Acessibilidade / Reportar erro

"Vamos vencer o tráfico": análise verbo-visual da significação e do tema de uma palavra em uma capa da revista Época

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise verbo-visual da significação e do tema da palavra tráfico, tal como aparece em uma das capas da revista Época. Para isso, leva em conta a etimologia e as mudanças históricas de significação da palavra em determinados contextos concretos em que ela circulou com o intuito de verificar como sua polissemia contribui, de forma articulada com o visual da capa, para produzir certo impacto sobre o público leitor. A análise se baseia na teoria de significação e tema de Bakhtin/Volochínov e enfatiza a importância do contexto social e histórico no estudo do tema de signos ideológicos. Os resultados apontam como uma análise desse tipo pode esclarecer o propósito comunicativo do uso da palavra, bem como permitir uma compreensão histórico-crítica de determinado assunto.

PALAVRAS-CHAVE:
Tráfico; História; Significação; Tema; Verbo-visualidade

ABSTRACT

This article presents a verbal-visual analysis of the meaning and theme of the word "tráfico," such as it appears on one of the covers of Época magazine. In order to do so, it takes into account the etymology and the historical changes of the meaning of the word in certain concrete contexts in which it circulated, so as to verify how its polysemy contributes, in conjunction with the cover visuality, to produce a certain impact on the reading audience. The analysis is based on Vološinov's theory of meaning and theme, and emphasizes the importance of the social and historical context in the study of ideological signs. The results indicate how an analysis of this kind can clarify the communicative purpose of word usage and permit a historical and critical understanding of an issue.

KEYWORDS:
Traffic; History; Meaning; Theme; Verbal-Visuality

Introdução

Muitas vezes, a construção do sentido tanto implícito quanto explícito de um enunciado depende não só do material verbal ou visual presente, mas também de um conhecimento do contexto social e histórico em que foi proferido. É esse o caso com capas de revista, já que suas manchetes têm de ser chamativas e talvez polêmicas para captar de modo contextualizado a atenção do público-alvo. Foi esse o caso da revista Época, que teve, na capa publicada no dia 26 de novembro de 2010, a seguinte manchete: "Vamos vencer o tráfico". Essas palavras estão acompanhadas, no centro da capa, pela imagem de um crânio verticalmente transpassado por uma faca, atrás do qual há dois revólveres cruzados. Esses elementos visuais se encontram dentro do que parece ser um alvo ou mira1 1 Para visualizar a capa da revista, clique no link e procure o número de 29/11/2010: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2013/06/capas-de-epoca.html .

Neste artigo, realizar-se-á uma análise verbal dessa manchete, do ponto de vista histórico, semântico e pragmático, com ênfase na palavra tráfico. O objetivo é permitir uma compreensão histórico-crítica aprofundada do tema (sentido) da manchete nesse contexto. Toda palavra tem sua história particular, formada diacronicamente, e assim adquire uma multiplicidade de significações que contribuem para sua polissemia atual. Além disso, o contexto concreto do enunciado - neste caso como manchete de uma das capas da revista Época dirigida à população brasileira - interfere em sua interpretação.

Assim, em articulação com a análise verbal, também serão considerados neste trabalho o visual da capa e o conteúdo da matéria da revista, de modo a esclarecer o propósito do uso da palavra tráfico no contexto histórico do Brasil. Com base no estudo de Neto (2009), em que a história semântica da palavra tráfico é abordada, buscar-se-á fazer dessa história uma leitura bakhtiniana, levando-se em conta a ligação entre a palavra e o contexto social em que é proferida, bem como a distinção entre significação e tema (sentido). O objetivo será também analisar as diversas implicações da palavra e alguns de seus efeitos possíveis sobre o público leitor.

1 Fundamentação teórica

Bakhtin/Volochínov (2009)BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. , partindo de uma perspectiva marxista, enfatiza que a palavra e o enunciado no qual ela se encontra são inerentemente históricos e sociais; não podem ser compreendidos fora do contexto social em que ocorrem. Yaguello (2009, p.16)YAGUELLO, M. Bakhtin, o homem e seu duplo (Introdução). In: BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud eYara Frateschi Vieira . São Paulo: Hucitec, 2009. p.11-19., corroborando essa ideia, declara que a enunciação "é de natureza social, portanto ideológica", não existindo "fora de um contexto social, já que cada locutor tem um 'horizonte social'". Sendo assim, o enunciado reflete e refrata a relação de poder entre os interlocutores e a situação histórica concreta na qual a interação acontece. A significação de um enunciado não é, portanto, apenas a soma das definições dos elementos linguísticos individuais encontrados no dicionário, mas abrange também as relações sociais entre os falantes e a intenção da fala, adquirindo um papel importante na formação, na manutenção e na mudança da ideologia.

