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Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov

Resumos

Propõe-se neste artigo abordar o que se refere à ontologia dialógica em perspectiva bakhtiniana por ser um tópico essencial relacionado ao agir dos sujeitos no âmbito do dialogismo. Da definição desse agir decorre uma concepção de linguagem que embasa a teoria da enunciação do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Assim, pretende-se, aqui, examinar as implicações do estatuto do sujeito na filosofia da linguagem bakhtiniana e sua consequente aplicação na teoria enunciativa do Círculo, o que torna necessário explorar as bases filosóficas da arquitetônica bakhtiniana quanto ao princípio dialógico, às concepções de identidade e intersubjetividade, à avaliação social, à responsabilidade ética e ao relacionamento entre os sujeitos. Pretende-se demonstrar que o sentido advindo da enunciação é da ordem do estatuto ontológico, de cunho social e histórico, dos sujeitos em interação.

Dialogismo; Ontologia dialógica; Estatuto do sujeito


This paper aims to explore the dialogical ontology from a Bakhtinian perspective for this is an essential topic linked to subjects' agency in the context of dialogism. From this acting definition emerges a conception of language that is the basis of the Bakhtin, Medvedev, VoloŠinov Circle's theory of enunciation. Thus, one intends to examine here the implications of the statute of the subject in Bakhtin's philosophical theory and its resulting application in the Circle's enunciative theory, which makes necessary to explore the philosophical bases of the Bakhtinian architecture as regards the dialogical principle, the conceptions of identity and intersubjectivity, social evaluation, the ethics of responsibility and the relationship among subjects. One aims to show that sense, resulting from enunciation, has to do with the ontological statute, understood as a social and historical one, of interacting subjects.

Dialogism; Dialogical ontology; Statute of the subject


ARTIGOS

Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov

Vera Lúcia PiresI; Adail SobralII

IProfessora do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter, Porto Alegre, Rio Grande do Sul e da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil; pires.veralu@gmail.com

IIProfessor da Universidade Católica de Pelotas – UCPel, Pelotas, RS, Brasil; adail.sobral@gmail.com

RESUMO

Propõe-se neste artigo abordar o que se refere à ontologia dialógica em perspectiva bakhtiniana por ser um tópico essencial relacionado ao agir dos sujeitos no âmbito do dialogismo. Da definição desse agir decorre uma concepção de linguagem que embasa a teoria da enunciação do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Assim, pretende-se, aqui, examinar as implicações do estatuto do sujeito na filosofia da linguagem bakhtiniana e sua consequente aplicação na teoria enunciativa do Círculo, o que torna necessário explorar as bases filosóficas da arquitetônica bakhtiniana quanto ao princípio dialógico, às concepções de identidade e intersubjetividade, à avaliação social, à responsabilidade ética e ao relacionamento entre os sujeitos. Pretende-se demonstrar que o sentido advindo da enunciação é da ordem do estatuto ontológico, de cunho social e histórico, dos sujeitos em interação.

Palavras-chave: Dialogismo; Ontologia dialógica; Estatuto do sujeito

A vida é dialógica por natureza.

Viver significa participar de um diálogo.

BAKHTIN

Introdução

A ontologia dialógica de Bakhtin não é um tópico que tenha sido discutido explicitamente nem proposto por Bakhtin e seus colegas como tal. Porém, refletindo sobre suas obras, somos levados a pensar sobre esse tópico, no que diz respeito às suas relações com a teoria bakhtiniana da enunciação, precisamente por ser ela centrada no agir dos sujeitos e nas suas relações sociais e históricas, e por ter ela uma concepção especialíssima do agir do sujeito.

O vínculo entre esse estatuto e a teoria bakhtiniana da enunciação parece-nos ser o que garante à teoria e análise dialógica do discurso um estatuto ímpar entre as teorias da enunciação, assim como a sua produtividade, isoladamente ou em legítimos diálogos com outras propostas compatíveis, além de outros exteriores teóricos. A proposta dialógica implica que, ainda antes de o sujeito enunciar, seus enunciados já venham alterados pelo(s) outro(s) a quem são endereçados.

