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DO CENTRO À MARGEM: VISÕES ECOCRÍTICAS NO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO

FROM THE CENTER TO THE MARGINS: ECOCRITICAL VISIONS IN THE CONTEMPORARY THINKING

Resumo

O estudo visa iluminar os desdobramentos acerca da animalidade no debate teórico-crítico contemporâneo, no domínio dos estudos literários. Estabelecendo um diálogo, sobretudo, entre as reflexões de Gabriel Giorggi, Giorgio Agamben, Dominique Lestel e o pensamento de fronteira suscitado por Ailton Krenak e Eduardo Viveiros de Castro, pretende-se indagar sobre o papel da animalidade na construção de outras traduções do humano. Sob essa formatação, evidenciam-se tensões inconciliáveis contidas na concepção antropocêntrica do humano e do animal, para muito além do debate filosófico. Em face dessa discussão, revelam-se formas alternativas de se pensar não somente a animalidade, mas, também, a humanidade, o que acarreta a ruptura com a produção dos corpos e das subjetividades, gerida pelo imaginário estatal.

Palavras-chave
Humanidade; animalidade; máquina antropológica

Abstract

The study aims to shed light on the unfolding of animality in the contemporary theoretical-critical debate in the field of literary studies. Establishing a dialogue, in particular, between the reflections of Gabriel Giorggi, Giorgio Agamben, Dominique Lestel and the border thinking raised by Ailton Krenak and Eduardo Viveiros de Castro, we intend to inquire about the role of animality in the construction of other translations of the human. Under this format, irreconcilable tensions contained in the anthropocentric conception of the human and the animal become evident, far beyond the philosophical debate. In the face of this discussion, alternative ways of thinking not only about animality, but also humanity, are revealed, which leads to a break with the production of bodies and subjectivities, managed by the state-owned imaginary.

Keywords
Humanity; animality; anthropological machine

Introdução

É irrevogável o estatuto privilegiado que o animal escrito adquiriu contemporaneamente no imaginário estético latino-americano. Emergindo nas produções literárias desse continente como um problema formal, o animal passou a representar a iminência de novas possibilidades da experiência do sensível. Tal presença tem se demonstrado tão insistente e intensamente nos repertórios da ficção ao ponto de reivindicar uma nomenclatura específica para destacar os materiais que focalizam o animal sob esta modulação desconstrucionista: a “zoo-literatura” (DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou. São Paulo: Unesp, 2002., p. 72) compreenderá a esses materiais, que problematizam e desordenam as fronteiras movediças interpostas entre homem e animal, constantemente atualizadas pelo ordenamento político.

Embora a questão animal tenha ganhado maior relevo crítico-teórico nas últimas décadas — em especial a partir de 1960 na América Latina, conforme Gabriel Giorgi (2016)GIORGI, G. Formas comuns: animalidade, literatura e biopolítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. — fruto não somente de uma conscientização ecológica, mas também do reconhecimento dos problemas ético-políticos que se abatem sobre os animais, pode-se observar o radicalmente outro do homem situado em zonas fundacionais das letras hispano-americanas. É o caso, por exemplo, de Facundo, Ou Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888)SARMIENTO, D. F. Facundo, ou civilização e barbárie. São Paulo: Cosac & Naify, 2010., publicado inicialmente em 1845, e considerado como o texto que inaugura a literatura na Argentina. Nele, observa-se o tigre delinear os contornos do bárbaro, como se sabe, uma figura sistemática da cultura latino-americana moderna, cujos sentidos mobilizam toda uma topografia política. Em outro texto basilar da tradição argentina intitulado O Matadouro, de 1871, Esteban Echeverría (1805-1851)ECHEVERRÍA, E. O matadouro. São José do Rio Preto: Balão Editorial, 2019. expõe, entre fragmentos absurdos de gados abatidos, o autoritarismo do governo de Juan Manuel de Rosas (1793-1877), construindo uma atmosfera de antagonismo político que ganha forma a partir do animal.

Nas obras supracitadas, o animal pavimenta o território da selvageria, alegorizando a violência ao passo em que constitui as coordenadas dos corpos matáveis; gesto que se tornou comum nas literaturas dos trópicos, sobretudo em períodos de forte domínio colonial. Logo, discutir criticamente sobre um poder, que reproduz e justifica, contra os seus inimigos, a aplicação de uma mesma lógica de violência destinada aos animais na cultura ocidental, deteve certa relevância para a formação zoo-literária. Contudo, precisou-se dar um passo adiante (movimento ainda em curso) para se imaginar não somente práticas de alteridade, mas também políticas da multiplicidade.

