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Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica

Resumos

Este artigo dá continuidade a pesquisas a respeito da contribuição possível de Bakhtin e do Círculo para a leitura, análise e interpretação das formas de produção de sentido e efeitos de sentido de textos cuja marca principal é a constitutiva relação verbo-visual, ou seja, a articulação entre a dimensão linguística - oral ou escrita - e a imagem. Se estudos do verbal e do visual, separadamente, contam com longa e respeitável tradição em várias áreas do conhecimento e com estudos bastante expressivos e rigorosos na atualidade, também a condição verbo-visual da linguagem tem hoje um lugar privilegiado, não somente enquanto produção social, cultural e discursiva recorrente, mas, por isso mesmo, como objeto de estudos. Assim sendo, o objetivo aqui é focalizar alguns textos de diferentes gêneros, advindos de diferentes esferas, nos quais a articulação verbo-visual, tecida na instância de produção, funciona, deliberadamente, como projeto de construção de sentidos, de efeitos de sentido, quer lógicos, ideológicos, emocionais, estéticos ou de outra natureza, entretecidos por um diálogo face a face em que alteridades, ao se defrontarem, convocam memórias de sujeitos e de objetos, promovendo novas identidades.

Verbo-visualidade; Análise dialógica; Identidades; Alteridade


This article contributes to the ongoing research on Bakhtin and the Circle's possible contribution to the reading, the analysis and the interpretation of different modes of meaning production and meaning effect from texts whose main mark is the constitutive verbal-visual relation, that is, the articulation between the linguistic dimension - whether oral or written - and the image. If separate studies on the verbal dimension or the visual dimension have a long and respectful tradition in several knowledge areas, currently presenting expressive and rigorous studies, the verbal-visual language condition also stands in a place of privilege today as a recurrent social, cultural and discursive production and, thus, as a study object per se. Therefore, this article aims to focus on some texts from different genres, stemming from different spheres, in which the verbal-visual articulation, woven in the instance of production, deliberately works as a project of meaning production and meaning effect, be it logical, ideological, emotional or otherwise, interwoven by a face-to-face dialogue in which confronted otherness summons for subject and object memories, promoting new identities.

Verbal-Visuality; Dialogical Analysis; Identities; Otherness


ARTIGOS

Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica

Beth Brait

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, São Paulo, Brasil; CNPq; bbrait@uol.com.br

RESUMO

Este artigo dá continuidade a pesquisas a respeito da contribuição possível de Bakhtin e do Círculo para a leitura, análise e interpretação das formas de produção de sentido e efeitos de sentido de textos cuja marca principal é a constitutiva relação verbo-visual, ou seja, a articulação entre a dimensão linguística – oral ou escrita – e a imagem. Se estudos do verbal e do visual, separadamente, contam com longa e respeitável tradição em várias áreas do conhecimento e com estudos bastante expressivos e rigorosos na atualidade, também a condição verbo-visual da linguagem tem hoje um lugar privilegiado, não somente enquanto produção social, cultural e discursiva recorrente, mas, por isso mesmo, como objeto de estudos. Assim sendo, o objetivo aqui é focalizar alguns textos de diferentes gêneros, advindos de diferentes esferas, nos quais a articulação verbo-visual, tecida na instância de produção, funciona, deliberadamente, como projeto de construção de sentidos, de efeitos de sentido, quer lógicos, ideológicos, emocionais, estéticos ou de outra natureza, entretecidos por um diálogo face a face em que alteridades, ao se defrontarem, convocam memórias de sujeitos e de objetos, promovendo novas identidades.

Palavras-chave: Verbo-visualidade; Análise dialógica; Identidades; Alteridade

One could say that Janus looked into the past and into the future. The past: The man Bakhtin is dead; his work, now finalized, lives on. Yet, from another perspective, it remains unfinalizable. As each moment of the present ends, the future begins. Bakhtin's ideas are being developed, extended, applied by scholars who reaccent them, thereby changing their original meaning.

Deborah J. HAYNES

Na verdade, a visão e a representação geralmente fundem-se. Novos meios de representação forçam-nos a ver novos aspectos da realidade, assim como esses não podem ser compreendidos e introduzidos, de modo essencial, no nosso horizonte sem os novos recursos de sua fixação.

Pável Nikoláievitch MEDVIÉDEV

Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler.

Michel FOUCAULT

1 A questão do visual

Neste artigo, o objetivo é insistir, mais uma vez, nas especificidades do que venho denominando há alguns anos dimensão verbo-visual de um enunciado, de um texto, ou seja, dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel constitutivo na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele se dá a ver/ler, simultaneamente (BRAIT, 2012; 2011; 2010; 2010a; 2009; 2009a; 2009b; 2008; 2008a; 2008b; 2008c; 2008d; 2007; 2007a; 1997).

É importante reafirmar que as sugestões teórico-metodológicas que sustentam essa perspectiva vêm da compreensão de que os estudos de Bakhtin e do Círculo constituem contribuições para uma teoria da linguagem em geral e não somente para uma teoria da linguagem verbal, quer oral ou escrita. Há trabalhos em que essa amplitude é claramente nomeada, como acontece, para citar alguns, em O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas – Uma experiência de análise filosófica1 1 BAKHTIN, 2003, p.307. e seu diálogo com outros ensaios. No que se refere às sugestões sobre o visual, de forma especial mas não exclusiva, poderíamos citar O autor e a personagem na atividade estética2 2 BAKHTIN, 2003, p.3-192. , mais especificamente o capítulo II, intitulado A forma espacial da personagem, em que Bakhtin, dentre outras aspectos fundamentais para análise da linguagem, trata da questão do excedente de visão, da imagem, do retrato, do autorretrato visual e verbal, isto é, da representação de si mesmo, momento em que o autor é personagem. Até mesmo a fotografia ganha uma breve referência nesse texto.

