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A Rainha Comilona: dialogismo e memória na escritura escolar

Resumos

Este artigo tem por objetivo discutir a relação entre dialogismo e memória, considerando como objeto de investigação o processo de escritura em ato. Caracterizado enquanto um estudo de caráter etnolinguístico, propomos uma articulação entre as noções de "memória semântica" e "memória do objeto". A articulação proposta tem como referência teórica a Genética de Textos e a Linguística da Enunciação, defendendo a hipótese de que a condição dialógica e intersubjetiva do escrevente perfaz o conteúdo ativado durante a geração e formulação de uma ideia. Para tal, analisamos os minutos iniciais de um processo de escritura de uma história inventada, efetivado (e filmado) em contexto escolar, do qual participam duas alunas recém-alfabetizadas (6 anos). O resgate desta dinâmica revelou não apenas o modo como o título foi gerado e a importância do contexto letrado, mas principalmente, o papel do acaso e do imprevisível para a compreensão de seu funcionamento.

Dialogismo; Memória; Processo de escritura; Enunciação; Sala de aula


This article discusses the relationship between dialogism and memory, considering the act of the writing process as the object of investigation. Characterized as a study of an ethnolinguistic nature, we propose a link between the notions of "semantic memory" and "object memory". The proposed link uses Textual Genetics and Enunciation Linguistics as reference, espousing the hypothesis that the writer's dialogic and intersubjective condition generates the activated content during the begetting and formulation of an idea. To this end, we analyze the initial minutes of the process of writing a fictional story, performed (and filmed) in an elementary school context, in which the participants are two newly literate students (6-year-olds). The recollection of this dynamic reveals not only how the title was conceived and the importance of the context of literacy, but also and especially the role of fortuity and unpredictability for an understanding of how it works.

Dialogism; Memory; Writing process; Enunciation; Classroom


ARTIGOS

A Rainha Comilona: dialogismo e memória na escritura escolar

Eduardo Calil

Professor da Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió, Alagoas, Brasil; pesquisador do CNPq; coordenador do Laboratório do Manuscrito Escolar (L'ÂME); eduardocalil@hotmail.com

RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir a relação entre dialogismo e memória, considerando como objeto de investigação o processo de escritura em ato. Caracterizado enquanto um estudo de caráter etnolinguístico, propomos uma articulação entre as noções de "memória semântica" e "memória do objeto". A articulação proposta tem como referência teórica a Genética de Textos e a Linguística da Enunciação, defendendo a hipótese de que a condição dialógica e intersubjetiva do escrevente perfaz o conteúdo ativado durante a geração e formulação de uma ideia. Para tal, analisamos os minutos iniciais de um processo de escritura de uma história inventada, efetivado (e filmado) em contexto escolar, do qual participam duas alunas recém-alfabetizadas (6 anos). O resgate desta dinâmica revelou não apenas o modo como o título foi gerado e a importância do contexto letrado, mas principalmente, o papel do acaso e do imprevisível para a compreensão de seu funcionamento.

Palavras-chave: Dialogismo; Memória; Processo de escritura; Enunciação; Sala de aula

ABSTRACT

This article discusses the relationship between dialogism and memory, considering the act of the writing process as the object of investigation. Characterized as a study of an ethnolinguistic nature, we propose a link between the notions of "semantic memory" and "object memory". The proposed link uses Textual Genetics and Enunciation Linguistics as reference, espousing the hypothesis that the writer's dialogic and intersubjective condition generates the activated content during the begetting and formulation of an idea. To this end, we analyze the initial minutes of the process of writing a fictional story, performed (and filmed) in an elementary school context, in which the participants are two newly literate students (6-year-olds). The recollection of this dynamic reveals not only how the title was conceived and the importance of the context of literacy, but also and especially the role of fortuity and unpredictability for an understanding of how it works.

Keywords: Dialogism; Memory; Writing process; Enunciation; Classroom

Sabemos que hoje a neurociência tem obtido resultados extraordinários quanto à localização e ao mapeamento das atividades da memória no cérebro. A memória do objeto, porém, não é passível de ser localizada nos neurônios [...], porque ela não é individual, mas intersubjetiva, isto é, ela é aquilo que se transmite entre os sujeitos.

Marília Amorim

Introdução

A presença de Bakhtin no ensino brasileiro é incontornável. Documentos curriculares oficiais e um número significativo de trabalhos acadêmicos filiam-se a sua proposta de base sócio-histórica, assumindo a linguagem como interação verbal, sendo, sobretudo a leitura e a escrita, campos privilegiados de investigação. Entre estes dois campos, múltiplos termos bakhtinianos (cultura, dialogismo, gênero, autoria, palavras alheias, outro, memória, polifonia, voz, multivocalidade, entonação... a lista é exaustiva) são evocados, manipulados, instrumentalizados, reinterpretados. Sem esquecermo-nos que esses termos fazem parte de um mesmo espectro teórico e, portanto, estão inter-relacionados, focaremos nosso estudo sobre o dialogismo e a memória elegendo como objeto de investigação o texto produzido em sala de aula.