Percebe-se, assim, desde a metade do século XX, uma invasão não humana na literatura argentina, resultando em uma produção substancial de materiais que precipitam no íntimo animal ao mesmo tempo (e por isso mesmo) em que atingem os vertiginosos confins do humano. Das obras já consolidadas como Bestiário (1986), de Julio Cortázar (1914-1984)CORTÁZAR, J. Bestiário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.; O livro dos seres imaginários (2007), de Jorge Luis Borges (1899-1986)BORGES, J. L. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.; La cité des rats (1979), de Copi (1939-1987)COPI. La cité des rats. Paris: Belfond, 1979.; Mundo animal e outros contos (2008), de Antonio Di Benedetto (1922-1986)BENEDETTO, A. D. Mundo animal e outros contos. Porto Alegre: Editora Globo, 2008.; Tadeys (2015), de Osvaldo Lamborghini (1940-1985)LAMBORGHINI, O. Tadeys. Nova Iorque: Random House, 2015.; A fúria: E outros contos (2019), de Silvina Ocampo (1903-1993)OCAMPO, S. A fúria: e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. até as mais recentes como El desperdicio (2014), de Matilde Sánchez; Under This Terrible Sun (2016)SÁNCHEZ, M. El desperdicio. Rio de janeiro: Alfaguara, 2014., de Carlos Busqued; Agosto (2021)BUSQUED. C. Under This Terrible Sun. Londres: Frisch & Co., 2016., de Romina PaulaPAULA, R. Agosto. Belo Horizonte: Moinhos, 2021.. — nota-se a formalização de uma instância de proximidade com respeito ao animal, guardadas as particularidades de cada texto. Essa instância de proximidade, silenciosa, mas também inquietante, produz um umbral de opacidade, que enlaça homem e animal, debilitando o discurso antropocêntrico das espécies. Nesse gesto, desaloja-se os signos entendidos como próprios do homem, responsáveis por determiná-lo e distanciá-lo do animal, o que acarreta um deslizamento entre natureza e cultura.

Esta modulação temática, que se desdobra nas camadas intangíveis da cultura, instigando hoje o interesse das ciências, em particular as humanas, há muito, vigora no repertório da ficção literária; em outras palavras, a literatura antecipa as discussões acerca da questão animal. Visto isso, é correto afirmar que a apreensão estética dessa substância inassimilável, interpretada como subjetividade animal, sempre esteve em jogo para a escrita. Entretanto, o campo de conhecimento que surge no século XXI, denominado Estudos Animais, populariza e amplia os debates sobre o animal. Tais estudos possuem um caráter transdisciplinar, englobando áreas de estudos diversos como Zoologia, Etologia, Ecologia, Filosofia, Antropologia, Direito, Artes, e claro, Literatura, entre outras. Propõe-se, assim, discutir a questão da animalidade para a construção de um saber alternativo sobre o mundo e sobre a humanidade, redefinindo as complexas relações entre homem e animal. Neste estudo, portanto, empreende-se algumas aproximações teóricas para tecer considerações relativas às frágeis e controversas categorizações do pensamento científico clássico. Desse modo, interroga-se as implicações dessas categorizações tanto na esfera do político quanto na esfera do jurídico, com o escopo de encontrar (ou inventar) caminhos menos sinuosos no percurso do viver.

Animalidade desterrada

Pensar o animal na literatura corresponde não apenas em mergulhar no que, de fato, significa a animalidade, mas também em naufragar o próprio conceito de humanidade sobre o qual repousa a civilização ocidental. Deve-se, antes de tudo, interrogar o que efetivamente diferencia essas duas dinâmicas de vida, à primeira vista opostas, para, então, imaginar a sua complementariedade. Nessa direção, tentar determinar o que é animalidade é um exercício que precisa partir do princípio da indeterminação; isto porque o conceito não remete a uma característica comum (ou seja, natural) a toda criatura vivente. Em vez disso, como aponta Dominique Lestel no ensaio A animalidade, o humano e as “comunidades híbridas”:

A animalidade pertence àquela classe de ideias que dificilmente definimos com o rigor esperado, mas da qual não podemos legitimamente nos privar. A causa do nosso mal-estar é facilmente determinável: a animalidade designa uma classe de criaturas vivas, da qual o humano tenta se distinguir, ela não remete apenas a uma classe de seres, mas às relações que esta mantém com outras classes. (2011, p. 23).

A animalidade se refere, então, às relações que o homem e o animal constituem reciprocamente, desde as mais simples até as mais complexas, inscrevendo-as tanto em uma história natural quanto em uma história cultural. Com efeito, a animalidade não cessa em ser “um horizonte do homem, da sua perda ou de uma fuga para fora de si mesmo” (LESTEL, 2011LESTEL, D. A animalidade, o humano e as “comunidades híbridas”, In: MACIEL, Maria Esther (Org.). Pensar/escrever o Animal – Ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora UFSC, 2011., p. 23). Permanecendo como o fundo por trás da essência humana, forjada pela racionalidade, a animalidade se afigura hoje como um espaço de afetos, ou seja, de contatos entre corpos. Afastando-se da ideia de afecção, isto é, da doença, como era percebida a animalidade em outras épocas, quando se pensava ser o grau zero do humano, o lugar do bestial, ocupado pela loucura, onde se despojava todas as virtudes (bondade, generosidade, empatia, etc.) – concepção vinculada à Idade Média, reforçada pelo discurso judaico-cristão.