Isso indica que não se pode compreender devidamente o caráter revolucionário da teoria enunciativa de Bakhtin e seus colegas sem saber qual é o estatuto do sujeito nessa proposta, uma vez que desse estatuto decorre a concepção de linguagem. Assim, pode-se defender a ideia de que não é possível empregar noções e conceitos de uma teoria sem comprometer-se com suas bases, ou sem dialogar com ela no tocante às divergências e convergências, caso se tenha outra posição teórica; o diálogo com outras teorias só é legítimo se não se apagarem as diferenças em nome de supostas semelhanças não demonstradas.

Podemos dizer que, para Bakhtin, o contato dialógico entre os sujeitos, contato em que se tornam sujeitos, não é necessariamente um lugar de harmonia, nem um lugar em que alguns sujeitos simplesmente dominam outros, mas um espaço em que há uma tensão indecidível de negociação in situ de identidade, ou melhor, de identificar-se, o que é uma tarefa interminável. Logo, falar sobre sujeito e identidade em Bakhtin é entrar em um terreno movediço, o do so-bytie (ser com), o evento do ser, que é tanto uma coisa que acontece quando os sujeitos nascem, como uma tarefa que realizam continuamente até a morte.

Enunciado em russo é palavra composta, so-bytie vyskazvanie, ou seja, enunciado enunciado, enunciado concreto (SOUZA, 1999), evento irrepetível, fincado no ser, bytie. O sentido nasce da enunciação, e não das formas da língua e, em consequência, insistimos, sem determinar o estatuto do sujeito que enuncia, não é possível compreender o que ele enuncia nem seu ato de enunciar. Pretendemos aqui examinar as implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshinov.

As propostas de Bakhtin e colegas se acham inseridas numa longa tradição anticartesiana que tem em Kant um de seus pontos altos. Conforme Pires (2012), desde que I. Kant colocou em dúvida o preceito cartesiano da consciência (razão pura), o sujeito viu-se na contingência de encarar a precariedade da identidade, uma vez que ela é negada pelo outro. Bakhtin, como se sabe, dialogou amplamente com Kant (cf. p. ex. SOBRAL, 2005), podendo-se considerar o pensador alemão como uma das bases das propostas de Bakhtin.

Nesse mesmo caminho, o filósofo austríaco M. Buber, de outra perspectiva, propôs o "dialogismo da palavra", fundando a filosofia do diálogo, que afirma a palavra como um meio de relação entre os seres humanos e a experiência da intersecção ou interação. Partindo do princípio do homem como ser situado no mundo com os outros, Buber (2007) afirmou a não existência individual fora da abertura para o outro. O tu é condição de existência do eu.

Muito jovem, Bakhtin teve contato com o pensamento de Buber, com o qual manteve uma interlocução crítica (TODOROV, 1981; CLARK e HOLQUIST, 1998; EMERSON, 2003). Como Buber, Bakhtin pregava uma dimensão irrevogável da responsabilidade ética da existência humana e a valorização do ato de responder. Disse esse autor:

Respondemos ao momento, mas respondemos, ao mesmo tempo por ele, responsabilizamo-nos por ele. Uma realidade concreta do mundo, novamente criada, foi-nos colocada nos braços: nós respondemos por ela. (...) uma multidão de homens move-se em torno de ti, tu respondes pela sua miséria (BUBER, 2007, p.50).

Assim, Bakhtin e seus colegas, na segunda década do século XX, já pregavam o "ato ético" como um ato participativo – não indiferente, solidário, responsável e responsivo – do agir humano no mundo concreto (social e histórico). Eles assumiam o caráter compreensivo e responsável da resposta ativa de cada sujeito na vida cotidiana.

Para o pensador russo, "viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida" (BAKHTIN, 2010, p.174). Trata-se de uma ontologia que requer que seja reforçado o fato de a filosofia ética de Bakhtin ser a base de suas teorias discursivas, como se pode ver não apenas em Para uma filosofia do ato (cf. Bajtín, 1997), mas também em muitas obras em que Bakhtin e o Círculo escrevem sobre o estatuto dos sujeitos.

