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O espaço público da escola - um mundo significado nas relações eu-outro

RESUMO

Discutimos neste trabalho a cultura no espaço público da escola com base em ensaios de alunos de licenciatura em Letras-Português em que expressam suas representações sobre a relação eu-outro no ato da docência em estágio supervisionado. Questionamos se esses alunos, no cotidiano do labor magisterial, nos momentos constituintes do agir ético em diálogo com a estética da profissão, vivem a realidade viva do ato da docência de sujeitos, pelo primado da individualidade e da alteridade no plano do reencontro, no mundo real, do ato particular da experiência vivida (mundo da vida) com o mundo social da profissão (mundo da cultura). Os fundamentos da teoria dialógica de Bakhtin e seu Círculo respaldam a discussão proposta.

PALAVRAS-CHAVE:
Bakhtin; Dialogismo; Ética; Cultura; Escola

ABSTRACT

In this paper we discuss culture in the public space of schools based on essays by pre-service student teachers in a Portuguese Language and Literature Teaching Credential Program. In these essays, the pre-service student teachers form representations of self-other relations while practicing their student teaching in supervised internships. We questioned whether these pre-service student teachers, in the practice of their field experience, in decisive moments of ethical practice in dialogue with the aesthetics of the profession, experience themselves as actual teaching subjects, through the primacy of individuality/otherness in the encounter between the physical world of life experience (the world of life), and the professional world of social experience (the world of culture). This discussion is based on the Dialogical Theory of Bakhtin and his Circle.

KEYWORDS:
Bakhtin; Dialogism; Ethics; Culture; School

Introdução

No ensino da língua portuguesa no Brasil, a crítica que nos últimos tempos vínhamos vivenciando (década de 1980 em diante) apontava ações concentradas na visão de língua em sua imanência em sala de aula; um conhecimento apresentado aos alunos de modo enciclopédico, como conteúdo fechado em si mesmo e dissecado em partes ministradas a passos sempre previstos e predeterminados.

Essa realidade, todavia, ao menos nestes tempos atuais, tem se apresentado de modo um tanto diverso desse quadro desenhado até então. Em muitas escolas do país há iniciativas que rompem (ou tentam) com esse modo de ensino de português que vinha sendo ministrado. Isso se deve aos relevantes estudos da linguagem concebendo-a como fenômeno social, histórico, dialógico e ideológico1 1 No campo teórico, devido à abrangência conceitual que envolve a palavra ideologia, cabe registrar, ainda que em nota, como esse conceito circula no âmbito da teoria de Bakhtin e seu Círculo. Com ressalvas diante de uma arriscada formulação conceitual para ideologia, Faraco (2013, p.170) registra a sua investida na interpretação: "Esse rastreamento [pesquisa para a compreensão de ideologia em Bakhtin] parece nos autorizar a dizer que para Bakhtin a palavra ideologia faz referência às representações que os diferentes grupos sociais constroem do mundo" (grifo do autor). (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1990BAKHTIN, M. ( VOLOCHÍNOV, V. N). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990; BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. O discurso no romance . In: BAKHTIN,M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance . Trad. Aurora F. Bernardini et al. 5. ed. São Paulo: Ed. Hucitec/Annablume, 2002 , p. 71-210., 2003a_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.307 - 335., 2003b_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192., 2003c_______. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003c, p.XXXIII - XXXIV., 2005_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 3. ed. São Paulo: Forense-Universitária, 2005., 2010_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.). Nessa linha de prática docente, em grande medida, licenciandos do curso de Letras-Português também vêm sendo orientados em suas respectivas academias. Esses estudantes, em seus currículos, no correr de sua formação, deparam-se com etapas previstas para o exercício da docência como estágio supervisionado em comunidades escolares circunvizinhas às universidades em que estejam vinculados. Assim sendo, nesse momento peculiar de formação - o estágio supervisionado - lhes é possibilitada a prática da docência e nela a vivência com seus pares, os colegas de estágio do ensino universitário, com alunos e profissionais de escolas de educação básica (já que estão vinculados a cursos de Licenciatura). Paralelamente há o encontro entre a experiência vivida (mundo da vida), com a cultura escolar no espaço público das escolas (mundo da cultura); entre o conhecimento (das vivências na academia) e o conhecimento no fazer da profissão e do fazer da profissão.

Nosso propósito aqui é tratar de algumas das facetas do compromisso social de todos nós - os envolvidos com a educação - e com o processo de formação para a docência, qual seja, o de instalar na relação entre a escola e a sociedade a aproximação da primeira com os horizontes dos grupos humanos na sociedade em suas mais diversificadas experiências históricas, isto é, instalar uma conexão da escola com a vida. Dada a amplitude dessa temática, efetuamos um recorte, objetivando pôr em destaque a relação eu-outro - aluno de escola; estagiário-professor - perscrutando os caminhos da teoria de Bakhtin e seu Círculo.