A mesma ideia se aplica à palavra, à qual Bakhtin/Volochínov (2009, p.36)BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. se refere como "o modo mais puro e sensível de relação social", acreditando que a relação social refletida na linguagem é uma representação da luta de classes, conforme explica Yaguello (2009, p.14)YAGUELLO, M. Bakhtin, o homem e seu duplo (Introdução). In: BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud eYara Frateschi Vieira . São Paulo: Hucitec, 2009. p.11-19.: "a palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema" e "a comunicação verbal [...] implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc.".

Dessa forma, toda palavra usada na relação entre dois interlocutores historicamente constrói ou modifica a hierarquia social, nada podendo ser dito sem uma função ideológica. Se a palavra, portanto, reflete e refrata dessa maneira a estrutura social, segue-se que reflete e refrata também qualquer modificação que nela ocorra. Nesse sentido, Bakhtin/Volochínov explica que:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais [...]. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica [...]. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (2009, p.42).

Levando em conta o fato de que a palavra registra as mudanças ideológicas mais sutis (inclusive aquelas que ainda não se concretizaram), o estudo da acumulação histórica de significados2 2 "Significação" e "significado" são termos usados aqui como sinônimos. de um vocábulo e de sua etimologia torna-se importante porque explica a carga ideológica que ele arrasta do passado até o presente. O uso de certa palavra em uma situação concreta pode dar a conhecer conotações e nuances de significado que podem passar despercebidas quando se considera a palavra abstratamente. Isso se deve a fases históricas temporárias na transição de uma ideologia para outra.

Bakhtin/Volochínov também traça uma linha nítida entre a significação e o tema de uma palavra. A significação, de um lado, contém "os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos", que são - além disso - abstratos e fundados sobre uma convenção, não tendo existência concreta independente (2009, p.134). Além disso, a significação "não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. , p.136). A significação refere-se às definições que se encontram, por exemplo, no dicionário; porém, como a língua não existe fora do ambiente histórico e social, essas definições só adquirem sentido quando são realizadas dentro de uma situação real, daí a sua potencialidade.

De outro lado, o tema3 3 "Tema" e "sentido", da mesma forma, são termos usados aqui como sinônimos. é "individual e não reiterável. Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. , p.133), constituindo-se como "o estágio superior real da capacidade linguística de significar" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. , p.136). Ao contrário da significação abstrata e estável, o tema é a realização concreta de uma palavra e abarca a significação dentro de um contexto concreto, levando em conta fatores extraverbais como a relação entre os interlocutores, o contexto histórico e a intenção dos falantes. Assim, o tema muda historicamente a cada reiteração do vocábulo.

Levando em consideração, finalmente, a ideia da palavra como reflexo, refração e arena de luta social, bem como as diferenças entre a significação e o tema, a análise da palavra tráfico que se pretende empreender neste artigo deve ser realizada a partir de uma perspectiva múltipla. Como aponta Bakhtin/Volochínov:

[...] o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma (2009, p.96).

Dito de outro modo, toda palavra pode assumir várias significações e propósitos e vai adquirindo outros mais, ao longo da história, a cada vez que é usada. Para entender o sentido e o uso da palavra tráfico na capa da revista Época, é necessário - portanto - realizar uma análise social e histórica que inclua fases transitórias diacrônicas de seu significado, nunca perdendo de vista o caráter de novidade e inovação desse processo.

2 Metodologia

A capa da revista Época em questão foi selecionada para análise por causa do assunto polêmico de que trata e da combinação de palavras e imagens. Em uma primeira abordagem, procurou-se a definição da palavra tráfico em alguns dicionários contemporâneos: o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2007) e o Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa (1988). Percebeu-se, com isso, um conflito entre definições, o que apontou para uma discrepância entre elas e evidenciou a potencialidade de temas muito distintos que a palavra pode assumir, sejam eles mais neutros ou mais negativos. Com esse cotejo a partir dos dicionários, conferido com os dados etimológicos apresentados no trabalho de Bezerra Neto (2009)BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., procurou-se distinguir, de acordo com o pensamento bakhtiniano/volochinoviano, como a palavra passou de uma significação neutra a uma negativa, e como o contexto histórico-social contribuiu para essa mudança.