Nesse cenário, torna-se prodigioso evocar Giorgio Agamben que, ao indagar sobre a “pós-história” (2017, p. 24), divulgada por Alexandre Kojève (1902-1968)KOJÈVE, A. Introduction to the reading of Hegel. Nova Iorque: Cornell University Press, 1980., em determinado momento de O aberto: o homem e o animal (2017), atesta o desaparecimento do humano propriamente dito. Efeito do devir-animal, problemática que Kojève privilegia em Introduction to the reading of Hegel (1980). Como consequência, o regresso humano à animalidade não se configura como um devaneio futurista, mas, sim, como uma realidade do presente, modificando o estado atual do mundo e das relações.

O conceito de humanidade que se adota após a descoberta do novo mundo, por seu turno, gera uma série de contradições uma vez que ele se estabelece mediante contraste, limite, e contraponto para com a animalidade; isso, pois, “o homem não é, de facto, uma espécie biologicamente definida nem uma substância dada de uma vez por todas: é, sobretudo, um campo de tensões dialéticas já sempre talhado por cesuras” (AGAMBEN, 2017AGAMBEN, G. O aberto: o homem e o animal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 24). Conquanto tais cesuras distinguem a humanidade da animalidade, rejeita-se a importância dessa na construção da história humana, o que ajuda a compreender o descaso com que o pensamento ocidental tratou o animal até pouco tempo atrás:

O homem existe historicamente somente nesta tensão: pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustém, apenas porque, através da acção que nega, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade.

(AGAMBEN, 2017AGAMBEN, G. O aberto: o homem e o animal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017., p. 24)

Atentando-se à perspectiva de Lestel, possibilita-se visualizar o modo pelo qual a humanidade escapa da animalidade, deslocamento que ocorre por obra da hominização. Ao refletir sobre esse processo, cuja finalidade é diferenciar o humano das demais espécies, Lestel, amparado por Georges Bataille (1897-1962), elege alguns elementos que se tornam critérios da hominização: o jogo é um desses elementos, pertencente à ordem do prazer, contrária à ordem da vida cotidiana e o ponto-chave para Bataille (2001)BATAILLE. G. La felicidad, el erotismo y la literatura. Córdoba: Adriana Hidalgo editora, 2001. discutir a questão das classes sociais. O trabalho surge nesse debate, uma vez que todo homem, em teoria, trabalha de modo organizado e regulamentado, sob uma lógica diferente do trabalho animal. A arte aparece, então, como critério fundamental da hominização, posto que o homem pré-histórico passou a distinguir-se do animal conforme atribuía imagens poéticas a ele nas antigas pinturas rupestres, como defende Lestel (2001)LESTEL, D. As origens animais da cultura. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.. O processo, em questão, é apenas mais um, dentre tantos, responsável por desvincular o homem da animalidade, fato que demandou todo o período da pré-história para se consolidar.

Agamben também verifica de que maneira a cultura separa a humanidade da animalidade, produzindo, com isso, o humano na era moderna. A investigação revela um mecanismo ardiloso e sanguinário denominado “máquina antropológica do humanismo” (2017, p. 51), incumbido de isolar o animal dentro do homem, fabricando um conceito de humano em oposição ao não-humano. Esse conceito desponta como um pressuposto segundo critérios antropocêntricos, tendo em vista raça, etnia, sexualidade, linguagem, racionalidade e integridade genética. Nesse jogo, ‘forma humana” não coincide com conceito humano. Basta lembrar aqui do escravo e do bárbaro, que representam figuras do animal humanizado, mas cuja humanidade é irreconhecível, ou do muçulmano nos campos de concentração, que refletem a imagem do humano animalizado, o qual tem sua humanidade roubada. O mecanismo descrito por Agamben (2017, p. 24-25)AGAMBEN, G. O aberto: o homem e o animal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. indica que:

[o] homem (ou o Estado por ele) começa, ao invés, a cuidar da própria vida animal e a vida natural torna-se antes o colocar em jogo daquilo a que Foucault chamou o biopoder. Talvez o corpo do animal antropóforo (o corpo do servo) seja o resto não resolvido que o idealismo deixa em herança ao pensamento e as aporias da filosofia no nosso tempo coincidam com as aporias deste corpo irredutivelmente tenso e dividido entre animalidade e humanidade.

