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Campo e enunciado: problema da articulação do discurso

RESUMO

De acordo com Bakhtin, falar é responder, e as respostas não são nem conhecidas antecipadamente, já que são atos criativos irrepetíveis, nem são totalmente inéditas, uma vez que recriam a palavra dada. Assim, uma questão relevante é como um enunciado leva a uma específica resposta contingente, entre tantas outras possibilidades. A fim de contribuir para responder a esta pergunta, desenvolvemos a noção de campos discursivos, oferecendo uma explicação de sua natureza dinâmica, virtual e dialógica. Bergson, Simondon e Deleuze nos ajudam a entender melhor como a repetição de um signo, quando esta ocorre dentro de um campo de antecipação, tem o efeito de um turno irrepetível. Bakhtin e Volóchinov, nesta conexão, nos ajudam a explicar como este campo funciona como o contexto histórico em que os posicionamentos sociais e subjetivos introduzem novidade para a transformação contínua do conhecimento compartilhado entre os falantes.

PALAVRAS-CHAVE:
Antecipação; Dialogicidade; Memória; Imaginação; Campo; Retorno; Enunciado

ABSTRACT

According to Bakhtin, to speak is to reply, and replies are neither known in advance, as they are unrepeatable creative acts, nor completely novel, as they recreate the given word. Thus, one relevant question is how a given utterance leads to a specific contingent contestation among many possible others. In order to contribute to answering this question, we elaborate on the notion of discursive fields, offering an integrative account of their dynamic, virtual and dialogical nature. Bergson, Simondon and Deleuze help us to better understand how it is that the repetition of a sign, when it takes place within a field of anticipation, has the effect of an unrepeatable turn. Bakhtin and Voloshinov, in this connection, help us to explain how this field works as the historical background against which social and subjective positionings introduce novelty to the ongoing transformation of the common ground among speakers.

KEYWORDS:
Anticipation; Dialogicality; Memory; Imagination; Field; Return; Utterance

Introdução

Imagine que um falante grite "Ei!" Neste ponto, este signo é um evento novo e temos que rastrear a história em que este enunciado está inserido. Um segundo "Ei!" é enunciado por outro falante. O signo é o mesmo, mas o enunciado é novo: não foi determinado, causado ou implicado pelo ato discursivo prévio, e só porque este segundo movimento considera e inclui, historicamente, o primeiro é que ele adquire uma nova conotação. Um terceiro falante acrescenta um novo "Ei!" que é enunciado, produzido ou articulado a partir ou mediante os turnos prévios, que ainda ressoam dentro do último enunciado, mas criam um novo tom1 1 Um exemplo similar foi analisado por Volóchinov (1929/2017), Vygotsky (1934/1991) e Bakhtin (2003a) para sugerir que o significado não está anexado às palavras em si, mas a movimentos discursivos mais amplos nos quais as palavras introduzem alteridade e sociabilidade como princípios do devir ou gênese. .

O influente trabalho de Bakhtin (2003a)2 2 BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306. [1929] e Volóchinov (2017)3 3 VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin) Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. é chave para compreender a irrepetibilidade nas práticas discursivas. Eles propõem a noção de linguagem como discurso vivo - não como sistemas formais - cuja unidade é o "enunciado" - não a sentença ou proposição. Cada enunciado é um evento irrepetível da interação de diferentes vozes (BAKHTIN, 2003a)4 4 Ver referência na nota de rodapé 2. , uma resposta a outros enunciados, para que ele tenha um significado no contexto de outros enunciados que preexistem à palavra enunciada, ou antecipada na forma da palavra enunciada (BAKHTIN, 2015)5 5 BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241. . Desta forma, o enunciado não é uma composição semiótica, mas a tomada de posição de um sujeito falante por meio de tal composição semiótica, que essencialmente implica uma posição avaliativa em relação às outras vozes envolvidas no campo da interação (VOLÓCHINOV, 2017)6 6 Ver referência na nota de rodapé 3. . Essas outras vozes, bem como a situação extraverbal da interação, participam em qualquer enunciado como a atmosfera social que dá a cada palavra e posição sua particular densidade ideológica (BAKHTIN, 20157 7 Ver referência na nota de rodapé 5. ; VOLÓCHINOV, 20178 8 Ver referência na nota de rodapé 3. ).

No entanto, como enunciados, dependentes de práticas discursivas passadas, se tornam irrepetíveis e aberturas a novos caminhos? Qual é a explicação teórica para a força criativa do discurso e a novidade que cada turno traz ao longo de uma conversa? Por que o contexto de vozes virtuais de um único enunciado condiciona sua forma e conteúdo ao mesmo tempo em que o impele à singularidade? Como é possível que enunciados não sejam nem conhecidos antecipadamente, uma vez que são atos criativos irrepetíveis, nem completamente novos, já que recriam a palavra dada? Como o discurso ocorre por meio de interações sociais enquadradas em práticas sociais, a estrutura da interação (isto é, o tema, relações de poder, familiaridade dos falantes, gênero do discurso, práticas sociais, entre outros) pode facilitar um entendimento da emergência de respostas específicas. Contudo, mesmo quando as características da interação social facilitam a compreensão e mesmo a antecipação de respostas específicas, na medida em que desempenham um papel constitutivo no desdobramento do discurso, há muitas possibilidades para que um dado discurso se desenvolva dentro de uma interação social específica e concreta. O objetivo deste trabalho é explorar como o velho e o novo são articulados em uma noção dialógica do discurso. Para tanto, desenvolvemos a noção de campo discursivo (cf. Haye e Larrain, 2011HAYE, A.; LARRAÍN, A. What is an Utterance? In: AVELING, I. et al. (Eds.). Dialogicality in Focus: Challenges to Theory, Method and Application. Londres: Nova Science Publishers, 2011, pp.33-52.) e buscamos oferecer uma explicação integrativa de sua natureza dinâmica, virtual e dialógica, a partir do ponto de vista da articulação entre o dado e o novo. Reunimos conceitos de duas perspectivas teóricas muito diferentes, ambas defendendo fortemente uma abordagem genética ou generativa, para esclarecer diferentes aspectos do problema da articulação. Por outro lado, Bergson (1896/2006)BERGSON, H. Matter and Memory. Translated by Nancy Margaret Paul and W. Scott Palmer. Mineola, NY: Dover Publications, 2004. [1896] 9 9 BERGSON, H. Matéria e memoria: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. , Simondon (1966/2008)SIMONDON, G. Imagination et Invention. Paris: Éditions La Transparence, 2008. [1966] e Deleuze (1968/1988)DELEUZE, G. Difference and Repetition. Translated by Paul Patton. New York: Cambridge University Press, 1994. [1968] 10 10 DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. [1968] nos ajudam a entender melhor como a repetição de um signo, quando esta ocorre em um campo de antecipação, tem o efeito de um turno irrepetível. Bakhtin (2015)11 11 Ver referência na nota de rodapé 5. e Volóchinov (2017)12 12 Ver referência na nota de rodapé 3. , por outro lado, nos ajudam a explicar como o campo de antecipação, quando mediado por discurso aberto ou discurso vivo, funciona como o contexto histórico em que movimentos de posicionamento social e subjetivo introduzem mudança e novidade à transformação contínua de fundamentos comuns entre os falantes.

