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Por uma nova ética audiodescritiva: a recriação como procedimento

RESUMO

A audiodescrição (AD) consiste em fornecer a pessoas com cegueira e baixa visão a tradução sonora de processos comunicativos visuais e audiovisuais, como programas de TV, obras de artes plásticas ou ópera. Esta atividade se formalizou na década de 1980, nos Estados Unidos, a partir do modelo "descreva o que você vê". Tal proposição, o audiodescritor, empunhando a controversa bandeira da "objetividade", oferece leitura supostamente isenta - e em certa medida protocolar - sobre aquilo que observa. A escola americana prosperou e se disseminou pelo mundo, tornando-se o padrão da AD realizada, inclusive, no Brasil. Recuperando, contudo, a melhor tradição tupiniquim da "transcriação" ou "recriação", defendida pelos poetas concretos, lançaremos, ao menos para as artes visuais, outra proposta metodológica/experimental: o uso de diagramas poéticos sonoros para a realização da AD, compreendida como tradução intersemiótica. Acredita-se que a camada sensível, tão cara às artes, é muitas vezes perdida no tecnicismo da AD normatizada, e que construções diagramáticas talvez possam recuperar esta dimensão através de signos sonoros inteligíveis mas, sobretudo, sensuais. Há, conforme explicamos, certa articulação estética, ética e semiótica que referenda a proposta aqui apresentada.

PALAVRAS-CHAVE:
Audiodescrição; Ética tradutória; Diagramas sonoros; Poética

ABSTRACT

Audio description (AD) is the act of providing blind and low vision people with a sound translation of visual and audiovisual communication programs, such as TV shows, artworks, or operas. This activity was formalized in the 1980s in the United States, using the model: "describe what you see." In this model, the audio describer, wielding the controversial banner of "objectivity," offers a supposedly impartial - and to some extent protocolized - reading of what he/she observes. The American school prospered and spread around the world, becoming the standard for AD, even in Brazil. However, by recovering the best Tupinikin tradition of "trans-creation" or "re-creation," defended by the concrete poets, we raise, at least for the visual arts, another methodological/experimental proposal: using sound poetry diagrams to perform AD, a process known as intersemiotic translation. It is widely believed that the sensitive layer, which is significant in the arts, is often lost in the technicality of standardized AD, and that diagrammatic constructions, can perhaps recover this dimension through sound signs that are intelligible but, above all, sensual. There is, as we explain, a certain aesthetic, ethical, and semiotic articulation that reinforces the proposal presented here.

KEYWORDS:
Audio Description; Translation Ethics; Sound Diagrams; Poetics

É triste explicar um poema. E inútil também.

Um poema não se explica. É como um soco.

Hilda Hilst

O revolucionário e filósofo Leon Trotsky (1971, p.72)TROTSKY, L. A escola poética formalista e o marxismo. In: Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editoria Globo, 1971. escreveu no ensaio "A escola poética formalista e o marxismo" que "é realmente útil, e indispensável para um poeta valorizar uma palavra não só pelo seu significado íntimo, mas também por sua acústica". A premissa, sugestão aditiva, união do nome com aquilo que lhe escapa, encontra ressonância na página 215 de La poétique de Dostoiévski. Então, Mikhail Bakhtin sugere uma translinguística para o estudo da poesia, atividade ocupada com a vida da palavra, o além de sua condição vocabular. É precisamente no reconhecimento e no exame deste lócus, onde o dito foge da lógica da fala, que reside, larga medida, a proposta deste ensaio: nós nos ocuparemos de questionar as normas prescritas para a audiodescrição (AD) de obras de arte visuais e audiovisuais, certo receituário do imaculado, no qual se aspira um audiodescritor objetivo e quase mecânico.

Nossa crítica incide sobre o fato de este tipo de audiodescrição negligenciar, justamente, a dimensão poética, fundamental à experimentação das artes e, por isso mesmo, longe daquilo que a língua formal, por vezes, é capaz de comunicar. Anotação do poeta concreto Décio Pignatari (2005, p.9)PIGANATARI, D. O que é comunicação poética. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. no seu O que é comunicação poética esclarecedora sobre o assunto:

A poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura. Ezra Pound acha que ela não pertence à literatura e Paulo Prado vai mais longe: declara que a literatura e a filosofia são as duas maiores inimigas da poesia.

