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Ideologia e divulgação científica: uma análise bakhtiniana do discurso da revista Ciência Hoje

RESUMO

O objetivo deste artigo é explorar, com base em proposições teóricas do Círculo de Bakhtin, as relações entre discurso e ideologia, tomando como objeto de investigação o discurso de divulgação científica da revista Ciência Hoje. Operando com a ideia de que o enunciado concreto é o locus privilegiado de constituição da ideologia, o artigo focaliza dois editoriais da revista (um da década de 1980 e outro da década de 1990) procurando mostrar como embates ideológicos da sociedade contemporânea se manifestam em sua arquitetura.

PALAVRAS-CHAVE:
Ideologia; Enunciado; Círculo de Bakhtin; Divulgação científica

ABSTRACT

The purpose of this paper is to explore, based on theoretical propositions of the Bakhtin Circle, some relations between discourse and ideology, taking the scientific dissemination discourse of Ciência Hoje [Science Today] magazine as our object of investigation. Operating with the idea that the concrete utterance is the main locus of creation of ideology, we focus on two editorials of that magazine (one from the 1980s and the other from the 1990s), trying to show how ideological clashes of contemporary society manifest in the architecture of those editorials.

KEYWORDS:
Ideology; Utterance; Bakhtin Circle; Scientific Dissemination

Introdução

A argumentação desenvolvida a seguir, extraída de tese de doutorado defendida pelo autor em 2014, é orientada por duas premissas. A primeira é que a concepção de linguagem resultante da conjugação dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, Valentin Volochínov e Pável Medviédev (membros do Círculo de Bakhtin), caracterizada por uma apropriação específica da noção de ideologia, representa um profícuo suporte teórico no qual se pode apoiar uma abordagem interessada na compreensão dos modos pelos quais, na sociedade contemporânea, as formas de pensamento (assim como as referências éticas, estéticas e cognitivas) materializadas nas práticas enunciativas relacionam-se com os processos políticos e econômicos e com os mecanismos de dominação inscritos na produção e circulação dos discursos. A segunda é que as formas pelas quais o saber e o conhecimento científico se incorporam à vida social contemporânea, marcadas por uma específica combinação das funções da ciência ao mesmo tempo como ideologia e como força produtiva, fazem do discurso de divulgação científica um terreno privilegiado para a manifestação de embates ideológicos da sociedade atual.

Para demonstrar a pertinência desse raciocínio, são analisados adiante dois editoriais da revista Ciência Hoje (um da década de 1980 e outro da década de 1990). A escolha de enunciados em dois momentos distintos visa justamente mostrar, por meio de uma análise comparativa, como mudanças na configuração ideológica da sociedade podem ser visualizadas na arquitetura enunciativa da revista.

1 Sobre a ideologia na teoria do Círculo de Bakhtin

Que a questão da ideologia constitui um substrato importante da obra do Círculo de Bakhtin já tem sido apontado por estudos filiados a diferentes tradições, entre os quais podem ser mencionados Bernard-Donals (1994)BERNARD-DONALS, M. Mikhail Bakhtin: between phenomenology and Marxism. Cambridge: Cambridge University Press, 1994., Gardiner (1992)GARDINER, M. The dialogics of critique: M. M. Bakhtin and the theory of ideology. London/New York: Routledge, 1992., Alpátov (2003)ALPATOV, V. La linguistique marxiste en URSS dans les années 1920-1930. Trad. Patrick Sériot. In: SÉRIOT, P. (Ed.). Le discours sur la langue en URSS à l'époque stalienne (epistemologie, philosophie, idéologie). Lausanne: Université de Lausanne, 2003, p.5-22. [Cahiers de l'ILSL; n.14], Tchougounnikov (2005TCHOUGOUNNIKOV, S. Por uma arqueologia dos conceitos do Círculo de Bakhtin: ideologema, signo ideológico, dialogismo. Trad. Ana Zandwais e Vincent Leclercq. In: ZANDWAIS, A. (Org.). Mikhail Bakhtin: contribuições para a filosofia da linguagem e estudos discursivos. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 2005, p.11-40.; 2008)______. O Círculo de Bakhtin e o marxismo soviético: uma "aliança ambivalente". Conexão Letras, v. 3, n. 3, p.19-36, 2008. Disponível em: [http://seer.ufrgs.br/index.php/conexaoletras/article/view/55601/33805]. Acesso em: 24 ago. 2015.
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, Lähteenmäki (2005______. Sur l'idée du caractere de classe de la langue: Marr et Volosinov. In: SÉRIOT, P. (Ed.) Un paradigme perdu: la linguistique marriste. Lausanne: Université de Lausanne, 2005, p.161-175. [Cahiers de l'ILSL; n. 20]; 2006)______. Sur l'idée du caractere de classe de la langue: Marr et Volosinov. In: SÉRIOT, P. (Ed.) Un paradigme perdu: la linguistique marriste. Lausanne: Université de Lausanne, 2005, p.161-175. [Cahiers de l'ILSL; n. 20], Tihanov (1998)TIHANOV, G. Vološinov, Ideology and Language: The birth of Marxist Sociology from the Spirit of Lebensphilosophie. The South Atlantic Quarterly, v. 97, n. 3/4, p.599-621, 1998., Tylkowski (2010)TYLKOVSKI, I. V. N. Voloshinov en contexte: essai d'épistémologie historique. Thèse de Doctorat. Faculté des Lettres, Université de Lausanne, 2010., Faraco (2009)FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009., Miotello (2005)MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p.167-176. e Zandwais (2005ZANDWAIS, A. (Org.). Mikhail Bakhtin: contribuições para a filosofia da linguagem e estudos discursivos. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 2005.; 2009)_______. O papel das leituras engajadas em Marxismo e filosofia da linguagem. Conexão Letras, v. 4, n. 4, p.31-40, 2009. Disponível em: [http://conexaoletrasufrgs.com/04/AnaZandwais.pdf]. Acesso em: 24 ago. 2015.
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, entre outros.

