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O mestre e o discípulo


Nos artigos escritos por ocasião do falecimento de Antonio Candido, as perspectivas delinearam-se em torno de um balanço da sua obra seminal, de sua atuação acadêmica e política, depoimentos pessoais de ex-alunos, ressaltando as lições intelectuais e mesmo existenciais desse Mestre de todos nós.

Aluna casual, nos meus verdes anos da faculdade, tive o privilégio de seguir um curso na graduação sobre a poesia de Baudelaire ministrado por ele. Talvez nem consiga avaliar com certeza se data daí - mas muito provavelmente - minha paixão pelo poeta das Flores do mal. Impressionaram-me muito duas observações de natureza diversa. Primeiro, sua análise de Une charogne [Uma carniça], poema que, desde 1857, conserva fresca sua força de impacto sobre o leitor. Foi um dos que motivaram críticas que, na época, designavam o livro como "literatura de carniça e abatedouro"; até recentemente, quando os alunos o liam em classe, as expressões eram, com freqüência, de pasmo e nojo. E o professor Antonio Candido salientava que o poeta o dedicava à "sua namorada", expressão utilizada por ele; aos 20 anos, fiquei mais impressionada com essa observação do que com o poema propriamente dito. Segundo, ao analisar Les aveugles [Os cegos], o professor ligou o ritmo do poema ao movimento oscilante do andar dos cegos, acrescentando que fora um aluno da manhã, José Miguel Wisnik, a chamar a atenção para esse aspecto. Sem alcançar, na ocasião, o que tal atitude tinha de respeito pelo aluno, surpreendeu-me a referência do professor.

E agora, escrevendo este pequeno texto, lembrei-me de um depoimento de Antonio Candido, durante um evento na Maria Antonia em homenagem a Roger Bastide, tributo singelo ao homenageado e testemunho representativo do homem que era Bastide. Antonio Candido, grande contador de casos como todos sabemos, escolheu esse episódio entre tantos que certamente trazia guardados na memória.

Durante um exame oral -naturalmente em francês - numa banca composta por Bastide e outro professor, este perguntou ao examinado, Antonio Candido, ou pelo menos assim entendeu este último: "Quelles sont les implications sociologiques du Nil?" [Quais são as implicações sociológicas do Nilo?"] O arguido relata que ficou de imediato inquieto: não se preparara para perguntas sobre o Egito... Começou a responder cada vez mais inseguro, notando que o professor manifestava o mais evidente desagrado e espanto, acabando por repetir a pergunta, que era, na verdade: "Quelles sont les implications sociologiques d'une île?" [Quais são as implicações sociológicas de uma ilha?] E, voltando-se para Bastide, perguntou-lhe se ele não se dera conta do equívoco. Ao que o professor respondeu que sim, mas que não quis interromper, pois o candidato estava dizendo coisas bastante interessantes. Assim era o mestre de Antonio Candido, um homem literalmente sem "pré-conceito" e totalmente respeitoso em relação aos alunos.

Alguns dos textos de homenagem comentam a mudança da carreira acadêmica de Antonio Candido que, começando pela sociologia acabou por dedicar-se à literatura, desenlace de um namoro antigo; mas não me lembro de ter visto mencionada uma das razões que o levou a esta escolha, que aqui trago nas suas próprias palavras:

Além da produção escrita foi grande sua [de Bastide] influência através do contacto direto com amigos e alunos. Eu, pessoalmente, lhe devo muito e às vezes me surpreendo, relendo a anos de distância algum escrito dele, ao verificar até que ponto certas idéias que julgava minhas são na verdade não apenas devidas à sua influência, mas já expressamente formuladas por ele. Se for permitida uma informação de cunho pessoal, contarei que a sua opinião foi decisiva para eu optar entre a sociologia e a literatura como atividade universitária. Consultei-o a propósito nos primeiros anos do decênio de 1950 e ele disse francamente que me achava mais qualificado para a segunda (1993, p.100).

Esse depoimento apareceu pela primeira vez num número especial (n.20) da revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) em 1978 sobre Roger Bastide, professor francês que veio ao Brasil em 1938, para ocupar a cadeira de Sociologia, deixada vaga por Lévi-Strauss, e formou uma geração de intelectuais fundamentais no nosso panorama acadêmico e cultural, como Florestan Fernandes, M. Isaura Pereira de Queirós, o próprio Antonio Candido, Gilda Mello e Sousa, Miriam Moreira Leite, entre outros.