1 O problema da articulação

Articulação é uma palavra bastante usual e pode ser utilizada de maneiras muito diferentes. Pode referir-se a uma junção ou juntura entre duas partes ou unidades em movimento; para enfatizar um som e clarificar o discurso; para salientar a coordenação e interdependência de diferentes aspectos da realidade; para referir-se à estruturação de eventos caóticos emergentes; entre muitos outros. Ao apontar, a seguir, algumas características desta noção, não pretendemos uma explicação exaustiva de seus múltiplos significados, mas fazer distinções gerais para delimitar os significados usuais da articulação e poder considerá-los mais adiante. Uma maior clarificação do conceito requer uma discussão teórica que elaboramos nas seções seguintes.

Articulação como juntura (junção). Provavelmente o primeiro uso que nos ocorre quando pensamos em articulação alude a uma junção, isto é, a uma estrutura corporal que permite que partes do corpo se movam de forma coordenada. Uma junção não é só o ponto de juntura ou ligamento entre duas estruturas independentes (normalmente ossos), mas uma estrutura em si complexa que permite movimentos coordenados complexos.

Articulação como conexão ou associação. Também é possível pensar em articulação como uma conexão entre dois ou mais aspectos preexistentes da realidade. Autores como Vygotski (1991)13 13 VYGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1934] e James (1952)JAMES, W. Principles of Psychology. In: HUTCHINS, R. (Ed.). Great Books of the Western World. Chicago: William Benton, 1952, pp.1-897. v.53. [1890] conceberam a articulação como a principal característica do pensamento: conectar ou associar dois aspectos independentes da realidade. Este significado também está relacionado à ideia de juntura, mas aponta para um movimento em si mesmo, não uma estrutura que permite o movimento coordenado. Articulação como estruturação. Uma das possibilidades da articulação como associação envolve a ideia de introduzir uma ordem específica para um estado caótico de eventos. Novamente, é um movimento, mas aqui não está apenas ligando diferentes aspectos da realidade que abrange, mas impondo uma figura específica, uma organização ou estrutura que não é dada na realidade, mas que é projetada nela. Essa noção de articulação é subjacente ao pensamento estruturalista das ciências sociais, como o de Piaget (1976)14 14 PIAGET. J. A Equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. [1975] , Levis Strauss, (2018)15 15 LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Trad. Beatriz Perrone-Mosiés. São Paulo: Ubu Editora, 2018. [1954] , Chomsky (2006)16 16 CHOMSKY, N. Sobre natureza e linguagem. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [1965] , entre outros. Pode também enfatizar o papel da autorregulação como parte do movimento de articulação.

Articulação como a produção de uma nova realidade contingente a partir de uma realidade dada ou devir. Um quarto significado de articulação não está relacionado nem com a vinculação nem com a organização de realidades dadas, mas sim com o movimento de criar algo completamente novo a partir do que foi dado. A articulação aqui não se refere ao ato de criar algo novo (ao aspecto criativo), mas ao ato de criar esse algo novo, e não outro. Este significado de articulação, que do mesmo modo implica todos os três significados anteriores, explica o surgimento de um novo evento ou aspecto específico e concreto, entre muitas outras possibilidades, a partir de um determinado evento ou situação.

Dado que o objeto de nossa indagação é o devir de uma resposta específica ou de um fragmento de discurso a partir de um discurso dado entre inúmeras possibilidades, enfocaremos daqui em diante neste quarto significado de articulação para explorar a articulação do desdobramento dialógico do discurso. Neste quarto sentido, articular é o que fazemos quando falamos. Falar é articular uma resposta de um campo de respostas antecipado, mas as complexidades da articulação discursiva estão longe de ser entendidas. Nossa indagação é precisamente para ambos, tanto para o movimento quanto para o princípio da inteligibilidade na comunicação discursiva. Isto é, a transformação de algo novo a partir de algo dado, a transformação de respostas específicas entre vastas possibilidades, a partir de respostas dadas, é caótico, mas se desenrola de acordo com certos princípios. Entendemos que Heráclito sugere que Logos, o princípio que explica todos os movimentos entre si, está sempre dividido, ou seja, funciona articulando oposições, nunca chegando a uma unidade final ou fim definitivo. Há uma lei imanente de movimento: mudança. Entendemos que todo enunciado produz uma nova provocação para responder com uma provocação-enunciado sempre nova, alterando, assim, a experiência com novas possibilidades. O discurso é, nesta perspectiva heraclitiana, nada além da tensão e do movimento entre posições de interlocução dentro de um campo de movimento, não real, mas virtual. Empregamos o termo "campo" por sua referência à noção de um todo constituído por tensões, como no caso de campos magnéticos. Campos são amplamente entendidos no que se segue, em conexão com o problema da articulação, como a dinâmica virtual na qual os fatos ocorrem. Nosso primeiro passo será analisar como a virtualidade opera na articulação do devir, isto é, na gênese das formas vivas, acrescentando à noção de campo um núcleo temporal. Nosso segundo passo será analisar a gênese dos enunciados, sucedidos dentro de um campo dinâmico de perspectivas com o qual os falantes estabelecem interlocução, adicionando ao campo uma condição dialógica. Dialogicidade significa que o Logos está sempre dividido, nunca é uma síntese ou uma realização definida. Desenvolveremos o conceito de articulação para poder descrever a língua "viva" em termos da articulação conflitante dos campos com os quais os falantes constituem-se no devir.