Isso implica que, sem o devido reconhecimento e compromisso com os princípios filosóficos do filósofo russo, corre-se o risco de propor e/ou "aplicar" uma teoria dialógica ready-made, isto é, uma técnica formulaica de análise, algo que vai contra o que Bakhtin pensava. Veem-se hoje usos vagos e generalizados de diálogo, dialogia e de dialogismo em estudos de linguagem e identidade, por abordagens não dialógicas, principalmente sociointeracionistas, e mesmo por teorias estritamente textuais, todas tentando legitimar suas propostas dizendo seguir a perspectiva de Bakhtin, ao tempo em que atenuam seu impacto ao se manterem num nível mais textual do que propriamente discursivo.

Não quer isso dizer que essas perspectivas não sejam legítimas, mas que delas se deve exigir, seguindo Bakhtin, que se comprometam até o fim com seus princípios específicos, em vez de se refugiarem nos aspectos superficiais de uma proposta com cujas bases filosóficas não desejam envolver-se. É legítimo assim um diálogo que reconheça as implicações das teorias envolvidas e que estabeleça um entendimento, ainda que em meio a uma não concordância.

1 Sujeito e identidade: explorando um terreno movediço

Para a teoria bakhtiniana, onde os sujeitos constituem as suas identidades? No mundo. Os sujeitos são eventos no mundo, inscrições de ser e de sentido no mundo. Mas que mundo é esse? É um mundo concreto-transfigurado. Mundo concreto, porque é um mundo que existe (fenomenologicamente) antes de nós e ao nosso redor. Mas é também mundo transfigurado, mundo interpretado, representado simbolicamente (no sentido de Cassirer), um mundo avaliado, valorado. É um mundo cuja representação refratada é já uma avaliação, jamais reflexo de alguma realidade, porque esse mundo nunca é visto sem ser transformado pelos processos sociopessoais de objetivação e apropriação (no âmbito do materialismo dialético).

A objetivação é, para além de um reflexo do mundo, uma representação refratada do mundo, envolvendo uma interpretação social, e isso depende da forma como cada sociedade, e até mesmo como cada grupo social nela, é capaz de ver e de "dizer" o mundo. A objetivação, que possui um caráter mais social, é adicionalmente modificada pela apropriação, que depende dela, mas também a altera.

A apropriação é o processo pelo qual os sujeitos particulares representam para eles mesmos, de maneira pessoal, mas não completamente subjetiva, o mundo já alterado pela objetivação. As representações sociais são o resultado das formas e tipos de relações sociais que se formam entre os sujeitos, e essas relações são assim tanto sociais como pessoais. Dessa forma, a apropriação é a forma pessoal de o sujeito ser social, enquanto a objetivação é a forma social de o sujeito ser pessoal.

A objetivação afeta a apropriação porque os sujeitos encontram um mundo já transfigurado, mas também é afetada pela apropriação, pois resulta das diversas apropriações feitas por sujeitos diferentes. Se os sujeitos mudam na sociedade, eles também mudam a sociedade, uma vez que esta não preexiste às relações entre eles e estas relações são, como vimos, mutáveis e mutantes.

Bakhtin não aceita o isolamento total como a nossa condição, mas certamente propõe uma espécie de isolamento constitutivo, ou seja, os sujeitos são sujeitos no sentido de eu-para-mim, mas também são relacionais, isto é, eu-para-o-outro. Bakhtin sugere que a batalha da identidade, eterna batalha, acontece entre esses dois extremos: o ser-para-si e o ser-para-o-outro. Dialogando com Ricoeur (1990), pode-se dizer que se trata da relação entre o ipse (os aspectos sempre em mudança) e o idem (os aspectos relativamente constantes), e entre o eu e o outro, ou seja, numa dupla arena dialógica.