As manifestações e homenagens da minha geração e de quem vem um pouco antes, voltam-se para o professor Antonio Candido como a figura do Mestre por excelência. Mas podemos girar o olhar e nos voltarmos para o momento em que Antonio Candido era discípulo. Em homenagens prestadas a Bastide, tempos depois de sua partida para a França em 1954, encontramos um tom muito semelhante às agora prestadas a Antonio Candido: e vemos inclusive em sua homenagem um número especial do Informe IEB, no dia 24 de julho de 2017, quando Antonio Candido faria 99 anos.

Pode-se também observar traços comuns e dimensões similares na visão da literatura do mestre e do discípulo, ambos inserindo a literatura no seu contexto social sem perder de vista o texto literário.

Lemos no ensaio de Leyla Perrone-Moisés sobre a crítica de Candido intitulada Amor à literatura e publicada na Folha de S. Paulo no dia 12 de maio de 2017:

A grande lição da crítica sociológica de Antonio Candido é que esta jamais consistiu, para ele, em utilizar a literatura como simples documento para o estudo da sociedade. Em seus textos teóricos, como em suas análises críticas, é constante a prioridade por ele concedida ao texto literário como tal (PERRONE-MOISÉS, FSP, 21/05/2017PERRONE-MOISÉS, L. O amor à literatura. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 maio 2017. Disponível em: [http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883436-o-amor-a-literatura.shtml]. Acesso em: 20/06/2017.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2...
)1 1 Anteriormente publicado num número especial do caderno Mais! em homenagem aos 80 anos de Antonio Candido. .

Muito próxima é a opinião de Antonio Candido sobre seu professor francês:

Os referidos artigos, e também os estudos mais sistemáticos, eram de intuito predominantemente literário, mas quase sempre entrava neles a visão sociológica como alicerce teórico ou componente interpretativo, tornando Roger Bastide um dos poucos a usar com segurança e felicidade essa combinação difícil (1993, p.99)

Outro ponto do mesmo artigo de Leyla Perrone-Moisés aponta para as avaliações: "a enunciação delicada de suas avaliações, que nunca se apresentam como juízos de verdade, definitivos e indiscutíveis".

Critério idêntico observa Candido na crítica bastidiana:

O seu critério dominante, sempre ressaltado nas conversas, era emitir juizos de realidade, não de valor, afastando o problema de avaliar méritos para ficar nas verificações objetivas. De um lado, isso gerava certa boa vontade universal, principalmente com referência à produção do momento; mas, de outro, assegurava à crítica a função de análise da cultura (1993, p.99).

Ou seja: trata-se de dois críticos que não apresentam sua visão como definitiva e exclusiva.

Também é comum uma informalidade de tom que cria uma cumplicidade com o leitor sem perder a seriedade e pertinência da análise. Para isso podem, às vezes, começar seus textos com observações de conversas informais. Vejamos, por exemplo, o início do texto de Roger Bastide, "Sherlock Holmes no Brasil" (03/12/1943). Estranhando a falta de romances policiais brasileiros, o francês questiona um amigo brasileiro a esse respeito e, a partir daí, desenvolve uma teoria sobre o gênero no Brasil, propondo inclusive um enredo bem brasileiro para um romance policial que se passa aqui.

Nós, que somos leitores de Antonio Candido, reconhecemos postura semelhante no seu ensaio sobre Stendhal, que começa despretensiosamente evocando a "heresia" de um amigo, pouco apreciador da Chartreuse de Parme, o que o leva a uma reflexão que se desdobra no instigante ensaio "Uma dimensão entre outras".

Nessa circulação de ideias, outro ponto comum é rejeição de um pitoresco, de um exotismo fácil, mais nítido em Roger Bastide que, mesmo fascinado pelo Brasil consegue distanciamento para ler os autores brasileiros. Sua visão sobre autores canônicos brasileiros vai na contracorrente da nossa crítica da época: "Euclides é um estrangeiro no sertão, como o será na Amazônia. É o homem do litoral que descobre o Brasil desconhecido, e reage ante ele exatamente como um europeu: observa o exótico" (AMARAL, 2010AMARAL, G. C. (org.) Navette literária França-Brasil: textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: EDUSP, 2010., p.689).

Opinião semelhante expressa Antonio Candido na resenha de Sagarana, publicada em O Jornal (1946), ao se referir aos volumes de contos regionais que jovens promotores, vindos do litoral e nomeados para cidadezinhas do interior, escreviam, encantados (ou "assanhados", para usar o termo do resenhista) pelo pitoresco do lugar.

