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A ESTRADA DO MEDO: MOBILIDADE E TRAUMA NO ROAD NOVEL SING, UNBURIED, SING, DE JESMYN WARD

THE MIDDLE ROAD: MOBILITY AND TRAUMA IN THE ROAD NOVEL SING, UNBURIED, SING, BY JESMYN WARD

Resumo

O gênero road novel, estabelecido a partir de Jack Kerouac com a publicação de On the road (1957), tem por principal característica a narrativa da viagem das personagens, com foco no deslocamento. Em seus primórdios, era produzido por autoria masculina e abordava a trajetória de personagens, também masculinos, de um lado para o outro sem destino ou motivação certa. Contudo, contemporaneamente, cada vez mais mulheres tem se apropriado do gênero e o modificado, como em Sing, unburied, sing, de Jesmyn Ward, publicado em 2017. Assim, este texto tem como objetivo entender como os personagens vivenciam a viagem e como a mobilidade negra é tangenciada por construções sociais. O romance aponta para a dificuldade existente em relação à apropriação do espaço pelo corpo negro, cuja suposta noção de que o automóvel proporciona a todos a liberdade de deslocamento é constantemente questionada pelo medo presente dentro do carro.

Palavras-chave
Road novel; literatura de autoria feminina negra; deslocamento; viagem; Jesmyn Ward

Abstract

The road novel genre, established by Jack Kerouac with the publication of On the road (1957), has as its main characteristic the narrative of the characters' journey, focusing on displacement. In its beginnings, the genre was produced by male authors and it was about the trajectory of the characters, also male, from one side to the other without a certain destination or motivation. However, nowadays, more and more women have appropriated the genre and modified it, as in Sing, unburied, sing, by Jesmyn Ward, published in 2017. Thus, this text aims to understand how the characters experience the journey and how black mobility is influenced by social constructions. The novel points to the difficulty that exists in relation to the appropriation of space by the black body, whose supposed notion that the automobile provides everyone with freedom of movement is constantly questioned by the fear present inside the car.

Keywords
Road novel; literature by black women; displacement; travel; Jesmyn Ward

Uma viagem assombrada

Jesmyn Ward é uma proeminente escritora norte-americana que publicou Salvage the bones (2011) e Men we reaped (2013). A obra Sing, unburied, sing (2017) é uma narrativa do realismo mágico ambientada no Mississippi rural, pós-Katrina. Esse romance de Ward é uma ruptura com a forma tradicional do road novel estabelecida por Jack Kerouac em On the road (1957), publicado no Brasil como Pé na estrada, por colocar em cena uma família na estrada, com uma mãe, a amiga, o marido e seus filhos. Porém, um novo ponto se soma à ressignificação, pois a narrativa tematiza a questão racial como mote central da viagem.

O gênero literário road novel é tradicionalmente masculino devido às suas especificidades de retratar experiências vivenciadas pelos homens na instabilidade das estradas, no mundo exterior negado às mulheres até que os feminismos pudessem lhes garantir o direito de transpor os muros da casa. De modo geral, o road novel é um gênero literário em que a experiência na estrada, o estar em movimento, é parte central da ação narrativa. A aventura, o estar à deriva nas estradas, sem destino, sem motivo, sem propósito, a contestação do “American way of life”, conferem-lhe o tom. No imaginário cultural estadunidense e heteronormativo, o road novel é considerado um gênero literário tipicamente “americano” e masculino. Desde as crônicas da época da colonização ocidental às jornadas pelas estradas em busca de liberdade, a viagem foi difundida como parte da construção da cultura e história estadunidense. Segundo Allison Gallagher (2017, n.p.)Gallagher, Allison. The radical potential of queer road novels: looking beyond the Bro-Canon. In: Literary Hub, [S.I], 2017. Disponível em <https://lithub.com/the-radical-potential-of-queer-road-novels/>. Acesso em 31 jul 2022.
https://lithub.com/the-radical-potential...
, o gênero foi (e ainda é) sustentado pela imagem do viajante fanfarrão, “cuja identidade masculina inabalável sustenta seu desejo inato de aventura.”2 2 O road novel é um gênero literário que possui alguns representantes na literatura de autoria feminina brasileira. Entre outros, podemos citar: Todos nós adorávamos caubóis (2013), de Carol Bensimon; Isadora, sua Camisola La Perla e a BR (2015) e Sobre poeira e sol e uma certa calça floral (2018), de Catarina Guedes.

Entretanto, romances como a obra em estudo, Sing, unburied, sing, que foi positivamente recebido pela crítica e nomeada como um dos dez melhores livros de 2017 pelo The New York Times, desconstroem essa perspectiva tradicional do gênero ao colocar em cena outro conceito para o estar em movimento nas estradas.

A obra é composta por três narradores que se alternam, formando um mosaico que coloca em discussão a dor, o racismo, a toxicodependência, a pobreza e uma viagem angustiante e incômoda de uma família negra. O narrador-protagonista é um adolescente de treze anos chamado Jojo, que vive com seus avós, Pop e Mam, e cuida atenciosamente de sua irmã caçula, Kayla. A mãe dele, Leonie, a segunda narradora, luta contra o vício em drogas e é assombrada pelo fantasma de seu irmão Given,3 3 O personagem Given parece inspirado na história pessoal da escritora, quando seu irmão, homem negro, é morto por um motorista branco bêbado que recebeu uma sentença relativamente leve. assassinado pelo primo de Michael, seu marido branco que está preso por porte de droga e que é pai das crianças. Além dela, Pop também é assombrado pelo seu passado em Parchman,4 4 Parchman foi considerada, por muito tempo, uma prisão de negros, já que poucas foram as pessoas brancas enviadas para lá. Entre as atrocidades que ocorriam, havia o enclausuramento de crianças sob acusação de delitos leves, as quais sofriam nas mãos dos guardas. a prisão brutal e desumana onde conheceu Richie, um menino que, para não sofrer as atrocidades nas mãos dos brancos, foi assassinado por ele em um golpe de misericórdia. Richie se transforma em um fantasma-narrador do romance e é visto apenas por Jojo.

Assim, no volante está Leonie, uma mãe negligente, abusiva, egoísta e egocêntrica, características de uma narcisista, cujas ações se revelam como reflexo de algo muito mais profundo e social, acompanhada do fantasma de seu irmão Given. Ao lado de Leonie viaja sua amiga branca Misty, enquanto no banco de trás estão Jojo, Kayla e o fantasma de Richie.

A narrativa se inicia na manhã do aniversário de treze anos de Jojo, quando ele assiste o avô no processo de matar e esfolar uma das cabras da família. Nesse mesmo dia, seu pai, que estava preso, é solto da cadeia e a mãe resolve buscá-lo, levando os filhos em uma jornada em família pelas estradas. A cidade é Bois Sauvage, um local fictício situado no Mississippi, onde vive uma sociedade injusta, racista e atormentada por vícios, miséria e desespero.

A viagem tem um destino, a Penitenciária Estadual do Mississippi, Parchman Farm, onde Pop (River) foi preso injustamente quando ainda era jovem, e tem um motivo, buscar o pai, Michael, que foi solto da prisão. Ao longo da jornada, a narrativa desenvolve personagens que foram literalmente presos, e, ao mesmo tempo, aqueles que vivem em uma prisão metafórica, encarcerados nos conceitos sociais de raça, classe, vício e passado, isto é, presos às barreiras sociais que limitam a vida. Todos eles em um vértice confuso no qual a mãe se perde no vício, o avô esconde e sofre as ações de seu passado, Richie deseja ter voz e Jojo busca um caminho até sua própria identidade em estradas racistas e traumáticas. Para Leonie e Misty, a viagem também tem como objetivo vender drogas; enquanto Jojo não deseja estar ali, ele quer retornar para o avô, para aquele que o considera família mais que a mãe. Ao lado desse drama familiar, a jornada empreendida se desenrola para além da materialidade e se transforma em uma viagem fantasmagórica para Leonie e Jojo, cada um com seu fantasma particular.

A memória coletiva, relacionada à condição do negro no Mississippi, é uma estrada persistente e, como uma sombra, ela reflete suas consequências nos descendentes de um povo que sofreu as agruras do tráfico e da escravidão. É no deslocamento que a narrativa perscruta um presente (com a mãe), um passado (com o fantasma de Richie), e uma possibilidade de futuro em Jojo, o protagonista. Os três vagam em uma odisseia familiar pelas estradas, amalgamados por todo esse legado e pelas disfunções particulares de cada um da família, projetando os traumas de uma vida, de um povo, por meio dos fantasmas do passado.

A personificação dessa alegoria se apresenta no fantasma de Given, o irmão de Leoni, que é silencioso e presente no dia-a-dia da personagem. Ele representa aqueles que morreram na mão dos homens brancos, porque sua morte ocorreu após Given vencer uma aposta, na qual ele mata um veado com arco e flecha antes de outro homem acertá-lo com um rifle. A vitória de Given desencadeia uma raiva assassina, rotulada como um acidente de caça, e o assassino é sentenciado a apenas três anos de prisão. Esse assassinato é construído e narrado de maneira a se fazer presente em todo o romance, e sua morte se espalha pelas páginas como uma presença incômoda. A morte de Given se transforma em um paradoxo para a irmã que tem um caso de amor com Michael, primo do assassino, e a violência, a injustiça e a morte ressoam na trajetória da personagem de maneira a viver em um espiral de decadência.

As personagens são atormentadas pelo medo a todo momento, rodando pelas estradas ou parando ao largo dela, como se vivessem na corda bamba entre a vida e a morte, esta espreitando-os como uma doença sobrenatural cujo sintoma é o próprio medo. Esse sentimento é expresso no adoecimento de Kayla ao longo da viagem e no mal-estar que os acompanha, pois eles estão sempre esvaziando seus estômagos à beira da estrada. Assim, esta análise tem como objetivo entender como os três narradores vivenciam a viagem e como a mobilidade negra é tangenciada por construções sociais.

A estrada do medo: Jojo, Leonie e Richie em deslocamento

O road novel de Ward tem como característica principal a viagem como sintoma de um medo profundo. Ela é uma ação opressora que nada tem em comum com o espírito de liberdade tradicional da simbologia do automóvel e da estrada no construto social dos Estados Unidos. O romance aponta para a dificuldade existente em relação à apropriação do espaço pelo corpo negro, cuja suposta noção de que o automóvel proporciona a todos a liberdade de deslocamento é constantemente questionada pelo medo presente dentro do carro.