Tarefa difícil, essa batalha recompensa os sujeitos porque, propondo, além das categorias de ser, categorias de tornar-se, de vir-a-ser, contextualmente ligadas, reconhece que há sempre novas oportunidades para os sujeitos se completarem a partir do contato estabelecido com cada outro novo sujeito (e com os mesmos sujeitos em outros contextos). Estamos sempre nos tornando os seres que somos! Se, antes de falar ou agir, os sujeitos já são alterados por outros, tanto prospectiva quanto retrospectivamente, não poderia haver um nível de consciência que fosse completamente subjetivo no sentido de apartado de todas as vivências dos sujeitos. Mas a individualidade, não estritamente psicológica, ao se referir aos sujeitos, é uma das bases da identidade. Somos todos sujeitos, mas não somos os mesmos sujeitos sempre, devido ao processo dinâmico de identificar-se que constitui nossa existência.

A outra base da identidade é, obviamente, a relação entre sujeitos, do nascimento à morte. Quando sugere (e ele o faz em muitos lugares e de muitas maneiras) que a intersubjetividade é a morada da subjetividade, Bakhtin se refere ao nosso ser dialógico por natureza: tornamos-nos sujeitos em contato com outros sujeitos. Nosso primeiro contato com o nosso eu parece-nos ser um contato com o outro: quando os sujeitos veem uma imagem no espelho pela primeira vez, eles não sabem que é a sua própria imagem! Só mais tarde eles vão perceber que é uma imagem especular de si. A identidade é, então, algo que criamos para nós mesmos a partir dos fragmentos nossos fornecidos por outros, pelo espelho do outro.

Todos os sujeitos vêm a ser, ou, melhor, estão sempre se tornando algo, com base em suas relações com outros sujeitos. Mas cada um o faz de uma maneira individual. Para Bakhtin, ser implica a capacidade de mudar, mas cada sujeito o faz de sua forma: estamos sempre mudando de acordo com as relações em que entramos. Nossa subjetividade vai se formando continuamente em novas relações com os outros e em nossas relações com os outros.

Ela se forma porque cada relacionamento nos traz novos fragmentos sobre nós mesmos, e porque os usamos para sermos mais o que somos, ou melhor, o que somos capazes de nos tornar. Os outros nos ajudam a ser muito mais os seres que podemos nos tornar para sermos cada vez mais completos, ainda que não haja uma teleologia fixa: estamos sempre nos completando, jamais sendo completos nem autárquicos.

Assim, os sujeitos são um constante tornar-se e não um ser fixo. Somos sujeitos porque sempre nos tornarmos os sujeitos que somos – e cada sujeito é singular, único, embora necessariamente cindido. Somos não terminados e intermináveis. Não há, repetimos, a identidade como algo fixo, mas apenas modos individuais de identificar-se. Cada sujeito é sujeito a sua própria maneira, que muda de acordo com os diferentes outros com os quais ele se relaciona: o eu é o outro do outro.

Somos relativos ao mundo e ao tempo em que vivemos, e, sendo assim, nossa vivência é compartilhada com muitos. Conforme enfatiza Santos (1996, p.136), "o primeiro nome moderno da identidade é a subjetividade". A subjetividade é o que fundamenta nossa percepção de ser humano. É ela que viabiliza nossa identificação com alguns e nosso "olhar enviesado" para outros; é ela o que funda as identidades. Eu, um ser humano que diz "eu", me apoio em, e me identifico com uma cultura que me engendrou, mas que também sofreu a influência de minha presença. Em outras palavras, o ser humano só é possível por meio do pertencimento a uma comunidade social, mas é necessário enfatizar que não há comunidade sem relações entre sujeitos.

Por outro lado, as identidades existem somente a partir do momento em que o sujeito se propõe como tal, por meio da linguagem, e constrói o mundo em sentido, sendo nesse ponto que os conceitos de subjetividade e identidade se cruzam. Dessa forma, afirmamos que a linguagem viva, não o sistema da língua, é constitutiva tanto das identidades como das subjetividades.

Talvez pudéssemos dizer que, assim como os gêneros, a identidade é um processo relativamente estável: tem um tema (a versão específica de cada sujeito sobre "ser um sujeito"), formas de composição (as maneiras com que esta versão toma forma de acordo com os contextos, mantendo alguns elementos constantes, mas mobilizando-os situadamente) e um estilo (o modo específico de cada sujeito mobilizar o tema e a forma de composição).