A partir da primeira avaliação, para permitir um estudo diacrônico do vocábulo, consultaram-se outros dicionários, entre os quais dicionários tradicionais, começando em 1832 com o Diccionario da língua brasileira, de Luiz Maria da Silva Pinto, até, novamente, dicionários contemporâneos como Houaiss (2007)HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007. e Buarque de Holanda (1988)BUARQUE DE HOLANDA, A. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.. Além disso, foram consultados o Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa (CUNHA, 1982CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira AS, 1982.) e o Dicionário de português-latim (FERREIRA, 1991FERREIRA, A. G. Dicionário de português-latim. Porto: Porto Editora, 1991.) com o objetivo de dar conta das origens da palavra. Utilizando os significados encontrados nesses dicionários e em conjunto com as reflexões de Bezerra Neto (2009)BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009. sobre a evolução da palavra tráfico, analisou-se a manchete atual e historicamente e procurou-se determinar seu tema, refletindo-se também sobre o conteúdo visual da capa. O mais importante é ir além da história etimológica, interpretando essa história à luz do contexto social da época da publicação e, inversamente, como propõe Bakhtin/Volochínov.

3 Análises

Conforme é possível observar na capa da revista a seguir4 4 Cf. nota de rodapé n.1. , a manchete completa a ser analisada é "Vamos vencer o tráfico: A guerra ainda não acabou. Mas a ação da polícia, com apoio da população, mostra que é possível livrar o Rio de Janeiro - e todo o Brasil - desta chaga". À primeira vista, enxergam-se as cores sombrias da capa - é quase toda preta - e um crânio, dois revólveres e uma faca dispostos dentro do que parece ser um alvo ou mira. Uma análise rápida desse enunciado permite perceber que a palavra tráfico tem uma conotação negativa: trata-se de algum tipo de comércio ilegal.

O texto da matéria, dentro da revista, discute a invasão da sede do grupo criminoso Comando Vermelho pelos militares, em Vila Cruzeiro, Estado do Rio de Janeiro, no dia 25 de novembro de 2010. Comenta também o tráfico de drogas como um problema de todo o país e conta que isso se originou em virtude da inação de políticos e policiais corruptos. Segundo a matéria, agora não basta só prender os traficantes porque é a posse do território que lhes confere um poder paralelo ao do Estado. A retomada de Vila Cruzeiro tinha como importância, naquele contexto histórico, demonstrar a capacidade de o Brasil tanto sediar com segurança as Olimpíadas e a Copa do Mundo quanto provar a eficácia das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para impor essa segurança. Tendo isso em vista, o primeiro passo na análise da palavra tráfico proveniente do enunciado dessa capa foi procurar as definições atuais da palavra. O DicionárioHouaiss da língua portuguesa (2007)HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007. define tráfico como: 1) Trato mercantil, negócio, comércio; tráfego; 2) Negócio clandestino, ilícito, ilegal; 3) (Ant.) o comércio de escravos; 4) Regionalismo, mesmo que 'Tráfego (repartição ou pessoal)'.

É importante notar bem a terceira acepção de tráfico: "o comércio de escravos". Essa acepção antiga (Ant.) dá uma pista para se entender como a história poderia ter influenciado a mudança de uma definição neutra da palavra para uma negativa: é preciso levar em conta o problema da escravatura. Para investigar a fonte dessa polissemia e as acepções diversas, bem como a hipótese de que a escravatura teve com isso alguma relação, analisaram-se vários dicionários mais antigos, dentre eles alguns citados no trabalho de Bezerra Neto (2009)BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009..

O Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, de Cunha (1982)CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira AS, 1982., que detalha a etimologia do vocábulo tráfico, constata que o significado original era "comércio, negócio, tráfego", mas tendo como acepção extensiva "negócio indecoroso", proveniente do século XVI. A palavra vem do italiano "traffico". Bezerra Neto (2009)BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009. traz dados do Diccionário encyclopédico ou Novo Diccionário da Lingua Portugueza, de Lacerda (1870)LACERDA, J. M. de A. e A. C. Diccionário encyclopédico ou Novo Diccionário da língua portugueza, para uso dos portuguezes e brazileiros, o mais exacto e mais completo de todos os diccionários até hoje publicados, seguido do Diccionário de synonymos com reflexões críticas. 3.ed. Lisboa: Escriptório de Francisco Arthur da Silva, 1870., que traça a etimologia desde a fonte latina: trans (além) + efficio/ere (fazer, conseguir), sendo a definição correspondente "trato mercantil ou negócio", a qual carece da conotação negativa presente na definição de Cunha (cf. BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.103). Apesar disso, parece que já na sua origem a palavra permite uma acepção de comércio ilícito, embora esteja longe de ser a mais comum.

Bezerra Neto analisa o Diccionário dos termos homonymos e equívocos da língua portugueza do ano 1842, de Antônio Maria do Couto, em que a definição de tráfico é simplesmente "negócio, comércio, tracto mercantil", o que difere daquela acepção extensiva encontrada no dicionário de Cunha (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.103). Porém, outras formas do verbete mostram traços de acepções negativas (esse ponto será retomado depois). Bezerra Neto também comenta o Dicionário da língua portugueza, de Fonseca e Roquette, ampliado em 1860, que define o tráfico como "negócio, commércio" (2009, p.105). Em 1870, o Diccionário encyclopédico de Lacerda mantém o sentido lícito do vocábulo tráfico (2009, p.106).

Percebe-se que muitas das definições de tráfico dadas nos dicionários do século XIX são ambíguas e permitem várias acepções, sejam elas neutras ou negativas. Porém, vale a pena considerar brevemente outros verbetes relacionados, já que esclarecem o processo de mudança semântica do neutro para o negativo. Começando em 1842 com o dicionário de Couto, os outros verbetes - "traficante" e "traficância" -, embora não possuindo definições próprias e separadas, "remetem a um significado de 'astúcia, manha, trapaça, treta'" por causa dos sufixos "-ante" e "-âncía", segundo Couto (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.105).

Além disso, a forma verbal "traficar" já tem como acepção "negociar sem lizúra, exercitar o tráfico" (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.105). Similarmente, Fonseca e Roquette, em 1860ROQUETTE, J. I. Diccionário da língua portugueza, de José da Fonseca, feito inteiramente de novo e consideravelmente augmentado por J. I. Roquette. Pariz: Casa de Vª J. P. Aillaud, Molon e Cª, 1860., assinalam que o verbo "traficar" tem duas acepções: "a prática de quem vive do tráfico" e "negociar com gírias". Apontam também que "traficância" é negativo, definindo-o como "trato, vida de traficante; falta de lisura" (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.105). Lacerda, em 1870LACERDA, J. M. de A. e A. C. Diccionário encyclopédico ou Novo Diccionário da língua portugueza, para uso dos portuguezes e brazileiros, o mais exacto e mais completo de todos os diccionários até hoje publicados, seguido do Diccionário de synonymos com reflexões críticas. 3.ed. Lisboa: Escriptório de Francisco Arthur da Silva, 1870., e Cândido de Figueiredo, em 1899 (1913), no Novo diccionário da língua portuguesa, seguem na mesma veia, dando acepções negativas às palavras "traficância", "traficante" e "traficar" (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.109).

Considerando as acepções negativas (não ambíguas) dos outros verbetes relacionados com tráfico, é possível pensar que são esses que começaram a adquirir conotações negativas primeiro, as quais só mais tarde foram transferidas para a palavra tráfico. Pode ser que o uso das palavras "traficante" e "traficância" tenha sido limitado só ao comércio ilícito, como àquele dos escravos, enquanto tráfico manteve um uso mais expandido por mais tempo, podendo se referir a vários tipos de tráfico lícitos.