Um ponto a partir do qual a incorporação do fenômeno ideológico à obra do Círculo pode ser rastreada é o projeto que, durante a década de 1920, em sintonia com a agenda do Instituto de Estudos Comparados das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente-ILIaZV1 1 Sobre esse instituto de Leningrado e sua importância no contexto intelectual da União Soviética na década de 1920, ver Brandist (2012). e em diálogo com a tradição marxista, Medviédev (2012 [1928], p.43)MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica Trad. Ekaterina V. Américo e Sheila C. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. [1928]. e Volochínov (2010b [1928], p.487) propõem-se empreender no sentido da construção de uma ciência das ideologias. É no curso de reflexões desenvolvidas nos marcos desse projeto que eles chegam a formulações sobre a natureza material e sígnica da ideologia, como ilustra essa passagem de Medviédev:

As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas 'almas' das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem (2012 [1928], p.48-49; grifos meus).

No mesmo sentido, a indissociabilidade entre signo e ideologia vai ser afirmada de maneira ainda mais categórica por :

[...] tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia [...] O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (2002 [1929], p.31-32; grifos no original).

Nessa linha de raciocínio, a palavra (não a palavra em estado de dicionário, mas a palavra-enunciado) vai ser pensada como um elemento em que o ideológico e o dialógico se pressupõem mutuamente. Isso porque, compreendida como o signo ideológico por excelência, a palavra é também o elo dialógico pelo qual se ligam, simultaneamente, o subjetivo, o intersubjetivo e o social, uma vez que

Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros (2002 [1929], p.113; grifos no original).

Dessa forma, longe de se oporem, ideologia e dialogismo se encontram no signo (e, por extensão, do enunciado concreto). Tal ideia será subjacentemente incorporada a muitas formulações de Bakhtin, que, especialmente a partir de 1929, desenvolverá uma visão de linguagem em que a ideologia, articulada com a concepção de dialogismo, aparecerá como um elemento de grande importância. Assim é que, a exemplo de, ele afirmará a natureza dialógica da consciência materializada na palavra-enunciado:

A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem [...] O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra (BAKHTIN, 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1963]. [1963], p.98).

E assim é que ele vai se referir à língua viva como "ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica (BAKHTIN, 2002_______. O discurso no romance In: ______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 5. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002, p.71-210. [1934-1935]. [1934-35], p.81; grifos no original).

A concepção que emerge da articulação dos trabalhos de , Medviédev e Bakhtin aponta, pois, para a língua como um fazer indissociável da realidade histórico-social, em que a ideologia é compreendida como uma malha de significados e sentidos materializados em objetos-signo e em enunciados nos quais se refletem e se refratam (sob a ação de diversas mediações, entre as quais as das esferas ideológicas e dos gêneros discursivos) as determinações emanadas das estruturas econômicas e políticas e as relações travadas pelas forças em contradição e luta na sociedade.

2 Enunciado concreto e meio ideológico

No desenvolvimento das formulações acima apresentadas, o enunciado concreto aparece na obra do Círculo como locus privilegiado de constituição da ideologia, pois, tendo por matéria-prima a palavra (signo ideológico por excelência), é nele que se encontram a consciência individual e a ideologia social e em que, prototipicamente, se materializam e circulam as ideias pelas quais a sociedade e os indivíduos representam a si mesmos e atribuem sentidos ao seu modo de existência e às relações que os constituem, incluindo aquelas pelas quais se efetivam os processos de dominação.