2 Dimensão temporal dos campos: articulação de afeto, memória e imaginação

Simondon (2008)SIMONDON, G. Imagination et Invention. Paris: Éditions La Transparence, 2008. [1966] argumenta, partindo da teoria de Bergson, que os hábitos são basicamente esquemas motores formados como consequência de experiências passadas (em uma escala ontogenética, mas também em escalas sociogenéticas e filogenéticas). No entanto, esses padrões em movimento já são uma antecipação de reações e efeitos do movimento. A memória, em um esforço conjunto com a imaginação e linguagem, opera um retorno do fluxo do devir que incorpora o presente no passado e, em um segundo nível, incorpora esses dois no futuro. Em nosso argumento, uma abordagem inicial (e parcial) da forma de articulação utiliza o que pode ser chamado de descrição "psicológica" do movimento de inserção e englobamento do discurso um no outro. Bergson e Simondon explicaram que memória, imaginação e ação são as principais operações psicológicas envolvidas no devir. A ação em seres vivos é sempre orientada basicamente por meio de antecipações sensório-motoras, geradas previamente por si mesmas, no passado da experiência. O passado filogenético e ontogenético é transformado em meio duradouro e preparado para recuperar o presente imediato da ação (percepção) com as antecipações motoras (imaginação) - assim recuperando a passagem presente com caminhos entre o que se foi e o que é possível. Ao fazê-lo, o passado entra no presente, com o efeito de empurrá-lo e orientá-lo para o futuro, isto é, para a ação novamente, mas experimenta retornos ao passado para transformar o presente, não apenas no tempo de ação animal, isto é, no comportamento, mas em uma escala "simbólica". Para ambos, Bergson e Simondon, esta organização psicológica do devir é caracterizada pela mediação da virtualidade: imagens, símbolos, representações e palavras são formas de conectar passado e futuro. O trânsito da ação é então moldado por essas operações psicológicas virtualizantes.

Como consequência desse retorno e mediação, o movimento adquire uma qualidade diferente, melhor descrita em termos de irrepetibilidade. Para Bergson (2006)17 17 Ver referência na nota de rodapé 9. , isto implica a articulação entre tendências de movimento agonizante e emergente, cujo conflito é a característica principal do esforço psicológico da passagem como um esforço conflitante, formado por tensão e afeto. Essas são as dimensões psicológicas que são relevantes para a duração. Para Simondon (2008)SIMONDON, G. Imagination et Invention. Paris: Éditions La Transparence, 2008. [1966], a articulação entre o dado e o novo implícito na vida (ação) é sempre uma montagem de processos em diferentes períodos e, como tal, é um esforço sintético atravessado pela potencialidade e disparidade que resulta na produção do novo. Imagens e símbolos têm fundamentalmente a ver com a organização da afetividade dos processos psicológicos (cf. especialmente a terceira parte de Simondon, 2008SIMONDON, G. Imagination et Invention. Paris: Éditions La Transparence, 2008. [1966]). E o resultado da tensão e afetividade é novidade. É criado um novo caminho de comportamento que torna compatíveis duas ordens de grandeza até agora incompatíveis: a situação dada e a ideia da ação concluída. A invenção, como a resolução de uma crise, é a última fase dos ciclos de ação, memória e imaginação.

Baseado nisso, Deleuze (1988)18 18 Ver referência na nota de rodapé 10. propôs que o presente, passado e futuro consistem em três sínteses ou produções a partir das quais a forma, o fundamento e as séries de tempo são definidas, produzindo conjuntamente o próprio tempo. O tempo, assim, adquire a forma do presente-passado-futuro; é totalizado e encerrado como a junção do futuro-passado-presente, e o curso do tempo é ordenado e direcionado como uma série - em um esforço para a "síntese" que Deleuze descreve como tendo a natureza da repetição. Produção por repetição, uma noção paradoxal que problematiza a relação do novo e do dado, é o próprio problema em questão no discurso, de acordo com nossa discussão anterior.

Passado, presente e futuro já são repetições, cada uma em uma modalidade específica. "O presente é o repetidor, o passado é a repetição, mas o futuro é o repetido" (DELEUZE, 1988, p.161). Segundo Deleuze, a primeira síntese do presente corresponde ao hábito, em virtude do qual o tempo toma a forma de um presente vivo na passagem, um trânsito - um terreno passivo tanto para o passado quanto para o futuro. A segunda síntese, do passado, corresponde à memória, segundo a qual o tempo toma a dimensionalidade do passado como tal, sedimentando ativamente o presente como passagem e forçando o presente a tornar-se desde antes. No entanto, a terceira síntese do tempo, a repetida, é o próprio futuro, o que virá, o que é um tipo de produção diferente: a terceira operação da síntese do tempo incorpora e envolve o presente e o passado em uma afirmação que desloca ambos, substituindo sua diferença por uma articulação do passado e do presente que engendra algo que ultrapassa sua diferença e seu alcance. Emprestando a fórmula de Nietzsche do eterno retorno, Deleuze argumenta que a terceira síntese do tempo é a repetição na modalidade de retorno.