Do ponto de vista fenomenológico, nosso objeto1 1 Nosso objeto de estudo compõe o acervo do Laboratório do Manuscrito Escolar (L'ÂME), dedicado a documentar, arquivar e preservar práticas de textualização efetivadas em distintos contextos escolares. não se situa exatamente no texto produzido, já escrito, terminado e entregue ao professor, mas no seu processo de escritura e ato de criação (CALIL, 2008a, 2009a). Ele envolve, entre outros aspectos, os componentes de planificação, formulação e revisão, que supõem, ao serem ativados e articulados, a relação entre o que será escrito, o que se escreve e o que se lê do que se escreve. A despeito de a leitura ser um procedimento de caráter recursivo, efetivado durante ou após o texto escrito, envolvendo uma reflexão metalinguística e metacognitiva em que se reformula, modifica, altera, corrige erros ortográficos, lexicais e gramaticais ou se procura resolver problemas de coerência e coesão, como mostram trabalhos importantes sobre a revisão textual (FITZGERALD, 1987; CHANQUOY, 2001), consideraremos a leitura "do que vem de fora", isto é, a leitura dos textos2 2 É preciso pontuar que "leitura" e "texto" estão aqui compreendidos enquanto "linguagem como interação verbal" conforme indicado acima. Isto é, devem ser interpretados e m um sentido amplo, envolvendo toda peça semiótica, oral, visual e/ou escrita, constituída sócio-historicamente, por exemplo, falas de pais e professores, propagandas de TV, filmes, músicas, gibis, contos de fada, etc. Essas peças, constituídas intersubjetivamente através da interação, irão compor a "memória" do sujeito, inscrevendo-o na cultura de seu tempo. que circulam socialmente, aqueles que perfazem o contexto letrado, e que podem se refletir no processo de escritura, interferindo e, simultaneamente, alimentando o processo criativo do escrevente.

Este é o ponto central a ser discutido: uma reflexão sobre o estatuto do dialogismo e o papel da memória constituídos, de um lado, pela cultura e, de outro, pelo sujeito que escreve e inventa uma narrativa ficcional em contexto escolar. Proporemos uma interpretação destas noções, aproximando-as3 3 A necessidade de uma reflexão interdisciplinar em torno da "memória" e seu funcionamento tem sido recentemente defendida por autores vinculados a diferentes disciplinas, discutindo distintos objetos (WERTSCH, 2010; ADAM, FENOGLIO, 2009; FENOGLIO, CHANQUOY, 2007; PLANE, OLIVE, ALAMARGOT, 2010). Do ponto de vista específico da escritura, há um consenso entre os pesquisadores ao entendê-la enquanto uma atividade complexa, reconhecida desde os trabalhos de Hayes e Flower (HAYES, FLOWER, 1980; FLOWER, HAYES, 1980), constituída pelo escrevente ao longo de anos de experiência e prática (KELLOGG, 2008), envolvendo sobretudo o desenvolvimento da memória de long o termo, memória semântica, memória de trabalho e a aprendizagem, a articulação e a automação de vários subsistemas cognitivos e linguísticos (grafo-motor, viso-espacial, sintático, ortográfico, morfológico), além de fatores pragmáticos e comunicacionais em que se insere a tarefa de escrever. Este consenso, por si só, poderia ser um forte argumento a favor de uma leitura interdisciplinar das relações entre a "memória" dada pela cultura e a "memória" operada no e pelo sujeito escrevente. dos aportes discursivo e cognitivo. Esta aproximação se justifica pelo fato de que, ao se refletir sobre a memória, devemos considerar duas condições imprescindíveis da relação entre cultura e sujeito falante: a) Memória da cultura como condição estruturante da interação verbal, na medida em que um dizer se faz da relação (dialógica e intersubjetiva) com outros dizeres, através de sua transmissão, repetição e circulação, constituindo o que a literatura inspirada em Bakhtin tem chamado de "memória do objeto" (AMORIM, 2009); b) Memória do indivíduo4 4 O uso deste termo justifica-se pela necessidade de se preservar, ao longo deste artigo, os termos reconhecidos pela Psicologia Cognitiva. Mesmo os autores filiados a este campo de saber não supõem que o "indivíduo" seja uma máquina de falar e escrever, autônoma e homogênea, com pleno domínio de seu conhecimento e vontade. O que seria, certamente, uma crítica apressada e injusta de seus trabalhos. como componente fundante de sua atividade cognitiva, sem a qual não seria possível se garantir e se reconhecer na cultura, isto é, a memória o inscreve tanto na cultura, na história, no discurso, no texto, quanto permite a estabilização sintática, fonológica, ortográfica, semântica, textual, espacial, gráfica...

Após circunscrever as duas condições anunciadas, indicaremos de que modo essas memórias interagem em uma situação real de escritura em sala de aula, cujos sujeitos são alunos recém-alfabetizados, escrevendo de próprio punho, seus primeiros textos narrativos. Por fim, apresentaremos algumas reflexões sobre o estabeleciment de uma didática para a produção textual nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

1 Cultura, dialogismo, gibi e escritura

1. A memória na cultura e no dialogismo

Podemos supor, a partir da perspectiva dialógica, que cultura e dialogismo são termos interconectados pela memória. Dentre as muitas e diferentes interpretações que esses termos recebem, destacamos duas delas. Na primeira, a cultura pode ser entendida em seu sentido "distribuído" (WERTSCH, 2010, p.123), como a representação do passado "compartilhada pelos membros de um grupo". Ou então, para destacarmos uma formulação mais precisa, podemos relacionar a cultura ao que Amorim chamou de "memória do objeto": "uma memória que está na cultura e em seus objetos [que] perpassa as relações intersubjetivas e as constitui ao mesmo tempo em que é atualizada por elas" (AMORIM, 2009, p.10). Nesta segunda definição, se a estendermos a um ponto de vista enunciativo, o dialogismo remete discursivamente à "memória" que um dizer traz do dizer do outro, como mostram os trabalhos de Authier-Revuz (1995) e Brès (2005), ao diferenciarem três formas de manifestação: dialogismo interlocutivo, dialogismo interdiscursivo, autodialogismo (ou intradiscursivo).

A memória que interconecta cultura e dialogismo supõe a condição social de todo sujeito "falante", cuja inscrição subjetiva se dá através do dispositivo trinitario (eutu-ele) da língua (DUFOUR, 2000, 2005). Conforme Dufour, "a trindade representa, em suma, a essência do laço social já que, sem ela, não haveria relação de interlocução, não haveria cultura humana" (DUFOUR, 2000, p.56). Para ser um sujeito é necessário haver o outro, mas o outro intersubjetivo (o "eu" e o "tu" em sua condição alienável e inversível) é sempre um reflexo do Outro (aqui interpretado como "Cultura", apesar de sua dimensão inconsciente estar suposta).