É nos enunciados concretos (assim como nos demais objetos-signo) que se materializa o meio ideológico (MEDVIÉDEV, 2012MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica Trad. Ekaterina V. Américo e Sheila C. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. [1928]. [1928], p.56) no qual circulam os valores morais, as referências religiosas e cognitivas, as formas de conhecimento e as concepções políticas e filosóficas que, expressando o ajuste historicamente possível, em um dado momento, entre as formas de exploração econômica e os processos de regulação política e social, proporcionam, ainda que sem suprimir a heterogeneidade e a contraditoriedade das forças em confronto sob o influxo de tendências centrípetas e centrífugas (BAKHTIN, 2002_______. O discurso no romance In: ______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 5. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002, p.71-210. [1934-1935]. [1934-35], p.81-84), um mínimo de estabilidade e consenso necessários à manutenção da hegemonia e ao exercício da dominação.

Na sociedade contemporânea, conforme demonstram, entre outros, Featherstone (1995FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. Trad. Julio A. Simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995.; 1997)_______. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. Trad. Carlos E. M. de Moura. São Paulo: Studio Nobel, 1997., Jameson (1996JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria E. Cevasco. São Paulo: Ática Editora, 1996.; 2006)JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria E. Cevasco. São Paulo: Ática Editora, 1996., Lyotard (2013 [1979])LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. 15. ed. Trad. Ricardo C. Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013 [1979]., Castells (2012)CASTELLS, M. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. 6. ed. 15. reimp. Trad. Roneide V. Majer e Jussara Simões. São Paulo: Paz e Terra, 2012., Lévy (1996_______. O que é o virtual? Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.; 1999)LÉVY, P. Cibercultura. Trad. Carlos I. da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999., Lipovetsky (2004_______. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarola, 2004b.; 2004a_______. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarola, 2004b.) e Harvey (2008_______. O neoliberalismo: história e implicações. Trad. Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2008.; 2010HARVEY, D. Condição pós-moderna. 20. ed. Trad. Adail U. Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2010.), a constituição desse núcleo principal de significados e sentidos é inseparável de certas transformações ocorridas nas forças produtivas, em conexão com as quais se cristalizaram, nas últimas quatro ou cinco décadas, modos de regulação econômica, política e social que concomitam com redefinições na produção sígnica e enunciativa em diferentes esferas de atividade e de comunicação ideológica.

Pressupondo um grande avanço das tecnologias de informação e de comunicação e uma forma específica de incorporação da ciência e do conhecimento à vida econômica e social, essas transformações se efetivam em um conjunto de processos, tais como: a) o desenvolvimento de formas de organização do trabalho e da produção baseadas na compressão do tempo e do espaço; b) o estabelecimento de um regime produtivo alimentado por um movimento ininterrupto de inovações tecnológicas; c) o vertiginoso avanço da microeletrônica, da telemática, da tecnologia digital e da comunicação sem fio; d) a intensificação da exigência de desempenho e de produtividade; e) a exacerbação do individualismo e da competição.

Em vista da importância central assumida pelo conhecimento nesses processos, implicações significativas se fazem sentir na esfera da ciência e em produções discursivas a ela associadas, como é o caso, bastante ilustrativo, do discurso de divulgação científica, no qual a esfera da ciência é articulada a outras esferas, especialmente às da mídia e da educação.

3 Ciência, mídia, educação e novas configurações ideológicas

Traço sintomático dos processos acima referidos é o fato de os esquemas cognitivos, os padrões de representação e os modelos de racionalidade típicos do mundo da produção e das relações econômicas terem penetrado em proporções nunca vistas na vida social como um todo, instalando o impulso produtivo e as referências espaço-temporais orientadas para o aqui-agora (a velocidade, a instantaneidade, a volatilidade, a simultaneidade, a efemeridade etc.) no cerne dos sistemas de interação, das relações intersubjetivas, das formas de sociabilidade e, portanto, da produção sígnica e enunciativa na qual e pela qual se concretiza a ideologia da sociedade.