O retorno é a transformação do presente (um "segundo" momento constituído é uma referência a uma experiência passada) em um agente a ser apagado; e do passado (o "primeiro" momento) em uma condição que opera como padrão. Nesse sentido, o retorno não constitui um presente vivo nem um passado puro, mas um futuro (um "terceiro" momento) que afirma a indeterminabilidade do produto em relação às suas condições e à independência do trabalho em relação ao autor. Deleuze afirma que o hábito é o tipo de repetição que produz um agente, e a memória é a repetição reproduzindo e recriando o agente conectado, envolvido e incorporado em condições anteriores que operam como a base, determinando possibilidades de ação. No entanto, uma vez que a repetição é a repetição do futuro, o retorno opera um movimento duplo. Por um lado, dá a forma, coleta o conjunto e completa a série de tempo e, neste sentido, o retorno é o tempo retornando a si mesmo, freando e modificando a tendência automática para a ação, em um envolver, desdobrar e sobrepor de diferentes estruturas de tempo. Assim que o retorno opera a mudança de tempo para si mesmo, a repetição é transformada em diferença, porque o repetido corresponde ao estranhamento ou alteração: um movimento centrífugo de transbordamento ou inundação, abrindo o tempo para o imprevisto - o que não pode ser reduzido ou deduzido a partir do presente do sujeito ou da sujeição a experiências passadas. Ou seja, a repetição como retorno é a abertura para o novo. O desdobramento do tempo implica um excedente, porque o terceiro momento da série, o momento que coleta um conjunto e dá forma ao tempo, apaga e transforma os outros dois tempos em momentos incorporados no que é novo, isto é, o que não está contido no presente ou no passado.

As contribuições de Bergson, Simondon e Deleuze explicam a articulação temporal da experiência em termos de um retorno ou "refluxo" dentro do fluxo genético ou generativo do vivente, em que memória e imaginação se entrelaçam com a ação. A novidade na experiência é o resultado de estar enraizada em campos de ação em andamento que abrem a porta para que desfocados trechos passados da ação e caminhos antecipados possíveis ou oportunos para entrar no real e modificar seu curso. Isso significa que um tipo específico de relação entre memória, imaginação e ação está crucialmente envolvido na produção, não na experiência, do tempo, mas sim na experiência como tempo. Deste ponto de vista, a compreensão da articulação discursiva como ato de criar essa nova resposta a partir do que é dado envolve a compreensão tanto da ação entrelaçada da memória quanto do desdobramento da imaginação, não em uma mente individual, mas em um campo virtual. No entanto, qual é esse campo? Como é formado? Qual é a realidade material desse campo? Do nosso ponto de vista, e seguindo Bakhtin (2015)19 19 Ver referência na nota de rodapé 5. e Volóchinov (2017)20 20 Ver referência na nota de rodapé 3. , esse campo tem uma natureza discursiva na medida em que a história das práticas discursivas (incluindo suas tensões, contradições, avaliações diferentes, etc.) é sedimentada em um campo virtual de significados e posicionamentos que se supõe ao fazer uso da linguagem: "Fora desse material não existe a vivência como tal. Nesse sentido, qualquer vivência é expressiva, ou seja, é uma expressão em potencial" (VOLÓCHINOV, 2017, p.120; grifo do autor).21 21 Ver referência na nota de rodapé 3. A articulação temporal, descrita por Bergson, Simondon e Deleuze, opera através de propriedades específicas que emergem como uma função de práticas sociais mediadas por palavras.

A seguir, sugerimos que a articulação da experiência em seres falantes não pode ser totalmente compreendida sem considerar como a linguagem modifica a condição do ser vivo. As práticas discursivas introduzem em seu devir bivocalidade e heterodiscurso, desta forma ampliando radicalmente a realidade dinâmica e virtual dos campos de ação, interligando a memória e a imaginação em vastas escalas de campos de interlocução. Isso permite tradições e suas contestações através de gerações, bem como conversações em situações e ao longo da vida dos falantes em uma variedade de relações divergentes e convergentes. Um enunciado pode parecer necessário ou óbvio depois de ter sido produzido, porque ele condiz com o campo em que ocorre, mas tal ajuste ao campo pode ser julgado apenas se assumirmos que o campo é dado ou estático e não que é também o resultado de modificações de enunciados das relações sociais. Do ponto de vista da articulação dialógica entre o dado o novo nas práticas discursivas, os enunciados são antes tendências que realidades e, como tal, estão radicalmente subordinados aos fluxos de modificação do campo das relações. A possibilidade de um enunciado não é determinada pela estruturação passada do discurso, mas aberta por orientações virtuais em relação ao seu futuro. Um enunciado não é causal ou logicamente determinado por outros enunciados, mas dialogicamente impelido por eles para o inédito. Até agora, aprendemos o primado da antecipação na articulação temporal da experiência. A questão mais específica que colocamos é como a passagem do dado para o novo ocorre no discurso.

3 Dimensão discursiva dos campos: articulação do posicionamento, o dado e o antecipado

Propomos um conceito de campo discursivo ou de interlocução, com base em Bakhtin (2003a)22 22 Ver referência na nota de rodapé 2. e Volóchinov (2017)23 23 Ver referência na nota de rodapé 3. , para quem o enunciado, como unidade de comunicação discursiva, deve ser concebido como uma unidade dialógica, isto é, a unidade de um movimento de interdependência social, que consiste na emergência de uma nova perspectiva em uma rede de posições virtuais, passadas e antecipadas, que superam as posições imediatas dos outros reais. Bakhtin descreve este campo discursivo como uma rede virtual ou ambiente, o "campo de opiniões, pontos de vista e avaliações dispersas, isto é, exatamente no campo daquilo que, como vimos, torna complexo o caminho de qualquer discurso na direção do seu objeto" (BAKHTIN, 2015, p.54) 24 24 Ver referência na nota de rodapé 5. . Este ambiente, no entanto, não é um contexto externo, mas sim um componente interno do enunciado. Consequentemente, conceituamos o posicionamento, implicado em cada enunciado, não como um processo isolado, mas como aquele que ocorre em um campo de interlocução ou como um campo discursivo. Este processo de interlocução é configurado pela tensão entre as perspectivas, porque as perspectivas são posições ideológicas interessadas. Em outras palavras, o posicionamento ocorre em um tecido de interesses convergentes e divergentes que constitui um conflito problemático de interesses no aqui e agora do enunciado. O campo instiga o falante a assumir uma posição que possa resolver, posteriormente, o impasse gerado pela encruzilhada dos interesses. Nesse contexto, cada enunciado é como um esforço para resolver o impasse de uma forma ou de outra, favorecendo de uma ou outra maneira um interesse ou outro. O campo de interlocução não é um plano de fundo estático, mas uma atmosfera social dinâmica a partir da qual cada posicionamento leva seu significado. O campo não é um tecido em que todas as possíveis perspectivas sobre tudo já estão presentes ao mesmo tempo. O campo é uma constelação emergente em constante mudança de perspectivas interessadas que estabelecem relações com o posicionamento emergente. Coerentemente, cada emergência de um novo posicionamento envolve uma transformação particular do campo, em que algumas perspectivas são "ativadoras" e outras são "silenciadoras".