Seguindo, todavia, Bakhtin (apud TODOROV, 1997TODOROV, T. Prefácio. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.1-21., p.6), não nos apoiamos exatamente na divisão antinômica - simplista - poética/outras modalidades discursivas, sobremaneira a prosa, como queriam Paulo Prado ou, por exemplo, os formalistas. Ao invés de acreditar em nefelibatas fabricadores de linguagem de um lado, e o resto da humanidade - a voz vulgar - do outro, concebemos acústica verbal que

está entre as pessoas - e é apenas desse território duplo, bidirecional, que o som ganha o seu sentido: poético, prosaico, prático, científico, religioso... Em suma, o poeta, quando escreve, não seleciona um sistema abstrato de possibilidades fonéticas, gramaticais, lexicais - seleciona, isso sim, as avaliações sociais implícitas em cada palavra. Para o Círculo de Bakhtin, a palavra já entra na arte carregada de intenções, opiniões, traços sociais, com todas as marcas de seu território valorativo (TEZZA, 2003TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003., p.37).

De maneira que a prosa pode originar a poesia e esta, não raros casos, está contaminada pela primeira (BRAIT, 2010BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.). Se a nossa intenção, portanto, não é a de dividir o inseparável, ela aponta, é preciso demarcar, para certa caracterização do que é próprio da instância poética; e isso nos leva de volta a Pignatari: quando o concretista defende que a poesia, talvez, seja mais próxima às artes visuais ou à música que à prosa, ele fala de um procedimento verbal menos narrativo e mais sensual, isto é, descomprometido com a fabulação e empenhado num emocionar pela ou na palavra, e não através dela. "A resposta para adivinha mallarmaica: a flor que está ausente de todos os buquês é a palavra flor" (PIGNATARI, 2005PIGANATARI, D. O que é comunicação poética. Cotia: Ateliê Editorial, 2005., p.11).

Além de apontar as características próprias do poético, intencionamos, resolução necessária, discutir como esta dimensão sensível, criativa e cognitiva da linguagem pode ser incorporada aos processos audiodescritivos sem que estes abdiquem de sua desejosa objetividade, permitindo, assim, a emergência de inaudita escuta de "vozes e relações dialógicas entre elas" (BAKHTIN, 1982BAKHTIN, M. Hacia una metodología de las ciencias humanas. In: Estética de la creación verbal. Trad. Tatiana Bubnova. Buenos Aires: Sigla Veintuno, 1982, p.381-396, p.392). Aquilo chamado pelo filósofo e tradutor francês Jean Quillien (apud MESCHONNIC, 2010MESCHONNIC, H. Poética do traduzir. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, Perspectiva: 2010., p.182) de "indivisibilidade entre a ideia como conceito subjetivo e o princípio objetivo".

Recorreremos, sobretudo, às proposições tradutórias dos concretistas, mas também à obra do filósofo norte-americano Charles S. Peirce, para construir a nossa argumentação. No último caso, empregaremos notadamente os escritos sobre as ciências normativas, nas quais a Estética é a base da Ética, e esta é o pilar da Lógica ou Linguagem. Tal articulação, conforme se verá, permite-nos arquitetar inseparável continuidade entre a subjetividade do audiodescritor e a imagem acústica - a dimensão poética - e a face predominantemente descritiva per se - e tanto quanto possível objetiva - do signo visual ou audiovisual verbalmente traduzido.

1 Para conectar a audiodescrição à poética: algumas notas explicativas

A audiodescrição (AD), definida legalmente como recurso de acessibilidade pela Portaria Nº. 310 do Ministério das Comunicações, de 2006, é conceituada como

tecnologia assistiva que permite a inclusão de pessoas com deficiência visual junto ao público de produtos audiovisuais. O recurso consiste na tradução de imagens em palavras. É, portanto, também definido como um modo de tradução audiovisual intersemiótico, onde o signo visual é transposto para o signo verbal (LIMA, 2011LIMA, F. Áudio-descrição: arte e linguagem a serviço da pessoa com deficiência visual. Disponível em: <http://www.lerparaver.com/node/10690>. Acesso em: 12 dez. 2013.
http://www.lerparaver.com/node/10690...
).