A perspectiva de um olhar diferente sobre aspectos brasileiros da obra de Machado de Assis é ressaltada por Antonio Candido, em texto de 1990, em que analisa o ensaio precursor de Bastide, Machado de Assis, paisagista, publicado em 1940 na Revista do Brasil. Escrito dois anos depois que o francês chegara ao Brasil, mostra que ele já lera muito da obra de Machado, dos romances às crônicas. Agrada a Candido a visão do nosso romancista como um pintor da paisagem brasileira através das personagens, um "Machado de Assis de outro modo" como mostra o título do ensaio e esse "outro modo" lhe parece uma "maneira moderna e forte para o estado da crítica nos anos de 1940"; maneira sem ranço de pitoresco, que permite uma abordagem do romancista sem pré-conceitos...

Essas rápidas observações não pretendem estabelecer um paralelo sistemático da obra dos dois mestres, apenas mostrar alguns momentos em que a formação de Antonio Candido, como ele próprio declara, deve muito aos professores franceses vindos para lecionar na implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; mas pretendem desejar que essa corrente de conhecimentos e ensinamentos continue a nutrir nosso horizonte intelectual através de Mestres tão iluminados.

  • 1
    Anteriormente publicado num número especial do caderno Mais! em homenagem aos 80 anos de Antonio Candido.
  • 2
    Maria Antonia St. is located in the district of Consolação in the city of São Paulo. It is where the Faculty of Philosophy, Science and Languages and Literature was founded in 1934. Today the faculty is located in the district of Cidade Universitária and is called the Faculty of Philosophy, Languages and Literature, and Human Sciences (http://fflch.usp.br/inicial/en).
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    Text in original: "Além da produção escrita foi grande sua [de Bastide] influência através do contacto direto com amigos e alunos. Eu, pessoalmente, lhe devo muito e às vezes me surpreendo, relendo a anos de distância algum escrito dele, ao verificar até que ponto certas idéias que julgava minhas são na verdade não apenas devidas à sua influência, mas já expressamente formuladas por ele. Se for permitida uma informação de cunho pessoal, contarei que a sua opinião foi decisiva para eu optar entre a sociologia e a literatura como atividade universitária. Consultei-o a propósito nos primeiros anos do decênio de 1950 e ele disse francamente que me achava mais qualificado para a segunda."
  • 4
    Prior to Folha de S. Paulo's publication, it had been published in a special issue of Mais! in tribute to his 80th birthday.
  • 5
    Text in original: "A grande lição da crítica sociológica de Antonio Candido é que esta jamais consistiu, para ele, em utilizar a literatura como simples documento para o estudo da sociedade. Em seus textos teóricos, como em suas análises críticas, é constante a prioridade por ele concedida ao texto literário como tal."
  • 6
    Text in original: "Os referidos artigos, e também os estudos mais sistemáticos, eram de intuito predominantemente literário, mas quase sempre entrava neles a visão sociológica como alicerce teórico ou componente interpretativo, tornando Roger Bastide um dos poucos a usar com segurança e felicidade essa combinação difícil."
  • 7
    Text in original: "a enunciação delicada de suas avaliações, que nunca se apresentam como juízos de verdade, definitivos e indiscutíveis."
  • 8
    Text in original: "O seu critério dominante, sempre ressaltado nas conversas, era emitir juizos de realidade, não de valor, afastando o problema de avaliar méritos para ficar nas verificações objetivas. De um lado, isso gerava certa boa vontade universal, principalmente com referência à produção do momento; mas, de outro, assegurava à crítica a função de análise da cultura."
  • 9
    Text in original: "Euclides é um estrangeiro no sertão, como o será na Amazônia. É o homem do litoral que descobre o Brasil desconhecido, e reage ante ele exatamente como um europeu: observa o exótico."

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, G. C. (org.) Navette literária França-Brasil: textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: EDUSP, 2010.
  • CANDIDO, A. Roger Bastide e a literatura brasileira. Recortes São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • PERRONE-MOISÉS, L. O amor à literatura. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 maio 2017. Disponível em: [http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883436-o-amor-a-literatura.shtml]. Acesso em: 20/06/2017.
    » http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1883436-o-amor-a-literatura.shtml

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2017
  • Aceito
    29 Ago 2017
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