Na verdade, em todos os trabalhos do Círculo em que a ideia de uma teoria da linguagem ampla, e não exclusivamente vinculada ao linguístico, é indiciada, é o visual, e não o verbo-visual, que é sugerido objeto passível de leitura e interpretação. Não podemos esquecer, porém, ao acolher essas sugestões, de uma longa tradição da análise do visual, das reflexões sobre a possibilidade de sua leitura e interpretação, que vêm, por exemplo, da estética, da filosofia, por vezes de uma estética-filosófica, das diferentes semióticas (peirceana, francesa, russa), da semiologia de Roland Barthes em seus textos sobre fotografia, retórica da imagem, trabalhos compreendidos entre o final dos anos 1950 aos anos 19703 3 Cabe aqui lembrar que uma das importantes obras de Roland Barthes, Mythologies, reunião de textos publicados em jornais entre 1953 e 1956, e que teve a primeira edição em 1957, era constituída somente de textos verbais, embora tivesse predominantemente o visual como foco (fotografia, publicidade, imprensa, etc.). Somente agora, mais de meio século depois, Jacqueline Guittard retoma esse trabalho de Barthes, ilustrando-o com as imagens da época. O resultado é a edição Mythologies ilustrées (BARTHES, 2010), oferecendo ao leitor contemporâneo os textos integrais e mais de 120 ilustrações que possibilitam ver, hoje, imagens que serviram para que o autor demonstrasse, com perspicácia e ironia, o funcionamento mitológico de temas presentes na sociedade naquele momento. .

Essa tradição não cessa de produzir conhecimento em torno do visual e de suas singularidades, como se pode comprovar por meio de obras bastante recentes, situadas em diferentes campos do conhecimento, caso de O poder das imagens: cinema, e política nos governos de Adolf Hittler e de Franklin D. Roosevelt (1933-1945) (PEREIRA, 2013), para ficarmos apenas em uma.

O aproveitamento explícito do pensamento bakhtiniano para o estudo do visual, aí incluídos os trabalhos de Bakhtin e dos demais membros do hoje denominado Círculo, aparece ao menos em dois trabalhos da década de 1990 e um de 2013, os quais reconhecem, no conjunto das obras, a sugestão para o estudo do visual. Refiro-me a Tekstura. Russian Essays on Visual Culture, editado por Alla Efimova e Lev Manovich, com um prefácio de Stephen Bann, publicado em 1993, Bakhtin and the Visual Arts, de Deborah J. Haynes, 1995 e, mais recentemente, 2013, Bakhtin Reframed, da mesma autora americana.

O primeiro é uma coletânea que reúne textos de pensadores que contribuem para uma reflexão sobre a cultura visual russa. Assim, juntamente com Sergei Eisenstein, Yuri Lotman, Boris Groys, dentre outros, estão incluídos Valentin N. Voloshinov e Mikhail Bakhtin. Do primeiro, a escolha recaiu sobre O estudo das ideologias e a filosofia da linguagem, Capítulo 1 da primeira parte, intitulada A filosofia da linguagem e sua importância para o marxismo, que está em Marxismo e filosofia da linguagem e abre a coletânea. A explicação dada pelos organizadores para a presença desse texto como carro-chefe da antologia é que ele se oferece como investigação fundamental sobre a filosofia da linguagem, colocando o estudo do signo no centro de uma investigação ideológica. A perspectiva semiótico-filosófica-ideológica, justamente a que vai construir o que Voloshinov designa como signo ideológico, é a que serve de fundamento para a leitura do visual, da cultura visual, ainda que Voloshinov, aparentemente, não tenha se dedicado à imagem.

Além da amplitude da perspectiva que define a escolha desse trabalho pelos organizadores da coletânea, uma leitura cuidadosa do capítulo mencionado, mais exatamente o momento em que Voloshinov discute a relação entre signo e consciência, permite localizar a passagem em que ele se refere à materialidade do signo em geral e não somente do signo verbal:

Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997, p.35-36).

Também no capítulo sobre A interação verbal, que está na segunda parte de MFL, Voloshinov volta a falar da relação entre atividade mental e enunciação, incluindo novamente o visual:

Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação, a orientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato de fala, e, acima de tudo, aos interlocutores concretos.

Tudo isso lança uma nova luz sobre o problema da consciência e da ideologia. Fora de sua objetivação, de sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção. [...] enquanto expressão material estruturada (através da palavra, do signo, do desenho, da pintura, do som musical, etc.), a consciência constitui um fato objetivo e uma força social imensa (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1997, p.117-118; grifo do autor).

Entende-se, pela justificativa dos organizadores e por esses excertos, a inclusão de Voloshinov numa obra que objetiva o estudo da cultura visual, demonstrando a amplitude de sua contribuição que, para além dos estudos linguísticos, se oferece enquanto teoria geral e perspectiva semiótico-ideológica da linguagem.