Bezerra Neto aponta a década de 1840 como o momento decisivo na mudança de acepções: foi justamente nessa década que a luta contra a escravatura teve muita influência. Com sua abolição na Inglaterra ao início do século, a atividade escravagista começou a ser considerada ilícita e criminosa. A palavra tráfico, muito usada para descrever o tráfico de escravos, também teria mudado de significado com as mudanças nas atitudes sobre o comércio. A percepção da população não muda da noite para o dia, mas parece que a imagem do comerciante de escravos adquiriu rapidamente um estigma: o de um criminoso, que faz um trabalho desonrado (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.106). Embora já no dicionário de Couto (1842)COUTO, A. M. Diccionário da maior parte dos termos homonymos e equívocos da lingua portugueza, augmentado com huma grande cópia de vocábulos téchnicos, e sua etymologia; e enriquecido com muitos adágios da língua, e trèchos de história, crítica e antigüidades. Lisboa: Typographia de Antonio Joze da Rocha, 1842. fossem mencionadas acepções negativas, "não tinham destaque algum" (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.106). Depois, lentamente, foram aparecendo acepções explicitamente negativas, até chegar ao dia de hoje, quando a conotação negativa é a definição principal. Essa mudança lenta, começando com "traficar", "traficante" e "traficância", que tinham conotações mais negativas, atingiu a palavra tráfico também (BEZERRA NETO, 2009BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., p.107). No Dicionário Aurélio de 1988, todos os verbetes aparecem com acepções negativas de atividades ilícitas, apesar de manterem as acepções neutras.

Considerando novamente a teoria de Bakhtin/Volochínov, entendem-se as mudanças de significado citadas por Bezerra Neto (2009)BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. como reflexos e refrações das mudanças na ideologia popular e na estrutura social e econômica. Como explica Bakhtin/Volochínov:

a evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo - no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo - é inteiramente determinada pela expansão da infraestrutura econômica. À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real expansão no escopo de existência que é acessível, compreensível e vital para o homem (2009, p.141).

A partir dessa teoria sobre as mudanças paralelas entre a língua e o social, pode-se deduzir que a mudança semântica de tráfico, de uma acepção neutra para uma acepção negativa, teria acontecido por causa das mudanças sociais e econômicas no Brasil e no mundo, que resultaram em novas ideias do que era aceitável e inaceitável e em diferentes maneiras de conceber um mundo cuja base econômica não fosse a escravatura. A expansão do "escopo de existência que [era] acessível" teria dado lugar a novas atitudes que se arraigaram na sociedade até mudar a convenção de uma acepção neutra a uma acepção negativa da palavra usada para se fazer referência ao tráfico de escravos: a escravatura começou a ser considerada como ilícita e criminosa. Lembrando que Bakhtin/Volochínov considera a palavra como um espaço de luta social, a luta para acabar com a escravatura teve lugar parcialmente através da palavra tráfico: toda vez em que ela foi utilizada, teria gerado um choque de ideologias sobre a escravatura, gerando desafios à ideologia anterior. Ainda assim, a mudança deixou rastros de significados antigos como acepções alternativas às definições atuais.

Esse é um exemplo ideal da explicação de Bakhtin/Volochínov para a polissemia. O autor diz que "uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. , p.141). Ou seja, a atual definição de tráfico como um comércio criminoso e indecoroso tem raízes na definição anterior mais neutra, mas, por causa do contexto histórico, evoluiu e reconstruiu aquela, dando lugar à definição mais conhecida hoje. É essencial saber a história da palavra tráfico, as suas mudanças e as mudanças sociais de abolição da escravatura se se quiser entender mais amplamente o tema da capa da revista Época. O tema da palavra é inextricavelmente ligado ao contexto e

[...] só pode ser observado numa situação concreta de enunciação. Identificá-lo exige que se leve em conta não apenas o sentido potencial do signo, mas também o sentido que este assume no momento histórico e na situação específica de enunciação, de acordo com os elementos extra-verbais que participam da construção do sentido (CEREJA, 2010CEREJA, W. Significação e tema. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2010., p.206).

Nesse caso, trata-se do tráfico de drogas no Brasil e no resto do mundo. A enunciação é "Vamos vencer o tráfico". Implicitamente, do ponto de vista pragmático, se entende que se trata de um comércio ilícito e criminoso, que cabe a "nós" superar. Esse "nós", mais ou menos implícito em "vamos", pode talvez incluir tanto os leitores quanto a polícia e a equipe da revista. A segunda parte da manchete é: "A guerra ainda não acabou. Mas a ação da polícia, com apoio da população, mostra que é possível livrar o Rio de Janeiro - e todo o Brasil - desta chaga". Cabe notar as palavras "guerra", "livrar" e "chaga": o tráfico é uma "chaga" (ou ferida aberta) de que o Brasil tem de ser "livrado" através de uma "guerra".