Há três narradores que compõem o fio do enredo de maneira particular de cada um. Jojo, o principal, é o elo entre o passado e o futuro, e sua narrativa é permeada de encontros com questões raciais que cerceiam seu comportamento e sua expectativa de vida. Já a mãe, Leoni, além de estar presa no passado, na morte do irmão, representa um presente de dor e confusão. Richie, o fantasma, é a voz daqueles que viveram épocas ainda mais desumanas e cruéis para o povo negro. Essas três vozes se fundem em um mosaico desencontrado, cada uma ansiando por alguma coisa não dita.

O romance é um road novel porque apresenta a jornada em sua essência, na qual as personagens narram suas (des)aventuras ao longo da estrada. Essa característica principal pode ser vista em todo o romance, como quando saem em viagem e Leonie dirige até à casa dos sogros para deixar uma carta, avisando que ela buscaria Michael. O percurso do carro revela uma apreensão que culmina em um medo profundo quando chegam ao destino e são recebidos com rancor pelo avô das crianças, Big Joseph, um homem branco e racista:

Eu desloco o carro, olho para trás para verificar a rua e vejo um carro avançando, um SUV cinza. O medo sobe para meus ombros, meu pescoço, um estrangulamento borbulhante. Eu não sei do que tenho medo. O que ele pode fazer além de me amaldiçoar? O que ele pode fazer? Eu não estou na garagem dele. O município não é dono das margens da estrada? Mas algo sobre o quão rápido ele está atirando naquele cortador de grama, o jeito que ele aponta para aquela árvore, o jeito que aquela árvore, um carvalho espanhol, se estende para cima e para fora e sobre a estrada, uma multidão de folhas verdes escuras e galhos quase pretos, o jeito que ele está vindo para mim, me faz ver a violência. Eu aperto o acelerador e desvio para a rua, o carro atrás de mim derrapa e sua buzina soa, mas eu não me importo. Minha transmissão muda de marcha com um gemido alto. Eu giro o carro e vou mais rápido. O SUV cinza parou em uma garagem, mas o motorista está acenando com o braço para fora da janela, e Big Joseph está passando sob a árvore, parando na caixa de correio que acabei de abandonar, saindo do cortador de grama, caminhando em direção à caixa. Ele está tirando algo do assento do cortador, um rifle que estava amarrado ali, algo que ele guarda para os porcos selvagens que enraízam na floresta, mas não é para eles agora. É para mim.

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa)5 5 “I shift the car to drive, look back to check the street, and see a car advancing, a gray SUV. Fear rises to my shoulders, up my neck, a bubbling choke. I don’t know what I’m afraid of. What can he do but curse me? What can he do? I’m not in his driveway. Doesn’t the county own the sides of the road? But something about how fast he’s gunning that lawn mower, the way he points to that tree, the way that tree, a Spanish oak, reaches up and out and over the road, a multitude of dark green leaves and almost black branches, the way he’s coming at me, makes me see violence. I press the gas and swerve out into the street, the car behind me skids and its horn sounds, but I don’t care. My transmission switches gears with a high whine. I sling the car around and go faster. The gray SUV has pulled into a driveway, but the driver is waving his arm out the window, and Big Joseph is passing under the tree, stopping at the mailbox I just abandoned, lumbering off his lawn mower, striding toward the box. He is taking something off the seat of the mower, a rifle that was strapped there, something he keeps for wild pigs that root in the forest, but not for them now. For me.”

Observe que a narrativa acompanha esse deslocamento, mostrando ações desencadeadas pelo encontro com o sogro/avô racista. Esses encontros são outra característica de uma narrativa de estrada, os quais permitem aos personagens expressarem questões mais particulares e, também, representações da visão social sobre o corpo negro. Os que acontecem ao longo da viagem se transformam em elementos importantes para o desenvolvimento pessoal dos protagonistas de um road novel, e podem ser desejáveis, ou não. O encontro é “um modo de ver, e compreender, formulações da alteridade, da diferença e da excentricidade” (Seixo, 1998Seixo, Maria Alzira. Poéticas da Viagem na Literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998., p. 26), e pode ser também obstáculo a ser superado até o destino, se houver um.

Nesse encontro de Leonie e seus filhos com Big Joseph, quando ela diz não saber do que tem medo, na verdade está apontado um sentimento institucionalizado e estruturado por uma sociedade racista. A leitura que ela faz da atitude do avô das crianças evidencia isso, por ele representar uma ameaça a eles. Mesmo que a estrada não seja espaço privado, o medo se estende para o espaço público, no “jeito que aquela árvore, um carvalho espanhol, se estende para cima e para fora e sobre a estrada.” Desse modo, a viagem dessa família inicia com um prelúdio de que não seria uma jornada feliz, pois eles são encontrados pelo perigo na estrada. A ação do personagem Big Joseph, que aponta para o carvalho espanhol, faz referência a um linchamento, forma na qual muitos negros eram mortos e depois dependurados. Soma-se à cena o fato de ele também pegar uma arma, que era reservada aos animais, em específico a porcos selvagens. Ao apontar para ela, também está comparando-a a um animal a ser caçado. Em outras palavras, Leonie está sendo ameaçada de morte, e a morte é real na medida em que Big Joseph foi responsável por ajudar na liberdade do primo que havia assassinado Given. A viagem começa, dessa maneira, evidenciando a desigualdade existente na estrada, que deveria ser espaço de liberdade para todos, mas para pessoas negras era sinônimo de medo e morte.

Para melhor compreender como ocorre essa jornada, pode-se recorrer a noção de cronotopo de Mikhail Bakhtin (2014, p. 211)Bakhtin, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In: Bakhtin, Mikhail. Questões de Estética e de Literatura. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2014., que é a “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em literatura.” Mais especificamente, o cronotopo do viajante relaciona-se com a dinâmica da viagem ao longo do caminho, em um contexto individual ou coletivo que considera o estar em movimento um dos mais importantes fatores para a viagem. É por isso que uma das principais características do road novel é uma narrativa centrada na experiência subjetiva do viajante. De acordo com Bakhtin,

os deslocamentos no espaço — as viagens e, em parte, as aventuras e peripécias (de preferência de um tipo que põe à prova o herói) — possibilitam ao romancista mostrar e evidenciar a diversidade estática do mundo através do espaço e da sociedade (países, cidades, etnias, grupos sociais, condições especificas de vida)

(Bakhtin, 2003Bakhtin, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In: Bakhtin, Mikhail. Questões de Estética e de Literatura. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2014., p. 224).

Bakhtin aponta que os signos presentes nas narrativas de viagem, tais como despedida, separação, perda, obtenção, busca e descoberta, fazem parte do que ele denomina de “cronotopo da estrada.” Isto é, são os muitos e diversos acontecimentos que podem ocorrer durante a viagem e que colocam os sujeitos à prova durante a travessia. Essas ocorrências são denominadas de encontro, que “é um dos mais antigos acontecimentos formadores do enredo do epos (em particular do romance)” (Bakhtin, 2014Bakhtin, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In: Bakhtin, Mikhail. Questões de Estética e de Literatura. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2014., p. 223). A viagem é o meio para que as personagens resolvam questões particulares e reformulem suas próprias identidades, e por isso ela “integra potencialmente um conjunto nocional de componentes enraizadas na existência humana (v.g. partida, chegada, projeto, realização, caminho, travessia, finalização e retorno)” (Seixo, 1998Seixo, Maria Alzira. Poéticas da Viagem na Literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998., p. 12).

É por isso que a viagem, nesse road novel de Ward, não pode ser vista apenas como um deslocamento físico. É preciso considerar, também, as mudanças que ocorrem nas personagens, em suas interioridades, a partir do que vivenciam na trajetória, pois ao colocarem uma distância entre si próprios e o ponto de origem conseguem compreender melhor quem são, redefinindo suas rotas e (re)construindo suas identidades.

O romance de Ward é apreendido aqui como um exemplar das ressignificações do road novel contemporâneo de autoria feminina, na medida em que outros fatores reforçam a ruptura deste romance com a tradicionalidade do gênero, como a própria autoria feminina negra. Não foi encontrado um romance de estrada de autoria negra durante o período em que as mulheres mais publicaram por meio deste gênero, entre 1970 e 2000. Se as mulheres brancas estiveram dirigindo à margem, onde estavam as mulheres negras?

Não é muito difícil responder a essa pergunta se formos um pouco críticos/as e leitores/as da nossa história social. Muito da cultura ocidental foi construída com o suor e sangue dos negros, causando traumas e exílios inimagináveis na identidade da mulher negra. O poder imperialista construiu a sociedade com base no preconceito e na noção de inferioridade, e, como afirma Gayatri Spivak (2010)Spivak, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010., a mulher negra é duplamente colonizada devido ao seu gênero e a sua cor, e essa afirmação se estende a quase tudo em nossa sociedade, inclusive à literatura. Não é preciso arrolar aqui a historiografia dolorosa do povo negro para afirmar que a ausência de representatividade deles se justifica por meio de um jogo de poder que os marginaliza e os subalterna. Não é que não haja mulheres escrevendo, sabemos que há, mas poucas são conhecidas ou têm oportunidades de enfrentar com certa igualdade esse universo heteronormativo, racista e preconceituoso.

Sobre a produção literária de autoria feminina negra, a caribenha-americana Carole Davies contribui para os estudos da identidade e mobilidade dessa mulher em seu texto Black women, writing and identity: migrations of the subject. A autora coloca em evidência diversas questões acerca da realidade, afirmando que “a escrita das mulheres negras [...] deve ser lida como uma série de travessias de fronteira e não como uma categoria de escrita fixa, geográfica, étnica ou nacionalmente vinculada” (Davies, 1994Davies, Carole Boyce. Black women, writing and identity: migrations of the subject. Routledge, 1994., n.p, tradução nossa).6 6 “Black women’s writing, I am proposing, should be read as a series of boundary crossings and not as a fixed, geographical, ethnically or nationally bound category of writing”

O movimento do feminismo negro, que se fortaleceu entre 1960 e 1980, quando a fundação National Black Feminist Organization se estabeleceu em 1973 nos Estados Unidos, mostrou-se um importante meio para a desconstrução dessa realidade. A história deixou de ser única (Adichie, 2009Adichie, Chimamanda. O perigo de uma história única. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), e passou a ser contada pela perspectiva de feministas negras, que problematizaram as condições de vida das mulheres negras norte-americanas, já que os estudos e os feminismos até então consideravam a mulher branca de classe média como referência. Há, então, a emergência de mulheres negras oportunizando visibilidade às pautas delas, denunciando as opressões sobre seu corpo e a falta de representatividade. A filósofa e teórica feminista bell hooks (2013)hooks, bell. Ensinando a Trangredir – A educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. se consagrou como um dos principais nomes do feminismo negro, e aponta para essas mulheres como um dos grupos cujas identidades são subjugadas e ocultadas mais do que qualquer outro. Sexismo, racismo e preconceito definem a maneira como as estruturas sociais e culturais consideram essa parcela da população. Estudiosas como hooks e outras ativistas do movimento feminista lutaram, e lutam, por espaço e representatividade igualitária.