Segundo dados do último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, aproximadamente 24% dos brasileiros, ou 45,6 milhões de pessoas, são deficientes. Destes, 35 milhões declararam possuir alguma debilidade visual. O número é expressivo, maior que a população de muitos países, e aponta para a necessidade de se desenvolver ações inclusivas capazes de integrar cidadãos cegos e com baixa visão ao resto da sociedade. Entre tais ações, por certo, deve-se considerar a AD, prática iniciada oficialmente nos Estados Unidos na década de 1970, a partir do mestrado de Gregory Frazier sobre a tradução de programas televisivos para pessoas cegas (SNYDER, 2005SNYDER, J. Audio Description: The Visual Made Verbal. In: International Congress Series Volume 1282, Vision 2005 - Proceedings of the International Congress held between 4 and 7 April 2005, in London, UK, September 2005, pp.935-939., p.191).

Na década seguinte, a de 1980, a audiodescrição disseminou-se e dezenas de estabelecimentos começaram a produzir conteúdos audiodescritos no território ianque. Nesse mesmo período, a AD passou a ser praticada em alguns países europeus, convertendo-se em objeto científico na década de 1990, sobretudo para as Áreas de Tradução, Tecnologia Assistiva e Educação Especial. "Hoje, além dos Estados Unidos, os países que mais investem na audiodescrição, tanto na televisão como no cinema e no teatro são Inglaterra, França, Espanha, Alemanha, Bélgica, Canadá, Austrália e Argentina" (FRANCO; SILVA, 2010FRANCO, E; SILVA, M. C. C. C. Audiodescrição: breve passeio histórico In: Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010., p.26)

No Brasil, segundo o levantamento realizado por Franco e Silva (2010, p.23-42)FRANCO, E; SILVA, M. C. C. C. Audiodescrição: breve passeio histórico In: Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010. no volume "Audiodescrição: transformando imagens em palavras", editado em 2010 pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, a AD tem sido estudada, sobretudo, nas universidades federais da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, e na Universidade Estadual do Ceará. Os esforços são importantes mas precisam ser expandidos.

A bibliografia específica ainda é muito restrita e resume-se a um artigo de autoria de Franco (2006b) na revista Ciência e Cultura da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e a outros três artigos: de Orero (2007), Casado (2007) e Franco (2007a)FRANCO, E. Audiodescrição e audiodescritores: Quem é Quem?, 2007. Disponível em: Disponível em: http://elianafranco.wordpress.com/ Acesso em: 22 dez. 2013
http://elianafranco.wordpress.com/...
num número especial da TradTerm: Revista do Centro Interdepartamental de Tradução e Terminologia da Universidade de São Paulo (USP), organizado pelas Profas. Dras. Eliana Paes Cardoso Franco (UFBA) e Vera Lúcia Santiago Araújo (UECE). O primeiro artigo (FRANCO, 2006b) trata da questão da acessibilidade aos meios e traz referências à legenda fechada e à audiodescrição. Os três últimos discutem a audiolegendagem para a ópera (ORERO, 2007), a audiodescrição sob um ponto de vista histórico e técnico (CASADO, 2007), e os primeiros resultados de uma pesquisa de recepção em audiodescrição realizada na cidade de Salvador pelo grupo TRAMAD (Tradução, Mídia e Audiodescrição), (FRANCO E SILVA, 2010FRANCO, E; SILVA, M. C. C. C. Audiodescrição: breve passeio histórico In: Audiodescrição: transformando imagens em palavras. São Paulo: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010., p.33-34).

Na Área de Comunicação destaca-se o projeto "Cinema ao Pé do Ouvido", liderado por Júlio Pinto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que já rendeu dissertações de mestrado e uma tese. Quanto à prática da AD no Brasil, observa-se a existência de duas modalidades: os cursos livres promovidos pela iniciativa privada e as extensões ou especializações universitárias. Em ambos os casos, são difundidos os preceitos da escola americana de AD, que podem ser encontrados no The Audio Description Coalition Standards and Code of Professional Conduct(2009). Neste manual há recomendações como "o que você vê é o que você descreve. Vê-se [sic] aparências físicas e ações; não se vê [sic] motivações ou intenções. Nunca descreva o que você acha que vê" (2009, p.1-2); ou ainda, na seção titulada "Descreva Objetivamente", instruções do tipo "Permita aos ouvintes construir suas próprias opiniões e chegar às suas próprias conclusões. Não edite, interprete, explique, analise ou ajude os 'ouvintes' de nenhuma maneira" (2009, p.2).