É, assim, possível entender a escala da maldade do tráfico, o que não deixa lugar a dúvidas de que se trata de uma atividade ilícita. É certo que qualquer brasileiro mais ou menos atualizado que leia a revista vá enxergar isso à primeira vista e que saiba que se trata de uma manchete ou matéria sobre o narcotráfico. Além disso, cabe notar a palavra "vencer". Publicada na capa de uma revista de circulação nacional, que é a revista Época, justamente na fase de preparação do Rio de Janeiro7 2 VOLOŠINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I.R. Titunik. Cambridge, MA; London: Harvard University Press, 1973. para sediar a Copa do Mundo, a palavra "vencer" se constitui, ao mesmo tempo, 1) como uma tentativa de mostrar ao mundo que o Brasil é de fato capaz de sediar o evento bem e com segurança e 2) como curiosa ressonância das esperanças de os brasileiros vencerem a própria Copa!

Pode ser que o leitor casual, em uma leitura desatenta, não pense na história de tráfico, em suas ligações com a escravatura ou em seu tema dentro desse contexto histórico brasileiro anterior ao da Copa do Mundo. Mas uma análise ou leitura como a que acaba de se fazer permite entender melhor o propósito da revista ao utilizar a palavra. Não é um uso inocente. É antes uma propaganda para chamar a atenção, em clima de Copa do Mundo, para um problema muito grave. Estabelece um paralelo entre os dois tipos de tráfico - o de escravos e o de drogas - e, ainda que os leitores não identifiquem conscientemente a ligação da palavra com a escravatura, entendem a gravidade da situação.

Como todos conhecem, em graus diferentes, de uma forma ou de outra, a história da escravatura, a qual é discursiva e legitimamente construída como um dos maiores males da história da humanidade, uma comparação entre o tráfico de drogas e a escravatura é impactante. O uso de uma palavra polissêmica tão potente parece ser um apelo à população: o tráfico (de drogas) é um problema tão grande quanto o da escravatura e precisa ser resolvido. A pergunta implícita é: "se a escravatura não foi aceita e muitos lutaram para acabar com ela, porque seria aceito algo da mesma natureza e escala, como o tráfico de drogas?".

Considerando esse aspecto e também o uso da palavra "vencer" no contexto de preparações para a Copa, pode-se definir o tema da manchete da seguinte forma: trata-se da promessa de que o Brasil - por meio da ação dos cidadãos e da polícia, num trabalho conjunto - vai conseguir se livrar do narcotráfico; trata-se também da importância de demonstrar ao mundo as capacidades do país nessa área, não apenas no futebol. Esse tema funciona como um apelo à população e, ainda que indireta e implicitamente, em clima de Copa do Mundo, se constitui como uma estratégia para reforçar o patriotismo e convocar o povo brasileiro a agir, mobilizando sua determinação, seu orgulho e sua coesão. Além disso, se este raciocínio está correto, a ideia seria que, vencendo o tráfico, o país em seguida também vencesse o mundial.

Esse tema é reforçado pelo visual. A capa mostra um crânio atravessado por uma faca, com dois revólveres cruzados ao fundo, dentro de um alvo ou mira, o que dá conta de representar a extrema violência do narcotráfico, que tem causado milhares de mortes no Brasil. Alguns brasileiros poderão reconhecê-lo como o símbolo do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), do Rio de Janeiro. Segundo o site dessa instituição, a faca na caveira representa "o caráter de quem faz da ousadia sua conduta" e o "sigilo das missões". Segundo a história narrada pelo site, durante a Segunda Guerra Mundial, um soldado das forças aliadas, ao ver crânios e ossos humanos usados como "troféu" em um campo de concentração nazista, cravou uma adaga em um deles, gritando que a vida venceu a morte. Dessa forma, a faca, nesse contexto, também representa a "vitória sobre a morte" (cf. BOPE Operações Especiais, 2015BOPE Operações Especiais. Símbolo. 22 junho de 2015. Disponível em: < http://www.bopeoficial.com/valores/simbolo/ >. Acesso em 04 de agosto de 2015.
http://www.bopeoficial.com/valores/simbo...
). Por outro lado, o crânio representa a inteligência e o conhecimento, mas também... a morte.