O segundo texto escolhido para fazer parte da coletânea Tekstura. Russian Essays on Visual Culture é A forma espacial da personagem, fragmento de O autor e a personagem na atividade estética, de Bakhtin. Segundo os organizadores, a presença desse texto justifica-se na medida em que o pensador russo considera o mundo do herói de ficção a partir da criação visual da espacialidade, conforme mediada na forma escrita. Não por acaso, é justamente aí que aparecem os conceitos de excedente de visão, imagem externa, exterioridade, vivenciamento das fronteiras externas do homem, imagem externa da ação, corpo exterior, todo espacial da personagem e do seu mundo – a teoria do "horizonte" e do "ambiente", dentre outras categorias que se prestam à leitura e análise do visual. Esse é o momento em que Bakhtin vai refletir estética e filosoficamente sobre a representação, referindo-se ao autorretrato, ao retrato, à fotografia, citando Rembrandt, Vrubel, Leonardo da Vinci via Última Ceia, Rafael, sem trazer imagens, mas sugerindo fortemente o alcance da discussão filosófica que está fazendo para as artes em geral, para além da arte verbal. E assim compreendemos a presença de Bakhtin na coletânea. Um exemplo:

A primeira tarefa do artista que trabalha o autorretrato consiste em depurar a expressão do rosto refletido, o que é possível com o artista ocupando posição firme fora de si mesmo, encontrando um autor investido de autoridade e princípio, um autor-artista como tal, que vence o artista-homem. Aliás, parece que sempre é possível distinguir o autorretrato do retrato a partir de uma característica um tanto ilusória do rosto, a qual parece não englobar o homem em sua totalidade, até o fim: o homem que ri no autorretrato de Rembrandt sempre provoca em mim uma impressão quase horripilante, assim como o rosto alheado de Vrubel (BAKHTIN, 2003, p.31-32).

O segundo trabalho escolhido para demonstrar que as sugestões sobre o visual na obra do Círculo têm importante e qualificada recepção foi publicado em 1995, portanto dois anos depois do anterior: é um livro sobre estética. Nele a autora, Deborah Haynes, vai tratar da teoria da criatividade articulada, segundo ela, nos ensaios escritos por Bakhtin nos anos 1920, ou seja, em seus primeiros trabalhos, nomeadamente: Arte e responsabilidade, o primeiro publicado por ele e que contém, segundo ela, a semente das ideias que desenvolverá até o final de sua vida, em 1975, Para uma filosofia do ato responsável, Autor e herói na atividade estética e O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal.

De acordo com a autora, esses trabalhos compõem uma filosofia moral não concluída por Bakhtin, na medida em que não foram preparados por ele para publicação, exceto Arte e responsabilidade. Destaca alguns conceitos fundamentais para a compreensão dessa filosofia moral que são, precisamente, a dimensão moral do autor, da autoria e a atividade criativa.

Haynes, de fato, vai perseguir a teoria estética contida nesses trabalhos e algumas categorias e conceitos fundamentais para a compreensão da arte visual. Vai procurar compreender e explicar essa estética, tanto da perspectiva teórica, quanto da possibilidade de aplicá-la a objetos visuais de diferentes momentos históricos, e até mesmo na pós-modernidade. Dentre as várias estéticas existentes no século XX, incluindo as que Bakhtin vai combater, Haynes procura demonstrar que esse pensador traz de volta a "estética do processo criativo, a atividade do artista ou autor que cria". Afirma que Bakhtin, sem dar uma definição fechada, acabada, compreende estética como a maneira como o ser humano dá forma à sua experiência; como percebe um objeto, ou como percebe outra pessoa e, muito importante, como dá forma a essa percepção em um todo sintetizado (HAYNES, 1995, p.4). Procura demonstrar que Bakhtin desenvolve, em sua estética, um vocabulário próprio, no qual estão incluídos conceitos fundamentais como respondibilidade, alteridade, inconclusibilidade, exterioridade, esfera, dentre outros. Segundo ela, Bakhtin trata a estética como uma esfera na qual o cognitivo-teórico e ético-prático estão articulados, mas cada um enfocando a realidade diferentemente, tratando a arte como dimensão estética da vida.

Assinala, com razão, que Bakhtin nunca produziu uma teoria sistemática do processo criativo e que ele criticou duramente o teoricismo, compreendendo esse fenômeno como todas as espécies de teorias isoladas da ação, do ato, do evento, da vida. Em lugar de uma teoria sistemática, Haynes afirma que os ensaios articulam a base de sua estética e de sua noção de criatividade. Na verdade, ela quer demonstrar, antes de tudo, que aquilo que Bakhtin entende por processo criativo é importante para artistas, historiadores da arte e teóricos de arte (HAYNES, 1995, p.7). Apesar de Bakhtin ter criticado o teoricismo, e para se resguardar dele, Haynes explica que para ela, a teoria, de maneira geral, pode ser entendida como a definiu Raymond Williams, "um esquema de ideias que explica a prática", ou seja, "uma caixa de ferramentas da qual pegamos o que nós precisamos" (HAYNES, 1995, p.7). Ela afirma, então, que os primeiros ensaios de Bakhtin vão servir como a caixa de ferramentas com a qual ela vai forjar a própria teoria: entra em diálogo com as ideias dele e coloca-as em um novo contexto (HAYNES, 1995, p.15) examinando sua estética e sua teoria da criatividade.