Existem, por certo, motivos para que tais indicações sejam aplicadas, sobretudo quando a descrição ofertada emerge de materiais com fins didáticos, e precisa ser rápida sem tolher a capacidade analítica do ouvinte. Contudo, pensando-se nas obras de arte, cujo conhecimento, antes de inteligível, é sensível, exigindo uma percepção mais intensa e vibrante (MERLEAU-PONTY, 1994MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. C. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994 [1945].), talvez o modelo americano não seja apropriado: mecaniza a emoção e assim usurpa da arte o que lhe é característico. Basta tomar o exemplo da AD apresentada na "Revista Brasileira de Tradução Visual" para a tela "A moça com brinco de pérola", pintada por Jan Vermeer entre 1665 e 1667:

O rosto de uma jovem branca, em semi-perfil, com feições delicadas, grandes olhos azuis e lábios carnudos, ligeiramente abertos, contrasta com o fundo totalmente escuro. O rosto está voltado sobre o ombro esquerdo. Ela olha para o espectador do quadro.

Um turbante em tons de azul ultramarino e amarelo está enrolado na cabeça da jovem. Uma cauda desce do alto da cabeça até as costas. Sobre os ombros, um manto em tons de terra, cobre uma vestimenta branca. Da orelha esquerda pende um grande brinco de pérola, em formato de gota (ADERALDO, 2011ADERALDO, M. F. Audiodescrição do quadro de Vermeer. In: Revista Brasileira de Tradução Visual, América do Norte, 6, mar. 2011. Disponível em: http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/article/view/79/122. Acesso em 31 Ago.2015.
http://www.rbtv.associadosdainclusao.com...
).

Figura 1
A moça com brinco de pérola

Mesmo reconhecendo a eficácia didática desta descrição, é impossível pensar que quem a escuta tenha emoção similar à de alguém diante da obra de Vermeer. A dimensão poética, necessária à experimentação da tela, é sumariamente negligenciada, e o quadro acaba reduzido a uma espécie de infográfico cartesiano friamente adjetivado, enfadonho como só um "semiperfil" pode ser. Sabe-se que no Brasil houve, em meados do século passado, outra proposta, capitaneada pelos poetas concretos: a da visibilidade do tradutor. Então, nomes como Haroldo e Augusto de Campos, ou ainda Décio Pignatari, propuseram a

tradução como forma de exercício poético. A tradução de poesia foi tirada do remanso modernista e transformada em modo privilegiado de manifestação crítico-programática. Traduzir passou a ser encarado como atividade propedêutica praticamente compulsória para quem pretende aventurar-se pela criação poética. Nessa perspectiva, o ato da tradução é vivenciado como pesquisa e confronto de diferentes modelos de linguagem, estrangeiros e brasileiros, capazes de mutuamente fertilizarem-se (MORICONI, 1996MORICONI, I. Pós-modernismo e tradução de poesia em inglês no Brasil. In: CONGRESSO ABRALIC, 5, 1996, Rio de Janeiro. Cânones & Contextos, 5º Congresso Abralic - Anais. Rio de Janeiro: Abralic, 1997, v. 1, p.303-309., p.304).

Rubricou-se, em tal escola, o termo "trasncriação" ou "recriação", que pode ser entendido como a tradução de um poema em outro poema, "como criatividade ampla do tradutor, que usurpa a obra para o seu tempo e lugar, afastando-se da literalidade" (NÓBREGA, 2006NÓBREGA, T. M. Transcriação e hiperfidelidade. In: Cadernos de Literatura em Tradução, n. 7, 2006, p.249-255., p.250). A legitimidade deste procedimento reside no fato de que, segundo esclarece Haroldo de Campos no seu Metalinguagem & outras metas (2010, p.31-34)CAMPOS, H. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010., a arte, naquilo que lhe é mais característico, aponta para ela mesma; revela-se como um tipo de sentença absoluta cujo conteúdo é a sua própria estrutura, espécie de universo, ainda que multivocal, com notas de autismo. Consequência direta desta articulação, a arte

não pode ser traduzida, pois 'tradução supõe a possibilidade de se separar sentido e palavra' [ou sentido e imagem]. O lugar da tradução seria, assim, 'a discrepância entre o dito e o dito'. A tradução apontaria (...) o caráter menos perfeito ou menos absoluto (menos estético, poder-se-ia dizer) da sentença, e é nesse sentido que (...) 'toda tradução é crítica', pois 'nasce da deficiência da sentença', da sua insuficiência para valer por si mesma (FABRI apud CAMPOS, 2010CAMPOS, H. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010., p.32).