Além de ser símbolo do BOPE, na capa da revista o crânio encontra-se dentro de um alvo ou mira, o que pode representar o próprio (narco)tráfico como o alvo da guerra. Levando-se em conta as cores, observa-se que a capa é quase completamente preta, remetendo à violência e aos negócios obscuros e ilícitos do tráfico, e que as palavras da manchete destacam-se em branco, contrastando com o restante da capa por serem escritas na cor da pureza, da bondade e da paz, o que sugere o sentido de que a guerra é por uma causa justa e valiosa.

Apesar disso, a fonte da violência é ambígua. Logicamente, os leitores sabem que o mundo do tráfico é violento, mas a capa evidencia a ambiguidade da situação. O crânio, que deveria representar o BOPE e o livramento da violência, torna-se representante da própria violência porque está dentro do alvo, e os brasileiros estão lutando para atacar esse alvo. Também aqui as cores são significativas: se entendemos o preto como o lado do tráfico e o branco como o lado da luta contra essa maldade, a cor cinza teria de representar algo intermediário, que não é nem um nem o outro. Nesse sentido, os leitores mais atentos ficam em dúvida em relação à fonte da violência e a linha entre o bem e o mal fica borrada.

Esse simbolismo chama a atenção para a extrema violência e "astúcia" do narcotráfico e esclarece que o tráfico de drogas é, tanto quanto a escravatura, um crime inaceitável. Juntando tudo, os leitores mais atentos entendem que é necessária uma guerra que envolva o país todo - incluindo o BOPE e a população - para acabar com o narcotráfico. Essa guerra deve ser como aquela que historicamente foi necessária para acabar com a escravatura. Porém, esse mesmo simbolismo, de alguma forma, questiona o próprio BOPE e poderia sugerir que essa organização deveria ser também o alvo de uma guerra.

Além disso, a conexão da manchete com a escravatura sugere a ideia de que os viciados em drogas são como escravos do narcotráfico, completamente dependentes e subjugados e involuntariamente levados para lá e para cá, debaixo do poder dos traficantes. Isso complica ainda mais a situação, já que a guerra não é só para acabar com os traficantes e a violência que causam, mas também para libertar os viciados da miséria em que vivem no mundo das drogas, uma abolição do vício. Enxergar o paralelo com o problema histórico da escravatura torna mais urgente a guerra contra o tráfico ou as drogas porque os viciados são vítimas de um sistema (ou até mesmo de uma sociedade) que os reprime e oprime. Nesse sentido, a manchete seria uma chamada para uma mudança social maior, que abrangesse não só o narcotráfico, mas as próprias condições de vida que historicamente produzem viciados em drogas.

Conhecer a história social da palavra destaca que o tráfico é, sobretudo, um negócio e que nem sempre a palavra usada para designá-lo teve uma acepção inteiramente negativa. Destaca também que, por causa da associação com a escravatura, veio a adquirir essa acepção. Mediante o desconhecimento da história, fica difícil para o leitor ir além do superficial em sua leitura e interpretação: o simbolismo da capa e as ligações (propositais ou não) com a escravatura acabam passando despercebidos.

Considerações finais

Foi realizada uma análise da palavra tráfico, levando-se em conta a manchete completa, o texto da matéria, as imagens acompanhantes e o tema do enunciado na capa da revista Época. Partindo do estudo de Bezerra Neto (2009)BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009., que aponta a escravatura como a reviravolta na acepção da palavra, foi mobilizada a teoria de Bakhtin/Volochínov sobre a linguagem como reflexo e refração da realidade histórica e como lugar de ideologia e luta social, mais precisamente lançando mão dos conceitos de significação e tema.

Concluiu-se que o tema da palavra nesse contexto remete ao narcotráfico no Brasil e que a manchete seria, ao mesmo tempo, 1) uma promessa de que o país vai tanto superar o narcotráfico quanto ganhar a Copa do Mundo e 2) uma convocação para que a população coopere no processo. Mais especificamente, portanto, o presente estudo traçou um paralelo entre o tráfico de escravos, a história semântica da palavra tráfico, o tráfico atual de drogas e o fato de o Brasil estar, naquela época, caminhando em direção a sediar e a tentar vencer a Copa do Mundo.