Assume-se, doravante, que o imaginário estatal passou a chancelar a dicotomia homem/animal frente ao horizonte da modernidade. Nesse sentido, quanto mais próximo o homem estiver do animal, ou da natureza em geral, menos humano ele será considerado, precisando, ainda, corresponder aos critérios forjados pela máquina antropológica para a permanência no estatuto humano. A humanidade se faz evidente pela produção de sentidos independentes, que contribuem para aquisição de uma ideia de evolução e superioridade do especificamente humano mediante o universo criatural. O humano que, logo, resulta dessa produção se apresenta nas gramáticas formais da cultura como um ideal de supremacia, o dominante e intocável ser que oprime as relações intra e interespécies. Contudo, a construção obstinada de um pensamento de fronteira, através de epistemologias alternativas, permite alcançar outras concepções do humano e da humanidade, colocando-os em disputa por via de apostas políticas.

Encontra-se no intelectual indígena Ailton Krenak reflexões que suscitam um pensamento de fronteira acerca de possibilidades além do humano tal qual ele se apresenta atualmente. Na conferência Ideias para adiar o fim do mundo (2019), realizada no auditório da Universidade de Brasília (UnB) e posteriormente transformada em ensaio, Krenak assevera as implicações que a adoção de determinada humanidade, concebida no leito do Antropoceno, acarreta à dimensão sociopolítica-econômica do mundo. Dialogando, de certa forma, com Lestel e Agamben, Krenak questiona se esse ideal de humanidade, concretizado por consequência do projeto civilizatório europeu e caracterizado como uma atitude negadora do Outro, estaria no epicentro da anomia, coordenada pelo imaginário estatal, que se instalou nas sociedades modernas. Tal empreendimento seria, portanto, responsável não apenas pela autorização do aniquilamento das humanidades pré-coloniais, mas também pelo terrorismo contra a Terra, escondido sob o manto enganoso do desenvolvimento.

Ao ‘convocar’ os habitantes do arbitrariamente denominado novo mundo para integrar o clube da humanidade, o projeto civilizatório praticava a “inclusão daquilo que é, ao mesmo tempo, expulso” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2007., p. 25), uma vez que inclusão aqui não significa pertencimento, mas, sim, inserção de vidas vulneráveis nos cálculos do poder. Nesse ponto, a distinção adquire maior ênfase, pois em virtude dela se pode pensar melhor sobre a “humanidade que pensamos ser” (2019, p. 8), questionada por Krenak. Apesar de o ideal europeu da humanidade buscar englobar a todos, paradoxalmente, ele fomenta exclusões, violentando e negligenciando corpos que não correspondem à sua normativa. O fato ganha nitidez quando se indaga sobre o porquê a humanidade que se pensa ser normaliza tanto a desigualdade e a injustiça social, ao ponto de permitir que mais de 70% da população mundial viva somente com o mínimo de condução de subsistência, segundo Krenak.

Observando-se a condição do homem acolhido no seio venenoso da sociedade, evoca-se a problemática da Declaração de 17891 1 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão , que, contrariamente ao seu objetivo de assegurar, ainda que de forma virtual, os direitos e as prerrogativas do homem, sugere um caráter eliminável inscrito na própria natureza desse homem: “Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2007., p. 96). A Declaração de 1789 se propõe a revogar esse caráter eliminável, sugerido por Agamben, porém, basta lançar o olhar na história para se confirmar uma baixa efetividade. O teórico Gabriel Giorgi, em seu ensaio Formas comuns: animalidade, literatura e biopolítica (2016), atesta essa baixa efetividade ao refletir sobre diversos casos no campo real e ficcional, dando ênfase ao ocorrido em 1937, protagonizado por Harry Berger (1890-1959), uma das figuras centrais da Revolta Vermelha de 352 2 A Revolta Vermelha de 35 foi a primeira revolta comunista da América do Sul. , antagônica à Era Vargas (1930-1945). Após ser preso e mantido sob constante tortura em condições sub-humanas, o defensor de Berger, Heráclito Sobral Pinto (1893-1991), entra com um recurso, cuja argumentativa invocava os direitos animais para tentar proteger a vida do preso político, posto que os direitos humanos não estavam sendo respeitados naquela ocasião que configurava, notadamente, um estado de exceção. O ocorrido representa um marco para os Estudos Animais no Brasil, além de demonstrar que o homem não é o índice de uma vida passível de ser preservada.