É nesse sentido que podemos remeter o leitor ao que diz Amorim:

todo objeto de discurso e de conhecimento é portador de memória, pois ao ser falado é, antes de mais nada, já falado por outros que vieram antes de mim. Ao tocá-lo e ao dispô-lo como objeto, coloco em cena imediatamente um universo discursivo que eu atualizo, revivo e retransmito aos que me ouvem (2009, p.12).

Esta memória coletiva, condição tanto da cultura, quanto do dialogismo, é o que nos permitirá indicar o caminho da ativação da memória semântica dos escreventes durante o processo de criação e escritura de uma história inventada. Entretanto, antes de avançarmos nesta direção, cabe indicar o recorte do objeto que irá compor a memória coletiva das alunas envolvidas.

1. 2 Gibi: uma literatura presente na família e na escola

A apologia do uso de histórias em quadrinhos no ensino brasileiro é relativamente recente (CALAZANS, 2004; RAMA, 2004; MENDONÇA, 2008; VERGUEIRO, RAMOS, 2009) e busca instrumentalizar a ação do professor envolvendo diferentes áreas de conhecimento escolar (História, Geografia, Ciências, Artes, Língua Portuguesa). Uma validação desta defesa está claramente manifestada em documentos curriculares, de formação de professores e materiais paradidáticos oficiais5 5 Conferir os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e o site www.fnde.gov.br/index.php/beapresentacao, onde se pode encontrar a relação de livros distribuídos às escolas brasileiras. Há, dentre eles, uma quantidade significativa de "histórias em quadrinhos". Para um panorama da história recente destas políticas públicas valorizando as histórias em quadrinhos, consultar o artigo "Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE" (VERGUEIRO, RAMOS, 2009). , assim como em livros didáticos atuais, cujo gênero tem presença assegurada, sobretudo naqueles livros voltados aos anos iniciais do Ensino Fundamental.

A dimensão multimodal desse gênero - caracterizada pelo encontro entre traços, desenhos, escritas, cores, balões, metáforas visuais, onomatopeias, diálogos, expressões faciais, gestos, olhares, movimentos, volume e intensidade de vozes representadas graficamente - é um dos argumentos mais significantes para justificar sua importância.

Todavia, bem antes6 6 Refiro-me ao início dos anos 90: os Parâmetros Curriculares Nacionais são de 1997, quando a noção de "gênero discursivo" encontrava seus primeiros ecos no ensino brasileiro. Naquele momento, inclusive, havia muito pouca discussão de caráter instrumental ou didático voltada para o uso deste gênero na sala de aula, destacando seus elementos composicionais ou temáticos, diferentemente do que pode ser encontrado nos livros didáticos de português em circulação atualmente. Cabe lembrar, por fim, que as alunas desse estudo cursavam o último ano de Educação Infantil, hoje incorporado ao Ensino Fundamental de 9 anos. desta valorização didática, as histórias em quadrinhos, ou melhor, os gibis da Turma da Mônica já faziam parte do contexto didático da escola particular em que foram coletados nossos dados, assim como do cotidiano familiar das alunas acompanhadas neste estudo. Como já analisamos em outros trabalhos (CALIL, 2008b; 2009b; 2010; 2012; CALIL; FELIPETO, 2008; CALIL; DEL RE, 2009), algumas das características destes gibis podem interferir significativamente em manuscritos e processos de escritura de "histórias inventadas" por alunos recém alfabetizados.

Neste momento, consideraremos interferências de caráter semântico, ao descrevermos e analisarmos a criação de um título que irá figurar no manuscrito escolar. A partir disso, mostraremos como se enlaçam, no dialogismo, a memória de longo prazo e a memória semântica durante o processo de escritura.

2 A memória do indivíduo e a escritura

2.1 Delimitação dos estudos sobre a memória

Memória de longo prazo, memória de curto prazo, memória de trabalho, memória fonológica, memória visual, memória motora, memória declarativa, memória explícita, memória semântica, memória episódica, memória procedimental, priming, memória emotiva, memória coletiva, memória operatória, flashbulb memory... a literatura é fértil, vasta, complexa e diversa. Mesmo se nos restringirmos ao objeto de nosso estudo, isto é, ao processo de escritura em tempo real, ainda assim encontraremos uma literatura profícua e heterogênea quanto ao papel da memória tanto do ponto de vista teórico, quanto metodológico e experimental.

Como mostram as revisões estabelecidas por Alamargot e Chanquoy (CHANQUOY, ALAMARGOT, 2002; 2003), o sistema de memórias exerce um papel essencial no curso da redação de um texto, na medida em que são necessários a recuperação, a geração, o tratamento e controle de múltiplos níveis de conhecimento e informação. Apesar da complexidade deste sistema ativado durante o processo de escritura e dos diferentes modelos teóricos propostos8 8 Conferir o importante "estado da arte" estabelecido por Alamargot e Chanquoy (2001). , podemos dizer que ele está subdividido, grosso modo, em "memória de longo prazo", responsável pela estocagem de diferentes conhecimentos, e em "memória de trabalho" (capacidade de armazenamento temporário, inicialmente descrita como "memória de curto prazo" (VAN DIJK, KINSTCH, 1983)), ativadas durante a redação de um texto.