Ainda que falte muito para uma equidade real, palpável, nas últimas duas décadas temos observado a crescente publicação literária de autoria feminina negra. Mesmo que não seja sempre pelas grandes editoras, muitas mulheres estão escrevendo todos os dias e de diferentes maneiras ocupam espaços que histórica e culturalmente são hostis a elas. Nessa luta por espaço, por representatividade, por desconstrução de preconceitos, há alguns textos, embora poucos, que podem ser considerados road novels de autoria feminina negra, por exemplo, I wanna be where you are (2019), de Kristina Foreste e Sing, unburied, sing, de Ward.

Ao representar o corpo negro em deslocamento, o romance de Ward (2017)Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017. questiona a diferença existente quanto a que corpo é esse em deslocamento. Se até aqui um corpo feminino tinha dificuldade em se deslocar, um corpo negro possui ainda mais restrições devido a outros fatores além do gênero, como a cor da pele. Além disso, as questões socioeconômicas influenciam também nas possibilidades de viajar, como na evidente dificuldade de as pessoas negras viajarem despreocupadas e se sentirem bem recebidas em espaços que socialmente são considerados não pertencentes.7 7 Ao longo dos anos, diversas instituições e iniciativas surgiram para desmitificar essa apropriação do espaço e do estar em movimento. Uma delas é a plataforma Diaspora. Black, que surgiu com o objetivo de incentivar a viagem por pessoas negras. Maria Casagrande, responsável pelo seu desenvolvimento, aponta a desigualdade racial e os estigmas que os sujeitos negros enfrentam em viagens, mostrando um número ínfimo de negros que são aceitos ou que recebem hóspedes em aplicativos convencionais de viagem. De acordo com Casagrande, “outras pesquisas indicam que os algoritmos das plataformas convencionais restringem a visibilidade de anunciantes negros mesmo em bairros e cidades de maioria negra, o que favorece a concentração de renda e a exclusão econômica.” Cf. Casagrande , Maria. Diaspora. Black. In: Dias, Guilherme, Por que os negros viajam menos? Revista Trip Uol, 2017. Disponível em <https://revistatrip.uol.com.br/trip/viajantes-negros-apostam-em-aplicativos-e-agencias-especializadas-para-fugir-do-racismo>. Acesso em 28 de jul de 2022.

O racismo estrutural perpassa tanto a noção de espaço, quanto a de apropriação vivenciada pelo corpo negro, transformando o ato de viajar em ruptura e resistência. Bem como o corpo feminino branco em deslocamento experiencia a viagem de maneira diferente do corpo masculino, o corpo negro enfrenta situações que ambos os outros corpos não vivenciam. Como eles são vistos pelos outros viajantes? Como eles são vistos pelos restaurantes de beira de estrada? Como eles são vistos nos pontos turísticos? Como os carros dirigidos por negros são vistos pela polícia? É redundante responder que são vistos com preconceito, que muitas das vezes não são bem-vindos e que precisam lidar muito mais com a polícia do que qualquer outro viajante.

Estendendo esse raciocínio para o corpo feminino negro em movimento, elas são hipersexualizadas e são mais vítimas de assédio, sofrendo, inclusive, depreciação estética. Em uma pesquisa de 2018, a turismóloga Thainá SantosSantos, Thainá Souza. O viajante afro-brasileiro: enegrecendo o turismo. São Paulo, 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Turismo) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. observou que 46,7% de viajantes negros no Brasil já sofreram ou vivenciaram racismo, injúria racial e preconceito. É por isso que reforço a importância da representação literária de viajantes negras, uma vez que, por meio dessas leituras, outros indivíduos se verão representados. Joyce Santos e Natália de Sá (2021)Dos santos, Joyce.; Silva Coimbra de Sá, Natália. A mulher negra viajante: experiências e estratégias de combate à sua (in)visibilidade no turismo. Revista de Turismo Contemporâneo, [S. l.], v. 9, n. 2, p. 252–269, 2021. Disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/turismocontemporaneo/article/view/23584>. Acesso em: 29 jul. 2022.
https://periodicos.ufrn.br/turismocontem...
estudam a presença de mulheres viajantes negras no turismo como uma forma de combater ao racismo, em razão de questionarem a invisibilidade feminina e o impacto que isso tem no imaginário social sobre o que é ser um turista. As autoras apontam para a necessidade de desmistificar a imagem do sujeito branco como único consumidor desse estilo de viagem.

Estudos como esses fortalecem a luta e problematizam a ausência de representatividade negra em uma parte da cultura que é essencial na construção de identidade, pois o ato de viajar é uma das formas de existir na nossa sociedade. Em vista disso tudo, a obra de Ward é um road novel de ruptura, pois as escritoras contemporâneas têm ressignificado as características do gênero para incluir outros corpos no mainstream. Por meio dessas obras, o/a leitor/a compreende que a apropriação do espaço e a noção de liberdade ao viajar não são as mesmas para todos.

O enredo do romance é constituído, portanto, pela necessidade que o sujeito sente de se deslocar em busca – e/ou em fuga – de algo, perpassando seu eu, sua identidade, pelas experiências vivenciadas na estrada, na qual podem se deparar com “encontros, paradas, além de situações que envolvem ruptura e rebeldia” (Romanielo, 2014Romanielo, Ana Luiza Pereira. O outro lado da estrada: o estudo do gênero Road Movie no cinema de Walter Salles. 119f. Monografia (Mestrado em Letras. Três Corações: Universidade Vale do Rio Verde de Três Corações, 2014., p. 8). Os espaços percorridos pelas personagens de Sing, unburied, sing são perpassados não apenas por questões de gênero, mas, principalmente, por questões raciais.

Bois Sauvage, cidade fictícia, é um local onde negros podem morrer devido a uma aposta, como Given, e também é um lugar no qual as autoridades podem considerar esse assassinato apenas um acidente de caça. É um espaço no qual, se um negro for visto em um lugar com placa de não invasão, ele será perseguido por um proprietário branco com arma na mão. Um lugar onde ser negro e pobre pode condená-lo a Parchman, a penitenciária:

Esse era o nosso mundo inteiro: a longa fila. Homens espalhados pelos campos, os atiradores de confiança espreitando a borda, o motorista em sua mula, o interlocutor gritando para o sol, lançando sua música de trabalho. Como uma rede de pesca. Nós capturados e lutando (Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa).8 8 “That was our whole world: the long line. Men strung out across the fields, the trusty shooters stalking the edge, the driver on his mule, the caller yelling to the sun, throwing his working song out. Like a fishing net. Us caught and struggling.”

Bois Sauvage representa a realidade de diversas cidades da América, inclusive no Brasil, onde a morte de um negro não passa de notícia corriqueira para uma sociedade racista.9 9 Na literatura brasileira, existem diversas autoras que representam o racismo estrutural. Entre elas, podemos citar: Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Eliana Alves da Cruz, entre outras.

Contudo, o enredo mostra que esse racismo não está presente apenas na cidade. Ele se estende às estradas percorridas durante a viagem da família. A aventura é decidida por Leonie que, nutrindo um amor doentio por Michael, decide levar os filhos e sua amiga branca Misty, com quem se drogava, em uma jornada pelo Mississippi. As ações da personagem mostram que ela não resiste à tentativa de juntar a família toda, mesmo que, no fundo, não seja o desejo dela de permanecer dessa maneira. Ela reúne os filhos para mostrar a Michael uma falsa noção familiar, uma vez que sente o desejo apenas de pertencer a ele.

Esse não pertencimento à família é representado ao longo de toda viagem, durante a qual Leonie está deslocada, confusa e problemática: a relação entre ela e Michael não é calma, porquanto estão envoltos em uma cortina de racismo, uma vez que os pais brancos dele não a aceitam e seu irmão havia sido morto por um primo dele. Seus filhos não eram a prioridade, portanto Jojo e Kayla pertenciam muito mais um ao outro e aos avós do que aos pais. Por fim, Leonie herdara de sua mãe a capacidade de ver os mortos, o que a deixava angustiada.

Na estrada, eles enfrentam diversos desafios e encontros acontecem, por exemplo, Kayla adoece e assim permanece por todo caminho. O adoecimento da criança intensifica o mal-estar que todos os viajantes sentem, e, ao mesmo tempo, evidencia a desconexão familiar quando apenas Jojo pode acalmá-la e ajudá-la, pois a menina não aceita a mãe. A falta de afetividade dela com os filhos pode ser percebida na frustação de Leonie ao vê-los de fora, como uma estranha:

‘Sinto muito que você se sinta doente’, diz Jojo, e Michaela começa a chorar. Ele acaricia as costas dela e ela acaricia as dele, e eu fico ali, vendo meus filhos confortarem uns aos outros. Minhas mãos coçam, querendo fazer alguma coisa. Eu poderia estender a mão e tocá-los, mas não o faço. Jojo parece meio confuso, meio estóico, meio como se fosse começar a chorar. Eu preciso de um cigarro. Eu me agacho ao lado de Misty no bloco de concreto e fumo um cigarro: o mentol me sustenta, empilha sacos de areia na minha espinha. Eu posso fazer isso. Espero até a nicotina bater em minhas entranhas como um lago plácido, e então volto para o carro

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa)10 10 “I’m sorry you feel sick,” Jojo says, and Michaela begins to cry. He rubs her back and she rubs his, and I stand there, watching my children comfort each other. My hands itch, wanting to do something. I could reach out and touch them both, but I don’t. Jojo looks part bewildered, part stoic, part like he might start crying. I need a cigarette. I squat next to Misty on the concrete block and bum a smoke: the menthol shores me up, stacks sandbags up my spine. I can do this. I wait until the nicotine laps at my insides like a placid lake, and then I go back to the car.”