Indiretamente, o pensamento de Krenak se ajusta a essa perspectiva, permitindo concluir que as garantias de exercício pleno do viver, imbricadas no cerne da humanidade, na realidade são para poucos. Todavia, o imaginário estatal se certifica de forjar um aspecto universal para a humanidade; não se deve perder de vista que certos conceitos universais são, pois, imaginados de maneira restrita. Não obstante, as sociedades passam a se identificar cada vez mais com esse pernicioso conceito de humanidade, transformando-se em fonte de todos os seus fracassos. Essa humanidade aliena as comunidades viventes das multiplicidades do mundo e a desconecta da Terra, gesto ao qual Krenak responde: “Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (p. 10).

A cosmovisão suscitada pelo intelectual indígena defende a ideia da indissociabilidade entre homem e natureza; uma relação harmônica, cuja finalidade não é o consumo exaustivo, mas, sim, o compartilhamento de sentidos e interesses. Ideia essa frequentemente assediada pelo poder estatal, que almeja a dominação do humano sobre a natureza por intermédio da tecnologia. Nessa direção, busca-se tornar a natureza abjeta, despersonalizada, algo ao inverso do homem, reduzida a ‘recursos naturais’. Krenak confronta essa lógica mercadológica:

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser”. (2019, p. 10).

É necessário, então, compreender que a natureza não é simplesmente uma fonte de matérias para a manutenção da vida, ela tem uma consciência própria, pontos de vista, sentimentos e desejos; ela também sofre, alegra-se, faz rizoma, e sobretudo agencia. Essa natureza, que ora protege ora fere, não entra no campo de visão do conhecimento científico legitimado pelas instituições, pois este modo de conhecimento a torna objeto de análise, retirando sua condição de sujeito em um desmanche interpretativo capaz de distanciá-la do homem. No entanto, a pesquisadora chilena Ana Pizarro (2022, p. 166) salienta que em universos de temporalidades diversas “existe uma conexão básica com a natureza, uma energia que conecta o ser humano com as árvores, os animais, o rio, a montanha, há uma interlocução entre eles, eles constituem um todo que é a própria vida.”. Tais universos são habitados (especial e subjetivamente) pelas humanidades enunciadas por Krenak, as quais resistem às investidas do poder estatal no Antropoceno.

As humanidades sobre as quais fala Krenak, que persistem ao decurso violento da história, são interpretadas aqui como ‘pré-humanas’, anteriores à produção do humano normativo da máquina antropológica. Esse entendimento ocorre a partir da compreensão de que essas humanidades constituem um jeito específico de se relacionar com o mundo paralelamente ao modo pelo qual o humano normativo atua perante o seu meio e o seu oposto. Conforme Krenak, essas humanidades, espalhadas pela América Latina, guardam um tipo de conhecimento e sensibilidade sobre um universo marcado pela troca de afetos, em que os animais, as árvores, as montanhas e os rios formam famílias entre si e com o homem; compartilham todos os sentimentos que a ciência e a filosofia transformaram em propriedade humana; é o lugar do sonho da pedra. Os povos ameríndios reverenciam esse universo, fazem festa e gracejam sua existência, visto que estão intrinsecamente ligados a ele, não apenas dependem da terra; eles são a própria terra, estão em simbiose com ela. Essa relação orienta a articulação de todo um processo subjetivo, criando outra lógica de distribuição de corpos e alterando a topografia do visível e do sensível. Devido a isso, esses povos são empurrados pelo poder estatal para as bordas do planeta, obrigados a viver em territórios restritos e perigosos, sem a proteção adequada, como uma sutil estratégia de apagamento.

Impor a humanidade, formatada conforme o pressuposto da máquina antropológica, aos ameríndios, consiste em um atentado contra esses povos, em razão dessa humanidade representar o fim do mundo para eles, isto é, a destruição da sua estrutura social, dos seus costumes, da sua política de relações e cosmovisão. Sem essas bases estariam os ameríndios se encaminhando para o que Krenak chama ironicamente de “humanidade zumbi” (2019, p. 15), ou seja, humanos que perderam o prazer na vida, tornando-se máquinas de pura intolerância e consumismo. Contrário a essa ordem da humanidade, que se instala sistematicamente no mundo, Krenak propõe, portanto, adiar o fim do mundo, por via da potência da fruição contemplativa entre o indivíduo e a terra. Vale ressaltar que o indivíduo aqui é um ‘eu coletivo’, pois “toda individuação está atravessada por uma multiplicidade de cruzamentos, de interseções, de pontos e umbrais de enlace entre corpos” (GIORGI, 2016GIORGI, G. Formas comuns: animalidade, literatura e biopolítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 182). Desse modo, ele está integrado em um fluxo contínuo de compartilhamento recíproco de visões sobre o mundo, um intercâmbio de sentidos e perspectivas entre o humano e o não humano, propiciando a expansão das subjetividades não edípicas, localizadas muito além do teatro familiar:

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.