Na realidade, ela tenta realizar o que Bakhtin sugeriu e, para isso, afirma: "tomo seu discurso não como autoritário, mas como interiormente persuasivo, como um convite ao desenvolvimento, à extensão, à aplicação na direção do entendimento do processo criativo" (HAYNES, 1995, p.15). Quando diz que usa as ideias, que as usa como sugestão, acrescenta que Bakhtin se afirma principalmente no discurso verbal e que ela, diferentemente, vai utilizar os ensinamentos dele para análises da arte visual. E aí retoma outra ideia, outro conceito bakhtiniano, que é reacentuação, considerando com Bakhtin que as ideias vivem no criador, mas também no intérprete. E lembra que ele faz poucas referências, bastante esparsas ao visual, mas que suas ideais, a despeito de não haver uma única imagem nos textos, podem ser aplicadas às artes visuais.

As questões que ela se faz e que motivam a obra toda são: o que Bakhtin pode nos ensinar sobre o processo criativo? Que questões ele destaca a esse respeito? O livro, naturalmente, procura mostrar as bases da estética filosófica de Bakhtin, de sua filosofia da criatividade artística e, também, a possibilidade de aplicação ao que ela denomina arte histórica e arte contemporânea. E aí mais uma pergunta conduz o trabalho de Haynes: o que pode um pensador moderno como Bakhtin oferecer à leitura e análise do pós-moderno? No posfácio, ela traz um trecho que coloquei como epígrafe e que, de certa forma, responde bakhtinianamente a essa pergunta:

Alguém pode dizer que Janus olhou para o passado e para o futuro. O passado: O homem Bakhtin está morto; seu trabalho, agora finalizado, vive ainda. Sob outra perspectiva, entretanto, esse trabalho continua inconcluso. A cada momento do presente que finda, um futuro começa. As ideias de Bakhtin desenvolvem-se, ampliam-se, mobilizadas por estudiosos que as reacentuam, modificando assim os sentidos originais (HAYNES, 1995, p.181, tradução nossa)4 4 One could say that Janus looked into the past and into the future. The past: The man Bakhtin is dead; his work, now finalized, lives on. Yet, from another perspective, it remains unfinalizable. As each moment of the present ends, the future begins. Bakhtin's ideas are being developed, extended, applied by scholars who reaccent them, thereby changing their original meaning (HAYNES, 1995, p.181). .

Delineamento de uma teoria estética e processo criativo, assim como as sugestões de categorias fundantes, diferentemente das categorias, dos conceitos escolhidos na coletânea Tekstura, são o que essa obra oferece.

O terceiro estudo, também de Deborah J. Haynes, Bakhtin Reframed, é uma espécie de continuidade do anterior, organizando por capítulos a estética bakhtiniana, a criatividade e o processo criativo, o artista, o trabalho artístico, um estudo interpretativo de Claude Monet, uma discussão sobre contexto, recepção e audiência de Bakhtin.

Juntando-se os três livros que mobilizam as contribuições do Círculo para o estudo das artes visuais, temos, significativamente, um leque de conceitos/categorias que podem ser utilizados para a leitura e interpretação do visual a partir de questões que exigem, para sua resposta, posicionamento epistemológico, teórico e metodológico rigorosos.

2 A questão do verbo-visual

Ao tratarmos do verbo-visual, da verbo-visualidade, é necessário, antes de mais nada, distinguir alguns aspectos fundamentais. De um lado, temos os estudos do visual, especialmente os ligados à arte. É disso que tratamos com a referência às obras que recuperam, diferentemente, os trabalhos do Círculo para a leitura e interpretação do visual, da cultura visual.

Outra coisa é um estudo que procura explicar o verbal e o visual casados, articulados num único enunciado, o que pode acontecer na arte ou fora dela, e que tem gradações, pendendo mais para o verbal ou mais para o visual, mas organizados num único plano de expressão, numa combinatória de materialidades, numa expressão material estruturada, para utilizar palavras cunhadas por Voloshinov em Marxismo e filosofia da linguagem, já citadas aqui. Necessariamente, além das sugestões encontradas nos três trabalhos tratados aqui, já sabemos que há várias outras. Se entendemos que a teoria bakhtiniana da linguagem é uma teoria do discurso, que trabalha com enunciados situados, sempre em tensão, necessariamente tomaremos as relações dialógicas como uma categoria fundante, juntamente com as demais que foram levantadas por Efimova, Manovich e Haynes como fundamentais para a análise do verbal, do visual e, consequentemente, do verbo-visual, objeto desta reflexão.

Podemos, como os autores escolhidos, iniciar observando uma obra de arte, na qual estão presentes o verbal e o visual.

2.1 A escrita acompanhada da imagem. Ilustração?

A narrativa O duplo, de Dostoiévski, datada de 1845/1846, tem inúmeras edições e três em português. A última, que é uma tradução de Paulo Bezerra, traz como ilustração desenhos de Alfred Kubin (1877-1959), ilustrador expressionista austríaco. De um lado, antes dessa edição, tínhamos a narrativa de Dostoiévski. De outro, nos anos 1910, Kubin dedicou-se a uma série de desenhos sobre essa narrativa. Em 1913 aparece uma edição de luxo, com 40 desenhos e 20 vinhetas, estabelecendo um forte diálogo entre texto e imagens, de tal forma que, mesmo olhando para as duas dimensões, uma em cada página, o leitor tem a impressão de uma contaminação recíproca, de maneira que as fronteiras entre o verbal - a escrita, e o desenho ficam diluídas, provocando efeitos conjuntos. Em O duplo, narrativa que se caracteriza pelo "apagamento e confusão das identidades", as ilustrações "afiguram-se como um outro duplo", segundo palavras de Samuel Titan Jr., presentes na última edição brasileira (2011, p.252). Os enunciados, os dois textos, o verbal e o visual, nascem separadamente. Primeiro o verbal e, depois, sob a influência dele e de acordo com seu estilo expressionista, Kubin ilustra O duplo. A relação que se estabelece entre ambos, entretanto, não é de simples e submissa legenda, mas, ao contrário, é de entranhamento, de resposta ativa ao processo criativo primeiro, à estética da alteridade, como bem descreve Samuel Titan:

o movimento da pena de Kubin parece a ponto de passar da linha à garatuja e desta ao borrão, ameaça anular a distinção entre fundo e figura, cria efeitos dramáticos de contraluz (a luz servindo à invisibilidade) e se entrega a gestos mecânicos, talvez maníacos, acompanhando os movimentos e paroxismos da história. Diante dessa explosão de imaginação, o leitor tem todo direito de se perguntar se ainda é o caso de falar aqui de "ilustração" [...] Seja qual for o termo mais justo, o fato é que os desenhos de Kubin vão aos poucos se afigurando como um outro duplo [ a pairar sobre o pobre Golyádkin – e doravante, sobre a memória do leitor brasileiro] (2011, p.252-253).

Poderíamos aí utilizar os conceitos bakhtinianos destacados por Haynes como, inacabamento, respondibilidade, exterioridade e até mesmo alteridade, ou ainda, relações dialógicas de um tipo não polêmico, mas de adesão, quase que de osmose, de continuidade, o que nos faz perceber que um enunciado existia antes do outro. No caso, ao serem colocados em presença, face a face, pela motivação e pela moldura da edição, temos uma articulação constitutiva, semiótico-ideológica, em que a dimensão visual, com marcas precisas, como vimos pela rápida descrição de Samuel Titan, se acopla à verbal, com peso de duplo, de sósia. Estamos, portanto, nessa edição, diante da produção de sentidos e efeitos de sentido promovidos pela verbo-visualidade.

2.2 A escrita negando a imagem. Provocação?

Um exemplo, no campo específico da arte visual, pode ajudar a pensar as especificidades de um enunciado verbo-visual - o conhecido quadro de René Magritte, em que no espaço-quadro, na tela, na expressão material estruturada, acontece a representação figurativa de um cachimbo, absolutamente perfeito, flutuando no ar, e a frase "Isto não é um cachimbo".

Nesse caso, o visual e o verbal nascem ao mesmo tempo e constroem os sentidos, os efeitos de sentido juntos, desde o berço. Não se pode tirar a frase ou analisar somente a frase, escrita em letra cursiva, funcionando como legenda, orientando ou desorientando a interpretação do espectador, colocando-o num lugar ao mesmo tempo engraçado e pouco confortável em relação a suas crenças sobre a arte. É evidente que muito já se falou e escreveu sobre esse quadro, seu título, sua legenda, conjunto cujas relações dialógicas polêmicas, abertamente polêmicas, colocaram em questão, em 1928/1929, a representação na arte. Abriram uma forte discussão sobre o fato de que, embora perfeita enquanto representação, a imagem do cachimbo não é a realidade. É a relação polêmica e irônica entre imagem e frase que desconstrói, por assim dizer, a ilusão do real, dando à imagem seu estatuto de imagem. E à frase, à letra cursiva elaborada, quase professoral, confere-se a condição de desenho que sinaliza a presença de uma mão, provavelmente a mesma que segura o pincel, interpenetrando letra e traço, signo verbal e signo visual. O discurso que constrói e atravessa o quadro é um discurso polêmico, teórico, um discurso da estética visual, da cultura visual, pautado na materialidade que introduz e veicula a reflexão. Ao mesmo tempo em que um sujeito/pintor instaura uma reflexão polêmica sobre a materialidade no espaço tela, ele mobiliza a memória do objeto pintura/representação, interfere nessa memória e desloca o espectador de seu cômodo lugar.

Retomar a verbo-visualidade instaurada por Magritte significa, necessariamente, retomar Michel Foucault e sua brilhante leitura da materialidade e do discurso instaurado por Isto não é um cachimbo (1975), que também é o título de sua análise. Nela invoca, dentre outros aspectos, o caligrama, justamente o poema visual concretizado na disposição gráfica do texto escrito. Sem tomar o quadro como isomórfico a esse tipo de poema, estabelece a analogia pelo que ele representa em termos de relação entre verbal e visual, pelo apagamento da dicotomia em sua rigidez clássica. Desse texto em que cada linha, cada palavra ajuda a entender a sintaxe do quadro, suas formas picturais e linguísticas de produzir sentido, destacamos dois trechos:

Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler (Foucault, 2008, p.23).

[...] O texto que tinha invadido a figura a fim de reconstituir o velho ideograma, ei-lo que retomou seu lugar. Voltou para seu lugar natural - embaixo: lá onde serve de suporte para a imagem, onde a nomeia, a explica, a decompõe, a insere na sequência dos textos e nas páginas do livro. Torna a ser "legenda" [...] Mas apenas em aparência. Pois as palavras que posso ler agora sob o desenho são, elas próprias, palavras desenhadas - imagens de palavras que o pintor colocou fora do cachimbo, mas no perímetro geral (aliás, indeterminável) de seu desenho. Do passado caligráfico que me vejo obrigado a lhes supor, as palavras conservaram sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las superpostas a si próprias; são palavras desenhando palavras; formam, na superfície da imagem, os reflexos de uma frase que diria que isto não é um cachimbo. Texto em imagem. Mas, inversamente, o cachimbo representado é desenhado com a mesma mão e com a mesma pena que as letras do texto: ele prolonga a escrita mais do que a ilustra e completa o que lhe falta. [...] A prévia e invisível operação caligráfica entrecruzou a escrita e o desenho; e quando Magritte recolocou as coisas em seu lugar, tomou cuidado para que a figura retivesse em si a paciência da escrita e que o texto fosse apenas uma representação desenhada (FOUCAULT, 2008, p.24-25).