A relação entre os irmãos mostra que corpos negros podem viver outras emoções além de sentir apenas dor e sofrimento, como geralmente são representados. Eles cuidam e amam um ao outro, já que Kayla e Jojo incorporam a afeição em forma de proteção e cuidado, mesmo à margem do amor materno. A mãe permanece em um limbo de paixão por Michael e de dor pelo irmão morto e pela mãe doente, deixando de lado e sentindo raiva dos filhos. Eles são quase incidentais um na vida do outro e, ao final do romance, nada dessa relação é resolvida, com o desaparecimento de Michael e Leonie, deixando os filhos aos cuidados do avô enlutado pela morte da esposa. Enquanto mãe e filhos se isolam, cada um sofrendo a tragédia de suas existências e a presença de seus fantasmas e visões fantasmagóricas, a dor vai, aos poucos, compondo a história, preenchendo de vazio o automóvel.

Na narrativa de Jojo, por sua vez, vemos a mãe pelo prisma do filho, o qual, durante a jornada, revela que ela os ama, mas está incapacitada por algo que não a faz conseguir encaixar Michael e eles ao mesmo tempo em sua vida. Sua relação com os filhos é quase um apagamento, sempre distante e raivosa:

E então Leonie ri, e mesmo que seja uma risada, não soa como uma. Não há felicidade nela, apenas ar seco e barro vermelho duro onde a grama não cresce. Ela se vira e ignora todos nós e olha pelo para-brisa dianteiro, gomoso com respingos de insetos, de modo que ela nem sequer vê quando Kayla se assusta, seus olhos arregalados, e vomita, marrom e amarelo e volumoso, vem disparando pela sua boca e por todo o encosto do banco da frente, por todas as suas perninhas e sua camiseta vermelha e branca dos Smurfs e em mim, porque estou puxando-a para fora do assento e para o meu colo

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa)11 11 “And then Leonie laughs, and even though it’s a laugh, it doesn’t sound like one. There’s no happiness in it, just dry air and hard red clay where grass won’t grow. She turns around and ignores all of us and looks out the front windshield, gummy with bug splatter, so she doesn’t even see when Kayla startles, her eyes open wide, and throw-up, brown and yellow and chunky, comes shooting out her mouth and all over the back of the front seat, all over her little legs and her red-and-white Smurfs shirt and me because I’m pulling her up out of her seat and into my lap.”

Os vômitos de Kayla vão aparecer corriqueiramente ao longo da viagem, como se fossem um sintoma de alguma doença sobrenatural presente dentro do automóvel. Depois, quando pegam Michael na cadeia e estão retornando para casa, a doença se estende à mãe, que é forçada a vomitar para evitar uma overdose, porquanto precisou engolir a droga que trazia ao serem parados pela polícia. O clima da narrativa é, portanto, intenso e doente, carregado dos fantasmas dos mortos e dos vivos que vivem sob o manto do racismo e dos preconceitos, sofrendo suas consequências.

Leonie é observada pelo irmão durante toda a viagem, que assiste aos sentimentos e à dor da irmã em silêncio. Enquanto isso, Richie aparece para Jojo quando ele chega na prisão, onde já estava há algum tempo, e passa a intercalar sua voz com a narrativa de Jojo e Leonie. Os fantasmas matizam o enredo e transformam o road novel em uma narrativa misteriosa e fantástica, conectando a vida terrena ao pós-morte mítico. Nesse cenário, Richie é um fantasma que tenta entender o período que ficou em Parchman até sua morte:

Eu pensei que estava em um sonho ruim. Eu pensei que se eu cavasse, dormisse e acordasse de novo, eu estaria de volta no novo Parchman, mas em vez disso, quando eu dormi e acordei, eu estava no Delta antes da prisão, e os nativos estavam variando sobre aquela terra rica, caçando e fazendo pausas para jogar stickball e fumaça. Desnorteado, eu cavado e dormi e acordei para o novo Parchman novamente, para os homens que usavam seus cabelos longos e trançados em seus escalpos, que se sentaram por horas em pequenos quartos sem janelas olhando para grandes caixas pretas que transmitiam sonhos... Eu me escondi, dormi e acordei muitas vezes antes de perceber que essa era a natureza do tempo

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa).

Cada personagem dentro do automóvel, seja vivo ou fantasma, vivencia o não-dito presente no silêncio e no mal-estar constante, o qual revela-se um impedimento à felicidade e à mobilidade de cada um.

Nesse romance de estrada viajam três gerações e seus fantasmas, assombrando o retrato comum de uma família. Jojo e Kayla estão na estrada forçados pela mãe, o menino tem interesse apenas em proteger a irmã, ansiando voltar ao avô, uma vez que a viagem é, para ele, desconfortável. Para Richie, a viagem era uma busca por resposta, já que tudo o que ele queria era encontrar o avô de Jojo e descobrir por que ele foi abandonado por ele. Entre esses dois narradores, o passado perpassa como forma de perdão, de resolução e de conflito, em razão de Richie acompanhar Jojo até River, onde descobre o porquê de ter sido morto, quando o avô consegue externar essa assombrosa morte e se libertar da dor do trauma.

A mãe, por sua vez, é quem enfrenta a estrada como espaço de medo palpável que se projeta no fantasma do irmão e na sua convicção de que a morte dele, as questões raciais, o adoecimento da mãe com um câncer após a morte de Given, formam um paralelo de sua dor pessoal. Ao longo da estrada, ela sente seu corpo repleto de buracos de bala, com a morte avançando na medula de seus ossos, pois o trauma de ser negro nos Estados Unidos tem um poderoso efeito, devastador e injusto, na alma e no corpo da narradora.

O romance desvenda, assim, a complexa história das vidas negras no continente norte-americano, com seu legado de escravidão que reverbera de maneira palpável na vida de cada personagem, desde Pop, aquele que vivenciou um período mais opressor e cruel, até Jojo, que tem seu futuro moldado pelo preconceito e o racismo. Nas personagens há sempre uma ansiedade simultânea do passado com o presente, e um é visto pelo fantasma do outro. Na habilidade sobrenatural herdada por Jojo de sua mãe e avó, ele ouve uma “música” misteriosa que ressoa esse passado:

Eles nunca são silenciosos. Sempre presente é o seu canto: eles não movem a boca e, no entanto, vem deles. Cantando na luz amarela. Vem da terra negra e das árvores e do céu sempre iluminado. Ela vem da água. É a música mais linda que já ouvi, mas não consigo entender uma palavra

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p. tradução nossa).12 12 “They are never silent. Ever present is their singing: they don’t move their mouths and yet it comes from them. Crooning in the yellow light. It comes from the black earth and the trees and the ever-lit sky. It comes from the water. It is the most beautiful song I have ever heard, but I can’t understand a word.”

O canto que se apresenta é uma visão de uma cidade mística e utópica na qual os povos massacrados e destruídos pelos horrores da escravidão e do colonialismo podem viver. A canção fantasmagórica em Sing, unburied, sing, se soma às visões dos fantasmas, transformando a jornada em uma viagem entre a dor e o desconcerto das personagens frente à história de seus antepassados.

Há uma desigualdade nas três vozes narrativas que desfoca a viagem, tornando-a quase um tormento na vida de cada um. São vozes confusas e suas interações são desiguais, mas todas as três sofrem de diferentes maneiras. Quando Richie começa a permanecer mais no enredo, mãe e filho começam a mergulhar cada vez mais forte no sobrenatural, com os espíritos surgindo em busca de redenção:

[A]cho que isso só acontece quando a morte é ruim. Violenta. Os velhos sempre me disseram que quando alguém morre mal, às vezes é tão horrível que nem Deus pode suportar ver, e então metade do seu espírito fica para trás e vagueia, querendo paz como um homem sedento busca água” (Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa).13 13 “I think that only happens when the dying’s bad. Violent. The old folks always told me that when someone dies in a bad way, sometimes it’s so awful even God can’t bear to watch, and then half your spirit stays behind and wanders, wanting peace the way a thirsty man seeks water.”

Enquanto a mãe é torturada por essa capacidade para o sobrenatural, Jojo reconhece e suporta o passado doloroso, não como uma maldição, mas uma realidade a ser abraçada e compreendida.

Ao retornar da viagem em família e chegar em casa, Jojo encontra a morte da avó, o abandono dos pais e uma árvore repleta de espíritos entoando a música cada vez mais alta: “Eles estão cheios de fantasmas, dois ou três, até o topo, até as folhas emplumadas. Há mulheres e homens e meninos e meninas. Alguns deles perto de bebês. Eles se agacham, olhando para mim” (Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa).14 14 “There are women and men and boys and girls. Some of them near to babies. They crouch, looking at me.” Ele vislumbra suas histórias, os linchamentos, os estupros, os assassinatos, as torturas que sofreram e a narrativa encerra entoando esse canto. Esses fantasmas reforçam a representação dos injustiçados na obra de Ward, um road novel que, protagonizado por personagens negros, permite o canto daqueles que não puderam viajar, daqueles que não puderam dizer, da vida daqueles que foram massacrados na trajetória do colonialismo do homem branco.

Espíritos que vagam: a representação do trauma na automobilidade do corpo negro

A automobilidade é a capacidade de um corpo movimentar-se no espaço, partindo da premissa de que a mobilidade é parte inerente do desejo de viver do ser humano. Padeiro (2018, n.p.)Padeiro, Miguel. Dominação e reprodução da automobilidade: a rede de auto-estradas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Finisterra, LIII, 108, 2018, pp. 161 -188, ISSN: 0430-5027. Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/finisterra/article/view/12218/12456. Acesso em 02 dez. 2023.
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afirma que a “automobilidade tem-se reforçado ao longo do tempo, contribuindo para um conjunto de alterações sociais, culturais e geográficas.” É sob a possibilidade de colocar o corpo em movimento na estrada que os autores produziram as experiências necessárias para a escrita dos road novels, como se a estrada pudesse dar-lhes uma liberdade que somente era possível ao se pôr em movimento.

Entretanto, a noção de liberdade nas estradas é negada no romance de Ward em análise conforme as personagens avançam, e é questionada por meio do mal-estar constante delas dentro do automóvel. O/A leitor/a é conduzido/a a acompanhar essa família assombrada e a se deparar com encontros que desestabilizam, questionam, confrontam e reforçam que a liberdade da estrada não é para todos, já que muitos vivenciam os preconceitos e as injustiças.