2.2 Memória de longo prazo, memória de trabalho e memória semântica

Desde o famoso modelo de Hayes e Flower (1980), a memória é um dos componentes centrais do processo de escritura. Retomado por Hayes (1996), essa memória é individual e responsável pela convergência dos conhecimentos referentes à audiência, à tarefa, ao tópico, ao linguístico e ao gênero, sendo a memória de trabalho (BADDELEY, 1986) subdividida em dois sistemas escravos: o "alça fonológica" (phonological loop), que armazena e mantém o material verbal, e o "esboço visoespacial" (viso-spatial sketchpad), responsável pelo armazenamento e manutenção do material visual e espacial. Esses dois subsistemas são articulados pela "central executiva" (central executive9 9 A tradução destas três noções foi proposta por Yamamoto e Ades (2002). ), gerando e recuperando informações durante a atividade cognitiva. Hayes (1996) adiciona ao modelo de Baddeley a memória semântica, necessária para recuperar o conhecimento de mundo: nome de pessoas, coisas, significados, conceitos. Diferentemente dos estudos em Psicologia Cognitiva que têm por objetivo testar e validar este (e outros) modelo(s) de memória no processo de escritura, pretendemos discutir o papel da memória semântica em uma situação real de escritura. De nosso ponto de vista, a eleição da memória semântica justifica-se por ser o componente que mais se aproxima da relação do escrevente com a cultura, ponto central de nossa investigação.

Aprofundando estes estudos iniciais sobre os modelos de escritura, os trabalhos de Swanson e Berninger (BERNINGER, SWANSON, 1994; SWANSON, BERNINGER, 1996) destacam o papel da memória de trabalho no componente "formulação", seu progressivo e longo desenvolvimento na formação do escrevente. Apontando este componente como o primeiro a surgir em escreventes novatos, os autores o subdividem em "transcrição" e "geração de texto". Este segundo processo nos interessa em particular, sobretudo porque diz respeito à criação, ao surgimento de ideias, seu valor semântico e sua posterior inscrição na folha de papel.

3 Condições gerais do processo de escritura

A articulação entre a memória semântica do escrevente novato e a memória do apresentaremos, mas de um ponto de vista etnográfico, considerando sua dimensão interativa, multimodal, qualitativa e enunciativa. O contexto geral de sala de aula é preservado, e a situação específica de escritura se caracteriza como "escrita colaborativa", quando alunos em duplas combinam e escrevem, juntos, um mesmo manuscrito. Ao contrário dos estudos de Daiute e Dalton (1993) e Gaulmyn (1994), que registram situações semelhantes em áudio, procuramos captar a ambiência da sala de aula através de uma handcam situada à frente da díade.

Nara e Isabel, duas alunas de 6 anos de idade, produziram, a partir de solicitações feitas mensalmente pela professora, 8 histórias inventadas, durante o ano de 1991. Essas situações filmadas foram transcritas com o apoio do programa ELAN10 10 Programa de computador com sofisticado recurso de sincronização entre imagem e som. , recuperando e sincronizando sua dupla dimensão: a visual (gestos, expressões, direções do olhar, objetos, posições do lápis na folha de papel, momentos em que são feitas rasuras...) e a sonora (falas das alunas, da professora, de outros colegas, sons diversos...).

Esse procedimento metodológico favoreceu o resgate do processo de escritura em ato e do modo como os fatores pragmáticos, interativos, cognitivos e comunicacionais podem interferir no surgimento de temas, títulos, tramas, diálogos e caracterizações de personagens, assim como certas ocorrências de rasuras. Isso exigiu a articulação dos aspectos multimodais destas situações, um ponto essencial para refletirmos sobre o processo de criação e escritura em díade em contexto escolar.

Para tratarmos do problema proposto por este estudo, selecionamos o 4º processo de escritura, ocorrido no dia 27 de junho, final do 1º semestre letivo, com destaque para o que ocorreu durante os 5 primeiros minutos da filmagem que durou exatamente 26:1911 11 Lê-se: "vinte seis minutos e dezenove segundos". . Nestes minutos iniciais foi gerado o título do manuscrito escolar12 12 Como defendemos alhures, o termo "manuscrito" qualificado enquanto "escolar" está vinculado aos trabalhos em Genética Textual e visa a caracterizar a dinâmica do processo de criação. Neste sentido, o material de análise a ser discutido faz parte do "dossiê genético Vila", pertencente ao L'AME, no qual reunimos o maior número possível de documentos (manuscritos, relatórios de professores, atividades diversas realizadas em sala de aula, entrevistas com os pais e professores, etc.), coletados durante o desenvolvimento desta investigação. que irá determinar e dirigir todo o processo de criação da narrativa ficcional.

4 Dialogismo e memória na leitura e no título

4.1 No processo de escritura, o flagrante do gibi

Um modo interessante de se observar o processo de escritura é começar pelo fim. Primeiro apresentaremos o título que foi escrito e perpetuado no alto da folha de papel, em seguida "voltaremos o filme" para recuperar o processo que gerou sua ideia e formulação.

4.1.1 Memórias de leituras no título

Como em geral aparece nas histórias inventadas por Nara e Isabel13 13 Esta asserção pode ser verificada em Calil (2009a). , o título, além de ser um dos primeiros elementos inventados e raramente alterados ao longo do processo de escritura14 14 O reconhecimento deste interessante aspecto remete ao que Bereiter e Scardamalia (1987) chamaram de "estratégia de contar o conhecimento" (knowledge telling strategy), quando o escrevente novato recupera associativamente conteúdos da memória que são imediatamente escritos sem que haja, ao longo do processo de escritura, um retorno para (e uma reflexão sobre) possíveis adequações à tarefa, às metas e à audiência do texto. , nomeia o personagem principal. No fragmento do manuscrito ce escrito imediatamente após os nomes das alunas.