O rigor da análise da sintaxe da verbo-visualidade demonstra que os enunciados são construídos a partir de determinados discursos. No caso observado, o da representação, da estética, da ilusão do real, com os quais o quadro polemiza, trazendo o debate para dentro do plano de expressão, sinalizando e/ou desencadeando novas formas de ver. E aqui trago a segunda epígrafe, colhida em Medviédev (2012):

Na verdade, a visão e a representação geralmente fundem-se. Novos meios de representação forçam-nos a ver novos aspectos da realidade, assim como esses não podem ser compreendidos e introduzidos, de modo essencial, no nosso horizonte sem os novos recursos de sua fixação (p.199).

2.3 Questão de gênero: artigo de divulgação e artigo científico

Para finalizar, vou tomar mais dois textos que, mesmo tendo forte parentesco – tratam de uma descoberta científica -, mobilizam diferentemente a verbo-visualidade. Ambos oferecem ao leitor maneiras diferentes de entrar em contato com o que parece incialmente ser um mesmo objeto: a ciência e uma de suas descobertas. O primeiro é um artigo de divulgação científica, intitulado As linguagens da psicose, publicado na Revista Pesquisa Fapesp (abril de 2012, p.62-64) e que também pode ser encontrado online: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2012/04/062-064_1941.pdf . Essa revista é uma publicação voltada para a difusão da pesquisa científica e destaca importantes investigações, em geral financiadas pela FAPESP. Na fase atual, a revista tem várias seções (Política científica e tecnológica, Ciência, Tecnologia, Humanidades). O enunciado escolhido encontra-se na seção Ciência e foi assinado por Carlos Fioravanti, que é editor especial da Pesquisa Fapesp, onde já ocupou o lugar de editor de Ciência. Atualmente ele realiza projeto de pesquisa para o Reuters Institute da Universidade de Oxford. Formou-se pela Universidade de São Paulo (USP/SP), em 1983, tem especialização em Jornalismo Internacional pelo Reuters Institute for the Study of Journalism, da Universidade de Oxford (Inglaterra), em 2007, e doutorado em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP), em 2010. Trata-se, portanto, de um enunciado escrito por um jornalista especializado. Destina-se a um público que, mesmo não sendo necessariamente especialista em assuntos científicos de todo ramo, tem os pré-requisitos que o qualificam para ler e se interessar por esse tipo de revista e de texto.

O segundo enunciado está indicado no final do primeiro, num destaque da última página à direita, e foi publicado em periódico científico altamente qualificado e de grande impacto: PlosOne: http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/journal.pone.0034928 Saiu em abril de 2012, no volume 7(4). Esse artigo-enunciado circula em um veículo diferente do primeiro; é produzido e previsto para ser lido por um público bastante específico, qualificado cientificamente na área, característico de uma esfera diferente da primeira.

O que se observa em cada um desses enunciados que leva à percepção de suas diferenças? É possível partir da hipótese de que, apesar da grande proximidade existente entre eles no sentido de que ambos se constroem em torno de uma mesma pesquisa, de uma mesma descoberta científica, eles podem/devem ser considerados como gêneros diferentes, independentes.

Tanto na versão impressa em português (disponível online em pdf com o mesmo layout utilizado na versão impressa em http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2012/04/062-064_1941.pdf), quanto na versão online em língua inglesa do artigo (disponível online em http://revistapesquisa.fapesp.br/en/2012/04/05/the-languages-of-psychosis/?), é possível visualizar um fundo marrom, degradé, em laranja, amarelo.

No entanto, na versão impressa, o enunciado, enquanto conjunto, está organizado em 3 páginas, formadas por colunas, que vão ser preenchidas por sequências verbais e visuais. Na primeira página, formada por duas colunas, há, no alto, após um traço amarelo, a sequência DIAGNÓSTICO POR COMPUTADOR; em seguida, um título em fonte grande, branca, bastante objetivo, claro e atraente mesmo para quem não é da área; a seguir, um pequeno resumo, posicionado à direita, que esclarece o conteúdo temático: Abordagem matemática evidencia diferenças entre os discursos de quem tem mania ou esquizofrenia. Depois de um espaço, inicia-se a sequência verbal, organizada em duas colunas. Texto narrativo/relato que procura explicar, com muita clareza, a dificuldade dos psiquiatras para diferenciar dois tipos de psicose - esquizofrenia e mania -, o que possibilita introduzir o assunto central do artigo: a abordagem matemática desenvolvida no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que pretende facilitar a diferenciação entre os dois tipos de psicose e estabelecer tratamentos adequados. O enunciador, que não está envolvido na pesquisa, que é jornalista, explica a estratégia de análise, baseada na teoria de grafos, introduzindo, para isso, outro discurso que não o seu: a voz da psiquiatra do Instituto, que certamente foi objeto de uma entrevista e que é agente da pesquisa, é autora, assina o trabalho. O relato e as falas constituem a estruturação do enunciado verbal, dando oportunidade aos leitores de entender a importância da pesquisa, sua originalidade, o modo como foi desenvolvida, os métodos utilizados (gravação e transcrição, parâmetros de análise), o papel da interdisciplinaridade, os resultados e ainda há a informação de que a pesquisa foi publicada numa revista científica PlosOne.