De um lado, há personagens que vivenciam o paradoxo da imobilidade dentro de um carro em movimento, que tem efeitos assombrosos no corpo dos passageiros, enquanto de outro, o caminho percorrido reforça a política social dinâmica que se sustenta a partir de concepções racistas, e que sujeitam pessoas negras à violência, à imobilização, à desconfiança. Essa é uma das principais características da ruptura sofrida pelo road novel nas mãos da autora, uma vez que ela faz uma representação da imobilidade do corpo negro por meio de duas das figurações mais significativas no imaginário estadunidense: a viagem e o carro.

A estrada representa um espaço enquanto função histórica, construída pelo Estado e com leis sociais delimitadas. É, portanto “um espaço contestado onde os corpos negros são policiados” (Dib, 2020Dib, Nicole. Haunted Roadscapes in Jesmyn Ward’s Sing, Unburied, Sing. MELUS: Multi-Ethnic Literature of the United States, 2020. Disponível em: <https://www.academia.edu/43691551/Haunted_Roadscapes_in_Jesmyn_Ward_s_Sing_Unburied_Sing>. Acesso em 07 set. 2023.
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, p. 136, tradução nossa),15 15 “[T]he road is a contested space where black bodies are policed.” e nele está presente outra estrada, uma de memórias violentas que são representadas, no romance, pelos fantasmas. A automobilidade negra aqui é assombrada, é uma experiência realista transpassada por figurações de um passado violento e duradouro, permanente ainda no presente e com sombras projetadas no futuro.

Dessa maneira, a autora problematiza os limites definidos para um deslocamento livre nas estradas estadunidenses, expondo que a mobilidade negra é representada por lugar algum, criticando a imobilização a que são sujeitados. Ao fazer uso do gênero literário representativo de liberdade para a cultura estadunidense, que defende o livre deslocamento, Ward trabalha com o paradoxo do sujeito viajante que é impedido pela própria sociedade de transitar. O road novel de Ward emerge como uma assombração na história da sociedade e da cultura estadunidense, pois a estrutura de uma narrativa de viagem – tão simbólica para a literatura norte-americana – representa aqui a “morte prematura,” termo de Ruth Gilmore (2007)Gilmore, Ruth Wilson. Golden Gulag: Prisões, Excedente, Crise e Oposição na Globalização da Califórnia. Inserir Cidade:[A13] U da Califórnia P, 2007. para o que resulta das estruturas racistas. O romance retrata a violência real à qual os negros estão sujeitos todos os dias e nem mesmo o automóvel e a estrada permitem que as personagens sejam isentas de uma construção tão forte quanto o racismo estrutural.

Em uma só viagem, Ward une o passado ao presente, trazendo à tona as injustiças raciais, complementando a vida e a morte em uma narrativa dolorosa. Isso pode ser observado pela presença insistente das histórias que acompanham os viajantes: o assassinato de Given; a história que o avô conta ao Jojo sobre seu tempo em Parchman; a passagem de seu tataravô que retoma o legado do tráfico negreiro. Os sujeitos negros viajando dentro do automóvel na obra de Ward são assombrados, caçados e policiados. A automobilidade negra não poderia ser, portanto, da mesma maneira que é para os brancos. Segundo Gary Totten (2015, n.p.)Totten, Gary. African American Travel Narratives from Abroad: Mobility and Cultural Work in the Age of Jim Crow. Inserir Cidade:[A18] U of Massachusetts P, 2015., há diferentes modos de viagem que “organizam corpos e experiências negras de maneiras específicas, influenciando assim o trabalho cultural dessas narrativas e o espaço discursivo que elas proporcionam para a exploração da identidade.” O autor define, portanto, um tipo de automobilidade que detém uma forma específica de cultura no imaginário estadunidense, algo que é dificultado ou negado para sujeitos minoritários. Desse modo, a obra de Ward (2017)Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017. reforça a importância da automobilidade e da geografia negra como parte da história que a tradição do road novel marginaliza, reforçando, portanto, que a estrada não é vivida por todos da mesma maneira.

A viagem como um empreendimento masculino é algo profundamente enraizado no imaginário social e cultural estadunidense, deixando de considerar as viagens feitas pelas mulheres, mas também desconsiderando outros viajantes que não se enquadram na tríade tradicional – homem, branco e heterossexual. Conforme aponta Sidonie Smith (2001, n.p.)Smith, Sidonie. Moving Lives: Twentieth-Century Women’s Travel Writing. Inserir Cidade:[A17] U of Minnesota P, 2001., “se viajar, estar na estrada, faz de um homem um homem – e torna a masculinidade e seu poder visíveis – o que faz de uma mulher uma mulher, que é ao mesmo tempo lar e casa?”. Essa imagem, uma construção social deixada para trás pelos homens ao saírem em suas aventuras pelas estradas, é revista pela literatura de autoria feminina, que tem questionado os espaços e os papeis de mulheres ao se colocarem na estrada.

Ward, no entanto, acrescenta a questão racial como um ponto a ser considerado nos limites das mobilidades dos viajantes marginalizados. Isso porque, para mulheres negras viajantes como Leonie, sua condição de sujeito marginalizado é intensificada por uma vigilância constante, sempre à sombra da suspeita, ameaçada pelo medo, tanto na casa quanto na estrada. As restrições das estradas criadas para o sujeito negro podem ser observadas no The negro motorist Green book,16 16 A primeira edição do guia de Green foi publicado em 1936 e tinha como foco Nova York. Depois, foi expandido para abarcar quase todo os Estados Unidos e parte do Canadá, México, Caribe e Bermudas. O guia se tornou uma verdadeira bíblia aos viajantes durante o período em que a segregação era permitida. A publicação cessou após aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964, que proibiu os tipos de discriminação racial que a haviam tornado necessária, a publicação cessou e caiu na obscuridade. , um guia publicado entre 1936 a 1966 por Hugo Green no período das leis Jim Crow, que mantinha a discriminação aberta e legalmente prescrita. Apesar de limitados pela marginalização e pobreza, que circunscreviam o poder de compra dos negros, aos poucos começou a emergir a classe média afro-americana que comprava automóveis para, em parte, evitar a segregação no transporte público. Era uma ação feita, segundo George Schuyler (1930, n.p.)Schuyler, George. African-Americans Take to the Open Road. In: Franz, Kathleen; Smulyan, Susan. Major Problems in American Popular Culture. Inserir Cidade:[A16] Cengage Learning, 2011., por “todos os negros que podiam comprar um automóvel o mais rápido possível para se livrar do desconforto, discriminação, segregação e insulto.”

Entretanto, na estrada eles viviam diversos perigos, como a dificuldade em comprarem alimento e hospedagem, em consertarem seus automóveis, além da ameaça de violência e de prisão sem motivo evidente que sofriam. Por isso, o guia de GreenGreen, Victor Hugo. The negro motorist green book. New York: Green & Co, 1938. foi pensado como resposta às dificuldades enfrentadas pelos motoristas negros, e nele havia serviços e lugares que, de alguma maneira, eram receptivos a essa população. Era um livro “para dar ao viajante negro informações que o impedirão de passar por dificuldades, constrangimentos e tornar sua viagem mais agradável” (Franz; Smulyan, 2011Franz, Kathleen; Smulyan, Susan. Major Problems in American Popular Culture. Inserir Cidade:[A12] Cengage Learning, 2011., n.p.). Muitos definiam o livro de Green como uma espécie de universo paralelo, um roteiro secreto e mais ou menos seguro para a mobilidade negra.17 17 Um exemplo do uso desse guia Green pode ser visto na série Lovecraft Country, da HBO.

Assim, antes das conquistas do Movimento dos Direitos Civis, os viajantes negros viviam problemas que não eram conhecidos pela maioria dos brancos, com a mobilidade restringida, em uma estrada transformada em espaço hostil. A lei Jim Crow, aplicadas em algumas cidades dos Estados Unidos, promulgava o perigo que circundava os afro-americanos que permanecessem fora de casa após o pôr-do-sol. Por exemplo, os departamentos policiais criaram um perfil de motorista chamado “dirigindo enquanto negro”,18 18 “Driving While Black” (DWB) é uma descrição irônica e preconceituosa do perfil racial de motoristas afro-americanos. Isso implica que um motorista pode ser parado por um policial em grande parte por causa do preconceito racial, e não por qualquer violação aparente da lei de trânsito. que permitia aos policiais interceptarem motoristas apenas por sua cor.

A família de Jojo sente o medo dessa ameaça constante sobre o que poderia acontecer na estrada, que é perigosa para pessoas negras e assombrada por memórias difíceis que pertencem a eventos traumáticos e fantasmagóricos. Esse trauma se estende ao presente, culminando em um confronto aterrorizante com um policial quando a família retorna para Bois Sauvage. Esse encontro serve para negar qualquer liberdade para o corpo negro, mesmo que o carro estivesse dirigindo na direção oposta à prisão. O tom escolhido para narrar essa cena causa certo horror no/a leitor/a, deixando a atmosfera ainda mais carregada:

Estou dormindo e não sei até que Michael está me acordando, seus dedos cavando em meu ombro. Minha boca está tão seca, meus lábios estão selados. “A polícia”, diz Michael. A estrada atrás de nós está vazia, mas a tensão em sua mão e a maneira como seus olhos se arregalam e reviram me fazem saber que isso é sério. Mesmo que eu não possa vê-los e não ouvir nenhuma sirene, eles estão lá [...] Olho pelo retrovisor e Jojo está olhando diretamente para mim. [...] “Não tenho tempo”, diz Michael. Ele está tateando no tapete, prestes a enfiar o saquinho de plástico pela portinha no chão do carro, [...] eu enfio na boca. Eu preparo um pouco de cuspe e engulo. [...] “Aonde vocês vão?” o oficial pergunta. Ele não está com o talão de passagens na mão, e eu sinto o medo, que está rolando na minha barriga, subir pela minha garganta e queimar como ácido, empurrar o saco em sua lenta descida até o meu estômago. “Casa”, eu digo. “Para a costa.” “De onde vocês estão vindo?” “Parchman.” Eu sei que é um erro assim que eu digo isso. Eu deveria ter dito outra coisa, qualquer outra coisa: Greenwood ou Itta Bena ou Natchez, mas Parchman é tudo o que vem. As algemas estão em mim antes que fique em silêncio. [...] O policial volta para o carro, faz Michael sair, o algema e o leva de volta para se sentar ao meu lado. [...] Jojo desce do carro, Michaela se agarra a ele, apertando-o com as pernas: ela tem os braços em volta do pescoço dele. [...] O oficial gesticula para Misty pegar Michaela, [...] É fácil esquecer como Jojo é jovem até vê-lo ao lado do policial. É fácil olhar para ele, sua altura magrinha, a barriga grossa, e pensar que ele cresceu. Mas ele é apenas um bebê. E quando ele começa a enfiar a mão no bolso e o policial aponta a arma para ele, aponta para seu rosto, Jojo não é nada além de uma criança de joelhos gordos e pernas arqueadas. Eu deveria gritar, mas não posso. [...] Jojo balança a cabeça sem parar e cambaleia quando o oficial abre as pernas com um chute, a arma um pouco mais baixa agora, mas ainda apontada para o meio das costas. [...] Eu estalo. Imagino meus dentes no pescoço do oficial. Eu poderia rasgar sua garganta. Eu não preciso de mãos. Eu poderia chutar seu crânio macio. Jojo cai para a frente na grama, e o policial está balançando a cabeça, [...] “Eu preciso de sua permissão para revistar o carro, senhora.” “Tire-me dessas algemas.” Se ele chegasse perto o suficiente, eu poderia dar uma cabeçada nele até ficar cego. “Isso é um sim, senhora?” Eu engulo, respiro. Ar raso como uma poça de lama. “Sim.”