Bakhtin, a par do que dizem, nomeia-se um filósofo: "Sou um filósofo. Sou um pensador" (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Trad. Daniela Miotello Mondardo. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008, p.45). Suas incursões teóricas, sobremaneira, voltavam-se ao contexto estético-literário e desse ponto de vista advinha sua compreensão de homem social e histórico (constituindo-se na relação eu-outro), ultrapassando, pois, os limites do âmbito do estético-literário.

Como filósofo, Bakhtin concebe o dialogismo como o alicerce de sua teoria na qual o social, o histórico e o cultural são indissociáveis entre si. Também, com base nessa tese, este é o lugar possível de compreensão da ética (o agir concreto do sujeito) e da estética (certo acabamento do agir do sujeito), conceitos caros à aprendizagem da docência e sua relação com a vida e a cultura de seus aprendizes.

Servirá de horizonte para as nossas reflexões a compreensão, na relação eu-outro, do que se representa ou deixa representar no espaço público da escola quando da aproximação ou do distanciamento entre eu-outro (indivíduo/coletividade) nessa cultura, a escolar, e em relação à vida vivida fora dela (experiências no mundo da vida).

Com base nesse propósito, a investida de pesquisa será pelos escritos do gênero do discurso ensaio, elaborados por um grupo de estudantes do curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas (doravante: Letras-Português) de uma universidade pública de âmbito federal, como resultado da experiência de estágio desenvolvida no ano de 2015. Com a proposta da escrita do ensaio, escrita acadêmica produzida como última atividade da disciplina Estágio de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura I, esperava-se dos estudantes de Letras a expressão do pensamento que interroga e ocupa lugar de respostas, mas também de produção reflexiva sobre os modos de ensinar e aprender a língua visando, no processo de formação profissional, ao desenvolvimento de relações próximas entre vida vivida e cultura escolar.

Visando à consecução dos objetivos acima propostos, as discussões neste texto estão organizadas em três seções. Na primeira, procuramos salientar a condição constitutiva dialógica da linguagem, de acordo com as teses bakhtinianas; na segunda seção, discorremos em torno da contraposição arquitetônica entre eu-outro de Bakhtin, como possibilidade básica de observação do ato magisterial; na terceira seção analisamos as representações sociais dos professores-estagiários no que diz respeito à relação eu-outro, pela análise de suas escritas. Por fim, advogamos a superação de um discurso pedagógico assentado na artificialidade conversacional tradicional na cultura escolar, pela adoção de práticas sociais em que as relações eu-outro estejam assentadas nos pressupostos teórico-filosóficos de Bakhtin e seu Círculo.

1 Indivíduo e coletividade

Como homens, nascemos membros de um grupo, argumenta Bakhtin (2007)_______. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2007.. Esse nascimento não é apenas como homem biológico, também nascemos como homem social, porque não nascemos fora das condições socioeconômicas objetivas, fora dos domínios da cultura.

O homem não nasce como organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. Ele nasce como um russo ou francês e, por último, nasce em 1800 ou 1900. Só essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo da criação da vida e da cultura (BAKHTIN, 2007_______. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2007., p.11; grifos do autor).

Nessa configuração, qualquer um dos signos culturais, se dotado de sentido, não permanece isolado, dado que se torna "parte da unidade da consciência verbalmente constituída" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV), 1990BAKHTIN, M. ( VOLOCHÍNOV, V. N). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990, p.38; grifos do autor). A concepção de cultura em Bakhtin armazena a compreensão do homem em seu contexto vivo e significante, edificado na inter-relação com a sociedade. Nessa perspectiva, a palavra como signo social é elemento da consciência e de criação ideológica; ela "[P]pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa" (p.37), pois, para o autor, a palavra é um fenômeno "ideológico por excelência", assim como é "o modo mais puro e sensível de relação social" (p.36). A interação social é, então, esse espaço de encontro entre a linguagem e a vida; é condição da consciência social; é lugar de confronto de valores sociais e ideológicos no curso da história social humana, mesmo porque, como sustenta em sua escrita, "todo signo ideológico e, portanto também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados" (p.44, grifos do autor). Dentro do universo da interação social, índices de valor despontam em uma realidade material e concreta (diferentes semioses) e dispõem as relações dialógicas e seus consequentes embates de sentido. Medviédev, participante do Círculo de Bakhtin, em sua obra O método formal nos estudos literários, assim expõe sua posição a respeito do caráter concreto dos produtos da criação ideológica:

As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas "almas" das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem (2012, p.48-49, grifos do autor).

Em seus estudos sobre a linguagem e sua condição constitutiva dialógica, Bakhtin afirma que, para compreendermos a língua em sua complexidade, necessitamos ultrapassar o limite de sua imanência. Por ser ela viva, vive nas relações entre enunciados e destas com a realidade e com a pessoa falante (o autor). E, nesse sentido, compreender a língua é compreendê-la como enunciado - ao qual subjazem uma visão de mundo, um ponto de vista, etc. (como defende Bakhtin) - é conceber que a compreensão do enunciado (unidade (valorada) da comunicação discursiva humana) "envolve responsividade e, por conseguinte, juízo de valor", como defende Bakhtin em seu ensaio O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas (2003a, p.328; grifos do autor).

