was such a thing […] Technoscience is […] eroding the putatively bounded, self-determined, and supreme category “Man” and offering humanity in-stead a prosthetic existence, […] which is perpetually under (de)construction” (ROSSINI, 2017, p. 153ROSSINI, Manuela. Bodies. In: CLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.). The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 153-169).

Referências

  • AFTER Yang. Direção: Kogonada. Produção de Cinereach. Estados Unidos: A24, 2021. Mídia digital.
  • BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman Cambridge: Polity Press, 2013.
  • BUKATMAN, Scott. Terminal Identity Londres: Duke University Press, 1997.
  • CLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.) The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
  • DAVIES, Tony. Humanism Londres: Routledge, 1997.
  • HASSAN, Ihab. Prometheus as Performer: Toward a Posthumanist Culture?. The Georgia Review, v. 31, n. 4, p. 830-850, 1977.
  • HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
  • HERBRECHTER, Stefan. Critical Posthumanism. In: BRAIDOTTI, Rosi; HLAVAJOVA, Maria (Eds.). Posthuman Glossary Londres: Bloomsbury, 2018, p. 94-96.
  • HERBRECHTER, Stefan. Posthumanist Literature? Unpublished keynote - Approaching Posthumanism and the Posthuman Conference. Genebra: 2015. Disponível em http://www.academia.edu/13743708/Posthumanist_Literature Acesso em 20/05/2022. Acesso em: 23 nov. 2022
    » http://www.academia.edu/13743708/Posthumanist_Literature
  • ISHIGURO, Kazuo. Klara e o Sol Tradução de Ana Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • KIM, Leo. After Yang intentionally subverts sci-fi’s fetishistic ‘hollow Asian’ trope. Poligon. 2022. Disponível em: https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope Acesso em: 22 nov. 2022.
    » https://www.polygon.com/22971003/after-yang-kogonada-interview-asian-robot-trope
  • MABROUK, Dalia Mohamed Mostaf. Is the digital age disrupting our emotional feelings with reference to Kazuo Ishiguro’s novel Klara and the Sun? World Journal of Advanced Research Reviews, v 14, n. 1, p. 449-464, 2022. DOI: https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1.0278
    » https://doi.org/10.30574/wjarr.2022.14.1.0278
  • ROSSINI, Manuela. Bodies. In: CLARKE, Bruce; ROSSINI, Manuela (Eds.). The Cambridge Companion to Literature and the Posthuman Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 153-169
  • WOOD, James. Kazuo Ishiguro Uses Artificial Intelligence to Reveal the Limits of Our Own. The New Yorker, v. 97, n. 3, p. 56, 8 mar. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    11 Ago 2022
Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Bloco B- 405, CEP: 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil, Tel.: (48) 37219455 / (48) 3721-9819 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ilha@cce.ufsc.br