Além disso, propomos usar tecnicamente a palavra "articulação" para referir à forma de movimento dos campos discursivos que gera o novo a partir do velho por meio da refração e assimilação de palavras dadas e antecipadas. O núcleo desse movimento é a incorporação de discursos passados e futuros no discurso. Esta forma básica foi originalmente elaborada por Volóchinov (2017)25 25 Ver referência na nota de rodapé 3. em termos de transmissão do discurso alheio. Qualquer palavra "cita" outras palavras explícita ou implicitamente e "chama" outras palavras além daquelas em operação, rastreando relações virtuais no campo. Um enunciado está sempre, de uma forma ou de outra, incorporando outros enunciados dados no campo de interlocução e sua história ou deriva, quer lembrados como passado ou evocados como possível. Logo, Bakhtin (2008)26 26 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1963] discutiu as implicações da bivocalidade de qualquer ato discursivo para a análise do discurso e, em geral, para ciências humanas ou ciências do texto e da cultura, como a análise literária. A condição epistemológica das ciências sociais é que o devir do discurso é inevitavelmente sobre outro discurso: o objeto de um enunciado é sempre outro enunciado. Qualquer discurso é um discurso sobre outros discursos. A partir disso, sugerimos que a palavra alheia não está próxima ou antes do enunciado real (está, mas apenas em termos relativos, dependendo de um mapa ou modelo com o qual os eventos são medidos, como mapas topológicos e momentos cronológicos), mas inserida nele através de operações discursivas. Os falantes fazem o seu melhor para cumprir, através de seus gestos e palavras, e especialmente de sua composição, uma função fundamental do discurso (uma característica constitutiva e distintiva da linguagem): incluir, retomar, incorporar ou inserir o alheio na vida imediata e próxima, enfrentar a alteridade através de diversas operações de incorporação, abrir a vida às fronteiras do familiar e cruzar os limites da compreensão. Fazer referência, citar, comentar, pressupor e responder a outro enunciado são formas dialógicas (e políticas) de articulação. Essas são relações dialógicas, que não são mensuradas cronologicamente como são as relações "dialogais".

A questão, novamente, é por que nasce o novo e por que o dado passado é incorporado ou retomado. A partir de nossa leitura de Bakhtin, particularmente as passagens de O discurso no romance, é possível distinguir três características básicas da vida discursiva que explicam a articulação dialógica dos enunciados: relevância temática ou semântica; relevância avaliativa ou ideológica; e antecipação do horizonte de compreensão de um ouvinte.

Relevância semântica. Vozes virtuais específicas, posições e perspectivas são "ativadas" ou "salientes" em um determinado campo quando seu objeto ou tema o torna relevante:

Contudo, todo discurso vivo varia na forma de sua oposição ao seu objeto: entre o discurso e o objeto, o discurso e o falante situa-se o meio elástico e amiúde dificilmente penetrável de outros discursos alheios a respeito do mesmo objeto, "no mesmo tema" (BAKHTIN, 2015, p.48)27 27 Ver referência na nota de rodapé 5. .

Considere qualquer palavra que estabeleça relações com todas as perspectivas com as quais tenha tido semelhanças temáticas: elas "se referem" ao mesmo "objeto" discursivo. Ou seja, dado um novo posicionamento, algumas perspectivas tornam-se "ativas" em um ambiente elástico particular devido a semelhanças semânticas ou temáticas. O autor retornou a esse ponto, enfatizando sua importância, em um ensaio mais tardio O problema do texto (BAKHTIN, 2003b)28 28 BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-336. . Por exemplo, quando se refere à ideologia, Bakhtin esclarece que um campo particular de vozes emerge como um pano de fundo do que está sendo dito, o que restringe e possibilita o significado real. Não podemos falar sobre a ideologia como sendo os primeiros falantes e transmitir um significado totalmente novo. Por isso, em qualquer discurso, o tema em jogo produz redes semânticas particulares relevantes ou relações com vozes virtuais do passado, falantes ou posições em diferentes escalas de tempo, envolvendo um esforço de memória para retornar.

Ora, todo discurso concreto (enunciado) encontra o objeto para o qual se volta sempre, por assim dizer, já difamado, contestado, avaliado, envolvido ou por uma fumaça que o obscurece ou, ao contrário, pela luz de discursos alheios já externados a seu respeito. Ele está envolvido e penetrado por opiniões comuns, pontos de vista, avaliações alheias, acentos. O discurso voltado para o seu objeto entra nesse meio dialogicamente agitado e tenso de discursos, avaliações e acentos alheios (BAKHTIN, 2015, p.48)29 29 Ver referência na nota de rodapé 5. .

Relevância avaliativa. A relevância temática ou semântica não é suficiente quando se trata do campo emergente de vozes. No caso da ideologia, uma grande quantidade de vozes pode ser ativada semanticamente, e esse não é o caso. Além disso, algumas dessas vozes entram em relações de acordo, desentendimento, repetição, e assim por diante. Não são vozes neutras, ligadas unicamente ao posicionamento emergido por semelhanças semânticas. As vozes são avaliações, isto é, perspectivas emocionais em relação a esse "objeto". Elas são uma forma particular por meio da qual o "objeto" é visto e valorado. Isso indica que as semelhanças semânticas são relações avaliativas e emocionais entre essas perspectivas: o posicionamento emergente também estabelece relações com um universo particular de perspectivas dado seu conteúdo avaliativo-emocional, mesmo quando não são semanticamente relacionados. Continuando no caso da ideologia, podemos estar irritados ao discordar com outro interlocutor sobre as implicações da ideologia da vida cotidiana. Ao fazê-lo, algumas vozes que não estão tematicamente relacionadas com a ideologia podem ser ativadas porque elas envolvem raiva como avaliações sobre outros tópicos ou eventos da existência:

Essas unidades do discurso interior, espécies de impressões totais dos enunciados, estão ligadas entre si e alternam-se não de acordo com leis gramaticais ou lógicas, mas segundo as leis da correspondência valorativa (emocional), de enfileiramento dialógico etc., dependendo estreitamente das condições históricas da situação social e de todo o decorrer pragmático da vida (VOLÓCHINOV, 2017, p.136; grifos do autor)30 30 Ver referência na nota de rodapé 3. .