Os signos, nesse seu universo de pensamento, são parte de uma realidade ao lado dos fenômenos naturais, porém, um signo, para além dessa sua condição, tem a particularidade de, como produção ideológica do homem social, não ser apenas parte de uma realidade, mas também de refleti-la e refratá-la, dado que emerge de um terreno interindividual. Dessa feita, "compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV), 1990BAKHTIN, M. ( VOLOCHÍNOV, V. N). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990, p.34). E, assim sendo, é no ambiente da interação social que, então, se dá o encontro de uma consciência com outra, entre indivíduos socialmente organizados (grupos sociais), assentados em determinado tempo e espaço. Nesse quadro, a palavra desponta como "o modo mais puro e sensível de relação social", porém de não neutralidade como voz social que é (no meu enunciado encontram-se enunciados dos outros e respectivos tons avaliativos). Por esse ponto de vista teórico, a palavra é cunhada pelas posições axiológicas daqueles que a enunciam. Como ajuíza Bakhtin, a palavra "acompanha toda a criação ideológica" e está presente como "fenômeno acompanhante, em todo ato consciente" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV), 1990BAKHTIN, M. ( VOLOCHÍNOV, V. N). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990, p.36 e 37).

Faraco (2013, p.173)_______. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Org.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas: SP, Mercado de Letras, 2013. anota que, tanto em Bakhtin como em publicações dos seus pares, vamos encontrar a defesa de que "o processo de transmutação do mundo em matéria significante se dá sempre atravessado pela refração das axiologias sociais, ou seja, a partir de um posicionamento valorativo", sendo as axiologias mediadas semioticamente. E continua Faraco, "refratar é inevitável - nossas representações no mundo são sempre e necessariamente em perspectiva" (p.173).

2 Escola e vida - compromisso social e ético

Um conceito de Bakhtin (2003b)_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192. advindo da teoria estético-literária, o de exotopia2 2 "Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse - excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo - é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim" (BAKHTIN, 2003b, p.21; grifos do autor). , apresentado em seu texto O autor e a personagem na atividade estética, cuja importância foi reavivada em trabalhos posteriores do próprio autor, se observado na conjuntura de seu pensamento teórico, afina-se como engenhosa possibilidade de observação do ato magisterial daqueles em processo institucional de aprendizagem do ensino da língua portuguesa quando vivenciam a complexa experiência do exercício da profissão e respectivo encontro com as posições ora de aluno universitário, ora de professor-estagiário, na cultura (acadêmica; escolar) e na vida (experiências cotidianas). Nessa posição de aluno universitário, tendo sobre si a responsabilidade do trabalho profissional, o acadêmico assumiria, na docência, a posição de aluno (universitário) e de professor-estagiário concomitantemente, congregando, portanto, suas experiências trazidas da vida (experiências pessoais) e cultura (memória do passado - as vivências do passado concretizadas e compartilhadas - e memória do futuro - as vivências não concretizadas). Uma experiência de diálogo eu-para-mim, eu-para-outro; outro-para-mim.

Observemos que, no entanto, essas relações nem sempre são simétricas, elas mesmas se constituem em sua completude ou incompletude. Sustenta Sobral (2008)SOBRAL, A. O ato "responsível", ou ato ético, em Bakhtin, e a centralidade do agente. Signum, Londrina , v. 11 , n. 1, p. 219-235, jul. 2008, elucidando o raciocínio de Bakhtin quanto à aproximação entre eu e outro:

Bakhtin, aproximando-se de Sartre e Heidegger, reformula o "em-si" e o "para-si" hegelianos em termos da condição humana segundo as categorias "eu-para-mim", "eu-para-o-outro" e "outro para-mim". O eu-para-mim é, naturalmente, o eu enquanto voltado para si mesmo; o "eu-para-o-outro" se refere à iniciativa do sujeito de aproximar-se de outros sujeitos, numa espécie de "saída de si"; e o "outro-para-mim" se refere à iniciativa do outro de aproximar-se do eu, também uma espécie de "saída de si". Tentando, como é típico de seu pensamento, alcançar a unidade do fenômeno em vez de limitar-se a algum aspecto parcial dele, Bakhtin considera legítimo que o eu saia de si para aproximar-se do outro, e vice-versa, mas afirma enfaticamente que essa saída deve ser sempre seguida de uma "volta a si": aquele que se põe no lugar do outro e não volta ao lugar que lhe pertence é infiel a si e ao outro! (2008, p.229, grifos do autor).

Em um dos seus primeiros textos, Arte e responsabilidade, publicado em 1919, Bakhtin (2003c)_______. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003c, p.XXXIII - XXXIV. explicitava a tese de que é no indivíduo que os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida -, adquirem unidade, quando este os incorpora à sua própria unidade e existência. Como indivíduos, constituímo-nos socialmente, através das relações dialógicas e valorativas, portanto, pela alteridade. O outro, porque tem uma experiência externa de mim que eu próprio não tenho, é substrato da minha constituição. O outro pode me ver por inteiro e me completa, desse modo repercute em mim o seu excedente de visão.