Nesse sentido, a partir do projeto enunciativo que é a sua autotransformação em um sujeito irrepetível na vida, sem fuga de responsabilidade, o sujeito mobiliza esses elementos e cria uma forma arquitetônica para a sua própria vida, para o seu próprio modo de ser no mundo, em um processo contínuo que permite que ele seja cada vez mais si mesmo ao longo das tantas mudanças por que passa.

Temos, então, ipse e idem em uma espécie de conflito interno e o eu e o(s) outro(s) em conflito externo, interiorizados e exteriorizados: o individual e o social se encontram no ponto em que a valoração entra em cena. A valoração, ou seja, a entoação avaliativa, é a base do projeto enunciativo; os sujeitos mudam a partir de suas próprias posições avaliativas, não de algum "dever-ser" essencialista.

Portanto, nosso "ser no mundo" é mais bem entendido como um "tornar-se no mundo", definindo-se nas distintas situações de que fazemos parte e segundo os distintos outros com quem interagimos. O conjunto total dessas interações e as identificações que cada uma delas nos traz constituem assim a identificação: um ato contínuo de autocriação "alterada", um constante identificar-se.

Nesse processo, como a filosofia do ato de Bakhtin nos permite dizer, os sujeitos mobilizam o conteúdo do ato (os aspectos comuns a todos os atos de identificação), o processo do ato (aspectos pertinentes apenas a cada ato irrepetível de identificação) e a sua própria valoração, avaliação, contextualmente vinculados, sobre como integrar o conteúdo e o processo em cada ato de identificação para si e para ser si mesmo "alteradamente".

Como vimos, a filosofia de Bakhtin se concentra na ideia de que a identidade é um processo constante de autoconstituição dos sujeitos, em um contato inevitável com outros sujeitos, em situações concretas, e não uma essência etérea, já e sempre presente. O fato de que a subjetividade vem da intersubjetividade e de que o "não-eu" é vital para o eu se definir é o núcleo do dialogismo ético de Bakhtin, apontando para a impossibilidade de dar uma resposta definitiva (embora sempre tentemos fazê-lo com a nossa atitude responsiva) ao Ser Absoluto (o ser essencial) e ao Sentido Absoluto (o sentido essencial) como tais.

Assim, Ser e Significar requerem uma mediação por uma espécie de, por assim dizer, "sujeito-objeto", um "super/suprassujeito", dotado de uma materialidade específica que integra (para usar as categorias de Lacan) simbólico, imaginário e real em um indecidível/indiscernível/irrealizável Ser/Sentido (cf. ZAVALA, 1997).

2 Sujeito, desejo e sentido: eu-para-si e eu-para-o-outro

Os sujeitos podem apenas realizar desejos (mas não o desejo) e sentidos (mas não o sentido), nos contextos específicos em que estão, e isso só pode acontecer quando eles veem os outros e a si mesmos a partir de fora, a meio caminho entre si e os outros, exotopicamente, pois. Dessa forma, Bakthin propõe como nossa tarefa como sujeitos (na sua filosofia ética não hegeliana kantiana, materialista dialética e fenomenológica) ir até o outro (ser um eu-para-o-outro), mas, em seguida, voltar a si mesmo (ser um eu-para-si) depois de ter visto o que só o outro pode nos mostrar e de ter mostrado ao outro aquilo que ele não pode ver sozinho (como em um espelho refrator).

Para evitar um isolamento negativo e para nos definirmos como sujeitos, cada qual com seus pontos de vista distintos ("consciências imiscíveis"), devemos estabelecer um relacionamento, não necessariamente para tornar nossas perspectivas compatíveis, mas para saber o que nos distingue dos outros, algo que possa criar ou não um terceiro ponto de vista, mas que sempre altere de alguma forma os sujeitos que se relacionam.