Em relação constitutiva com as sequências verbais há as sequências visuais, que definem o enunciado como um todo verbo-visual. Os gráficos e o boneco de madeira, simbolizando, pela posição, o analisado, constroem juntamente com o verbal o conhecimento aí expresso, representado, a possibilidade de compreensão desse leitor, que sem ser especialista em psiquiatria, se interessa e tem condições de entender o que está relatado e ilustrado, envolvendo discurso, ou seja, o fato de que a patologia define o discurso. Fica sabendo, ainda, que é uma pesquisa brasileira, que pela primeira vez método matemático está sendo utilizado para tentar entender esse discurso, suas variantes, e as possibilidades de diagnósticos mais precisos e, consequentemente, tratamentos mais eficazes. O artigo todo está em português, incluindo as palavras que aparecem nas ilustrações. Pela maneira de expor, esse artigo de divulgação científica capta uma determinada realidade e a apresenta com recursos que o diferenciam de outros gêneros que possam tratar do assunto. E os leigos ficam interessados: mas mania é psicose? Como assim?

O segundo texto sobre o mesmo assunto pode ser localizado no periódico PlosOne: http://www.plosone.org/article/info:doi/10.1371/journal.pone.0034928 Dele inserimos aqui apenas duas páginas para exemplificar a análise: a primeira (figura 1) que, após o cabeçalho identificador da publicação (título, área, indicadores, etc.), apresenta os autores, abstract, as figuras (na realidade, a possibilidade de acesso a todas as figuras aí mesmo, o que demonstra sua elevada importância para autor/leitor), dados para citação do artigo e dados do periódico (editor, universidade, datas de recepção e aprovação do artigo, dados de Copyright), das fundações que apoiaram a pesquisa e uma observação sobre possíveis interesses em conflito. Na segunda página (figura 2), há um gráfico e a discussão.



Texto em inglês, apesar de todos os autores (talvez com exceção de um) serem brasileiros, está incluído (portanto, rigorosamente selecionado) em um periódico internacional de grande impacto e importância na área da Ciência. O artigo, obedecendo às normas do periódico, suas rígidas coerções de produção, vai não apenas contar uma experiência inusitada - o uso de grafos, da matemática, para esclarecer aspectos da desordem do pensamento na psicose, do discurso psicótico -, mas construir esse conhecimento a partir dessa escrita, compartilhando-o com um público especializado, diferente daquele do artigo de divulgação publicado na Revista de Pesquisa FAPESP. É um público, digamos assim, letrado nessa área, no sentido verbal e visual, conhecedor das pesquisas ligadas a esses estudos. Há todo um arranjo, uma escrita de cunho científico, completamente diferente da do artigo de divulgação científica. E isso está marcado na produção. Se pensarmos na autoria – os autores são os cientistas que realizaram a pesquisa, são eles que assinam o trabalho que reconstrói, pela linguagem, pelo discurso científico, o conhecimento produzido pela pesquisa. A linguagem é altamente especializada, adequada ao estilo do gênero artigo científico, e não exclusivamente ao estilo dos autores. As tabelas e gráficos não são simples ilustrações: elas participam da construção do conhecimento que está sendo exposto, no diálogo constitutivo com o verbal. Da perspectiva da circulação e da recepção, o veículo, o suporte, é completamente diferente da Revista Pesquisa Fapesp que, embora extremamente refinada, tem como objetivo divulgar conquistas importantes da ciência para um público brasileiro amplo, e não unicamente para os cientistas e, por isso, a língua é o português.

O periódico científico PlosOne, embora aberto, porque online, circula entre cientistas, letrados nas especificidades do conteúdo temático exposto, e tem na língua inglesa o idioma comum, o idioma de alcance de suas experiências, de suas conquistas. Portanto, a exposição é muito maior, muito mais sujeita a polêmicas que o artigo de divulgação científica.

Fica claro, assim, que estamos diante de dois gêneros: um circula numa esfera jornalística de divulgação científica e outro circula na esfera científica. Numa dessas esferas, o objetivo é a divulgação de conquistas importantes da ciência para um público que, apesar de interessado, não domina o jargão da ciência. Noutra, o enunciado submetido e avaliado por pares antes de ser publicado, é parte da construção do conhecimento, na medida em que instaura a experiência pela articulação da dimensão verbal e visual constituída pelas especificidades do conhecimento em questão, de acordo, naturalmente, com as coerções de um artigo científico, escrito para esse periódico científico específico, aspecto que interfere no estilo do gênero e coage o estilo dos autores.

O que há de comum entre ambos e que, sem dúvida, traça uma fronteira entre eles? Certamente é a descoberta científica que vai resultar, pelo tratamento diferenciado, pela esfera em que cada um é produzido e circula, pelo público a ser atingido, em enunciados diferentes, em gêneros diferentes, em recepções diferentes, fazendo circular diferentes discursos, reiterando a ideia de Medviédev de que:

Cada gênero é capaz de dominar somente determinados aspectos da realidade, ele possui certos princípios de seleção, determinadas formas de visão e de compreensão da realidade, certos graus na extensão de sua percepção e na profundidade de penetração nela (2012, p.196).