Detalhando um pouco mais, no texto já citado - O autor e a personagem na atividade estética - Bakhtin (2003b)_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192. atribui à exotopia a capacidade de ver no outro (em tempo, lugar e valores diferentes) o que esse outro não consegue ver de si. A não coincidência de posição ocupada na relação entre eu e outro reserva um excedente de visão, portanto, um excedente de conhecimento de um eu em relação ao outro (indivíduo; coletivo). Esse distanciamento acomoda certa carência, como confirma Bakhtin, "porque o que vejo predominantemente no outro em mim mesmo só o outro vê", algo que, todavia, é contemplado pela inter-relação "eu-outro". Afinal, na vida "a inter-relação 'eu-outro' não pode ser concretamente reversível para mim" (2003b, p.22). Conforme Faraco (2011, p.25)FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seu pares Letras de Hoje, Porto Alegre , v. 46 , n.1, p. 21-26, jan./mar. 2011, ao interpretar as palavras de Bakhtin (2003b)_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192., "é o excedente de visão dos outros que responde às minhas carências; a alteridade tem um papel constitutivo fundamental - o 'eu-para-mim' se constrói a partir do 'eu-para-os-outros'". Nessa linha, "Na vida, sou insubstituível e isso me obriga a realizar minha singularidade peculiar: tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca" (FARACO, 2011FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seu pares Letras de Hoje, Porto Alegre , v. 46 , n.1, p. 21-26, jan./mar. 2011, p.25). Não tenho álibi na minha existência, afirma Bakhtin (2010)_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.. Em relação ao outro-para-mim, "urge que o excedente de minha visão contemple o horizonte do outro indivíduo contemplado sem perder a originalidade deste" (BAKHTIN, 2003b_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192., p.23). É, no entanto, oportuno destacar que Bakhtin nos alerta, com relação à compenetração estética do outro, da importância do vivenciar esteticamente e concluir do outro, isto é, o que ver e inteirar-se do que o outro vivencia; de vir a colocar-se no lugar do outro. Sustenta ainda o autor que, no ato da contemplação, devo posteriormente retornar a mim mesmo, ao meu lugar. Desse lugar é que o material da compenetração pode ser assimilado em termos éticos, cognitivos e estéticos (BAKHTIN, 2003b_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192.). Ele ainda nos diz que a atividade estética começa quando retornamos a nós mesmos, fora do outro, e lhe damos acabamento mediante o material da compenetração (de elementos transgredientes). O outro é diferente de mim e, da minha unicidade, assumo a responsabilidade da minha existência única. O meu acabamento, o outro me dá, assim também do outro sou a sua completude.

Faraco (2011, p.25)FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seu pares Letras de Hoje, Porto Alegre , v. 46 , n.1, p. 21-26, jan./mar. 2011 explora tal entendimento de Bakhtin e vai mais à frente lançando-nos uma pergunta:

o outro (que não é simplesmente outra pessoa, mas uma pessoa diferente, um outro centro axiológico e, portanto, irredutível a mim da mesma forma que eu sou irredutível a ele) baliza o meu agir responsável. Em suma, uma ética fundada no primado do sujeito moral sobre as normas e no primado da alteridade sobre a individualidade. Uma radical utopia!!

Bakhtin nos diz que não dispomos de uma filosofia moral capaz de expressar esta contraposição arquitetônica, de expressar a responsabilidade individual absoluta (sem álibi) e a alteridade radical3 3 Bakhtin denomina de arquitetônica "a atividade de formar conexões entre materiais díspares." (CLARK; HOLQUIST, 2004, p.107). .

Talvez não possamos responder a uma questão deveras complexa nos limites de um trabalho dessa natureza nesta nossa proposta de escrita, mas almejamos, pelo menos, provocar reflexões pela linguagem viva dos estudantes de Letras-Português quando estes, em seus ensaios4 4 No estágio de docência em tela, o entendimento de ensaio preconizado na disciplina é amparado na concepção de Foucault (1994, p.13): "O 'ensaio'- que é necessário entender como a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exercício de si, no pensamento". , no momento de falar de si, sobre a experiência profissional e do outro, seus alunos, interpretam a vivência da docência trazendo a memória das representações que construíram a respeito da profissão ao longo da vida pessoal (mundo da vida) e cultural, o porquê da escolha da profissão professor de Português, ambas as facetas em diálogo com a vivência da experiência profissional no momento acadêmico da escrita sobre o falar de si, de sua docência em particular. Talvez possamos, ainda, de modo mais particularizado, provocar a reflexão, nos aprofundarmos no pensamento filosófico de Bakhtin em uma de suas teses centrais exposta no texto Para uma filosofia do ato responsável:

O princípio arquitetônico supremo do mundo real do ato é a contraposição concreta, arquitetonicamente válida, entre eu e outro. [...] Esta divisão arquitetônica do mundo em eu e em todos aqueles que para mim são outros não é passiva e causal, mas ativa e imperativa [...] Essa não é dada como uma arquitetônica pronta e consolidada [...] mas é o plano ainda-por-se-realizar [zadannyi], da minha orientação no existir-evento, uma arquitetônica incessantemente e ativamente realizada por meu ato responsável, edificada por meu ato e que encontra a sua estabilidade somente na responsabilidade do meu ato (BAKHTIN, 2010_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010., p.142-143).