Ao observamos o registro fílmico, cronometrado pelo ELAN, estas primeiras palavras foram efetivamente escritas que Isabe recebeu folha e caneta, a professora pediu para capricharem na letra, Isabel se levantou e foi buscar outras duas canetas para substituir aquela com a tinta seca, depois fez duas formas gráficas retangulares dentro das quais iria inserir seu nome, o de Nara e, em seguida, o título.

Ainda que não seja difícil constatar neste título uma forte carga dialógica, remetendo tanto ao universo discursivo dos contos de fada, quanto ao dos gibis, é relevante indicarmos como ela está suposta e qual sua relação com a memória semântica, antes de respondermos ao que provocou o surgimento da ideia que o gerou. De um lado, podemos considerar a literatura clássica infantil, cujos personagens (reis, rainhas, madrastas, bruxas, príncipes, princesas...) tem presença assegurada em livros e filmes voltados para o público infantil da sociedade ocidental contemporânea, como um dos elementos responsáveis pela presença de "rainha". Por outro, sua adjetivação não mantém relação semântica com este universo ficcional: apesar de encontrarmos personagens malvados, invejosos, ciumentos, vingativos, feios, medrosos, valentes, corajosos... as rainhas nunca são "comilonas" nestes contos de fada.

Para o leitor brasileiro letrado, entretanto, sua identificação ao outro universo discursivo é quase imediata. Como já sugerimos ao intitularmos este artigo, há certamente no título desta história inventada um termo advindo dos gibis da Turma da Mônica, mais especificamente relacionado à personagem Magali, cuja característica principal é, como sabemos, "comer muito". Se as alunas não fossem leitoras dessas histórias de fadas e gibis, dificilmente teriam proposto este título e criado essa personagem: a rainha comilona!15 15 Um breve comentário sobre este título foi feito em Calil (2009a, p.131-132). 16 O uso de todas as imagens foi autorizado pelos sujeitos envolvidos. Isabel está de camiseta branca, à esquerda, e Nara está de preto, à direita. Neste ponto, defendemos a hipótese de que a memória semântica (individual e cognitiva) e a memória do objeto (coletiva e social) não podem se dissociar.

Mas o manuscrito ou seu fragmento não é senão o que sobrou de um processo, como a fotografia que trazemos de um passeio. Ele pode indicar alguns elementos, mas não responde ao que de fato aconteceu no tempo real de sua escritura: Quem propôs o título? O que se passou antes de sua fixação na folha de papel? Quais foram os fatores e as relações associativas estabelecidas que conduziram à sua enunciação? Em que momento preciso ele aflorou durante o processo? Como a memória de trabalho recuperou a memória semântica que o título indica? De que modo se enlaçaram os elementos dialógicos descritos acima e as memórias dos sujeitos escreventes?

4.1.2 Da leitura para o título ou como surgiu "A rainha comilona"

Para responder a essas questões e entendermos um pouco mais sobre o funcionamento do processo de criação textual em díades de alunos recém alfabetizados, precisamos deixar em suspenso o manuscrito e voltarmo-nos ao registro fílmico. Trabalharemos com a hipótese segundo a qual a criação desse título (assim como de muitos outros elementos) faz parte da articulação de um complexo jogo entre oi múltiplos fatores que convergem em direção ao processo de escritura e, em particular para a formulação e linearização do texto nas linhas de papel.

Como costumava fazer, a professora apresentou a proposta de trabalho em um< roda de conversa, com todos os alunos sentados em círculos, para em seguida organiza o trabalho em grupos. Após a apresentação, os alunos foram encaminhados para a mesas indicadas, acomodaram-se e começaram a conversar. Nara e Isabel, amigas desd< quando entraram na escola, aos 3 anos de idade, já haviam trabalhado em parceria nas 3 filmagens anteriores. Enquanto o pesquisador acabava de enquadrar a câmera já ligada Isabel encontrou, por acaso, embaixo de sua carteira, um gibi da Magali (SOUSA 1990), colocando-o sobre a mesa. Este instante é captado pela filmadora.

Texto-dialogal 1

Já nos primeiros segundos em que a filmadora captou a imagem e o áudio, fica evidente a familiaridade de Isabel com gibis. Além disso, sua memória é precisa e seu enunciado enfático: "eu tenho esse gibi!" . Temos aqui um primeiro objeto que dirigirá a atenção e interação destas duas alunas até a formulação do título da história inventada. Destacamos a importância desse encontro entre Isabel e o gibi da Magali. Em Calil (2012) afirmamos que, apesar do acaso não ser um componente de nenhum dos vários modelos de escritura propostos atualmente, ele interfere no processo de criação textual. Iremos mostrar de que modo o encontro inesperado com este gibi se transforma enunciativamente no título do manuscrito em destaque. Logo após o pesquisador comentar acerca do microfone preso embaixo da carteira e se afastar do campo de visão das alunas, Isabel se volta para Nara e começa a ler a primeira historinha do gibi.

Texto-dialogal 2

O gibi traz a história "Magali em Rapunzel", intertextualidade recorrente neste tipo de publicação. Isabel lê com destreza e Nara a acompanha, querendo também ver os quadrinhos. A relação entre o que se diz neste momento, as imagens captadas que revelam a sincronização dos gestos, olhares e expressões das alunas e as imagens dos quadrinhos constituem a cena multimodal do processo de escritura em sala de aula. Os elementos culturais, dialógicos e, neste contexto, didáticos, se manifestam tanto no ato interacional imediato, quanto em sua condição sócio-histórica: ano de 1991, prática didática construtivista, sala de aula com gibi sob a mesa - fato que indica a constante presença desse gênero no espaço escolar - alunas de 6 anos lendo juntas, autonomamente, uma história em quadrinhos da Turma da Mônica que, por sua vez, resgata outra história da literatura clássica infantil. O arranjo entre estes elementos estabeleceu um caminho para o processo de criação e escritura que o manuscrito mostra apenas em parte.