Logo, Bakhtin não vê os sujeitos em isolamento absoluto, mas tampouco propõe uma fusão completa, uma despersonalização, em um social "todo abrangente". O que ele propõe é que os sujeitos vivem em certo isolamento constitutivo, ou seja, como sujeitos insubstituíveis (eu-para-si), mas também necessariamente relacionais (eu-para-o-outro) e assim criam a totalidade provisória de suas identidades, assimilando os detalhes sobre eles que outros sujeitos (cada um a seu modo) os fazem ver em cada situação.

Esse isolamento constitutivo, insistimos, é positivo, porque por meio do interesse que os outros têm por nossos atos individuais advém o material com o qual criamos a imagem da nossa totalidade, móvel e provisória, o que não podemos fazer sozinhos. Essa proposta difere de muitas propostas sobre identidade (ou sobre o sujeito) que procuram salvaguardar quer uma idealista "inocência" de pobres sujeitos subjugados, que tentam usar álibis falsos para escapar à responsabilidade, quer uma arrogância de sujeitos que julgam ter um absoluto controle de sua existência.

A filosofia de Bakhtin reconhece dois aspectos complementares: de um lado, nosso "inacabamento" (em russo nezavershennost) e as restrições que nos afetam e, do outro, nossa responsabilidade como sujeitos, algo inevitável para essa filosofia, porque entende que a condição para a liberdade humana é o reconhecimento, em vez da negação, dessas restrições; a consciência de nossa "situacionalidade única", o que não nos impede de agir à nossa maneira irrepetível em situações concretas – sem álibis.

Se Ricoeur propõe o ipse e o idem para a definição da identidade dos sujeitos, Bakhtin também propõe tanto algo que marca estabilidade como algo que marca instabilidade, em um relacionamento permanente: fazemo-nos a nós mesmos como sujeitos, sempre alterados por outros e alterando-os, mas também sentimos algo que nos diz: "Eu sou o sujeito x, não o y... o n". Isso está ligado à ideia da "assinatura" que cada um de nós deixa em nossos atos e enunciados, à ideia do nosso ser responsável por tudo o que fazemos, mesmo inconscientemente, o que não implica viver necessariamente carregados da culpa pelo que não nos é dado saber ou ver, mas viver a responsabilidade pelo que sabemos, vemos e pelo que fazemos.

Vemos assim que, para Bakhtin, cada sujeito é "povoado" por múltiplos outros; é, num certo sentido fragmentado internamente e externamente, mas, mesmo assim, é um ser único e insubstituível, devido ao "inacabamento" e à "situacionalidade": não há identidade como um produto, mas um processo de autoidentificação contínuo que inicia com o nascimento e encerra com a morte, os únicos momentos em que cada sujeito está completamente sozinho.

Dessa forma, nosso ser está em constante transformação, e cada transformação nos ajuda a sermos mais aquilo que podemos ser a cada momento, pois não há essência humana alguma, exceto um núcleo de ser que cada um de nós identifica como eu, embora não totalmente consciente. Trata-se de um núcleo que só é identificado por um sujeito devido ao contraste de espelho que os outros lhe oferecem.

3 Sujeito e enunciação em chave bakhtiniana

Vamos agora examinar as implicações dessa caracterização do sujeito, em sua relação com a identidade e o sentido, para a teoria e análise dialógica do discurso. Deve-se apontar, antes de tudo, para o fato de que a ontologia dialógica bakhtiniana é uma ontologia baseada em uma ousada releitura da filosofia kantiana e neokantiana e do materialismo dialético (cf. SOBRAL, 2005, 2009, 2010).

O interesse maior do Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshinov no campo das ciências humanas foi a linguagem enquanto uso da língua nas interações, que são sociais. Eles perceberam na enunciação – momento de uso da linguagem – um processo que envolvia não apenas a presença física de seus participantes como também o tempo histórico e o espaço social de interação, bem como os modos de ser-no-mundo dos sujeitos. Para tanto, a abordagem enunciativa bakhtiniana dá conta do discurso, ou seja, contempla "a linguagem em sua totalidade concreta e viva" (BAKHTIN, 1981, p.181), o que pressupõe sujeitos endereçando enunciados uns aos outros e constituindo-se mutuamente como sujeitos numa situação que, se nasce dessas suas interações, não é constituída inteiramente por eles.