A necessidade de aceleração do tempo de giro do capital, a intensidade dos ritmos de trabalho e o imperativo do desempenho e da produtividade (HARVEY, 2010HARVEY, D. Condição pós-moderna. 20. ed. Trad. Adail U. Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2010.), refletindo-se e refratando-se em signos e relações de várias esferas, tornam patente a estreita ligação entre os sentidos em circulação na sociedade e a lógica da produção de mercadorias, firmando uma constelação de valores, referências e práticas culturais, éticas, estéticas e cognitivas que, em correspondência com os princípios de organização das forças produtivas, fomenta a dissolução das fronteiras espaciais e temporais, exalta o ecletismo, o relativismo e a primazia do presente, despreza as proposições de validade universal, recusa os projetos políticos e as narrativas totalizantes e racionalizadoras e valoriza a mobilidade frente à fixidez, a multiplicidade frente à unidade, o nomadismo frente ao sedentarismo, a descontinuidade e a fragmentação frente à totalidade, a efemeridade frente à permanência (JAMESON, 1996JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria E. Cevasco. São Paulo: Ática Editora, 1996.).

Nas principais esferas envolvidas no discurso de divulgação científica, essa gradativa subsunção pelo sistema produtor de mercadorias manifesta-se de várias maneiras. No caso da ciência, podem ser destacados dois processos por meio dos quais isso se realiza: a tecnologização, pela qual o conhecimento científico, inicialmente instrumentalizado para o domínio da natureza, é aplicado cada vez mais como força produtiva do capital, e a mercantilização, que se traduz em uma série de injunções políticas, econômicas e sociais cujo principal efeito é atrelar progressivamente o conhecimento a finalidades produtivas e lucrativas, em detrimento da concepção de ciência como bem intelectual público (cf. OLIVEIRA, 2008OLIVEIRA, M. B. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle da natureza. Scientiae Studia, São Paulo, v. 6, n. 1, p.97-116, 2008. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662008000100005]. Acesso em: 24 ago. 2015.
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).

No campo da mídia, as contínuas revoluções tecnológicas abrangendo a comunicação digital, a microeletrônica, as telecomunicações e os processos de produção, armazenamento e transmissão de dados e informações, juntamente com a institucionalização da internet, da World Wide Web e da comunicação sem fio, propiciam a constituição de uma sociedade globalmente interconectada sob a forma de múltiplas redes, na qual os meios de comunicação operam de maneira onipresente, contribuindo, de um lado, para a aceleração dos fluxos econômicos, administrativos e financeiros (cf. CASTELLS, 2012CASTELLS, M. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. 6. ed. 15. reimp. Trad. Roneide V. Majer e Jussara Simões. São Paulo: Paz e Terra, 2012.) e, de outro, para a reorganização das formas de sociabilidade, de identidade e de interação sociodiscursiva, as quais, assimilando procedimentos de comunicação em rede, de movimentação em situações e ambientes fluidos e de manuseio de realidades transitórias, fragmentárias e instáveis, incorporam alguns dos elementos axiais do universo das forças produtivas e da existência material.

No caso da educação, uma significativa implicação de todos esses processos é o agenciamento cada vez maior de atividades desse campo para formação, treinamento e capacitação de mão-de-obra para o mercado de trabalho. Sob os influxos da reorganização do capital nas últimas décadas, a esfera educacional é fortemente invadida por injunções no sentido de mobilizá-la para a promoção da qualidade total (GENTILLI & SILVA, 2002GENTILI, P. ; SILVA, T. Neoliberalismo, qualidade total e educação: visões críticas. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.), ou seja, para a sua submissão à lógica da produtividade e do desempenho, pondo em segundo plano sua atuação como instância humanística e emancipadora.

4 A divulgação científica da revista Ciência Hoje na década de 1980

Criada em 1982, a revista Ciência Hoje firma-se durante a década de 1980 como um instrumento de que se vale a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC para reafirmar o compromisso da ciência e dos cientistas com o desenvolvimento do Brasil e, ao mesmo tempo, manifestar sua intenção de manter um canal de comunicação direta com os demais setores da sociedade, participando ativamente do debate que se trava nesse momento em torno da redemocratização do país.

Respondendo a demandas da conjuntura histórico-social, a atuação discursiva da revista na sua primeira década de existência integra-se a uma estratégia de atuação moderno-iluminista que reitera o entendimento da ciência como um conhecimento comprometido com o futuro, com o desenvolvimento, com uma visão sistematizante da experiência humana e com a construção de uma sociedade esclarecida pelo pensamento racional.

Nas décadas seguintes, no entanto, o assédio de referências e parâmetros associados às novas formas de gestão da produção se traduz em descontinuidades, fissuras e reorganizações que se refletem e se refratam na arquitetura enunciativa da revista como um todo e, de modo especial, nos seus editoriais, dado o caráter estratégico que esse gênero cumpre na produção discursiva da revista.