Com as mudanças históricas de uma sociedade baseada economicamente no tráfico de escravos a uma nova, sem escravatura, a palavra tráfico chegou a se associar com o tráfico ilícito, refletindo modificações na ideologia sobre a ética da escravatura, até atingir uma definição quase sempre negativa. Hoje a palavra ainda contém rastros dos significados anteriores e é essa polissemia que proporciona riqueza em sua interpretação. Além disso, a referência implícita à Copa do Mundo é uma maneira de apelar ao sentimento patriótico do povo e tentar ganhar a mesma quantidade de energia dirigida à Copa para a luta contra o narcotráfico.

Considerando o tema da manchete, a construção da capa parece ter sido uma estratégia para tentar fazer com que os leitores se sentissem capacitados e determinados a mudar a estrutura social atual e, mais do que isso, para tentar fazer com que se sentissem otimistas sobre a capacidade de o país vencer tanto o tráfico quanto a Copa do Mundo. Hoje, cabe perguntar: os brasileiros venceram o tráfico? Ainda não. Da mesma forma, ainda não venceram a Copa do Mundo, apesar de já tê-la sediado. A leitura dessa capa de revista, depois do mundial, em um novo contexto histórico, adquire então um novo tema: "vamos vencer primeiramente o tráfico! A Copa do Mundo pode ficar para depois".

  • 1
    Para visualizar a capa da revista, clique no link e procure o número de 29/11/2010: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2013/06/capas-de-epoca.html
  • 2
    "Significação" e "significado" são termos usados aqui como sinônimos.
  • 3
    "Tema" e "sentido", da mesma forma, são termos usados aqui como sinônimos.
  • 4
    Cf. nota de rodapé n.1.
  • 5
    Que é, nesse caso, usado como metonímia do país, numa relação de "parte pelo todo".

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.
  • BEZERRA NETO, J. M. Uma história do tráfico em verbetes: etimologia e história conceitual do tráfico a partir dos dicionários. Revista Estudos Amazônicos, v. IV, n.1, p.99-115, 2009.
  • BOPE Operações Especiais. Símbolo. 22 junho de 2015. Disponível em: < http://www.bopeoficial.com/valores/simbolo/ >. Acesso em 04 de agosto de 2015.
    » http://www.bopeoficial.com/valores/simbolo/
  • BUARQUE DE HOLANDA, A. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
  • CEREJA, W. Significação e tema. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2010.
  • COUTO, A. M. Diccionário da maior parte dos termos homonymos e equívocos da lingua portugueza, augmentado com huma grande cópia de vocábulos téchnicos, e sua etymologia; e enriquecido com muitos adágios da língua, e trèchos de história, crítica e antigüidades Lisboa: Typographia de Antonio Joze da Rocha, 1842.
  • CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira AS, 1982.
  • ÉPOCA. Vamos vencer o tráfico São Paulo: Globo, 2010, ed. 654.
  • FERREIRA, A. G. Dicionário de português-latim Porto: Porto Editora, 1991.
  • FIGUEIREDO, C. Novo diccionário da língua portuguesa Nova edição, essencialmente refundida, corrigida e copiosamente ampliada. v.2. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, (1899)1913.
  • HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
  • LACERDA, J. M. de A. e A. C. Diccionário encyclopédico ou Novo Diccionário da língua portugueza, para uso dos portuguezes e brazileiros, o mais exacto e mais completo de todos os diccionários até hoje publicados, seguido do Diccionário de synonymos com reflexões críticas 3.ed. Lisboa: Escriptório de Francisco Arthur da Silva, 1870.
  • PINTO, L. M. S. Diccionario da língua brasileira Ouro Preto: Typographia Silva, 1832.
  • ROQUETTE, J. I. Diccionário da língua portugueza, de José da Fonseca, feito inteiramente de novo e consideravelmente augmentado por J. I. Roquette Pariz: Casa de Vª J. P. Aillaud, Molon e Cª, 1860.
  • YAGUELLO, M. Bakhtin, o homem e seu duplo (Introdução). In: BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 11.ed. Trad. Michel Lahud eYara Frateschi Vieira . São Paulo: Hucitec, 2009. p.11-19.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2015
  • Aceito
    20 Set 2016
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com