Embora já tenhamos indicado de que modo o dialogismo e a memória semântica irão interferir no título do manuscrito, não sabemos ainda quando ele foi enunciado, de que modo foi dito, nem por quem e como o arranjo entre esses elementos resultou no estabelecimento da memória de trabalho. Para responder, é preciso acompanharmos os turnos subsequentes e as cenas encadeadas no tempo da enunciação. Isabel continuou lendo a história até o 5º quadrinho da 2ª página, quando de repente a professora surgiu e retirou o gibi de suas mãos, pedindo para inventarem a história. O texto-dialogal a seguir detalha como esta cena se passou.

Texto-dialogal 3

No início desta análise afirmamos que Isabel começou a escrever o título somente aos 03:05. Todavia, "ao voltarmos o filme", observamos que foi Nara quem o propôs, formulando-o oralmente entre 01:46 e 01:48 (TC2 da Texto-dialogal 3). Ou seja, desde o início da filmagem até sua primeira formulação transcorreram quase 2 minutos e se passou pouco mais de 1 minuto para sua inscrição na folha de papel, caracterizando o modo de operar da memória de trabalho. Sua formulação está diretamente relacionada aos dois campos semânticos ativados, compartilhados pela memória coletiva que une intersubjetivamente estas alunas. O primeiro, engatilhado pela proposta didática na qual deveriam, como disse imperativamente a professora, "conversar prá inventar uma história", fato que ativa, nessas alunas letradas, palavras e expressões típicas do universo discursivo dos contos de fada. O segundo campo semântico é ativado tanto pela presença do gibi22 22 A presença do gibi e seu efeito na história a ser inventada pelas alunas remetem ao que Perroni (1992) nomeou como "apoio no presente". Segundo a autora, este fenômeno se manifesta no processo inicial de aquisição de narrativa oral e é definido como a entrada na história narrada de objetos presentes no contexto imediato da interação. e sua subsequente leitura ao colocar em destaque a figura do personagem Magali, quanto pela negociação proposta por Isabel para "arrumarem juntas" a história.

O título dado por Nara traz uma dupla resposta. De um lado, ela responde interlocutivamente à demanda da professora e da amiga. De outro, ela responde interdiscursivamente ao recuperar em sua memória de longo prazo o conhecimento sobre contos de fada, cujas histórias costumam ter como personagem "rainha", e o conhecimento sobre gibis da Turma da Mônica, cujo personagem Magali tem por característica principal ser comilona. Contudo, consideramos que o acaso não está no imprevisível encontro entre o gibi e Isabel, mas, sim, na proferição do título.

Esse estatuto se justifica na medida em que o gibi poderia ter sido simplesmente retirado pela professora e junto com ele também ter desaparecido qualquer referência sua no manuscrito escolar. Segundo Petroff (2004), o acaso está presente em todo sistema semiótico que, ao ser transmitido, pode sofrer alterações relacionadas aos elementos que herdam, criando novas versões do sistema original.

Se interpretarmos o processo de escritura em ato como um microssistema semiótico e multimodal altamente dinâmico, cujo funcionamento depende das articulações entre as partes que o vão compondo e das relações associativas estabelecidas pelos escreventes, é o título dado que dá o estatuto de acaso ao gibi encontrado, lido e recolhido. É no instante de sua proferição que o gibi, enquanto um acontecimento fortuito, se materializa no texto. A relação associativa estabelecida ao se enunciar o título sintetiza, resgata e combina as memórias ativadas, imprimindo um caráter singular à história que ainda será escrita. Desse ponto em diante, todos os elementos narrados subsequentemente serão arranjados e rearranjados, tendo-o como referência maior no microssistema do manuscrito em curso.

Aqui chegamos ao enlace que defendemos entre "dialogismo" e "memória", o que permite a criação através da repetição, conforme diz Amorim lendo Bakhtin:

A criação em Bakhtin supõe duplamente a memória coletiva. Do lado do leitor ou ouvinte, face ao objeto criado por mim, porque ele inscreve o que crio em uma cadeia discursiva e assim confere sentido ao objeto. E do lado do próprio criador que cria sempre no diálogo com outros. Para ouvir e fazer ouvir minha voz em um enunciadoobjeto é preciso ouvir e fazer ouvir as vozes que nele falam (AMORIM, 2009, p. 12).

Caso um desses universos não fizesse parte da memória do objeto que partilham estas alunas, ainda que a professora tivesse solicitado a escrita de uma "história inventada" ou deixado propositalmente o gibi ao alcance delas, dificilmente se teria formulado este enunciado e o seu reconhecimento enquanto título de uma história. Daí podermos defender que o caráter cognitivo suposto na memória semântica (e individual) se constitui dialogicamente.

Vale, contudo, indicar outro aspecto importante relacionado à criação deste título e à memória destas alunas. Trata-se da relação entre o nível sintático e o fenômeno da repetição já discutida ao analisarmos outros manuscritos escolares em Calil (2010). Certamente, um dos fenômenos essenciais para a instauração de qualquer "memória" é a repetição, cuja dimensão semântica indicamos acima. Todavia, a estrutura sintática do título "A rainha comilona", repete aquela encontrada em títulos como "A Gata Borralheira", "A Bela Adormecida", "A Moura Torta", "O Pequeno Polegar", "O alfaiatezinho valente", histórias bem conhecidas pelas alunas. Podemos então observar que há uma espécie de "memória sintática" relacionada ao conhecimento do gênero e do tópico em questão. Explicando melhor: escrever "histórias inventadas", para estas alunas, significativamente inseridas na cultura escrita de seu tempo, remete aos "contos de fada" que, dentre outras características, apresentam certas formas de titulação, fato que dificulta, por exemplo, nomear a história a ser escrita de "A menina que só usava vestido amarelo" ou "A rainha que comia muito" ou ainda "Um dia na escola".