(KRENAK, p. 15-16KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Uma mente não apenas capaz de reflexões filosóficas, mas, também, de imaginações poéticas é imprescindível para Krenak no que se refere ao desafio de suspender o céu, adiando o fim do mundo. Com efeito, ainda que o poder estatal busque normatizar a todos com a sua humanidade homogênea, continuam-se construindo “paraquedas coloridos” (KRENAK, 2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 15), metáfora que alude ao gesto crítico e criativo de persistir em si mediante a queda. Nesse gesto, preserva-se a diferença, sendo ela, pois, o canal que dá acesso às multiplicidades das humanidades potenciais que os Estados das nações dominantes tentam suprimir. Vislumbrando essas multiplicidades, seria possível conceber um conjunto de culturas e povos convivendo harmonicamente em um mesmo lugar, transportando afetos dentro de uma cosmovisão pluriversal, em que as humanidades não são mutuamente excludentes. Assim, desobstruindo o passado estar-se-ia tornando o futuro menos arenoso para a construção de um bom viver.

Humanidades em disputa

O texto de Krenak, ao adotar um discurso pluriversal, assumindo que os humanos não são os únicos seres interessantes neste mundo, oportuniza pensar a natureza como multiplicidade, território de afetações e fluxo de passagens. Adentrando em tais veredas reflexivas, possibilita-se encontrar a cosmovisão evocada por Krenak também na obra de Eduardo Viveiros de Castro. Em Metafísicas canibais (2018), o antropólogo brasileiro apresenta dois conceitos fundamentais para se tentar compreender a dimensão da cosmopolítica ameríndia. O primeiro é o “perspectivismo” (p. 21), nascido de uma revisão da etnografia amazônica. Refere-se ao modo pelo qual, na concepção indígena, os agentes subjetivos enxergam a si mesmo e aos outros. Esses tais ‘agentes subjetivos’ possuem uma alma semelhante, dado que, diferentemente da tradição europeia (dedicada à produção de almas), na tradição indígena (dedicada à produção de corpos), a alma já está pressuposta em cada ser, como dado essencial, o fundo inconstante e ao mesmo tempo imutável. Nesse contexto, os humanos, os animais, as plantas, os espíritos, entre outros seres dotados de intencionalidade, partilham dessa matéria comum: a alma — formando, então, o estatuto supracitado.

O perspectivismo ameríndio revela que a maneira pela qual o humano enxerga a si mesmo e aos demais agentes subjetivos, não corresponde à maneira pela qual os demais agentes subjetivos enxergam a si mesmos e os humanos. Nessa direção, conquanto os humanos se enxergam como humanos e os animais, espíritos, entre outros seres como não humanos, infere-se que: “Os animais predadores e os espíritos, por seu lado, veem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou como animais predadores” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 28). Assim, conclui-se que os animais, espíritos e outros seres portadores de intencionalidade enxergam o homem como não humano, ao passo em se enxergam como humanos, de acordo com a visão apresentada por Viveiros de Castro. Dentro desse arranjo, é possível visualizar o humano em formato de estado potencial, uma linha de sombra que se mantém aberta para os agentes subjetivos. Aqui, a humanidade se eleva à pura virtualidade, menos a expressão de uma interminável metamorfose do que o resultado final de uma transformação. Humanidade e animalidade se tornam conceitos ainda mais abstratos nesse debate, pois tiram definitivamente do jogo os princípios da diferenciação instituída pelo conhecimento científico. Por consequência, os animais: “veem seu alimento como alimento humano [...], seus atributos corporais [...] como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 28-29).

Considerando as postulações tecidas por Viveiros de Castro, constata-se que a humanidade se reflete mediante apenas a imagem do já conhecido. O incidente de Antilhas, o conflituoso e revelador primeiro contato entre europeus e indígenas, descrito pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) em Tristes trópicos (1996), que consistia na suspeita dos europeus sobre a natureza animal dos indígenas em comparação com a suspeita desses indígenas sobre a natureza divina dos europeus, ilustra, para Viveiros de Castro, a disparidade estabelecida na relação do mesmo com o outro. Esse conflito não revela só o caráter restritivo da humanidade, mas, também, a tendência do pensamento ocidental de hierarquizar grupos e espécies; enquanto o europeu observa o outro como inferior, o indígena observa o outro sob divergente perspectiva. Pela ótica ameríndia, confirma-se que as humanidades particulares (dos humanos, dos animais, das plantas, dos deuses, dos mortos, dos objetos etc.) não se anulam reciprocamente, elas convivem em um mesmo espaço, o que ressoa também no pensamento de Krenak.