Neste caso, é a tensão, a qualidade emocional, o tom ou a tonicidade do presente que conduz a memória e a imaginação em seus esforços - experiências específicas relevantes para o presente, envolvendo-as no surgimento do novo.

Antecipação do horizonte de compreensão do ouvinte. A palavra emergente é determinada, portanto, não apenas pelas palavras que foram ditas sobre um mesmo objeto e com as quais estabelece relações, ou correspondência emocional, mas também pelas palavras que são antecipadas como parte dos antecedentes de compreensão do ouvinte. Estas não são necessariamente temática ou avaliativamente relacionadas, mas podem ser politicamente relacionadas:

O discurso falado vivo está voltado de modo imediato e grosseiro para a futura palavra-resposta: provoca a resposta, antecipa-a e constrói-se voltado para ela. Formando-se num clima do já dito, o discurso é ao mesmo tempo determinado pelo ainda não dito, mas que pode ser forçado e antecipado pelo discurso responsivo. Assim acontece em qualquer diálogo vivo (BAKHTIN, 2015, p.52-53)31 31 Ver referência na nota de rodapé 5. .

Assim, cada palavra traz à vida discursiva algumas outras palavras que devem ser respondidas. A posição emergente estabelece relações com palavras passadas e futuras, e essas palavras são precisamente aquelas que constituem seu contexto social. No entanto, Bakhtin continua: "[...] só agora que este meio heterodiscursivo de palavras do outro é dado ao falante não no objeto, mas na alma do ouvinte como seu campo aperceptivo, prenhe de resposta e objeções" (2015, p54)32 32 Ver referência na nota de rodapé 5. .

No surgimento de novas posições, em cada enunciado, há perspectivas que se tornam parte da atmosfera social, porque dizem respeito à resposta (talvez silenciosa) do futuro do ouvinte. Não é a resposta em si que restringe e possibilita a posição emergente presente, mas as perspectivas que, do ponto de vista do falante e seu conhecimento da consciência ideológica do ouvinte, devem ser respondidas. Aqui, a imaginação - a antecipação simbólica e semiótica do futuro virtual - desempenha um papel fundamental. Diante disso, é este terceiro princípio, o da antecipação, que tem o primado sobre os dois anteriores, uma vez que torna pertinente tanto a relevância semântica como a avaliativa, relacionando temas e posições ideológicas a um novo movimento de articulação.

Em síntese, a articulação discursiva, como o nascimento de uma nova palavra a partir de palavras dadas que são retomadas e incorporadas, é imprevisível e contingente, mas inteligível. Não é um processo completamente casual e caótico, mas é conduzido por dinâmicas específicas de campos discursivos. Essas dinâmicas - relevância semântica, relevância emocional e antecipação do contexto de compreensão do ouvinte - envolvem a articulação do tempo em diferentes escalas alcançadas pelo esforço interligado de memória e de imaginação, e supondo características discursivas específicas dos campos através dos quais as palavras passadas e antecipadas levam a novas perspectivas e posicionamentos que retomam, incorporam, incluem e/ou colidem no seu caminho para o devir. A posição emergente é uma resposta a outra anterior e, nesse sentido, responde a uma posição avaliativa anterior em uma constelação de perspectivas semânticas e emocionais. Portanto, existem relações semânticas e emocionais que já são dadas no posicionamento para o qual responde uma nova posição. O campo que emerge no posicionamento anterior configura a emergência do novo posicionamento: dá forma à emergência não apenas do posicionamento anterior, mas também a da resposta recente. De fato, na medida em que o campo determina a emergência de uma nova posição, ela é transformada: a nova resposta traz novas antecipações e novas perspectivas passadas que são emocional e semanticamente relacionadas. Cada enunciado envolve a emergência do novo a partir do que é considerado como dado: o posicionamento anterior e o campo de perspectivas que emergiu com ele.

Discussão

Enunciado e campo discursivo são conceitos complementares. Seguindo as elaborações anteriores sobre a noção de enunciado do dialogismo (ver Haye; Larrain, 2011HAYE, A.; LARRAÍN, A. What is an Utterance? In: AVELING, I. et al. (Eds.). Dialogicality in Focus: Challenges to Theory, Method and Application. Londres: Nova Science Publishers, 2011, pp.33-52.), buscamos aprofundar a teoria dialógica da linguagem no que diz respeito ao papel desempenhado pelo campo de interlocução, que excede o enunciado, na explicação de como o discurso ocorre na interação social entre os seres falantes, de modo que cada enunciado seja novo e irrepetível. Em contraste com as explicações sistêmicas ou estruturais da linguagem, o dialogismo implica que o contexto de um enunciado não é externo, mas opera dentro do enunciado; que o contexto ou meio do enunciado é um fluxo mutável de relações de interlocução; que esse contexto, sendo modificado por cada enunciado, é a condição temporal para que as respostas sejam compreendidas, antecipadas e expressas; e que cada enunciado não é uma estrutura, mas uma gênese cujos momentos iniciais e finais são tema de debate, interpenetrando-se com o campo mais amplo dentro do qual se tornou.