CONCLUSÃO

O título do manuscrito "A rainha comilona" indica aglutinação de dois universos discursivos distintos, representando a memória do objeto e, portanto, sua dimensão dialógica. Entretanto, o 1º, 2º e 3º textos-dialogais, ao revelarem seu processo de geração, oferecem outros significativos elementos para entendermos o porquê de sua formulação para uma história inventada.

Um primeiro ponto a destacar reside no caráter etnográfico para estudos sobre o processo de escritura envolvendo uma abordagem genética e enunciativa. O registro da prática efetiva de se escrever um texto em ambiência escolar, em oposição ao artificialismo dos estudos experimentais, sobretudo aqueles baseados em protocolos verbais, não permite o controle rigoroso de variáveis, mas apresenta um ganho significativo ao preservar a singularidade e a imprevisibilidade do ato escritural. A presença do gibi sob a carteira, associado ao fato de Isabel já o conhecer e sua postura enquanto leitora - que se aproxima do modo de ler de um adulto para uma criança23 23 Um momento particularmente interessante em relação a esta postura acontece entre os 00:49 e 00:56 segundos, quando Isabel interrompe a leitura do gibi e explica para Nara o que o pai da Rapunzel iria fazer: "(Fazendo a voz da personagem) Óh! querido óh... cuidado... (Mudando o tom de voz e explicando.) ...que ele disse que... por causa que o pai irá pegar rabanete também" -, a repentina retirada do gibi das mãos de Isabel e, por fim, a formulação do título por Nara são os elementos essenciais para se compreender como se constitui o processo de criação deste manuscrito. O resgate dessa dinâmica, estabelecida no aqui e agora do processo de escritura a dois na sala de aula, mostrou de que modo a ideia ("qual vai ser o título da história") foi gerada, assim como indica a não linearidade da trajetória enunciativa que levou a sua formulação, apesar de ela ser registrada de forma linear na folha de papel.

Desse modo, e apesar dos "resultados extraordinários [da neurociência] quanto à localização e ao mapeamento das atividades da memória no cérebro", alinhamo-nos ao que disse Amorim (2009, p. 13). Defendemos que a memória semântica (individual) alocada no sistema cognitivo do sujeito está marcada pelo funcionamento intersubjetivo da memória do objeto (coletiva), constituída dialogicamente, através de sua transmissão social, e pelas relações associativas que esse sujeito pode imprevisivelmente enunciar.

É isso que irá justificar, de nosso ponto de vista, a imersão dos alunos desta faixa etária na cultura escrita, em particular aquela de caráter narrativo-ficcional. Os textos lidos, escutados, assistidos, mas, sobretudo o foco didático sobre a inventividade e o processo de criação deste gênero para o trabalho escritural de alunos recém alfabetizados, trazem a possibilidade de se colocar, desde cedo, o aluno-escrevente na posição de autor daquilo que escreve. Esse aspecto leva-nos à necessidade de se questionar as atuais orientações didático-curriculares oficiais, que defendem a institucionalização e instrumentalização da "diversidade de gêneros" (carta, receitas, notícias, bilhetes...) que o aluno deve aprender a reproduzir.

Apesar de Isabel ter liderado e conduzido todo este momento inicial da escritura, o ápice deste processo de geração do título está no movimento subjetivo feito por Nara, entre 01:46 e 01:48; lembramos que ela estava praticamente em silêncio até então. Nesse instante, ao formular inesperadamente o título "A rainha comilona", a aluna não só associa os dois universos discursivos (contos de fada e gibi), intertextualidade feita intencionalmente pela própria história "Magali em Rapunzel", mas principalmente sela uma direção para todo o resto do manuscrito ainda a ser escrito, ancorando um rumo para a inventividade e singularidade desta história. Ora, como explicar a associação que gerou este título, nesta situação escolar, se não considerarmos a memória do objeto transmitida socialmente, a memória do indivíduo que responde a essa transmissão e o estatuto do acaso no processo de escritura e criação textual?