Em momento subsequente desse mesmo texto o autor discorre em torno da falta de um embasamento científico que dê conta da contraposição arquitetônica eu-outro numa filosofia moral altruísta e cristã:

Disso, naturalmente, não resulta, de modo algum, que tal oposição não tenha sido nunca expressa ou enunciada - é este, de fato, o sentido de toda a moralidade cristã, e é o ponto de partida também da moral altruística; todavia este [...] princípio de moralidade não encontrou até agora uma expressão científica adequada nem uma reflexão aprofundada (BAKHTIN, 2010_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010., p.144).

De fato, destacamos, nas vozes dos estudantes5 5 Os nomes dos acadêmicos são fictícios. Foram analisados sete ensaios e nesse conjunto os estudantes-estagiários (alunos da 8ª. fase do Curso de Letras-Português, com boa avaliação final no estágio e no decorrer do curso) figuraram uma escrita mais confessional, mais próxima do gênero relato (nesse trabalho, em razão de não ser este o nosso objeto de investigação, não discutiremos o alcance ou não por parte dos estudantes universitários dessa escrita acadêmica do gênero do discurso, ensaio), com ocorrências raras de análises profundas, portanto, de "trabalho crítico do pensamento sobre o pensamento" (FOUCAULT, 1994, p.12). Pela concepção que orientou a escrita, concepção de Foucault (1994), já mencionada neste trabalho, previa-se a escrita de uma experiência que se constituísse ela mesma "modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação [...] uma "ascese", um exercício de si, no pensamento."(p.12). Previa-se, portanto, a investida no pensamento que interroga e ocupa lugar, a possibilidade de reflexão vigorosa com vistas à constituição de um discurso próprio. trazidas em excertos, abaixo, a manifestação de uma cultura do magistério em muito moldada na moralidade, podemos arriscar dizer, um tanto altruística, um tanto cristã. Há nos escritos ensaísticos dos professores-estagiários a manifestação de uma representação da memória da relação interpessoal eu-outro no evento do ser professor (aqui como estagiário) em muito sustentada por um entendimento da relação eu-outro voltada para o tornar a vida do outro, digamos, melhor; feliz; uma memória de afeto ao próximo (ao outro). Mas de qual altruísmo e moralidade se fala aqui?

3 Ser professor - ver-se no vivenciamento ativo do ato

As vozes dos acadêmicos assinalam quanto à relação entre eu (professor-estagiário) - outro (aluno da escola) certa concepção de si e do outro, trazendo nas escritas escolhas semânticas para a abrigarem.

Nessa prática discursiva da docência, a posição eu-para-mim (de professor de) abriga a memória das representações históricas do magistério (do grupo social), de um certo modo de agir. Não obstante, caracteriza-se como um lugar único e sempre novo, irrepetível, em que cada um (estagiário) assume sua posição de professor, cada qual se relaciona com o outro (aluno - indivíduo, coletivo). É, pois, um trabalho de um profissional em que um eu singular (posição de "o professor de"; o "fulano") se volve para o outro (aluno (s) - indivíduo; coletividade (a turma)).

Certamente no campo da educação, na especificidade da formação de professores e, nesse contexto, na docência de acadêmicos em estágio supervisionado, fundam-se representações sociais diversas em contraposição às de outros grupos sociais. Nesse contexto, como afiança Faraco (2013, p.174)_______. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Org.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas: SP, Mercado de Letras, 2013., "as significações [...] são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiências dos grupos sociais, com suas inúmeras contradições e confrontos de valores e interesses".

Como profissionais das ciências humanas, do campo do magistério, diante da representação social histórica com que vimos nos contrapondo nos últimos tempos, de recusa à práxis como vocação, como sacerdócio (vocação - fundamento cristão) (cf. Monarcha, 1999MONARCHA, C. Escola Normal da Praça: o lado noturno das luzes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999)6 6 No Brasil, início do século XX, as críticas à concepção do magistério como sacerdócio foram intensas, especialmente pelo movimento da Escola Nova. A defesa, à época, vinha na direção da valorização da profissão, de um Estado laico, com empenho e ênfase no conhecimento científico. , ainda perguntamos se essa representação não se faria presente refletida ou refratada nas camadas do pensamento de estudantes do século XXI de universidade que ocupa um espaço importante do ranking das boas universidades brasileiras (nosso caso aqui). Para tal reflexão, neste momento nos amparamos na perspectiva de Rêses:

O professor exercia, até os anos de 1960, uma função social transcendente. Além de um modelo moral e político, era também visto como um sacerdote a serviço do saber. A sua vida confundia-se com a missão. Portanto, ser professor era a manifestação de uma vocação ou missão transcendente, não o exercício de uma profissão (2012, p.446).