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p. tradução nossa).19 19 “I’m asleep and I don’t know it until Michael is shaking me awake, his fingers digging into my shoulder. My mouth is so dry, my lips are sealed shut. “The police,” Michael says. The road behind us is empty, but the tension in his hand and the way his eyes widen and roll make me know this is serious. Even though I can’t see them and don’t hear any sirens, they are there. [...] I look in the rearview and Jojo is looking straight at me. [...] “I don’t have time,” Michael says. He’s fumbling for the carpet, about to shove the plastic baggie out of the little door in the floor of the car, [...] I shove it in my mouth. I work up some spit, and I swallow. [...] “Where y’all going?” the officer asks. He doesn’t have his ticket book in his hand, and I feel the fear, which has been roiling in my belly, rise in my throat and burn hot like acid, push against the baggie on its slow descent down to my stomach. “Home,” I say. “To the coast.” “Where y’all coming from?” “Parchman.” I know it’s a mistake soon as I say it. I should have said something else, anything else: Greenwood or Itta Bena or Natchez, but Parchman is all that comes. The handcuffs are on me before the silent. [...] The officer walks back to the car, makes Michael get out, puts him in handcuffs, and marches him back to sit next to me. [...] Jojo climbs out of the car, Michaela hanging on to him, squeezing him with her legs: she has her arms wrapped tightly around his neck. [...] The officer gestures for Misty to take Michaela [...] It’s easy to forget how young Jojo is until I see him standing next to the police officer. It’s easy to look at him, his weedy height, the thick spread of his belly, and think he’s grown. But he’s just a baby. And when he starts reaching in his pocket and the officer draws his gun on him, points it at his face, Jojo ain’t nothing but a fat-kneed, bowlegged toddler. I should scream, but I can’t. [...] Jojo shakes his head without pausing and staggers when the officer kicks his legs apart, the gun a little lower now, but still pointing to the middle of his back [...] [...] I snap. Imagine my teeth on the officer’s neck. I could rip his throat. I don’t need hands. I could kick his skull soft. Jojo slumps forward into the grass, and the cop is shaking his head, [...] “I need your permission to search the car, ma’am.” “Take me out of these cuffs.” If he would come close enough, I could head-butt him blind. “Is that a yes, ma’am?” I swallow, breathe. Air shallow as a muddy puddle. “Yes.”

No início dessa citação, percebemos que, mesmo não visível, a presença da polícia atinge cada viajante dentro do automóvel como uma doença compartilhada. O poder assombroso que esse símbolo tem em cada um simultaneamente reafirma uma cicatriz psicológica, um desconforto e uma tensão constante. Quando o policial finalmente se presentifica e pede para que parem, a conversa de Leonie com ele revela todo o preconceito existente, como a reação intensa e exacerbada dele ao ouvir que eles vinham de Parchman. Nesse momento, Leonie enfrenta dois problemas: as ações do policial ao admitir de onde vinham e a possível overdose que estava preste a sofrer, uma vez que ela engole as drogas a fim de escondê-las.

Aqui há uma configuração figurativa sobre o corpo de Leonie, pois ela, uma mulher negra que tinha muito mais medo de estar ali na estrada, consome o risco provocado pela sua amiga branca e seu namorado branco, os quais tinham interesse em vender e transportar a droga. Essa situação se intensifica quando Jojo é algemado e a partir desse momento ele passa a sofrer a violência temida, correndo o risco de se transformar no que Richie é, um fantasma de um jovem negro morto. O medo permanece dentro do automóvel mesmo depois de serem liberados pelo policial e estarem rodando na estrada por algum tempo. Eles ainda sentem as algemas no pulso, uma coceira e um formigamento no corpo.

W. E. B. Du Bois (1921, n.p.)Du Bois, W. E. B. Hopkinsville, Chicago, and Idlewild. Inserir Cidade:[A11] Crisis 22, 1921., um escritor negro, observou que a “discriminação racial sempre recorrente” fez com que viajar fosse um empreendimento difícil para a população negra. Eles precisavam, portanto, lidar com a discriminação na estrada, além de enfrentarem riscos físicos devido às regras de segregação que mudavam de lugar para lugar. Até mesmo etiquetas de condução foram criadas. Por exemplo, em Delta do Mississipi era proibido que negros ultrapassassem brancos, para não levantar poeira que cobrisse os carros deles.

Aos poucos foram surgindo narrativas de viagens de autores negros que representavam o mal-estar e o perigo que eles enfrentavam, mostrando o outro lado da estrada em relação às narrativas de liberdade escritas pelos homens brancos, que exaltavam a alegria da automobilidade, como vemos em This is my country too (1996), de John Williams. Além disso, os “viajantes brancos não têm ideia de quanta ousadia e coragem são necessárias para um negro dirigir de costa a costa na América” (Primeau, 1996Primeau, Ronald. Romance of the Road: The Literature of the American Highway. [S.l.]: Bowling Green State University Popular Press, 1996., n.p.). E o caminho de liberdade, supostamente um “espaço social democrático” para todos, na verdade é um “campo racial minado” (Seiler, 2012Seiler, Cotten. So That We as a Race Might Have Something Authentic to Travel By: African-American Automobility and Cold-War Liberalism." In: Slethaug, Gordon E.; Ford, Stacilee (eds.). Hit the Road, Jack: Essays on the Culture of the American Road. McGill-Queen's Press, 2012., n.p.). Em ambas afirmações, podemos considerar a estrada enquanto um espaço contestado, no qual é refletida a dificuldade de apropriação por parte de viajantes negros. No romance, a jornada material é construída pelos preconceitos que funcionam como um controle mental dos membros da família.

O papel desempenhado pelo automóvel ao longo do romance pode ser interpretado através da perspectiva de Lynne Pearce, mais especificamente no que ela chama de evento de condução, que são as experiências e os sentimentos criados pelas diferentes vivências de condução por parte do viajante. São eventos que criam “a necessidade de calibrar a natureza e a duração da jornada material com a consciência do motorista de forma mais dinâmica” (Pearce, 2016Pearce, Lynne. Drivetime: Literary Excursions in Automotive Consciousness. Edinburgh: Edinburgh UP, 2016., n.p.). A história do encarceramento de Richie, por exemplo, se transforma em um evento de condução, isto é, ela perpassa toda a viagem e, por conseguinte, a narrativa.

Esse evento é narrado por uma multivocalidade, porquanto a história é contada pelo avô ao Jojo, pelo próprio Jojo e por Richie, somando informações que emergem em segmentos ao longo de toda viagem em família:

Eu deito minha cabeça no banco do carro de Leonie, esfregando a bolsa que Pop me deu, e me pergunto se ele já deu um saquinho, cheio de coisas para equilibrar, para mais alguém e então ouço Pop: Richie não foi feito para trabalhar

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., grifos da autora, tradução nossa).20 20 “I lay my head on the seat in Leonie’s car, rubbing the pouch Po p gave me, and wonder if he ever gave a small sack, full of things to balance, to anyone else. His brother, Stag? Mam? Uncle Given? Or even the boy Richie? And then I hear Pop: Richie wasn’t built for work.”

Esse trecho exemplifica como o espaço da condução é utilizado para resgatar a memóra sobre Richie, pois mesmo o avô não estando no carro com Jojo, ele ainda o ouve. O evento dessa viagem narrada pelas múltiplas vozes “transmite uma ansiedade visceral que se torna um atributo da viagem afro-americana contemporânea” (Dib, 2020Dib, Nicole. Haunted Roadscapes in Jesmyn Ward’s Sing, Unburied, Sing. MELUS: Multi-Ethnic Literature of the United States, 2020. Disponível em: <https://www.academia.edu/43691551/Haunted_Roadscapes_in_Jesmyn_Ward_s_Sing_Unburied_Sing>. Acesso em 07 set. 2023.
https://www.academia.edu/43691551/Haunte...
, p. 142, tradução nossa).21 21 “[C]onveys a visceral anxiety that becomes an attribute of the contemporary African American road trip.” Ao fazer essa relação entre presente e passado, Ward evidencia que a estrada funciona para os viajantes negros como um espaço policiado, no qual estão sujeitos à violência.

Além dessa viagem física, também ocorre a viagem por meio das drogas, que estão sempre presentes no enredo: Michael é preso por vender drogas; a viagem até a cadeia tem como objetivo vender drogas; Leonie é viciada. A jornada é desconectada, isto é, embora presente fisicamente, a mãe é ausente na medida em que troca os filhos pelas drogas, o que podemos observar na maneira que Jojo a chama pelo nome, reconhecendo que ela é “mais desaparecida do que presente.”