Tomemos, para dar início a uma análise comparativa, um enunciado bastante representativo do discurso da revista na década de 1980, publicado na edição de março-abril de 1984 (Fig.1). De início, cabe ressaltar o fato de o enunciado em questão ser produzido em um gênero (o editorial) que se encaixa perfeitamente no intuito discursivo do sujeito no sentido de afirmar a importância da ciência e dos cientistas em um momento específico da história brasileira. Assim, conjugam-se aos elementos repetíveis do gênero, como o caráter opinativo, o tamanho sucinto e a simplicidade estrutural, outros traços que o enunciado apresentado compartilha com praticamente todos os editoriais publicados na revista durante a década de 1980:

Fig.1
Editorial da revista Ciência Hoje - Abril de 1984.

  • Autoria assumida por um sujeito supraindividual (os editores), que fala em nome de uma instância coletiva e evoca significados e valores relativos à sociedade como um todo, configurando um ethos enunciativo2 2 A noção de ethos é usada aqui no sentido que lhe atribuem Aristóteles e, de modo geral, as teorias da argumentação contemporâneas que se inspiram na retórica aristotélica. Remete, pois, ao caráter do orador, isto é, à imagem que ele produz de si mesmo, com o fim de angariar credibilidade e garantir a confiança do auditório a que se dirige. A utilização de categorias afetas à retórica nesta análise leva em conta que, para além de suas diferenças, a teoria bakhtiniana e a teoria da argumentação, enquanto conjuntos de princípios, categorias e procedimentos articuláveis ao estudo do discurso, apontam, cada uma a seu modo, para a natureza eminentemente dialógica do discurso, na medida em que tanto uma quanto outra atribui papel fundamental à relação entre o sujeito e o outro na elaboração discursiva. Além disso, o raciocínio aqui apresentado retoma a ideia, desenvolvida mais detidamente em Costa (2010), de que, juntamente com a politização, um dos traços característicos do discurso materializado nos editoriais da revista Ciência Hoje na década de 1980 é justamente a retorização, ou seja, a orientação do discurso para propósitos persuasivos. Sobre a retórica, ver, entre outros, Aristotle (1990); Perelman/Olbrechts-Tyteca (1996); Perelman (1993); and Meyer (2007). assemelhado ao do educador;

  • Composição gráfica em um bloco compacto, sem título, que preenche a extensão de uma página com uma mancha textual de grande densidade;

  • Monotematização: o enunciado se ocupa centralmente em apresentar a posição da SBPC sobre um tema - nesse caso, as eleições diretas para presidente da República e o papel da ciência e dos cientistas na reconstrução da Nação;

  • Utilização quase exclusiva de recursos verbais: o enunciado se reduz a um bloco de texto sobre um fundo uniforme.

Publicado em um momento histórico marcado por uma intensa movimentação política e social (em pleno calor da campanha pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente da República no Brasil), esse editorial se constitui, então, como um evento discursivo que simultaneamente produz e é produzido pelo contexto. Na qualidade de enunciado, ele se compõe como um território em que vozes ideológicas da sociedade ao mesmo tempo se constroem, manifestam-se e dialogam. Por isso, nele se vê, incorporado aos elementos da sua arquitetura e às imagens de sujeito e de destinatário que daí emergem, um modo específico de interação entre a vontade discursiva do enunciador e alguns dos traços fundamentais da configuração ideológico-discursiva do momento. Entre esses traços, cujos influxos concorrem para dar ao enunciado uma face que se poderia chamar de modernista, podem ser destacados: a politização, a retorização, a valorização do futuro e a perspectiva da totalidade.

A politização, formatada por valores predominantemente da esfera educativa, é o impulso básico que organiza os demais traços e norteia a construção do enunciado e do sujeito que o enuncia. É em diálogo com e em resposta à atmosfera de intenso debate político que potencialidades retóricas do gênero são mobilizadas para a defesa de determinadas posições, projetando-se no editorial um enunciador confiante no papel das ideias e na força racionalizante das palavras. Daí ser o logos (o raciocínio, a argumentação) um dos princípios estruturantes do enunciado, não consistindo em acaso que ele se apresente como uma totalidade compacta de signos verbais organizados segundo uma finalidade persuasiva. Situado no interior de um fluxo discursivo extremamente politizado (no qual a crítica à ditadura militar e o debate entre diversos projetos de reorganização da sociedade são dados essenciais), esse sujeito acredita no vigor dos seus argumentos e no programa político com que ele se acha comprometido, razão pela qual sua assinatura tem um cunho institucional, sendo a autoria do enunciado assumida pelos editores, que se responsabilizam não apenas pela execução do projeto editorial-jornalístico da revista, mas também pela sua orientação ético-política.