Esse mesmo autor, citando Hypólito (1997), complementa:

Na percepção de Hypólito (1997), encontram-se na prática docente, no caso brasileiro, duas tendências constituídas por meio de matizes discursivas essencialmente distintas. No primeiro momento, quando a igreja ainda representava um importante espaço de disputa ideológica nos conflitos político-religiosos, informando e modelando as práticas no mundo contemporâneo. Neste sentido, vocação e sacerdócio eram as principais fontes que expressavam o significado da prática docente.

[...]

O segundo momento foi quando esses discursos passaram a ser ressignificados com a inserção do discurso liberal moderno.

[...]

Discurso liberal e discurso religioso representaram espaços antagônicos no campo das representações do magistério. Enquanto a religião define a prática docente como expressão de uma essencialidade vocacional, os princípios liberais buscam a inserção dessa mesma prática na dinâmica das relações produtivas do sistema capitalista (RÊSES, 2012RÊSES, E. S. Singularidade da profissão de professor e proletarização do trabalho docente na Educação Básica. Revista SER Social, Brasília . v. 14 , n. 31 , p. 419-452, jul./dez. 2012, p.420-421).

Embora haja a disposição por parte dos professores-estagiários de ultrapassagem ou superação dessas representações, e de aproximação eu-outro no momento da pedagogia da língua, o matiz dessa relação estaria sustentado pela "contraposição concreta, arquitetonicamente válida, entre eu e outro", tal como preconiza Bakhtin (2010, p.142)_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. em seu texto Para uma filosofia do ato responsável? Qual o matiz dessa relação nessa nossa contemporaneidade?

É certo, como defende Bakhtin, que todo ato humano (nele o pedagógico) tem no seu horizonte o compromisso com outro (o aluno), tem compromisso com a verdadeira amorosidade, a dialógica. Na cultura escolar, a relação interpessoal canônica da sala de aula prevê dois sujeitos em polos distintos e hierarquicamente definidos: para aquele que ensina, o papel da autoridade (autoritarismo?); para aquele que aprende, o acatamento da autoridade do outro. Nessa perspectiva canônica estaria, ainda que subliminarmente, refletida e refratada em nossas ações cotidianas peculiares nesse espaço público escolar a tese do dialogismo em que o eu e o outro se constituem como dois centros axiológicos? Como o professor (aqui ampliamos a pergunta para além da experiência do estágio) se vê nesse processo de experiência profissional eu-outro? Estaria essa relação liberta da compreensão do magistério como vocação ou sacerdócio e nessa conjuntura, liberta de uma atmosfera conveniente de subserviência, isolamento, e assim comprometida com a relação eu-outro de responsividade e respondibilidade na concretude do ato magisterial? Estaria liberta de um discurso pedagógico cuja relação eu-outro se assenta na artificialidade conversacional que habita certa tradição na cultura escolar?

Vejamos alguns enunciados que expressam o pensamento em torno da relação eu-outro dos estagiários na docência:

... o que guardo dessa experiência são os momentos de confiança; aprendizado; e amizade. Confiança de que tudo vai dar certo; aprender que não estava sozinha nessa jornada, pois tinha uma professora para me orientar; e o mais importante, a amizade, eu tinha uma amiga para dividir todos os momentos de desespero e alegria, que no final só nos trouxeram sentimento de dever cumprido. [Jana]

Fiquei muito feliz ao perceber que os alunos se identificaram com os temas e textos trazidos por nós, pois os havíamos planejado especialmente para eles [...] Ainda que eu perceba que nem todos os alunos foram tocados por nossa presença [dos estagiários], saber que fizemos diferença, que seja na vida de apenas alguns, já faz todo o esforço ser recompensado. E, assim, seguimos nessa luta diária de aprender a ensinar e de ensinar a aprender. [Júlia]

... gostaríamos de dizer que ela [experiência do estágio] não foi como imaginávamos, foi três vezes mais difícil, foi um choque de realidade intelectual e emocional. Mostrou-nos que, acima de qualquer coisa, somos, primeiramente, humanos. Mesmo que tenhamos todo conhecimento técnico necessário para desenvolver a docência nada adiantará se não trabalharmos nossa humanidade, pois é necessário um envolvimento de coração para a experiência de ensino promover um aprendizado verdadeiro [...] para uma experiência ser verdadeira, o coração também precisa estar lá, independente do que estava acontecendo em nossa vida fora da sala de aula. Percebemos que o conteúdo não poderia estar só na mente, mas também na alma. Você só explica algo de verdade quando está falando também com o coração, não só com a cabeça. [Carol]