A road trip movida por entorpecentes ocupa um espaço específico na cultura norte-americana, dado que “para viajantes autorizados, a cultura das drogas e as viagens de drogas são vistas como transgressoras e contraculturais”, como vemos, por exemplo, em On the road (1957), de Jack Kerouac, cujas personagens estão sempre se drogando em um rompente de libertação. Essa mesma visão pode ser vista em Misty, a amiga branca que acompanha Leonie na viagem: “É melhor você aproveitar. Ouço as quatro palavras repetidas vezes quando entramos no carro e vejo Misty colocar o pacote no bolso sob as tábuas do assoalho. É melhor você aproveitar” (Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p., tradução nossa).22 22 “You better take advantage. I hear them four words over and over again when we get in the car and I watch Misty put the package in the pocket under the floorboards. You better take advantage.” No entanto, para uma pessoa negra, as drogas não são vistas pela sociedade com o mesmo conceito; elas são sinônimos de decadência, de desordem, de prisão e de morte.

Durante a jornada, essas duas mulheres enxergam a estrada de maneiras diferentes. Por exemplo, Misty e Leonie possuem atitudes distintas sobre como evitar os riscos da estrada: Misty aponta para cima e há um outdoor. Mendenhall, lê-se, “Home of Mississippi’s Most Beautiful Courthouse.” Misty quer parar, “e se for muito bonito?” enquanto Leonie continua dirigindo, ignorando o outdoor, começando um devaneio sobre quando Michael lhe conta sobre o tempo que passa em Parchmann, “Aqui não é lugar para homem. Preto ou branco. Não faz diferença. Este é um lugar para os mortos” (Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p)23 23 “This ain’t no place for no man. Black or White. Don’t make no difference. This a place for the dead.” . Nesse caso, o outdoor é visto por ambas, mas, devido à Leonie ter internalizado a experiência de Michael, ela consegue entender a diferença da “bela” fachada em relação à realidade do sistema carcerário.

Essas divergências se estendem ao longo da estrada, conforme se aproximam da prisão, mostrando que a cor e o aprisionamento transformam as percepções da estrada. Novamente outra placa surge, observada por Jojo:

[P]assamos por outra placa, velha e de madeira, que diz “Bem-vindo à Parchman, Sra.” E então: Coca-Cola! Mas quando saímos do carro no estacionamento, os pássaros viraram para o norte, esvoaçaram no horizonte. Eu ouço o final de sua tagarelice, de todas aquelas vozes chamando ao mesmo tempo, e eu gostaria de poder sentir sua excitação, sentir a alegria da ascensão, a oscilação no azul, o grande voo, o retorno para casa, mas tudo o que eu sinto é uma bola sólida de algo no meu intestino, pesada como a cabeça de um martelo

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p. tradução nossa).24 24 “[A]s we pass another sign, old and wooden, that says Welcome to Parchman, Ms. And then: Coke is it! But by the time we get out of the car in the parking lot, the birds have turned north, fluttered over the horizon. I hear the tail end of their chatter, of all those voices calling at once, and I wish I could feel their excitement, feel the joy of the rising, the swinging into the blue, the great flight, the return home, but all I feel is a solid ball of something in my gut, heavy as the head of a hammer.”

Nesse cenário, o anúncio mal posicionado do refrigerante evidencia um abandono representado por signos metatextuais que fazem referência à desigualdade, reforçando que o que é justiça para alguns é prisão para outros. Os efeitos dessa prisão se estendem para fora dela, como vemos no retorno para casa e no final da história de River e de Richie, que eram contadas ao longo do romance em textos em itálicos. Agora, a revelação é multivocal, com os dois contando a Jojo sobre o momento final de Richie, e o neto descobrindo que River havia matado Richie para poupá-lo da tortura a que seria submetido.

A presença da morte, vivenciada durante toda a trajetória, se concretiza quando eles chegam na casa dos avós e a personagem Leonie precisa ajudar sua mãe nos rituais do além-vida, com a auxílio do fantasma do irmão, Given. A narrativa dela se encerra despedindo-se deles, e abraçando o automóvel como seu ponto de fuga. Mesmo com Michael de novo em sua vida, ela não consegue se afastar do vício e a narrativa não deixa entrever um futuro diferente, permanecendo em seu ciclo vicioso, que se estende, metaforicamente, ao automóvel, como observamos quando ela e Michael dirigem até a próxima coleta de drogas:

Ele me coloca no banco do passageiro, fecha a porta e sobe ao volante. O carro encolhe o mundo para isso: eu e ele nesta cúpula de vidro [...] “Só uma carona”, diz Michael. Mas eu sei que se eu continuar a pedir, azedo o ar do carro com agrados, ele vai [...] tão longe que o horizonte se abre como uma concha de ostra descascada. Que se eu pedir, ele irá. Porque algo nele também quer deixar seu abraço choroso com sua mãe, sua briga com seu pai, minha casa lotada de morte, para trás. Avançamos, e o ar das janelas abertas faz o vidro estremecer, vivo como um leito de moluscos esvoaçando na agitação da maré: um brilho de espuma e areia. Os pneus pegam e cospem cascalho. Damos as mãos e fingimos esquecer

(Ward, 2017Ward, Jesmyn. Sing, unburied, sing. New York: Scribner, 2017., n.p. tradução nossa).25 25 “He puts me in the passenger seat, closes the door, and climbs behind the wheel. The car shrinks the world to this: me and him in this dome of glass [...] “Just a ride,” Michael says. But I know that if I continue to ask, sour the air of the car with pleases, he will [...] drive so far the horizon opens up like a shucked oyster shell. That if I ask, he will go. Because something in him also wants to leave his teary hug with his mother, his fight with his father, my deathcrowded household, behind. We move forward, and the air from the open windows makes the glass shudder, alive as a bed of mollusks fluttering in the rush of the tide: a shimmer of froth and sand. The tires catch and spit gravel. We hold hands and pretend at forgetting.”

No romance, a viagem cumpre o objetivo de buscar o companheiro de Leonie e o pai de seus filhos; permite que a dor e a culpa vivenciada por River, o avô, tivesse um final; possibilita a exposição da violência sistemática que o corpo negro sofre nas estradas; expõe a dificultosa mobilidade desse corpo; e grita seu injusto encarceramento. Essa trágica vida é chamada, por Saidiya Hartman (2007)Hartman, Saidiya. Lose Your Mother: A Journey along the Atlantic Slave Route. Inserir Cidade:[A14] Farrar, Straus and Giroux, 2007., como “vida após a escravidão”, isto é, como as pessoas negras passam a ser vistas e consideradas pela sociedade pelo prisma de sua cor. Dessa maneira, a viagem, que primeiro tinha aquele objetivo simples, se transforma em um veículo de enfrentamento, representação e denúncia da injustiça penal norte-americana e da impossibilidade do deslocamento.

Considerações finais

Sign, unburied, sing começa com Jojo em casa, com a soltura do pai e com um motivo para realizar a viagem em família. Eles se preparam, saem em viagem, enfrentam as dificuldades e depois retornam para casa. Além disso, a autora faz uso da estratégia de perspectivas narrativas: Jojo, o protagonista, sua mãe, Leonie, e o fantasma de um menino morto, Richie, se alternam como narradores da história familiar, assombrada pelos fantasmas do passado. Ao longo da viagem, cada narrador soma suas experiências e percepções sobre a viagem e as histórias do povo negro, como um quebra cabeça que se conclui ao final, quando o fantasma de Richie encontra seu assassino no avô de Jojo. Enquanto isso, Leonie é obrigada a mediar a partida da mãe do plano terreno e Jojo assiste às resoluções dos conflitos, acolhendo a dor dos fantasmas.

Ward, portanto, produz um romance de estrada que trata da impossibilidade de retorno, pois os três narradores, uma mulher negra, seu filho e o fantasma de um menino morto, desafiam o/a leitor/a a entender que, nessa jornada, até mesmo os vivos estão mortos, já que a própria sociedade impede sua mobilidade. Apesar de o romance encerrar sem um final feliz, percebemos que a resiliência de Jojo e a orientação e o carinho de seu avô conseguem dar esperanças de que o futuro dele será diferente do da mãe, do tio e de Richie, mesmo que tenha tido uma experiência ruim na estrada.

O romance amplia as discussões para incluir questões como o racismo; a dificuldade de o corpo negro deslocar-se com a mesma liberdade que o corpo branco; a relação familiar complexa; e a representação do passado doloroso da história das pessoas negras. A narrativa desnuda, portanto, a difícil relação entre o corpo negro e o apropriar-se do espaço, do movimento. Enquanto para o homem branco transitar nas estradas tinha contornos de aventura, liberdade e aprendizado, como se apresenta no enredo de On the road, de Kerouac, em Sing, unburied, sing a suposta noção de que o automóvel poderia proporcionar a todos uma liberdade por meio do deslocamento é questionada constantemente por meio do medo vivenciado pelas personagens ao longo da jornada. Essa estrada do medo pode ser lida pela perspectiva do cronotopo da estrada, de Bakhtin, uma vez que os personagens enfrentam despedidas, separações, perdas, buscas e descobertas entremeio a acontecimentos ao longo do caminho que revelam o racismo estrutural presente na sociedade de Bois Sauvage.

É por meio desses acontecimentos que os personagens, dentro do automóvel, vivenciam o medo de estarem ali fora, enfrentando o preconceito presente na rodovia, no movimento, em suas existências, devido a sua cor. A viagem torna-se, portanto, um meio para problematizar questões pessoais e sociais, entrelaçando a vida pessoal dos protagonistas à história das pessoas negras.

Embora tenha as bases de um road novel tradicional, que é a narrativa do percurso da viagem, a obra de Ward vai além, abordando questões sociais e explorando o sobrenatural para dar ênfase a dor que emerge nos personagens a cada quilômetro rodado. A automobilidade de pessoas negras é construída de maneira a pensar a dinâmica política e social sobre a concepção de caminho, liberdade e mobilidade. Aqui, a estrada representa violência e imobilização.

Portanto, o romance enfatiza que, para o corpo negro, há um limite em sua autonomia na estrada, esse limite molda a viagem das personagens e estabelece a precariedade da jornada que realizam. As vidas delas são delimitadas por essa construção social e são assombradas por histórias que não tiveram um fim que as deixasse no passado. Tanto as drogas que abrem as portas para o mundo dos mortos, quanto um fantasma que detém o poder da narrativa, são elementos que constroem um espaço e uma paisagem fantasmagórica na estrada física na qual dirigiam. Ao mesmo tempo, por fim, em Sing, unburied, sing, a interação que os personagens desenvolvem com os encontros constrói a noção de espaço político e social capaz de ditar a (falta de) liberdade.