É diante dessa impossibilidade de traduzir que os concretos optam pela infidelidade escancarada da recriação da linguagem em outro corpo, ou noutra forma. De modo que a tradução migra à categoria de arte ou produção prioritariamente poética, cujo papel é criar algo paralelo e autônomo, mas também recíproco ao objeto traduzido. Foi este o procedimento de Ezra Pound, o de submeter-se a várias dicções, no inconcluso "Cantares"; no seu percurso como tradutor, muitas vezes o poeta americano

trai a letra do original [...]; mas quando o faz, e ainda quando o faz não por opção voluntária mas por equívoco flagrante, consegue quase sempre - por uma espécie de milagrosa intuição ou talvez de solidariedade maior com a dicção, com a Gestalt final da obra à qual adequou tecnicamente seu instrumento - ser fiel ao 'espírito', ao 'clima' particular da peça traduzida; acrescenta-lhe, como numa contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o original autoriza em sua linha de invenção (CAMPOS, 2010CAMPOS, H. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010., p.32).

Pensando-se que a audiodescrição seja a conversão da linguagem visual ou audiovisual para a verbal-sonora, seguir os concretos leva-nos a concluir que apenas um poema auditivo possa recriar a poética visual ou audiovisual. Poética esta que é aqui entendida, esclarecimento basilar, nos termos da semiótica idealizada por Jakobson (1970)_______. Linguística; poética; cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970., a linguagem de sentido aberto, na qual expressão e conteúdo se tangenciam, havendo, no caso da poesia verbal, alguma similitude entre som (expressão) e sentido (conteúdo). Por aberto, fundamental dizer, não se leia confuso; como Décio Pignatari (2005, p.53)PIGANATARI, D. O que é comunicação poética. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. explicou em "O que é comunicação poética", a "poesia situa-se no campo do controle sensível, no campo da precisão da imprecisão. A questão da poesia é esta: dizer coisas imprecisas de modo preciso".

Admitindo-se que numa obra de arte visual ou audiovisual o que se vê -expressão- e o que se entende ou apreende - conteúdo - sejam faces inseparáveis, defendemos a ideia de que para a tradução intersemiótica, isto é, entre linguagens distintas (PLAZA, 2003PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.), da poesia visual em audiodescrição, seja necessário recorrer à poética do som. Essa dimensão, negligenciada pela AD padrão, está, conforme detalhou Jakobson no artigo À procura da essência da linguagem (1995)JAKOBSON, R . À procura da essência da linguagem. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995, p.98-117., diretamente ligada à noção de ícone, em particular à de digrama, encontrada no trabalho do filósofo norte-americano Charles S. Peirce.

Peirce define os diagramas como os signos capazes de representar o seu objeto não pela tentativa de cópia das qualidades (e.g. cor, forma, sonoridade), mas pela replicação no signo das relações lógicas internas apresentadas pelo objeto (CP 2.277). O conceito propicia-nos sugerir que através da construção de diagramas sonoros, ou melhor, de poéticas verbo-sonoras, seja possível apreender, por meio de audiodescrições, as relações internas existentes em obras de arte visuais e audiovisuais. Tal processo mantém o caráter heurístico necessário à AD, pois como observaram pensadores a exemplo de Bertrand Russel (2013, p.9)RUSSEL, B. História do pensamento ocidental. São Paulo: Saraiva, 2013. (Coleção Saraiva de Bolso). e Frederik Stjernfelt (2010, p.X), os diagramas propiciam descobertas e aprendizados sensoriais inesgotáveis, como é particular às artes, sendo capazes de criar "modelos para a sensibilidade e para o pensamento analógico" (PIGNATARI, 2005PIGANATARI, D. O que é comunicação poética. Cotia: Ateliê Editorial, 2005., p.53). De maneira que a aventura diagramática, talvez, seja capaz de responder à dúvida de Hilda Hilst no seu Fluxo-Floema (2012, p.75)HILST, H. Uma superfície de gelo ancorada no riso. In: Antologia de Hilda Hilst. Seleção, organização e apresentação de Luisa Destri. São Paulo: Globo, 2012.: "Não sei de letras, formam palavras? Se eu digo medo, sentes o cheiro? Se eu morro, vês a carcaça?". Ou, aplicado ao nosso caso: "Se eu descrevo A moça com brinco de pérola, não apenas vês, mas sentes o quadro?"