Na voz dos acadêmicos, pode-se observar, seguindo correlações da teoria de Bakhtin quanto à relação dialógica eu-outro em que é convocado o exercício da exotopia (ir até o outro para compreendê-lo, sem perda da originalidade), que reverberam representações trazidas da história da cultura escolar e também acadêmica reafirmando valores da existência de uma relação pedagógica figurada no altruísmo, na cultura religiosa cristã, e até, pode-se dizer, em algo que se aproxima do transcendental. Isso tanto em relação aos professores-estagiários (acadêmicos) entre si - "o mais importante, a amizade, eu tinha uma amiga para dividir todos os momentos de desespero e alegria", como no olhar direcionado a seus alunos (estudantes do ensino básico) - "Fiquei muito feliz ao perceber que os alunos se identificaram com os temas e textos trazidos por nós..."; "Ainda que eu perceba que nem todos os alunos foram tocados por nossa presença [...] saber que fizemos diferença [...] faz todo o esforço ser recompensado"; "acima de qualquer coisa, somos, primeiramente, humanos [...] Mesmo que tenhamos todo conhecimento técnico necessário para desenvolver a docência nada adiantará se não trabalharmos nossa humanidade, pois é necessário um envolvimento de coração para a experiência de ensino promover um aprendizado verdadeiro" ; "para uma experiência ser verdadeira, o coração também precisa estar lá [...] Percebemos que o conteúdo não poderia estar só na mente, mas também na alma. Você só explica algo de verdade quando está falando também com o coração, não só com a cabeça.".

Se essas vozes podem revelar que ainda não alcançamos uma compreensão profunda dessa experiência do dialogismo do eu-outro no ato professoral, também podem expressar um endividamento de todos nós (e aí nos incluímos). O caminho rumo a essa compreensão exige que nos volvamos para nós mesmos e para o outro, com intensidades semelhantes para que o exercício (mútuo) da contrapalavra seja uma realidade na escola e não uma artificialidade perspectivada em sua significação mínima à de uma estratégia de conversação. Necessitamos fazer essa ultrapassagem com reflexões e atitudes voltadas às gradações sutis e infinitas da individualidade e alteridade, fazendo jus aos direitos tanto do falante como do ouvinte, tal como preconiza Bakhtin em O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas:

A palavra (em geral qualquer signo) é interindividual. Tudo o que é dito, o que é expresso se encontra fora da "alma" do falante, não pertence apenas a ele. A palavra não pode ser entregue apenas ao falante. O autor (falante) tem os seus direitos inalienáveis sobre a palavra, mas o ouvinte também tem os seus direitos; têm também os seus direitos aqueles cujas vozes estão na palavra encontrada de antemão pelo autor (porque não há palavra sem dono) (2003a, p.327-328).

Assim sendo, a vivência da escuta se constituiria no encontro de palavras valoradas, como forma de estar na vida também ali, na escola. Nessa cadeia discursiva, os indivíduos do ensino e da aprendizagem assumiriam suas posições particulares (ainda que compostas em hierarquias), contudo, as posições de eu-para-mim, eu-para-outro, outro-para-mim teriam o compromisso com a compreensão do lugar que cada um ocupa nesse campo da cultura escolar, nesse espaço público como lugar de um real encontro de escuta mútua de uma fala (palavra-contrapalavra) em que indivíduos se relacionariam responsiva e responsavelmente com ela.

Nessa perspectiva, o docente em sua experiência (em aprendizagem ou não) com o novo, cujo horizonte é a alteridade, não se perderia a si próprio na relação de dois ou mais sujeitos em diálogo, porque a alteridade seria seu mote profissional, uma vez que nessa circunstância não há espaço para o esquecimento de si (de sua singularidade e alteridade), nem o esquecimento do outro (de sua singularidade e alteridade). Um movimento de ida e retorno ao próprio lugar e, nesse movimento exotópico, uma forma de estar na vida também ali, nos diálogos em/das escolas em que os indivíduos do ensino e da aprendizagem assumem posições, cada qual no lugar que cada um ocupa nesse campo da cultura escolar.

O alcance desse agir ultrapassaria as fronteiras do campo da cultura escolar, como presentifica a tese de Bakhtin e pares (nossa singularidade se constitui pela alteridade), ultrapassaria os próprios limites de ação desse campo em si. Quando nascemos "damos de cara" com um mundo dialogizado, o mundo da cadeia discursiva humana. Minha palavra é palavra-minha-alheia em ligação profunda com a escola, com a vida. O encontro de palavras é acontecimento nessa realidade de sentidos em circulação nas diversas esferas das atividades humanas.

Conclusão - implicações em perspectiva

No atual estágio em que nos encontramos, cabe-nos ainda perguntar: quando os professores-estagiários apresentam em seus discursos analíticos da prática de ensino vivenciada em escolas a amorosidade, esse senso altruístico para com o outro - o aluno da escola -, como manifestação de uma escuta do outro, essa escuta do outro seria a permanência de uma concepção de docência como vocação, como sacerdócio ou uma aproximação, nos tempos atuais, de uma responsiva e responsável interação advogada por Bakhtin e pares? No último caso, seria uma vivência com investimento na compreensão do outro, da reavaliação da palavra magisterial do professor em sala de aula, pensando o movimento dialógico escolar com outro sentido para a arquitetônica eu-outro, ou seja, o da participação daquele que assina o discurso pedagógico como relação amorosa com outro, contudo, pelo humanismo mediado pela alteridade. Talvez a crítica de Bakhtin que segue, presente em seu texto O autor e a personagem na atividade estética, nos auxilie nessa nossa inquietação de que possivelmente estejamos ainda distantes da compreensão da natureza dialógica própria do mundo da vida, da ideologia do cotidiano. Seria essa uma questão para o nosso tempo na cultura escolar?