Os falantes, por meio de suas interações e intercâmbio de signos, produzem discurso dentro de um campo de interlocução com uma dimensão temporal. A diferença entre um momento e outro não é necessariamente criada no espaço ou distinguida pelos mesmos falantes como uma mudança de lugar. O discurso é um movimento em um sentido bastante abstrato. A realidade do movimento foi pensada em termos do fluxo de pensamento (JAMES, 1952JAMES, W. Principles of Psychology. In: HUTCHINS, R. (Ed.). Great Books of the Western World. Chicago: William Benton, 1952, pp.1-897. v.53. [1890]), emergência (MEAD, 1934MEAD, G. H. Mind, Self and Society from the Standpoint of a Behaviourist. Chicago: The University of Chicago Press, 1934.), duração (BERGSON, 2006)33 33 Ver referência na nota de rodapé 9. e devir (DELEUZE, 1968/1988DELEUZE, G. Difference and Repetition. Translated by Paul Patton. New York: Cambridge University Press, 1994. [1968] 34 34 Ver referência na nota de rodapé 10. ; SIMONDON, 1966/2008SIMONDON, G. Imagination et Invention. Paris: Éditions La Transparence, 2008. [1966]). Bakhtin (2010)35 35 BAKHTIN, M. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 7.ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010. usa a ideia do que nasce, a partir da imagem de Rabelais do crescer-morrer cíclico, elevando-se para a alma e as formas, e descendo para o corpo e a decomposição da matéria, como chave para a compreensão de um cronotopo particular na literatura e memória cultural. A imagem desta ideia é a figura da mulher idosa grávida. Bakhtin não contribuiu com um conceito ontológico, mas com uma compreensão de como a realidade em movimento é refratada e assimilada na cultura e subjetividade através da articulação discursiva do tempo e do espaço (BAKHTIN, 2015)36 36 Ver referência na nota de rodapé 5. . Aqui reside a importância de sua teoria para a nossa pergunta: Como é o movimento quando é mediado pela linguagem? Qual é a consequência de olhar para as formas em que surge o devir desde o ponto de vista de como o discurso molda o devir dos falantes? E se assumirmos uma teoria dialógica da linguagem, como a dialogicidade está relacionada à ontologia dos seres vivos falantes?

Propomos pensar que o devir dos falantes através do tempo envolve um movimento caracterizado por mudanças no próprio tempo. Uma conversa, por exemplo, não passa apenas dentro de um lapso de tempo. Isto é verdade considerando mudanças em um nível de análise da conversação, a saber, as mudanças dialogais de turno e a composição semiótica na fala e gestos. Mas existem outros níveis relevantes. Entre as muitas características interacionais, o nível dialógico das interações dialogais e monologais nos parece particularmente relevante para entender não a dimensão cronológica do discurso, mas sim sua duração. Ao longo da conversa, as mudanças ocorrem nas relações entre falantes, projetos sociais, imagens e temas envolvidos. Em qualquer momento, essas relações formam um campo estratificado dentro do qual a interação ocorre. O campo não é o espaço que contém esses falantes e suas relações, mas uma história de desafios contextualizados para os falantes e as mudanças performativas que provocam nas suas relações. Os campos de interlocução são redes evolutivas de relações, não paisagens físicas ou sociais estáticas. Dialogicidade significa não apenas bivocalidade; implicitamente significa que qualquer discurso é uma multiplicidade, que qualquer enunciado único é um campo transversal estratificado de discursos cuja escala temporal excede a escala cronológica da produção discursiva. O movimento paulatino de campos de interlocução ocorre em uma escala de tempo que é sempre maior do que a situação imediata, geralmente abrangendo anos. Uma conversação diária não seria possível se não fosse dada continuidade a uma experiência que passou há tempos, que conecta os falantes atuais com os passados, mesmo quando não se conhecem pessoalmente ou estão apenas presumidos pela escuta, e muitas práticas discursivas cotidianas submergem suas raízes no imemorável. A escala temporal das relações dialógicas é diferente tanto para as relações lógicas como físicas. Por um lado, o movimento discursivo não é eterno e atemporal, do mesmo modo que entidades lógicas como as formas de argumentação e relações numéricas; nem mesmo signos considerados elementos de um modelo de sistema de linguagem, como descrito pela linguística estrutural. O movimento discursivo não é compreensível a partir de uma perspectiva sincrônica, porque é irrevogável e não reversível. Por outro lado, os processos discursivos não são realidades, eventos efetivamente existentes, significantes percebidos e estados de coisas presentes no campo de interlocução. Entre o eterno e o real, há o virtual. As relações dialógicas são virtuais no sentido de que existem conexões entre os falantes e as posições dos falantes que excedem o existente no presente. Por esta razão, os campos evolutivos da interlocução podem ser, e geralmente são, retomados (todos os dias acordamos e retomamos vários tópicos ou fluxos da vida discursiva) e, contrariamente, dificilmente podem ser finalizados (ao menos, é difícil saber com certeza se uma conversação foi finalmente concluída). Normalmente a posição de finalizar uma conversação é uma posição contestável dentro da mesma conversação. Este final indeterminado de conversações com final em aberto é também parte de qualquer resposta, sempre aberta para ser retomada mesmo em um futuro distante ou em lugares desconhecidos. As palavras geram novos mundos além da imaginação. Os enunciados abrem esperança, porque eles são o retorno do que nasce e nunca a determinação definida de um término. Nunca podemos ter certeza de que não haverá um tempo ou espaço no qual nosso discurso será escutado. Nesse sentido, os enunciados introduzem uma indeterminação radical ao campo virtual de outros enunciados, cada vez aparecendo como modificações do campo, como turnos entre os falantes, e como uma nova expansão de possibilidades da experiência.

Tanto nos níveis do entrelaçamento de enunciados em campos discursivos quanto no movimento paulatino desses campos, há um tipo de mudança comum: a passagem do dado para o novo (denominado duração, devir ou emergência). Isso às vezes é associado a mudanças de realidade em uma dimensão cronológica, mas a composição cronológica de signos, formas sintagmáticas e sequência de movimentos de turno não envolvem necessariamente a emergência de algo novo. Os antigos gregos denominavam aión o tempo relacionado ao nascente e ao próximo. A dimensão temporal do discurso é aión. Não é o instante, igual a qualquer outro, mas o posicionamento histórico emergente de um falante dentro de um campo de interlocução (por definição, um enunciado), que é irrepetível. De acordo com Bakhtin (2003a)37 37 Ver referência na nota de rodapé 2. , os enunciados são eventos únicos, sempre novos e singulares, porque cada evento entra em um campo diferente, no mesmo sentido que, de acordo com Heráclito, ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio.