Na trilha do pensador russo, Sobral esclarece quanto a isso que:

O agir do sujeito é um conhecer em vários planos que une processo (o agir no mundo), produto (a teorização) e valoração (o estético) nos termos de sua responsabilidade inalienável de sujeito humano, de sua falta de escapatória, de sua inevitável condição de ser lançado no mundo e ter ainda assim de dar contas de como nele agiu (2005, p.118).

A enunciação apresenta uma estrutura dialógica de relação entre o eu e o tu/outro. O mundo exterior chega a mim via palavra do outro. Todo enunciado é apenas um elo de uma cadeia infinita de enunciados, um ponto de encontro de opiniões e visões de mundo. O Círculo de Bakhtin entende o significado de diálogo como um princípio geral da linguagem, de comunhão solidária e coletiva, porém sem passividade. O grande mérito do grupo, para os estudos do discurso, foi resgatar o sujeito e seu contexto social, via dialogismo interativo, trazendo com eles a história. O sujeito bakhtiniano constitui-se, desse modo, como um ser social, histórico e ideológico.

Conforme Faraco (2003), o tema diálogo, nos escritos do Círculo, designa um grande simpósio universal que define o existir humano e que deve ser visto em termos de relações dialógicas, ou seja, em termos de relações semânticas tensionadas, envolvendo valores axiológicos entre sentidos diversos de enunciados em contato. A relação dialógica é sempre polêmica, não há inércia. Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu cerne uma resposta, já que implica seres humanos.

A partir da convivência com os outros, o ser se constitui humano. Assim, o princípio dialógico funda a alteridade e estabelece a intersubjetividade antecedendo à subjetividade, visto que "o pensamento das ciências humanas nasce como pensamento sobre o pensamento dos outros" (BAKHTIN, 2010, p.308). Reconhecer a dialogia é encarar a diferença, uma vez que é a palavra do outro que nos traz o mundo exterior.

A palavra tem duas faces, isto é, parte de alguém com destino a outro alguém. Deste modo, tendo a enunciação como a marca de um processo de interação entre os seres humanos, o Círculo Bakhtin, Medvedev, Voloshinov instituiu o princípio dialógico para o estudo de seu objeto.

Por ser uma prática social cotidiana e por envolver a experiência do relacionamento entre os seres humanos, a linguagem deve ser vista como uma realidade que define a própria condição humana (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1986). Se a partir do estatuto do sujeito vemos a especificidade da enunciação segundo Bakhtin, no uso da linguagem vemos a forma como esse estatuto se constitui, uma vez que viver é um constante dialogar e o diálogo se realiza preponderantemente por meio da linguagem verbal.

Relações intersubjetivas, sob o ponto de vista baktiniano, necessitam ser estudadas por intermédio de um conjunto de noções, de temas (uma arquitetônica) referentes à palavra como signo ideológico e dialético -ao princípio dialógico, bem como aos discursos do cotidiano e, seguindo Ponzio (2008, p.201), ao "humanismo da alteridade". A partir dessas condições, podemos refletir sobre o fundamento da ideia de a subjetividade ser sustentada pela intersubjetividade dialógica.

A linguagem é tecida por meio de uma trama de elementos ideológicos, a qual parte da relação das palavras/enunciados com a realidade, com seu autor e com as outras palavras anteriores. O juízo de valor, implicado na responsabilidade/responsividade advém daí, pois, ao expressar vivências plurais, a linguagem reflete e, ao mesmo tempo, refrata a realidade, uma vez que sendo a palavra um "fenômeno ideológico por excelência", e por isso mesmo avaliativa, "pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico" (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1986, p.32, 36).

No pensamento dos estudiosos do Círculo, como já foi dito, a intersubjetividade é anterior à subjetividade, uma vez que é o pensamento dos outros que institui a subjetividade. Nesse sentido, o princípio dialógico edifica a alteridade como constituinte do ser humano e de seus discursos.

