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Buscando os sentidos: diálogos possíveis

Um sentido só revela as suas profundidades encontrando-se e contatando com outro, com o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas.

Mikhail Bakhtin

O início seria o longínquo Oriente Médio - Iran, passando pela Europa - Itália (Nápoles), América - Puerto Rico (San José), Chile (Santiago) e chegando ao Brasil (SP, MT e RS): tal é o percurso geográfico-cultural traçado pelos autores que contribuíram, com suas pesquisas, para a realização deste número de Bakhtiniana (13.2). A unidade de uma cultura é sempre uma unidade aberta, aprendemos com Bakhtin (2017, p.16)BAKHTIN, M. A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas de literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.9-19. 1 1 A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas de literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.9-19. ; nesse sentido, nosso tempo é o mesmo, mas os espaços em que vivem esses diferentes pesquisadores tornam diversas nossas culturas. Dessa forma, o diálogo proposto nos dez textos aqui publicados permite e contribui para que cada unidade, em sua integridade, se enriqueça (2017, p.18)2 2 Idem nota de rodapé 1. . De comum a todos, a atenção à linguagem e seu funcionamento, às diferentes produções linguageiras, aos sentidos constituídos, e, sobretudo, o interesse pela compreensão mais aprofundada dos eixos de produção, circulação e recepção dos vários discursos, tanto em suas esferas amplas como restritas, histórica e socialmente. Em suma, a compreensão dos modos como ética e estética se unem ao cognitivo, produzindo a cultura humana (BAKHTIN, 2006________. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.XXXIII-XXXIV., p.XXXIII)3 3 Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.XXXIII-XXXIV. .

O pensamento bakhtiniano e, por certo, outras perspectivas teórico-discursivas nos oferecem as possibilidades de refletir teoricamente a respeito de língua, literatura e, fundamentalmente, dos discursos que nos atravessam e constituem. E é na certeza de que os sentidos apresentados nos artigos "supera(m) o fechamento e a unilateralidade" que perpassam nossas culturas, que passamos à sua apresentação, aglutinando-os basicamente em torno de três grandes temas: reflexões (preferentemente) teóricas, literatura e educação.

Orientando-se expressamente para a compreensão da noção de enunciado na obra do Círculo, Antonia Larraín (Universidad Alberto Hurtado, Facultad de Psicología - Santiago) e Andrés Haye (Pontifícia Universidad Católica de Chile, Escuela de Psicología - Santiago) realizam um profundo e importante estudo - Campo e enunciado: o problema da articulação do discurso -, em que desenvolvem a noção de campos discursivos, mobilizando, por um lado, conceitos de Bakhtin e Volóchinov, por outro, a filosofia de Bergson, Simondon e Deleuze, a fim de compreender como, no enunciado concreto, as respostas são atos irrepetíveis, mas não inéditos, na medida em que recriam a palavra dada. Em Considerações sobre heterodiscurso a partir de Dom Quixote, Lucas Vinício de Carvalho Maciel (coordenador do bacharelado em Linguística, Universidade Federal de São Carlos - UFSCar), motivado pela nova tradução de O discurso no romance, de Mikhail Bakhtin (2015)________. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241. 4 4 BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241. , feita por Paulo Bezerra, aborda alguns aspectos do conceito de heterodiscurso (em outras traduções plurilinguismo e heteroglossia), afirmando que a noção abarca diferentes fenômenos, e exemplifica seu enfoque com trechos de dois livros comumente referenciados como Dom Quixote de La Mancha. Micah Corum, professor de inglês e linguística na Interamerican University of Puerto Rico, apresenta-nos um estudo a respeito do crioulo como discurso no artigo intitulado Cultivando a ambiguidade: considerações sobre questões de complexidade no discurso crioulo. Trata-se de uma resposta ao debate relativo à complexidade e/ou simplicidade em gramáticas pidgin e crioulas, a partir de uma visão cronotópica, bakhtiniana, que não se esgota na gramática. Finalmente, no texto Discussões sobre dialogismo suscitadas pelo livro La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones, também em termos teóricos, Adail Sobral, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas/RS, levanta algumas questões a respeito do dialogismo, provocadas pela leitura de recente obra de Olga Pampa Arán, da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Os comentários sobre os diversos artigos e autores que a obra reúne suscitam reflexões merecedoras de leitura atenta.