A multiplicidade de pontos de vista que compõem o perspectivismo orienta a construção de uma antropologia indígena alicerçada tanto em fluxos orgânicos quanto em codificações materiais, e em devires-animais capazes de reescrever a imagem do humano gerada pela máquina antropológica. No universo ameríndio não se joga com o binarismo que se tornou corrente perante o domínio do poder estatal. Esse universo se situa em uma temporalidade aquém desta que se vivencia, na era pós-mítica, marcada pela ruptura homem/animal, cultura/natureza, real/sobrenatural. Destarte, os critérios: “universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e instituído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade etc.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 26), constantemente separados pela ciência e pela filosofia, tendem a ser embaralhados pelo perspectivismo, visando imaginar uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos transitórios.

Esta ontologia da corporalidade, enfatizada no universo dos povos originários, merece atenção especial, pois se trata de uma questão essencial no debate acerca do tema humanidade/animalidade. Comentou-se brevemente que a tradição indígena se notabiliza pela produção de corpos. Aprofundando nessa afirmação, identifica-se a presença do corpo na esfera do instituído, isto é, daquilo que se constrói; o corpo como instância da metamorfose. É necessário, contudo, desvencilhar-se da noção de corpo-organismo; em vez disso, perceber esse corpo por suas potências e disposições, pelo modo ao qual os afetos o percorrem e pela forma que ele se relaciona com outros corpos. Entendendo que a forma de um corpo interfere na forma como se codificam os dados da existência, compreende-se o porquê de os animais enxergarem uma realidade diferentemente dos humanos. Por meio desse gesto, possibilita-se, portanto, ‘ver os olhos com outros mundos’.

O perspectivismo confirma que a condição humana, arbitrariamente concedida a determinados coletivos pelas instituições, não raro, pode ser encarnada por outras espécies. Não é preciso, pois, insistir que o humano, nos termos de Viveiros de Castro, refere-se à manifestação particular de uma multiplicidade cosmológica, não se rendendo ao conceito de humano projetado pelos cálculos do poder. Todo animal e demais agentes subjetivos é virtualmente humano, contrapondo a lógica do Estado-nação, que pressupõe o não humano como condição apriorística. Logo, em relação à humanidade por vir, os animais e demais agentes subjetivos “atualizam essa potencialidade de modo mais completo que outros; certos deles, aliás, manifestam-na com uma intensidade superior à de nossa espécie, e, neste sentido, são ‘mais humanos’ que os humanos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 29).

O segundo conceito basilar para se compreender a cosmopolítica ameríndia, chama-se “multinaturalismo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 39). Ele sublinha a ideia de uma multiplicidade de posições subjetivas, promovidas pelo perspectivismo, anulando-as ou as intensificando para que se mantenham separadas, devido às suas incompatibilidades; por conseguinte, “não afirma uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a variação como natureza.”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 44). Nesse cenário, as multiplicidades são relacionais, traçando o limiar em que os corpos, as substâncias e as entidades não apenas interagem, mas, também, interpenetram-se. Assim, o multinaturalismo embarga qualquer essencialismo, desconfigurando a natureza objetiva do pensamento científico.

Viveiros de Castro recorre à mitologia ameríndia pata indagar acerca dessa aparente instabilidade da natureza. Mencionou-se acima que o mito comunica sobre uma época anterior à diferenciação externa entre homens e animais. Tal suposição se sustenta devido ao fato dos agentes subjetivos, dentro do repertório mítico, não se reduzirem às identidades pré-estabelecidas, tampouco aos essencialismos de cunho geral ou específico. Isto posto, verifica-se que “doravante, as dimensões humana e felina dos jaguares (e dos humanos) funcionarão alternadamente como fundo e forma potenciais uma para a outra” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 37), corroborando a predisposição primeira de todo ser se tornar outra coisa, logo, indicando a variabilidade tanto da invisibilidade das almas quanto da opacidade dos corpos. A passagem para a era pós-mítica é acompanhada por uma investidura contra essa indissociabilidade, ocasionando a cristalização de blocos molares identitários, propiciando a distinção das espécies, operada por uma especiação intimamente vinculada à hominização, cujo exame ficou a cargo de Lestel. Entretanto, esse processo não deixa de evidenciar um fato decisivo:

A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam atributos herdados ou mantidos pelos humanos. Os não-humanos são ex-humanos, e não os humanos os ex-não-humanos. Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces animais normalmente ocultos pela cultura– tendo outrora sido “completamente” animais, permanecemos, “no fundo”, animais–, o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros existentes cósmicos continuam a sê-lo, mesmo que de uma maneira não evidente para nós.

(VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 38-39).