Em consonância com o ethos enunciativo, a imagem de destinatário que se produz é a de um sujeito a ser simultaneamente informado e persuadido. A modalidade retórica do enunciado é, portanto, de natureza deliberativa:3 trata-se de levar ao destinatário um conhecimento e ao mesmo tempo conquistar a sua adesão a uma tese, convencendo-o da necessidade de adotar determinadas ações com vistas à construção da vida futura na polis. Daí o texto ser pontuado por sintagmas verbais que remetem ao caráter propositivo e ativo do sujeito: tomar posição, ingressa na luta, urge buscar, urge procurar, precisa ser restabelecido.

Esses elementos4 4 Algumas das ideias aqui apresentadas já se encontram parcialmente desenvolvidas em Costa (2009). são suficientes para mostrar como, no editorial em foco (produzido no interior de um fluxo discursivo no qual predomina uma atmosfera de intensa politização e debate), os seus componentes arquitetônicos são mobilizados para, em interação e diálogo com as linhas mestras do contexto, compor um enunciado que se estrutura em um todo retórico cujo propósito, articulando as esferas ideológicas envolvidas na atividade de divulgação científica e formatado sobretudo por signos e sentidos do campo da educação, é levar o destinatário a adquirir uma 'consciência' e aderir a uma determinada tese quanto à melhor maneira de prover as relações entre o Estado e a sociedade e quanto ao papel da ciência, dos cientistas e do conhecimento científico na construção do futuro do país. Caso bem diferente ocorre com o editorial publicado na edição de novembro de 1998 (Fig.2).

Fig.2
Editorial da revista Ciência Hoje - novembro de 1998.

5 O discurso da revista Ciência Hoje na década de 1990: sob o assédio da pós-modernidade

Não é preciso um olhar minucioso para perceber, já em uma primeira panorâmica, que o editorial de nov/98 apresenta características muito distintas das observadas no anterior. Embora, na condição de gênero introdutório, compartilhe com o editorial da década de 1980 vários traços em comum (inscrição em um discurso específico; caráter de liminaridade e de mediação; localização nas páginas iniciais da edição; estrutura e formato conciso compatível com o espaço de uma página; sujeito supra individual etc.), alguns aspectos da sua arquitetura são bem diferentes e exprimem, na verdade, a afirmação de tendências que, anunciadas ao longo dos anos de 1997 e 1998, representam o desenvolvimento de um processo pelo qual vão mudando as vozes ideológicas presentes no discurso da revista.

Assim, como se pode ver, esse editorial:

  • compõe-se visualmente de modo menos denso, apresentando uma superfície na qual o texto divide com uma fotografia o espaço da página, em cuja lateral direita aparece ainda uma tira vertical com o título da seção;

  • é constituído por um texto dividido em três blocos menores; além do título da seção (Carta ao leitor) tem um título específico (Em busca de outros mundos) e é assinado por A redação;

  • é pluritemático: cada um dos três textos de que ele se compõe apresenta um tema ou assunto focalizado na edição da revista e discorre rapidamente sobre ele;

  • conjuga recursos semióticos de diversas ordens, combinando imagem, cor e texto.

Em uma abordagem interessada exclusivamente nos elementos concreto-semânticos explicitados na superfície material dos enunciados, a explicação para as diferenças em relação ao editorial de abril de 1984 poderia se restringir ao em-si das mudanças no querer-dizer do sujeito, nos padrões de composição e construção textual e nos procedimentos de diagramação e de programação visual adotados pela revista ao longo do tempo. Diversamente, uma abordagem orientada pela perspectiva do dialogismo pressupõe de início que, atravessando as relações lógicas constituídas pela matéria sígnica mobilizada na construção desses enunciados, operam relações de natureza dialógica (BAKHTIN, 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1963]. [1963], p.209), o que significa dizer que os referidos enunciados não são meramente o resultado do intuito discursivo de um sujeito que, manuseando em diferentes momentos os recursos semióticos mais adequados aos seus objetivos, transmite o seu dizer a um destinatário. Muito mais que isso, eles constituem elos na cadeia de comunicação ideológica e, nessa condição, dialogam com e respondem a outros enunciados em circulação no fluxo discursivo da sociedade. Sua arquitetura representa, por isso, não apenas a vontade enunciativa de um sujeito, mas um espaço onde a voz desse sujeito se encontra com outras vozes (tanto individuais como sociais) presentes no fluxo discursivo. Nessa arquitetura, consequentemente, se reflete e se refrata a correlação das forças que disputam a hegemonia na sociedade. Cada um desses enunciados corresponde, dessa forma, a uma pequena porção do universo da ideologia social.