Não são brasileiros os dois autores que se dedicam aos estudos literários neste número. A literatura norte-americana, mais precisamente afro-americana, é representada no artigo "inquietando as águas": A magia de relembrar o passado em Two Wings to Veil My Face, de Leon Forrest. São os iranianos Mohsen Hanif (do Departamento de Línguas Estrangeiras, Kharazmi University, Teerã) e Tahereh Rezaei (Departamento de Literatura Inglesa, Allameh Tabatabaí University, Teerã) os responsáveis por esse trabalho, que polemicamente coloca em questão a possibilidade de se recuperar uma "autêntica identidade afro-americana". Os autores destacam como o realismo mágico de Forrest desvela vozes do passado, há muito suprimidas, construindo uma identidade contemporânea. E Maria da Graça Gomes de Pina, colaboradora e especialista em Linguística da Università degli Studi di Napoli "l'Orientale", transporta-nos para as artes plásticas do Futurismo europeu, início do séc. XX. Em seu texto, vários pontos do Manifesto de Marinetti promovem a comparação entre a obra do italiano Umberto Boccioni (1882-1916) e do português Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), ambas visando à dinâmica do corpo humano em sua arte.

É sabido que, no Brasil, os estudos bakhtinianos apresentam uma forte influência na educação. Basta observarmos que, praticamente em todos os números de Bakhtiniana, há autores que debatem questões educacionais sob o viés do dialogismo. Assim, não poderia ser diferente agora, quando o periódico traz, para nossa reflexão, três artigos decorrentes de pesquisas em Linguística Aplicada, preferentemente sob viés bakhtiniano. Jozanes Assunção Nunes (Técnica em assuntos educacionais da Universidade Federal de Mato Grosso) tece um diálogo entre documentos oficiais e os professores responsáveis por sua implementação, em Vozes em confronto no Núcleo Docente Estruturante de cursos de Letras: entre o prescrito e a prática institucionalizada. Trata-se de texto oportuno, especialmente em um momento em que se discutem reformas e qualidade de ensino na educação superior brasileira. Elizangela Patrícia Moreira da Costa (Docente do Departamento de Letras, Universidade do Estado de Mato Grosso), no artigo Verbo-visualidade em perspectiva de leitura: (des)construção da compreensão ativa e criadora do texto, analisa criticamente livros didáticos e o trabalho de leitura verbo-visual que apresentam aos alunos. E Regina Braz Rocha, autora de livros didáticos, nos apresenta, no artigo Estilo, expressividade e axiologia no ensino-aprendizagem da língua em uso, uma proposta de trabalho "não-indiferente" com textos, a partir de uma compreensão responsivo-ativa.

Finalmente, uma resenha sobre a nova tradução de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, de V. Volóchinov (Círculo de Bakhtin) encerra o número: Maria Helena Cruz Pistori (Editora associada de Bakhtiniana, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) compara a antiga tradução brasileira da obra de Volóchinov com a mais recente, realizada por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo diretamente do russo.

Com o costumeiro balanço, fechamos este Editorial: foram 12 autores e 12 instituições (6 brasileiras e 6 internacionais) representados neste volume. Na promoção e divulgação de pesquisas produzidas no campo dos estudos do discurso, uma vez mais Bakhtiniana propõe a todos - leitores, autores, pesquisadores de modo geral -, o diálogo com os estudos aqui apresentados. O contexto não mudou, por isso novamente lembramos que, no difícil momento vivido pelo país, seria impossível chegar à publicação do número sem o auxílio do MCTI/CNPq/MEC/CAPES e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq) / Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) - 2018, a quem agradecemos imensamente. Reiteramos ainda que uma alta quantidade de submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a um excelente resultado, como o leitor poderá constatar. Nesse momento em que a internacionalização e a visibilidade do periódico, exigência do SciELO, parece mais próxima de ser alcançada, Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa, nacional e internacional, ligada aos estudos da linguagem.

Beth Brait *
Maria Helena Cruz Pistori **
Bruna Lopes-Dugnani *** Orison Marden Bandeira de Melo Júnior ****

  • 1
    A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas de literatura, cultura e ciências humanas. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.9-19.
  • 2
    Idem nota de rodapé 1.
  • 3
    Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.XXXIII-XXXIV.
  • 4
    BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas de literatura, cultura e ciências humanas Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.9-19.
  • ________. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241.
  • ________. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.XXXIII-XXXIV.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
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