O que não significa que os animais são inerentemente iguais aos humanos, mas, sim, identificam-se como humanos, possuindo uma humanidade própria. O uso do adjetivo adquire certa redundância nesse ponto, uma vez que toda humanidade é própria para determinado grupo ou espécie, reservando-se de generalizações universalistas. A humanidade, como categoria cosmológica, é internamente implícita em todos os grupos ou espécies e externamente reconhecida somente em um mesmo grupo ou espécie. Caso exemplar, o jaguar, que se enxergando como humano, torna os outros seres do universo criatural não humanos; o jaguar não poderia se identificar como jaguar, pois essa é a forma pela qual o humano o vê, ponto de vista esse que ele (o jaguar) não tem acesso. A habilidade de assumir outros pontos de vista, de acordo com Viveiros de Castro, está sob a tutela dos xamãs ou dos escritores-feiticeiros, homens capazes de perceber os limites da natureza e criar alianças com o animal, encontrados nas teorizações de Gilles Deleuze (1925-1995)DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4. e Félix Guattari (1930-1992).

O multinaturalismo visualiza o mundo de modo pluriversal, em que todos os agentes subjetivos o enxerguem à sua maneira, não se sobrepondo umas às outras, mas, ao contrário, mantendo-se em um estado de simultaneidade complementar. A intrigante especulação, proveniente da visão ameríndia, coincide com outro relevante tema explorado por Agamben. Novamente, em O aberto: o homem e o animal (2017), no que concerne à análise realizada acerca do trabalho do biólogo estoniano Jakob von Uexküll (1864-1944), Agamben deriva considerações pertinentes sobre o ambiente animal. Relatando as investigações de Uexküll, que romperam a noção de um mundo unitário, defendido pela ciência clássica, e supostamente capaz de dar conta de todas as espécies, mantidas em intrincados sistemas hierárquicos e classificatórios. Agamben sublinha a importância de Uexküll por pensar uma infinidade de mundos perceptivos: “todos igualmente imperfeitos e ligados entre si como numa gigantesca partitura musical e, todavia, incomunicantes e reciprocamente exclusivos” (2017, p. 66). Nesse sentido, a noção de mundo unitário se mostra insustentável. Com isso, as relações interespecíficas se dão em ambientes, espaços e tempos diferentes. Consequentemente, o animal se move no mesmo mundo objetivo observado pelo humano, chamado de “Umgebung3 3 O termo se refere ao espaço no qual o homem atua. ” (2017, p. 67). Todavia, o humano não consegue observar o mundo subjetivo no qual o animal se movimenta, chamado de “Umwelt4 4 O termo se refere ao ambiente no qual o animal se desenvolve. ” (2017, p. 67). Essa discussão se relaciona nitidamente com o que fala Viveiros de Castro; dito isso, permite-se concluir que os termos utilizados por Uexküll nomeiam faces do perspectivismo:

[...] todos os seres veem (“representam”) o mundo da mesma maneira– o que muda é o mundo que eles veem. Os animais utilizam as mesmas “categorias” e “valores” que os humanos: seus mundos giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos xamãs, chefes, espíritos etc.

(VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 40).

Embora incomunicáveis, Umgebung e Umwelt permanecem em perfeito acordo, criando uma linha de contato indireto entre eles, constituída por determinados elementos. A aranha, por exemplo, só toma nota da mosca por obra da tecelagem, conquanto o jaguar tem conhecimento do humano somente através da caça. Mesmo oriundos de ordens distintas, os pontos de vista compartilham de um éthos comum, que não unifica propriamente, porém, aproxima. Imaginar a natureza fora da circunscrição do antropocentrismo é, portanto, humanizá-la (no sentido mais amplo do termo), reconhecendo seus aspectos divergentes e convergentes, por via de uma política da multiplicidade.

Considerações finais

A iminência do desvelamento entre humano e não humano, pensada inicialmente como uma especulação estética no campo da literatura, conquistou um espaço demasiado prodigioso mediante o pensamento contemporâneo, ainda que tal iminência acompanhe muito antes disso. A configuração que a temática apresenta no recente período, evidencia tensões inconciliáveis de cunho ético, político filosófico e jurídico, para as quais se faz urgente uma reflexão compromissada com a vida, considerando que cada ser vivente representa uma parte da memória do planeta, passível de ser preservada. Sob essa formatação, buscou-se construir diálogos teóricos, com o intuito de ensaiar possibilidades para um viver além das tecnologias de poder, que atravessam os corpos e as subjetividades no Antropoceno. Desse modo, empreendeu-se um gesto imaginativo que visa suspender a ordem normatizadora, responsável por estratificar e hierarquizar os seres, perseguindo a forma nem tanto humana, nem tanto animal, mas algo de fronteiriço, sonhado com o coração.

Titulo

  • 1
    Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
  • 2
    A Revolta Vermelha de 35 foi a primeira revolta comunista da América do Sul.
  • 3
    O termo se refere ao espaço no qual o homem atua.
  • 4
    O termo se refere ao ambiente no qual o animal se desenvolve.

Referências

  • AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
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  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais São Paulo: Ubu Editora, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Aceito
    30 Jun 2023
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