Assim, sem prejuízo do valor intrínseco das mudanças nas concepções gráficas e nos processos de construção textual (de resto também condicionados por mudanças na realidade extratextual), bem como no intuito discursivo do sujeito, as apontadas diferenças entre os dois enunciados, vistas sob um enfoque dialógico, remetem ao fato de cada um deles ter sido produzido nos marcos de realidades histórico-sociais (pressupondo redes de relações, processos interacionais, sistemas de comunicação e condições de enunciação) diferentes e, portanto, cada um deles refletir e refratar uma diferente constelação das forças que se enfrentam na existência social material e na luta pelo controle dos sentidos e significados produzidos no seio dessa existência.

É a presença constitutiva de condicionamentos próprios dos momentos histórico-sociais em que são produzidos os dois enunciados que explica a natureza das discrepâncias existentes entre eles, as quais têm a ver fundamentalmente com o fato de os dois serem atravessados por vozes sociais diferentes: enquanto no editorial de 1984, o tônus é esculpido inteiramente por vozes identificadas com parâmetros modernos (senso de história, totalidade, futuro, sistema, coletividade etc.), o que lhe confere, naquele contexto, um forte tom de politização, no segundo, já permeado por algumas vozes sintonizadas com referências pós-modernas, essa atmosfera está completamente ausente. Além disso, enquanto no primeiro poder-se-ia falar de uma presença maior da esfera da educação, no segundo ganham muito mais visibilidade elementos sígnicos associados à esfera da mídia.

Uma das vias por onde esses novos ingredientes penetram, incorporando-se aos elementos pelos quais os efeitos de sentido se constroem e se consumam, é a própria imagem do sujeito, que no editorial de 1998 não mais assume a responsabilidade ético-política pelo projeto da revista, apresentando-se agora não como os editores, mas como a redação. Produz-se, com isso, um arrefecimento do peso político do enunciador, cuja responsabilidade se retira do plano institucional e passa a se situar apenas no plano da produção 'jornalística' da revista.

Em sintonia com essa imagem de sujeito, o objeto do dizer do enunciado não é mais a defesa de um programa, mas a descrição das matérias oferecidas aos leitores no interior da publicação. Não se trata, nesse caso, de persuadir o leitor a aderir a um ponto de vista, mas de seduzi-lo e atrair o seu interesse para as informações veiculadas na edição5 5 Essa despolitização dos editoriais de Ciência Hoje perdura de 1997 até 2004, quando eles voltam a ser habitados por avaliações e posicionamentos políticos. Uma diferença importante, porém, é que aí eles não são mais assinados por um coletivo, mas sim por um indivíduo que responde por uma instituição. Exemplo: Renato Lessa, diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje. .

Nessa direção desempenham papel fundamental a utilização de recursos intersemióticos e a fragmentação do bloco textual. A composição semiótica variada (combinando texto, imagem e cor) descentra o eixo conativo do enunciado que, assim, diferentemente do primeiro editorial, apela não apenas para a razão, mas também para a sensorialidade do destinatário. Por sua vez, a segmentação do bloco textual, diluindo a carga informacional em unidades menores, permite que o destinatário se desobrigue de percorrer a sequencialidade do texto para a construção dos seus sentidos e possa, caso se desinteresse pelo assunto principal evocado no título e tratado na primeira fração, direcionar sua atenção para as outras unidades, 'navegando' em busca do que mais lhe aprouver, sem necessariamente se prender à totalidade do enunciado, cuja estrutura, embora construída sobre uma superfície impressa, fica menos ancorada na linearidade que na contiguidade, na justaposição e na simultaneidade, aproximando-se, assim, do que viria a se consolidar como o modelo de organização espaço-temporal típico do hipertexto informático e dos enunciados produzidos em plataformas virtuais.

Em termos retóricos, se no editorial da década de 1980 predomina o gênero deliberativo, uma vez que sua orientação ético-política convida o destinatário a dirigir o seu olhar para o futuro, no segundo parece sobressair o epidítico, visto que se tem aí um discurso voltado para o "elogio" de objetos do aqui-agora: os fatos do momento presente dotados de interesse científico, as novidades do mundo da ciência etc. Sintomaticamente, o foco principal do enunciado é a pesquisa científica sobre sistemas planetários no universo e a possibilidade de existência de vida extraterrestre, uma das 'curiosidades' científicas favoritas do senso comum.

Enquanto, portanto, no primeiro enunciado temos um sujeito que busca comprometer o seu destinatário com a totalidade de um raciocínio, de uma argumentação e de um programa no interior do qual se coloca um determinado entendimento a respeito do papel da ciência e dos cientistas na construção de um país futuro, no segundo temos uma espécie de vitrine na qual são destacadas 'atrações' do mundo da ciência apresentadas naquela edição. Além dos recursos visuais, contribuem para esse efeito a escolha do léxico e o uso de expressões que remetem a um imaginário no qual a busca do conhecimento científico, associada a um espírito de desvendamento, exploração e aventura, assume um caráter de espetáculo fabuloso e 'excitante': superado o geocentrismo, a busca...não parou de crescer, métodos de observação astronômica avançaram muito ... e revelaram, novidades na área, universo ... instigante, jovem etnólogo, excursões mais famosas da história, expedição, permaneceram guardados, visão até agora adormecida etc.