O modo como eu vivencio o eu do outro difere inteiramente do modo como vivencio o meu próprio eu; isso entra na categoria do outro como elemento integrante, e essa diferença tem importância fundamental tanto para a estética quanto para a ética. Basta mencionar a desigualdade essencial de valores do eu e do outro do ponto de vista da moral cristã: não se deve amar a si mesmo mas se deve amar o outro, não se dever ser indulgente consigo mesmo mas se deve ser indulgente com o outro, deve-se livrar o outro de qualquer fardo e assumi-lo para si; mencione-se ainda o altruísmo, que aprecia de modo inteiramente diverso a felicidade do outro e a própria felicidade (BAKHTIN, 2003b_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192., p.35; grifos do autor).

Nos enunciados dos estudantes, como vimos acima, há entonações ideológicas de compromisso com a humanidade (bem comum-individual-coletivo) e que se deixam capturar; no entanto, voltamos a perguntar: que altruísmo ainda molda a nossa cultura escolar?

Como se observa, no que diz respeito ao desenvolvimento do processo de formação para a docência, muitas questões ficaram em aberto, muitas lacunas ainda precisam ser preenchidas a fim de que alcancemos uma responsiva e responsável interação advogada por Bakhtin, ou seja, se concretize uma efetiva aproximação do eu-outro tanto na escola com na vida.

  • 1
    No campo teórico, devido à abrangência conceitual que envolve a palavra ideologia, cabe registrar, ainda que em nota, como esse conceito circula no âmbito da teoria de Bakhtin e seu Círculo. Com ressalvas diante de uma arriscada formulação conceitual para ideologia, Faraco (2013, p.170)_______. A ideologia no/do Círculo de Bakhtin. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Org.). Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas: SP, Mercado de Letras, 2013. registra a sua investida na interpretação: "Esse rastreamento [pesquisa para a compreensão de ideologia em Bakhtin] parece nos autorizar a dizer que para Bakhtin a palavra ideologia faz referência às representações que os diferentes grupos sociais constroem do mundo" (grifo do autor).
  • 2
    "Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse - excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo - é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim" (BAKHTIN, 2003b_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.3-192., p.21; grifos do autor).
  • 3
    Bakhtin denomina de arquitetônica "a atividade de formar conexões entre materiais díspares." (CLARK; HOLQUIST, 2004CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin . Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.107).
  • 4
    No estágio de docência em tela, o entendimento de ensaio preconizado na disciplina é amparado na concepção de Foucault (1994, p.13)FOUCAULT, M. História da sexualidade . V. 2. O uso dos prazeres . Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque, 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994: "O 'ensaio'- que é necessário entender como a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exercício de si, no pensamento".
  • 5
    Os nomes dos acadêmicos são fictícios. Foram analisados sete ensaios e nesse conjunto os estudantes-estagiários (alunos da 8ª. fase do Curso de Letras-Português, com boa avaliação final no estágio e no decorrer do curso) figuraram uma escrita mais confessional, mais próxima do gênero relato (nesse trabalho, em razão de não ser este o nosso objeto de investigação, não discutiremos o alcance ou não por parte dos estudantes universitários dessa escrita acadêmica do gênero do discurso, ensaio), com ocorrências raras de análises profundas, portanto, de "trabalho crítico do pensamento sobre o pensamento" (FOUCAULT, 1994FOUCAULT, M. História da sexualidade . V. 2. O uso dos prazeres . Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque, 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994, p.12). Pela concepção que orientou a escrita, concepção de Foucault (1994)FOUCAULT, M. História da sexualidade . V. 2. O uso dos prazeres . Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque, 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994, já mencionada neste trabalho, previa-se a escrita de uma experiência que se constituísse ela mesma "modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação [...] uma "ascese", um exercício de si, no pensamento."(p.12). Previa-se, portanto, a investida no pensamento que interroga e ocupa lugar, a possibilidade de reflexão vigorosa com vistas à constituição de um discurso próprio.
  • 6
    No Brasil, início do século XX, as críticas à concepção do magistério como sacerdócio foram intensas, especialmente pelo movimento da Escola Nova. A defesa, à época, vinha na direção da valorização da profissão, de um Estado laico, com empenho e ênfase no conhecimento científico.

REFERÊNCIAS

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  • CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin . Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004
  • FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seu pares Letras de Hoje, Porto Alegre , v. 46 , n.1, p. 21-26, jan./mar. 2011
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2016
  • Aceito
    11 Jul 2017
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