2 Por um capitoné na AD: estética, ética e linguagem poética

Acreditamos que libertar a AD de sua intencionada assepsia e introduzi-la nos prazeres da promiscuidade discursiva é não apenas uma questão semiótica, mas também uma necessidade estética e um norte ético. Certa justeza às artes e aos seus procedimentos. Nossa argumentação orbita, especialmente, na articulação indicada por Peirce em 1903, no texto An Outline Classification of the Sciences, chamado por Beverley Kent (1987, p.121)KENT, B. E. Charles S. Peirce: Logic and the Classification of the Sciences. Kingston and Montreal: Queen's University Press, 1987., importante comentador deste trecho da obra peirceana, de versão definitiva da classificação das ciências do filósofo norte-americano. Assim Peirce as organiza: ciências heurísticas, ciências da revisão e ciências práticas. As primeiras investigam exclusivamente novos fatos de verdade, tendo por propósito a descoberta ela mesma (MARTINEZ, 1999MARTINEZ, J. L. Música, semiótica musical e a classificação das ciências de Charles Sanders Peirce. Revista Opus, n. 6, 1999., p.3; BORGES, 2010BORGES, P. M. Mensagens cifradas: a construção de linguagens diagramáticas. 2010. 278 f. Tese. (Doutorado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo., p.28), e encontram-se assim sumarizadas (MARTINEZ, 1999MARTINEZ, J. L. Música, semiótica musical e a classificação das ciências de Charles Sanders Peirce. Revista Opus, n. 6, 1999.; BORGES, 2010BORGES, P. M. Mensagens cifradas: a construção de linguagens diagramáticas. 2010. 278 f. Tese. (Doutorado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.; SANTAELLA, 2005SANTAELLA, L. O admirável estético e ético como ideal supremo da vida humana. In: SILVA, J. A. (Org.). Encontros estéticos. São Paulo: Caixa Econômica, 2005. [2001], p.34):

  • 1.1 Matemática

  • 1.2 Filosofia

  • 1.2.1 Fenomenologia

  • 1.2.2 Ciências normativas

    • 1.2.1 Estética

    • 1.2.2 Ética

    • 1.2.3 Semiótica (sinônimo de lógica ou linguagem)

      • 1.2.3.1 Gramática especulativa

      • 1.2.3.2 Lógica

      • 1.2.3.3 Retórica especulativa

    1.2.3 Metafísica

    1.3 Ciências especiais ou idioscópicas, divididas em ciências físicas e psíquicas

Não é interesse deste escrito aprofundar-se em tal vereda epistemológica. Queremos destacar, porém, o fato de as ciências normativas terem a função de guiar o homem, ação deliberada perante o mundo fenomênico, bem como que estética, ética e lógica ganham contornos originais na filosofia peirceana (SANTAELLA, 2005SANTAELLA, L. O admirável estético e ético como ideal supremo da vida humana. In: SILVA, J. A. (Org.). Encontros estéticos. São Paulo: Caixa Econômica, 2005.). Por estética Peirce entende o admirável ou desejável, certo fim ideal e em si mesmo ambicionado (CP 2.199). A ética, por sua vez, deve ser compreendida não como o maniqueísmo estéril certo vs. errado, mas sim como as ações necessárias, inclusive do ponto de vista prático ou material, para que se atinja o ideal estético. Já a lógica é o fio que medeia estética e ética, ajudando-nos a descobrir os melhores caminhos - as melhores linguagens - para se chegar aos propósitos éticos capazes de nos conduzir ao fim estético.