Uma teoria dinâmica dos campos discursivos ou de interlocução deve conceber a estes não como formas (nem mesmo estruturas emergentes como efeitos de campo), mas como fluxos de transformação, pois o enunciado é a unidade do discurso em um sentido bastante paradoxal: articulação, entrelaçamento, transição. Propomos conceber e analisar enunciados como transições a partir de uma configuração de falantes - suas posições gestuais, a composição dos signos que usam para expressar-se - para um novo emergente. Os enunciados não são os estados a partir dos quais os palestrantes saltam para chegar ao próximo enunciado, mas a transição das relações dialógicas entre falantes para um futuro. Enunciados são unidades do discurso, mas não unidades discretas, como sugere a discussão de Bakhtin sobre os limites de um enunciado; o enunciado é a unidade funcional da transformação dinâmica dos espaços interacionais, que aqui chamamos de articulação.

A dimensão temporal do discurso, no entanto, não é uma forma homogênea e vazia na qual as relações dialógicas ocorrem. O tempo, como a relação relevante da vida discursiva, é gerado, articulado e modificado pelo discurso, ou através do discurso, porque este é precisamente a articulação da diferença, a montagem contínua entre diferentes escalas de tempo que são relevantes para as necessariamente múltiplas vozes, posicionamentos, perspectivas ou discursos que, assim, se nidificam em um ato discursivo. Este é o ato de engendrar, de dar à luz a uma nova voz, posicionamento ou perspectiva dentro de um campo temporal. Cada enunciado é uma nova articulação do tempo. O tempo (aión) muda qualitativamente com cada elo da cadeia comunicativa. Cada enunciado envolve um novo aninhamento dos fluxos emergentes de enunciados. Daí nossa tese: o discurso articula o tempo em diferentes escalas através da incorporação do discurso no discurso, engendrando um novo discurso cujo surgimento nunca foi necessário, mas contingente.

Se o enunciado é uma transição para o novo, a análise do discurso deve seguir as novidades que dão forma ao espaço interacional emergente. Na análise do discurso e nas interações da vida cotidiana, é realmente importante resistir ao nosso hábito de apagar o sentido nascente de uma ação com um significado post hoc segundo o qual essa ação era necessária - se não absolutamente necessária, pelo menos necessária para dar lugar à ordem atual das coisas. Bergson (1896/2006)BERGSON, H. Matter and Memory. Translated by Nancy Margaret Paul and W. Scott Palmer. Mineola, NY: Dover Publications, 2004. [1896] 38 38 Ver referência na nota de rodapé 9. discutiu a ilusão de tomar os antecedentes de um estado presente como fontes de possibilidade desse estado, um potencial que deve ter estado lá antes do presente ser atualizado. A ilusão é devida a uma organização particular de memória, imaginação e ação que se concentram no presente e articulam experiências com o modelo do real. O contra-movimento (ou "refluxo") em relação ao virtual, isto é, ao lembrado e imaginado, é parte integrante dos campos de ação, submergindo a experiência em uma condição de não-realidade, por exemplo, pensando e sonhando. Um movimento duplo semelhante é encontrado em Bakhtin, em termos de forças centrípetas e centrífugas que operam a partir da gênese dos enunciados, a primeira empurrando para a monologização dos enunciados e a segunda em direção à sua articulação polifônica. As tendências centrípetas na produção de enunciados contínuos levariam a um discurso unitário, autônomo, único, definido e de posição única se não fossem contrabalançadas pelas tendências centrífugas que abrem a produção de enunciados para a inconclusão, heterogeneidade e hibridez como o lugar de atividade criativa. Na vida discursiva, as palavras passadas não estão organizadas como molduras determinantes que seriam necessárias para que um determinado enunciado seja expresso ou compreendido (sua condição de possibilidade), mas sim são signos a partir dos quais os falantes respondem com movimentos emocionais e ideológicos de oposição ou aliança. Qualquer resposta é sempre potencialmente divergente do passado, na medida em que as relações dialógicas antecipadas voltam a entrar no fluxo de interação. A análise do discurso se aprofunda quando considera a articulação dinâmica dos enunciados e dos campos de interlocução, não só no nível intra-falante, mas especificamente no nível inter-falante das direções nascentes do devir social.

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    Um exemplo similar foi analisado por Volóchinov (1929/2017)VOLOŠINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by L. Matejka, I.I. Titunik. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986. [1929], Vygotsky (1934/1991)VYGOTSKY, L. S. Thinking and Speech. In: RIEBER, R.; CARTON, A. (Eds.). The Collected Works of L. S. Vygotsky. Translated by N. Minick. London: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 1999. v.1. [1934] e Bakhtin (2003a) para sugerir que o significado não está anexado às palavras em si, mas a movimentos discursivos mais amplos nos quais as palavras introduzem alteridade e sociabilidade como princípios do devir ou gênese.
  • 2
    BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4.ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.261-306. [1929]
  • 3
    VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin) Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • 4
    Ver referência na nota de rodapé 2.
  • 5
    BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241.
  • 6
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 7
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 8
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 9
    BERGSON, H. Matéria e memoria: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • 10
    DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. [1968]
  • 11
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 12
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 13
    VYGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001. [1934]
  • 14
    PIAGET. J. A Equilibração das estruturas cognitivas: problema central do desenvolvimento. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. [1975]
  • 15
    LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Trad. Beatriz Perrone-Mosiés. São Paulo: Ubu Editora, 2018. [1954]
  • 16
    CHOMSKY, N. Sobre natureza e linguagem. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [1965]
  • 17
    Ver referência na nota de rodapé 9.
  • 18
    Ver referência na nota de rodapé 10.
  • 19
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 20
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 21
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 22
    Ver referência na nota de rodapé 2.
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    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 24
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 25
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 26
    BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1963]
  • 27
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 28
    BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-336.
  • 29
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 30
    Ver referência na nota de rodapé 3.
  • 31
    Ver referência na nota de rodapé 5.
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    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 33
    Ver referência na nota de rodapé 9.
  • 34
    Ver referência na nota de rodapé 10.
  • 35
    BAKHTIN, M. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 7.ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • 36
    Ver referência na nota de rodapé 5.
  • 37
    Ver referência na nota de rodapé 2.
  • 38
    Ver referência na nota de rodapé 9.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2017
  • Aceito
    07 Abr 2018
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