Recebido em 21/02/2012

Aprovado em 05/06/2012

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  • 1
    Nosso objeto de estudo compõe o acervo do Laboratório do Manuscrito Escolar (L'ÂME), dedicado a documentar, arquivar e preservar práticas de textualização efetivadas em distintos contextos escolares.
  • 2
    É preciso pontuar que "leitura" e "texto" estão aqui compreendidos enquanto "linguagem como interação verbal" conforme indicado acima. Isto é, devem ser interpretados e m um sentido amplo, envolvendo toda peça semiótica, oral, visual e/ou escrita, constituída sócio-historicamente, por exemplo, falas de pais e professores, propagandas de TV, filmes, músicas, gibis, contos de fada, etc. Essas peças, constituídas intersubjetivamente através da interação, irão compor a "memória" do sujeito, inscrevendo-o na cultura de seu tempo.
  • 3
    A necessidade de uma reflexão interdisciplinar em torno da "memória" e seu funcionamento tem sido recentemente defendida por autores vinculados a diferentes disciplinas, discutindo distintos objetos (WERTSCH, 2010; ADAM, FENOGLIO, 2009; FENOGLIO, CHANQUOY, 2007; PLANE, OLIVE, ALAMARGOT, 2010). Do ponto de vista específico da escritura, há um consenso entre os pesquisadores ao entendê-la enquanto uma atividade complexa, reconhecida desde os trabalhos de Hayes e Flower (HAYES, FLOWER, 1980; FLOWER, HAYES, 1980), constituída pelo escrevente ao longo de anos de experiência e prática (KELLOGG, 2008), envolvendo sobretudo o desenvolvimento da memória de long o termo, memória semântica, memória de trabalho e a aprendizagem, a articulação e a automação de vários subsistemas cognitivos e linguísticos (grafo-motor, viso-espacial, sintático, ortográfico, morfológico), além de fatores pragmáticos e comunicacionais em que se insere a tarefa de escrever. Este consenso, por si só, poderia ser um forte argumento a favor de uma leitura interdisciplinar das relações entre a "memória" dada pela cultura e a "memória" operada no e pelo sujeito escrevente.
  • 4
    O uso deste termo justifica-se pela necessidade de se preservar, ao longo deste artigo, os termos reconhecidos pela Psicologia Cognitiva. Mesmo os autores filiados a este campo de saber não supõem que o "indivíduo" seja uma máquina de falar e escrever, autônoma e homogênea, com pleno domínio de seu conhecimento e vontade. O que seria, certamente, uma crítica apressada e injusta de seus trabalhos.
  • 5
    Conferir os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e o site
    www.fnde.gov.br/index.php/beapresentacao, onde se pode encontrar a relação de livros distribuídos às escolas brasileiras. Há, dentre eles, uma quantidade significativa de "histórias em quadrinhos". Para um panorama da história recente destas políticas públicas valorizando as histórias em quadrinhos, consultar o artigo "Os quadrinhos (oficialmente) na escola: dos PCN ao PNBE" (VERGUEIRO, RAMOS, 2009).
  • 6
    Refiro-me ao início dos anos 90: os Parâmetros Curriculares Nacionais são de 1997, quando a noção de "gênero discursivo" encontrava seus primeiros ecos no ensino brasileiro. Naquele momento, inclusive, havia muito pouca discussão de caráter instrumental ou didático voltada para o uso deste gênero na sala de aula, destacando seus elementos composicionais ou temáticos, diferentemente do que pode ser encontrado nos livros didáticos de português em circulação atualmente. Cabe lembrar, por fim, que as alunas desse estudo cursavam o último ano de Educação Infantil, hoje incorporado ao Ensino Fundamental de 9 anos.
  • 7
    Maurício de Souza e seus personagens mais importantes (Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Chico Bento...) podem ser considerados uma referência "clássica" da literatura infantil brasileira "de massa", assim como o é Tintin (HERGÉ) para o público infanto-juvenil francês ou o Tio Patinhas (WALT DISNEY) para o norte-americano.
  • 8
    Conferir o importante "estado da arte" estabelecido por Alamargot e Chanquoy (2001).
  • 9
    A tradução destas três noções foi proposta por Yamamoto e Ades (2002).
  • 10
    Programa de computador com sofisticado recurso de sincronização entre imagem e som.
  • 11
    Lê-se: "vinte seis minutos e dezenove segundos".
  • 12
    Como defendemos alhures, o termo "manuscrito" qualificado enquanto "escolar" está vinculado aos trabalhos em Genética Textual e visa a caracterizar a dinâmica do processo de criação. Neste sentido, o material de análise a ser discutido faz parte do "dossiê genético Vila", pertencente ao L'AME, no qual reunimos o maior número possível de documentos (manuscritos, relatórios de professores, atividades diversas realizadas em sala de aula, entrevistas com os pais e professores, etc.), coletados durante o desenvolvimento desta investigação.
  • 13
    Esta asserção pode ser verificada em Calil (2009a).
  • 14
    O reconhecimento deste interessante aspecto remete ao que Bereiter e Scardamalia (1987) chamaram de "estratégia de contar o conhecimento"
    (knowledge telling strategy), quando o escrevente novato recupera associativamente conteúdos da memória que são imediatamente escritos sem que haja, ao longo do processo de escritura, um retorno para (e uma reflexão sobre) possíveis adequações à tarefa, às metas e à audiência do texto.
  • 15
    Um breve comentário sobre este título foi feito em Calil (2009a, p.131-132).
    16 O uso de todas as imagens foi autorizado pelos sujeitos envolvidos. Isabel está de camiseta branca, à esquerda, e Nara está de preto, à direita.
  • 17
    Lembramos que a memória se faz por elementos que circulam no universo cultural destes alunos. A coincidência entre o gibi -publicado em janeiro de 1990 -estar embaixo da mesa de trabalho e de Isabel ter o mesmo gibi em casa -a filmagem foi feita em junho de 1991 -é um forte indicativo da proximidade entre os universos culturais da escola e da família.
    18 Texto do recordatório: "Era uma vez um casal de camponeses muito pobres, cuja riqueza era sua filhinha chamada Magali Rapunzel..."(SOUSA, 1990, p. 3).
    19 Texto do recordatório: "...que os deixava ainda mais pobres com sua fome insaciável!" (SOUSA, 1990, p. 3). Na transcrição da fala de Isabel observamos uma leitura entrecortada, alterando o que está de fato escrito neste recordatório. Optamos por transcrever exatamente como ela proferiu.
    20 Texto do recordatório: "Para piorar tudo, uma bruxa que morava por ali impedia de crescer qualquer plantação..." (SOUSA, 1990, p. 3).
    21 Texto do recordatório: "...a não ser nas terras dela!!" (SOUSA, 1990, p.3).
  • 22
    A presença do gibi e seu efeito na história a ser inventada pelas alunas remetem ao que Perroni (1992) nomeou como "apoio no presente". Segundo a autora, este fenômeno se manifesta no processo inicial de aquisição de narrativa oral e é definido como a entrada na história narrada de objetos presentes no contexto imediato da interação.
  • 23
    Um momento particularmente interessante em relação a esta postura acontece entre os 00:49 e 00:56 segundos, quando Isabel interrompe a leitura do gibi e explica para Nara o que o pai da Rapunzel iria fazer: "(Fazendo a voz da personagem)
    Óh! querido óh... cuidado... (Mudando o tom de voz e explicando.) ...que
    ele disse que... por causa que o pai irá pegar rabanete também"
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      21 Fev 2012
    • Aceito
      05 Jun 2012
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