Os conceitos acima introduzidos são muitos abstratos, pois a filosofia peirceana não se preocupa com nenhum fenômeno em particular - e assim aterrissar é preciso. No problema que nos interessa, o da audiodescrição, podemos compreender a estética como o desejo da replicabilidade sonora da visualidade, tanto mais fiel quanto possível. Já a ética confunde-se com os procedimentos ou protocolos que devemos tomar para atingir este fim. Vale, por exemplo, recorrer a uma tradução de autoria, deliberada e escancaradamente subjetiva, para preservar a dimensão poética de uma audiodescrição? Estabelecidos os nortes estéticos e os propósitos éticos, a linguagem ou lógica irá nos indicar os métodos semióticos mais adequados para atingi-los.

Por tudo que defendemos até aqui, pensamos que diante do intento de traduzir imagens em palavras, paradigma estético, não podemos propor para audiodescrição de obras de arte visuais e audiovisuais caminho distinto do da recriação. Este percurso, aparentemente, esbarra na ética do tradutor, cujo papel, segundo os manuais vigentes para a prática audiodescritiva, deveria ser o de um olho mecânico e exato; e não o de um olho humano. Acreditamos não só que o modelo ético do tradutor ausente seja pueril e ultrapassado, como também que ele sabote o ideal estético, fim máximo de qualquer audiodescrição: converter o visual em verbo-sonoro. O que nos leva a articular certa revisão da ética tradutória para a AD.

No estágio em que se encontra, esta ética destrói a experiência estética, a apreensão sensorial e cognitiva de quem escuta a audiodescrição de uma tela, de uma fotografia ou de uma ópera, impedindo que o ouvinte reconstrua sonoramente a fruição visual do audiodescritor. Se só um poema pode traduzir outro poema; se os signos diagramáticos, ainda que criação subjetiva, são capazes de verter as qualidades visuais em som, instaurando processos semióticos de descoberta; se a tudo isto ainda se pode sobrepor, em certa medida, descrição objetiva do que se apresenta aos olhos, inaudita multivocalidade onde se preserve a poética e a ela se adicione a informação, a proposta de nomes como Pound, Joyce, os irmãos Campos e Décio Pignatari nos parece a mais pertinente. A AD prototipada nos manuais, pelo inevitável, vira linguagem de segunda mão - e eticamente condenável!

Considerações finais

Assumir a polifonia como um fato semiótico implica conceber que nenhum discurso é uma virgem imaculada. O poético, o sagrado, o prático, a prosa e todas as outras modalidades da linguagem se encontram e se contaminam reciprocamente, numa multivocalidade às vezes incômoda, capaz de colocar em suspenso o conforto das nossas classificações estanques e por vezes simplórias dos fenômenos da comunicação. Isso não sugere admitir paridade entre as tipologias dos signos; por exemplo, que o poético e o instrumental sejam equivalentes. Mas permite-nos fugir das práticas puristas que, não raros casos, engessam aquilo que é livre por natureza.

Evocar esta liberdade para a audiodescrição de obras de arte visuais e audiovisuais alforria esta prática de um lugar estanque e estéril, seja o da objetividade frígida, seja o de uma hermenêutica desvairada, amparada por um subjetivismo sem limites absolutamente indesejável. Ao propor a recriação como procedimento, acreditamos, em certa medida, conseguir fugir desta dicotomia e assim restaurar as necessárias relações estéticas, éticas e semióticas da AD, fazendo maior justiça aquele que é seu fim basilar: permitir enxergar com os ouvidos.

Esta finalidade é exatamente o fio condutor estético da AD, atualmente barrado pela norma padrão, objeto de nossa crítica e, conforme discutimos, eticamente equivocada. Desmistificada a confusão entre o poético, precisão da imprecisão ou controle da sensibilidade, e o arbitrário; reestabelecido que é licito fazer do ato de traduzir um processo ativo de criação; reconhecendo que só um poema pode traduzir outro poema, e que este permite o livre juízo, a descoberta inesperada de quem o escuta, parece-nos lícito, apontamento ético, indicar a poesia verbo-sonora como a linguagem mais adequada para se atingir o propósito estético da audiodescrição de obras de arte visuais e audiovisuais. Eis aqui, sintetizado, o nosso argumento derradeiro.

  • CNPq, Proc. 455805/2014-8, Brasília, Brazil

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2015
  • Aceito
    22 Ago 2015
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