Nossa fala, isto é, nosso(s) enunciado(s)

[...] é [são] pleno [s] de palavras dos outros, (Elas) trazem consigo a sua própria expressão, seu tom valorativo, que assimilamos, reelaboramos, reacentuamos (...) Em todo o enunciado, quando estudado com mais profundidade (...) descobrimos as palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade (BAKHTIN, 2010, p.294-299; sem itálico no original).

A intervenção da alteridade na "mesmidade" do sujeito é constante: "vivo em um mundo de palavras do outro" (BAKHTIN, 2010, p.379). A identidade, que também se constrói mediante atos de enunciação, é, por consequência, um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro e um reconhecimento do outro pelo sujeito que a ele se dirige.

Considerações Finais

Vimos que, em termos bakhtinianos, não há identidade como produto, mas um processo de autoidentificação contínuo que cada sujeito realiza, entre outros sujeitos, do nascimento à morte, quando o sujeito deixa de existir, mas não os ecos refratados de seu existir. Os atos que praticamos, baseados nas avaliações sociais, são atos comprometidos com o grupo social.

O sentido nasce desse movimento de dizer-se ao outro nos termos presumidos do outro e de dizer o outro em nossos termos, com uma "tradução" de si e do outro em termos de um terreno partilhado com ele mediante a dinâmica entre a entoação avaliativa e a responsividade ativa – algo que constitui um dos pontos altos da proposta de Bakhtin e a faz diferir das várias outras teorias da enunciação, dando-lhe sua face específica.

O caráter compreensivo, responsivo e ético da existência humana apela às pessoas a assumirem responsabilidades. Por isso, o ser humano não tem escapatória: "não há álibi para a existência" (BAKHTIN, apud FARACO, 2007; 2003). Em nossa produção discursiva, somos intermediários/mediadores que dialogam e polemizam com outros discursos existentes na sociedade. A relação dialógica é sempre polêmica, não há passividade. Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu cerne uma resposta. O ser humano e sua linguagem sempre presumem destinatários e suas respostas responsáveis, mesmo a despeito deles.

O sentido, advindo da enunciação, nasce dessa tarefa interminável, podendo-se afirmar que dizer é dizer-se, é dizer de um dado sujeito perante outros sujeitos; que enunciar é o processo mediante o qual o sujeito, ao dizer, se diz ser, e diz o ser do outro. Logo, o sentido na concepção dialógica, é da ordem do estatuto ontológico, de cunho social e histórico, dos sujeitos em interação. As implicações do conceito de dialogismo vão assim além do plano do discurso ou de propostas filosóficas, incidindo sobre a responsabilidade ética, sem álibi, dos sujeitos. Assim, a intersubjetividade na linguagem como ponto alto do ser do sujeito no mundo marca ainda o compromisso e a responsabilidade do pesquisador de expressar uma posição conveniente, e pertinente, ao seu momento histórico, social e cultural.

Seguindo Santos (2004, p.71), pode-se afirmar que a concepção humanista de ciências sociais considera a pessoa como autor e sujeito do mundo, colocando a natureza no centro do ser humano. Em outra ordem de considerações, o pensamento bakhtiniano, para além dos aspectos teóricos, influencia nossa opção pelo humanismo moderno, centrado na cultura do diálogo e nas experiências do cotidiano, por acreditarmos no envolvimento e no compromisso do ser humano com o seu tempo e com o seu lugar, responsável e responsivamente, sem álibis. É esse compromisso que requer conhecer as bases filosóficas das propostas bakhtinianas de dialogismo, bem como reconhecer suas implicações não apenas para a análise dialógica do discurso como para a postura ética e estética, dos pesquisadores e mesmo dos seres humanos em geral – nestes tempos que podem ser chamados de "era do reconhecimento" da alteridade.

Recebido em 04/03/2013

Aprovado em 05/06/2013

  • BAJTIN, M. M. Hacia uma filosofia del acto ético De los borradores y otros escritos. Trad. e notas: Tatiana Bubnova. Barcelona/San Juan: Anthropos/EDUPR, 1997.
  • BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2013
  • Aceito
    05 Jun 2013
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