Conclusão

Assim, o que a argumentação nas páginas precedentes espera ter mostrado, ainda que sem um desenvolvimento aprofundado, dadas as dimensões de um artigo acadêmico, é, em primeiro lugar, que a teoria do Círculo de Bakhtin representa um relevante suporte teórico para abordagens interessadas na questão da ideologia; em segundo lugar, que na produção enunciativa característica da sociedade contemporânea refletem-se e refratam-se importantes processos pelos quais se definiram nas últimas quatro ou cinco décadas transformações cruciais nas formas de organização econômica e de regulação política e social; em terceiro lugar, que, em vista do modo como a ciência (enquanto força produtiva e ideologia) foi incorporada a essas transformações, o discurso de divulgação científica constitui um campo relevante para a observação dos embates entre as forças que lutam pela hegemonia na construção dos sentidos e significados materializados nos enunciados concretos em circulação na sociedade.

Focalizando dois editoriais da revista Ciência Hoje, o artigo espera ter indicado que o discurso da revista é atravessado por um antagonismo de fundo entre, de um lado, vozes identificadas com um projeto de divulgação científica de cunho moderno-iluminista, marcado pelo investimento em uma visão de mundo sistêmica, totalizante e comprometida com a construção do futuro e, de outro, vozes mais identificadas com significados, práticas e valores de inspiração pós-moderna, definidos, entre outras coisas, pela despolitização e pelo elogio do fragmentário e do contingente.

  • 1
    Sobre esse instituto de Leningrado e sua importância no contexto intelectual da União Soviética na década de 1920, ver Brandist (2012).
  • 2
    A noção de ethos é usada aqui no sentido que lhe atribuem Aristóteles e, de modo geral, as teorias da argumentação contemporâneas que se inspiram na retórica aristotélica. Remete, pois, ao caráter do orador, isto é, à imagem que ele produz de si mesmo, com o fim de angariar credibilidade e garantir a confiança do auditório a que se dirige. A utilização de categorias afetas à retórica nesta análise leva em conta que, para além de suas diferenças, a teoria bakhtiniana e a teoria da argumentação, enquanto conjuntos de princípios, categorias e procedimentos articuláveis ao estudo do discurso, apontam, cada uma a seu modo, para a natureza eminentemente dialógica do discurso, na medida em que tanto uma quanto outra atribui papel fundamental à relação entre o sujeito e o outro na elaboração discursiva. Além disso, o raciocínio aqui apresentado retoma a ideia, desenvolvida mais detidamente em Costa (2010)COSTA, L. Da ciência à política: dialogismo e responsividade no discurso da SBPC nos anos 80. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2010., de que, juntamente com a politização, um dos traços característicos do discurso materializado nos editoriais da revista Ciência Hoje na década de 1980 é justamente a retorização, ou seja, a orientação do discurso para propósitos persuasivos. Sobre a retórica, ver, entre outros, Aristotle (1990)ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Antonio Tovar. 4.ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990.; Perelman/Olbrechts-Tyteca (1996)PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria E. Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.; Perelman (1993)PERELMAN, C. O império retórico: retórica e argumentação. Trad. Fernando Trindade e Rui A. Grácio. Porto, Portugal: Asa, 1993.; and Meyer (2007).
  • 3
    A referência de fundo aqui são os três gêneros da retórica clássica: o judiciário, que acusa ou defende, incidindo predominantemente sobre um fato passado; o deliberativo, que busca mover ou dissuadir a respeito de uma ação futura; e o epidítico, que elogia ou censura e versa em geral sobre o presente.
  • 4
    Algumas das ideias aqui apresentadas já se encontram parcialmente desenvolvidas em Costa (2009)_______. Dialogismo, responsividade e referenciação: uma análise de editoriais da revista Ciência Hoje. In: GARCIA, B. et al. (Org.). Análises do discurso: o diálogo entre as várias tendências na USP. São Paulo: Paulistana, 2009..
  • 5
    Essa despolitização dos editoriais de Ciência Hoje perdura de 1997 até 2004, quando eles voltam a ser habitados por avaliações e posicionamentos políticos. Uma diferença importante, porém, é que aí eles não são mais assinados por um coletivo, mas sim por um indivíduo que responde por uma instituição. Exemplo: Renato Lessa, diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
  • Aceito
    15 Out 2015
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