Notas

  • 1
    Em 2005 o furacão Katrina devastou a região litorânea do sul dos Estados Unidos, sendo necessário evacuar mais de um milhão de pessoas. Tratou-se de uma tempestade tropical de categoria 3 da escala de furacões de Saffir-Simpson em terra firme e categoria 5 no oceano Atlântico, os ventos do furacão alcançaram mais de 280 km/h.
  • 2
    O road novel é um gênero literário que possui alguns representantes na literatura de autoria feminina brasileira. Entre outros, podemos citar: Todos nós adorávamos caubóis (2013), de Carol Bensimon; Isadora, sua Camisola La Perla e a BR (2015) e Sobre poeira e sol e uma certa calça floral (2018), de Catarina Guedes.
  • 3
    O personagem Given parece inspirado na história pessoal da escritora, quando seu irmão, homem negro, é morto por um motorista branco bêbado que recebeu uma sentença relativamente leve.
  • 4
    Parchman foi considerada, por muito tempo, uma prisão de negros, já que poucas foram as pessoas brancas enviadas para lá. Entre as atrocidades que ocorriam, havia o enclausuramento de crianças sob acusação de delitos leves, as quais sofriam nas mãos dos guardas.
  • 5
    “I shift the car to drive, look back to check the street, and see a car advancing, a gray SUV. Fear rises to my shoulders, up my neck, a bubbling choke. I don’t know what I’m afraid of. What can he do but curse me? What can he do? I’m not in his driveway. Doesn’t the county own the sides of the road? But something about how fast he’s gunning that lawn mower, the way he points to that tree, the way that tree, a Spanish oak, reaches up and out and over the road, a multitude of dark green leaves and almost black branches, the way he’s coming at me, makes me see violence. I press the gas and swerve out into the street, the car behind me skids and its horn sounds, but I don’t care. My transmission switches gears with a high whine. I sling the car around and go faster. The gray SUV has pulled into a driveway, but the driver is waving his arm out the window, and Big Joseph is passing under the tree, stopping at the mailbox I just abandoned, lumbering off his lawn mower, striding toward the box. He is taking something off the seat of the mower, a rifle that was strapped there, something he keeps for wild pigs that root in the forest, but not for them now. For me.”
  • 6
    “Black women’s writing, I am proposing, should be read as a series of boundary crossings and not as a fixed, geographical, ethnically or nationally bound category of writing”
  • 7
    Ao longo dos anos, diversas instituições e iniciativas surgiram para desmitificar essa apropriação do espaço e do estar em movimento. Uma delas é a plataforma Diaspora. Black, que surgiu com o objetivo de incentivar a viagem por pessoas negras. Maria Casagrande, responsável pelo seu desenvolvimento, aponta a desigualdade racial e os estigmas que os sujeitos negros enfrentam em viagens, mostrando um número ínfimo de negros que são aceitos ou que recebem hóspedes em aplicativos convencionais de viagem. De acordo com Casagrande, “outras pesquisas indicam que os algoritmos das plataformas convencionais restringem a visibilidade de anunciantes negros mesmo em bairros e cidades de maioria negra, o que favorece a concentração de renda e a exclusão econômica.” Cf. Casagrande , Maria. Diaspora. Black. In: Dias, Guilherme, Por que os negros viajam menos? Revista Trip Uol, 2017. Disponível em <https://revistatrip.uol.com.br/trip/viajantes-negros-apostam-em-aplicativos-e-agencias-especializadas-para-fugir-do-racismo>. Acesso em 28 de jul de 2022.
  • 8
    “That was our whole world: the long line. Men strung out across the fields, the trusty shooters stalking the edge, the driver on his mule, the caller yelling to the sun, throwing his working song out. Like a fishing net. Us caught and struggling.”
  • 9
    Na literatura brasileira, existem diversas autoras que representam o racismo estrutural. Entre elas, podemos citar: Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Miriam Alves, Eliana Alves da Cruz, entre outras.
  • 10
    “I’m sorry you feel sick,” Jojo says, and Michaela begins to cry. He rubs her back and she rubs his, and I stand there, watching my children comfort each other. My hands itch, wanting to do something. I could reach out and touch them both, but I don’t. Jojo looks part bewildered, part stoic, part like he might start crying. I need a cigarette. I squat next to Misty on the concrete block and bum a smoke: the menthol shores me up, stacks sandbags up my spine. I can do this. I wait until the nicotine laps at my insides like a placid lake, and then I go back to the car.”
  • 11
    “And then Leonie laughs, and even though it’s a laugh, it doesn’t sound like one. There’s no happiness in it, just dry air and hard red clay where grass won’t grow. She turns around and ignores all of us and looks out the front windshield, gummy with bug splatter, so she doesn’t even see when Kayla startles, her eyes open wide, and throw-up, brown and yellow and chunky, comes shooting out her mouth and all over the back of the front seat, all over her little legs and her red-and-white Smurfs shirt and me because I’m pulling her up out of her seat and into my lap.”
  • 12
    “They are never silent. Ever present is their singing: they don’t move their mouths and yet it comes from them. Crooning in the yellow light. It comes from the black earth and the trees and the ever-lit sky. It comes from the water. It is the most beautiful song I have ever heard, but I can’t understand a word.”
  • 13
    “I think that only happens when the dying’s bad. Violent. The old folks always told me that when someone dies in a bad way, sometimes it’s so awful even God can’t bear to watch, and then half your spirit stays behind and wanders, wanting peace the way a thirsty man seeks water.”
  • 14
    “There are women and men and boys and girls. Some of them near to babies. They crouch, looking at me.”
  • 15
    “[T]he road is a contested space where black bodies are policed.”
  • 16
    A primeira edição do guia de Green foi publicado em 1936 e tinha como foco Nova York. Depois, foi expandido para abarcar quase todo os Estados Unidos e parte do Canadá, México, Caribe e Bermudas. O guia se tornou uma verdadeira bíblia aos viajantes durante o período em que a segregação era permitida. A publicação cessou após aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964, que proibiu os tipos de discriminação racial que a haviam tornado necessária, a publicação cessou e caiu na obscuridade.
  • 17
    Um exemplo do uso desse guia Green pode ser visto na série Lovecraft Country, da HBO.
  • 18
    “Driving While Black” (DWB) é uma descrição irônica e preconceituosa do perfil racial de motoristas afro-americanos. Isso implica que um motorista pode ser parado por um policial em grande parte por causa do preconceito racial, e não por qualquer violação aparente da lei de trânsito.
  • 19
    “I’m asleep and I don’t know it until Michael is shaking me awake, his fingers digging into my shoulder. My mouth is so dry, my lips are sealed shut. “The police,” Michael says. The road behind us is empty, but the tension in his hand and the way his eyes widen and roll make me know this is serious. Even though I can’t see them and don’t hear any sirens, they are there. [...] I look in the rearview and Jojo is looking straight at me. [...] “I don’t have time,” Michael says. He’s fumbling for the carpet, about to shove the plastic baggie out of the little door in the floor of the car, [...] I shove it in my mouth. I work up some spit, and I swallow. [...] “Where y’all going?” the officer asks. He doesn’t have his ticket book in his hand, and I feel the fear, which has been roiling in my belly, rise in my throat and burn hot like acid, push against the baggie on its slow descent down to my stomach. “Home,” I say. “To the coast.” “Where y’all coming from?” “Parchman.” I know it’s a mistake soon as I say it. I should have said something else, anything else: Greenwood or Itta Bena or Natchez, but Parchman is all that comes. The handcuffs are on me before the silent. [...] The officer walks back to the car, makes Michael get out, puts him in handcuffs, and marches him back to sit next to me. [...] Jojo climbs out of the car, Michaela hanging on to him, squeezing him with her legs: she has her arms wrapped tightly around his neck. [...] The officer gestures for Misty to take Michaela [...] It’s easy to forget how young Jojo is until I see him standing next to the police officer. It’s easy to look at him, his weedy height, the thick spread of his belly, and think he’s grown. But he’s just a baby. And when he starts reaching in his pocket and the officer draws his gun on him, points it at his face, Jojo ain’t nothing but a fat-kneed, bowlegged toddler. I should scream, but I can’t. [...] Jojo shakes his head without pausing and staggers when the officer kicks his legs apart, the gun a little lower now, but still pointing to the middle of his back [...] [...] I snap. Imagine my teeth on the officer’s neck. I could rip his throat. I don’t need hands. I could kick his skull soft. Jojo slumps forward into the grass, and the cop is shaking his head, [...] “I need your permission to search the car, ma’am.” “Take me out of these cuffs.” If he would come close enough, I could head-butt him blind. “Is that a yes, ma’am?” I swallow, breathe. Air shallow as a muddy puddle. “Yes.”
  • 20
    “I lay my head on the seat in Leonie’s car, rubbing the pouch Po p gave me, and wonder if he ever gave a small sack, full of things to balance, to anyone else. His brother, Stag? Mam? Uncle Given? Or even the boy Richie? And then I hear Pop: Richie wasn’t built for work.”
  • 21
    “[C]onveys a visceral anxiety that becomes an attribute of the contemporary African American road trip.”
  • 22
    “You better take advantage. I hear them four words over and over again when we get in the car and I watch Misty put the package in the pocket under the floorboards. You better take advantage.”
  • 23
    “This ain’t no place for no man. Black or White. Don’t make no difference. This a place for the dead.”
  • 24
    “[A]s we pass another sign, old and wooden, that says Welcome to Parchman, Ms. And then: Coke is it! But by the time we get out of the car in the parking lot, the birds have turned north, fluttered over the horizon. I hear the tail end of their chatter, of all those voices calling at once, and I wish I could feel their excitement, feel the joy of the rising, the swinging into the blue, the great flight, the return home, but all I feel is a solid ball of something in my gut, heavy as the head of a hammer.”
  • 25
    “He puts me in the passenger seat, closes the door, and climbs behind the wheel. The car shrinks the world to this: me and him in this dome of glass [...] “Just a ride,” Michael says. But I know that if I continue to ask, sour the air of the car with pleases, he will [...] drive so far the horizon opens up like a shucked oyster shell. That if I ask, he will go. Because something in him also wants to leave his teary hug with his mother, his fight with his father, my deathcrowded household, behind. We move forward, and the air from the open windows makes the glass shudder, alive as a bed of mollusks fluttering in the rush of the tide: a shimmer of froth and sand. The tires catch and spit gravel. We hold hands and pretend at forgetting.”

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2023
  • Aceito
    28 Nov 2023
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