Ou, ainda, que "O cientista vê a vida diferentemente [do artista], ou seja, do ponto de vista dos meios e métodos para dominá-la. Por isso, ele é capaz de alcançar outros aspectos e ligações da vida" (MEDVIÉDEV, 2012, p.199).

Não apenas existem diferenças entre o artista e o cientista, como se pode observar, mas também entre esses e o jornalista. Os gêneros utilizados por eles, para captar determinados aspectos da realidade, são diferentes, ou melhor, nunca são os mesmos. Consequentemente, as funções da articulação verbo-visual são diferentes. No artigo de divulgação científica, por exemplo, o jornalista/editor cita um desenho que está no artigo científico e coloca uma ilustração/divertimento que jamais estaria no artigo científico. As citações, sob a aparência da repetição, oferecem marcas enunciativo-discursivas que sinalizam, ao mesmo tempo, a alteridade, o diálogo com o outro produzido numa esfera científica, e a identidade da divulgação que não apenas desloca o conhecimento, mas o reconstrói de forma diferente. De fato, no artigo de divulgação científica a ilustração é importante, na medida em que visa à compreensão do leitor por meio da visualização, não à construção do objeto científico em discussão. O alvo parece ser o destinatário e a necessidade de suprir suas carências, de forma que a articulação visual/verbal ganha a condição de ilustrativa, reiterando dimensões dadas pelo verbal, completando possíveis/supostas lacunas do leitor.

No artigo científico, o visual, tanto quanto o verbal, faz parte da construção do objeto, da construção do conhecimento científico tramado entre as duas linguagens. A experiência ganha forma na linguagem pela linguagem verbo-visual. O que exige/pressupõe um leitor letrado em ambas, como se pode observar a cada página do artigo científico, a cada diagrama, a cada gráfico. O alvo essencial é o objeto de conhecimento em construção, embora haja um interlocutor na mira (os pares). A verbo-visualidade funciona de maneira a constituir o objeto de conhecimento, a partir de um ponto de vista teórico-metodológico. A dimensão visual interage constitutivamente com o verbal (ou vice-versa), acrescentando-lhe valores. Sem esse jogo não se dá a construção do objeto de conhecimento, nem dos sujeitos da construção e da recepção.

Considerações finais

Finalizo este artigo reafirmando que o trabalho com a verbo-visualidade inspirado no pensamento bakhtiniano é possível, desempenha um papel importante na leitura da contemporaneidade e no ensino dessa leitura, mas exige empenho e rigor teórico-metodológico. Enquanto conjunto e sob a perspectiva dialógica, o enunciado/texto verbo-visual caracteriza-se como dimensão enunciativo-discursiva reveladora de autoria (individual ou coletiva), de diferentes tipos de interlocuções, de discursos, evidenciando relações mais ou menos tensas, entretecidas pelo face a face promovido entre verbal e visual, os quais se apresentam como alteridades que, ao se defrontarem, convocam memórias de sujeitos e de objetos, promovendo novas identidades.

Como consequência das leituras aqui empreendidas, é possível observar que autoria e interlocução são diferentes em cada um dos enunciados, aspectos revelados pela materialidade de cada um, pela especificidade de sua produção, circulação e recepção, pelos interlocutores a que se destinam, pelas esferas em que circulam. Esses elementos constroem conhecimentos e objetos de conhecimento diferentes, mesmo quando o assunto parece ser o mesmo, como no caso dos artigos.

Se nos ativermos à ideia simples e redutora de que o gênero comporta forma de composição, estilo e tema, também dessa perspectiva, que necessariamente implica diferenças textuais e discursivas, a hipótese sobre a importância da verbo-visualidade parece confirmar-se. Podemos observar, por exemplo, que o elemento visual vai articular-se ao verbal de maneiras diferentes em cada enunciado, interferindo na forma de composição, no estilo e, consequentemente, nos temas produzidos. São, portanto, projetos de construção de conhecimento verbo-visualmente constituídos.

Recebido em 08/09/2013

Aprovado em 25/10/2013

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  • 1
    BAKHTIN, 2003, p.307.
  • 2
    BAKHTIN, 2003, p.3-192.
  • 3
    Cabe aqui lembrar que uma das importantes obras de Roland Barthes,
    Mythologies, reunião de textos publicados em jornais entre 1953 e 1956, e que teve a primeira edição em 1957, era constituída somente de textos verbais, embora tivesse predominantemente o visual como foco (fotografia, publicidade, imprensa, etc.). Somente agora, mais de meio século depois, Jacqueline Guittard retoma esse trabalho de Barthes, ilustrando-o com as imagens da época. O resultado é a edição
    Mythologies ilustrées (BARTHES, 2010), oferecendo ao leitor contemporâneo os textos integrais e mais de 120 ilustrações que possibilitam ver, hoje, imagens que serviram para que o autor demonstrasse, com perspicácia e ironia, o funcionamento mitológico de temas presentes na sociedade naquele momento.
  • 4
    One could say that Janus looked into the past and into the future. The past: The man Bakhtin is dead; his work, now finalized, lives on. Yet, from another perspective, it remains unfinalizable. As each moment of the present ends, the future begins. Bakhtin's ideas are being developed, extended, applied by scholars who reaccent them, thereby changing their original meaning (HAYNES, 1995, p.181).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Set 2013
    • Aceito
      25 Out 2013
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