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Discussões sobre dialogismo suscitadas pelo livro La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones

RESUMO

Este texto apresenta reflexões sobre dialogismo suscitadas pelo livro La Herencia de Bajtín: Reflexiones y Migraciones, organizado por Pampa Arán e publicado, em 2016, pelo Centro de Estudios Avanzados da Universidade Nacional de Córdoba, estando centrado em torno de questões que envolvem a concepção dialógica e algumas leituras suas.

PALAVRAS-CHAVE:
Dialogismo; Reflexões; Leituras

ABSTRACT

This text presents reflections on dialogism aroused by the book La Herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones [Bakhtin's Legacy: Reflections and Migrations], edited by Pampa Arán and published in 2016 by the Centro de Estudios Avanzados [Center for Advanced Studies] of the National University of Córdoba, and has as its focus questions concerning the dialogical conception and some of its readings.

KEYWORDS:
Dialogism; Reflections; Readings

Para início de conversa

Que dizer de um ensaio (não propriamente um artigo ou resenha) que faz leituras de leituras, e mesmo de leituras de leituras de leituras? Corre riscos de ter contestadas suas leituras, por apressadas, por perder detalhes relevantes etc. ou outros motivos, mesmo que o autor do ensaio também seja um leitor e comentador de ao menos alguns autores lidos, ou ao menos do(s) principal(ais). Mas é uma experiência relevante de leitura dizer como o autor X leu o autor Y e que implicações tem isso. Ler a entoação avaliativa das leituras ativamente, porque é essa recepção que dá sentido à existência daquela. Logo, parece legítimo discutir criticamente discussões críticas. Resenhas, mesmo as chamadas resenhas críticas, são mais informativas que críticas; de artigos se exige cumprir certos requisitos formais. Mas isso não se aplica ao caso de um ensaio que faz comentários críticos sobre leituras, migrações, aproximações, explorações.

O produto final, se assim se pode dizer, é o que menos importa aqui; o processo de reflexão dos textos do livro, capturado valorativamente por esta minha reflexão-ensaio, é o ponto central. E não é senão isso que mostra esse curioso livro. Temos aqui leituras e leitura de leituras que trazem novas versões de discussões acerca do legado de Bakhtin, avaliado mediante reflexões e migrações sobre Bakhtin, de Bakhtin, a partir de Bakhtin, bem como conexo com Bakhtin, e conceitos vitais da teoria e análise dialógica, inclusive na análise de diferentes objetos - eis o que nos traz La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones (ARAN, 2016ARÁN, Pampa Olga (Org.) La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados. Universidad Nacional de Córdoba, 2016. Prólogo de Silvia N. Barei. 253 p. Edição impressa e Edição digital. ISBN 978-987-1751-40-2.).

1 Apresentação geral de La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones

Esse livro, publicado em Córdoba, na Argentina, tem uma edição impressa e uma digital de livre circulação1 1 Cf.https://rdu.unc.edu.ar/bitstream/handle/11086/4780/La%20herencia%20de%20Bajt%C3%ADn%20Digital.pdf?sequence=1 . Trata-se de um concerto/arena de vozes, de múltipla autoria, com destaque para textos da organizadora, Pampa Arán, docente e pesquisadora da Universidade Nacional de Córdoba. Estes se distribuem nas duas primeiras de suas três partes. Trata-se de textos inéditos de comunicações, palestras e mesas-redondas da autora, bem como de versões revisadas de artigos já publicados.

Em alguns deles, Arán discute textos que leem textos (Parte I: Intersecciones y migraciones), notadamente de Bakhtin, e, em outros, reflete sobre importantes questões teóricas e metodológicas (no sentido amplo) vinculadas com textos de Bakhtin e outros autores do chamado Círculo (Parte II: Categorías en discusión). E ela o faz sempre a partir de um dado ponto de vista coerente que culmina, ao final da Segunda Parte, com a proposição de categorias de sua própria lavra, que usa para entender diversos fenômenos.

O livro traz ainda, generosamente, a Parte III (Campos de exploración), em que a organizadora dá voz (agora diretamente, não em discurso citado) a quatro interlocutores especiais seus. Estes abordam variados tópicos de várias perspectivas, tendo o dialogismo como norte ou como contraponto etc. Vemos ali reflexões que revelam novos horizontes tanto para a leitura do dialogismo como para quem se interessa por ultrapassar limites disciplinares estritos.

Todos os textos contidos nessa Terceira Parte explicam o título "campos de exploración". Porque não há ali aplicação de conceitos, mas reflexões exploratórias sobre os mais diversos objetos em diálogo com Bakhtin. Esses textos exploram territórios: feminismo, memória e ditadura militar brasileira, limitações de teorias da comunicação e games, cidadania e cidade em tempos pós-modernos. Sem medo. Se Bakhtin amava variações, estas variações que li são amáveis. Elas fazem o que tenho defendido: inspiram-se em Bakhtin, mas de modo algum são aplicações de Bakhtin. E isso as valoriza, porque as aplicações em geral são redutoras, ao passo que textos inspirados por propostas relevantes costumam, como é o caso aqui, dar contribuições mais produtivas.

Essa terceira parte traz os seguintes textos: La comprensión dialógica. Una ética para la teoría feminista, de Adriana Boria; La escena que retorna: memoria y escritura, de Beth Brait; Aportes de Bajtín para una profundización analítica de la comunicación, de Eva Da Porta; e El cronotopo y la ciudad digital. Una lectura bajtiniana del videojuego Watch Dogs, de Ernesto Pablo Molina Ahumada.

Os autores têm as seguintes qualificações: Adriana Boria é professora titular plena de Teoría Literaria da Escuela de Letras Modernas, Facultad de Filosofía y Humanidades da Universidad Nacional de Córdoba; Beth Brait é docente e pesquisadora da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Ernesto Pablo Molina Ahumada é docente concursado da Facultad de Lenguas e da Facultad de Filosofía y Humanidades da Universidad Nacional de Córdoba; e Eva Da Porta é docente e pesquisadora do Centro de Estudios Avanzados da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad Nacional de Córdoba.

2 Primeira Parte (Intersecciones y migraciones)

Arán se ocupa, na Primeira Parte (Intersecciones y migraciones), do que poderíamos denominar leituras de leituras. Estas nos trazem nuanças insuspeitadas tanto das leituras que ela discute como dos textos dialógicos lidos. A partir de seu ponto de vista sociossemiótico crítico (que ficará claro em sua proposição das cronotopias literárias, p.135, e culturais, p.149), a autora lê a leitura que Julia Kristeva fez de Bakhtin em sua época (capítulo Julia Kristeva, audaz lectora de Bajtín), em que "audaz" tanto elogia como indica as por assim dizer liberdades que se deu Kristeva, cujas propostas de certo modo tornaram autônomo o texto como dispositivo significante, partindo dos textos dialógicos disponíveis na época. Isso, concordo com Arán, não diminui os méritos que tem Kristeva de precursora de uma leitura de Bakhtin, mas requer reservas.

Arán demostra a importância dessa leitura ao dar a palavra a Kristeva, para quem o dialogismo "seria talvez a base da estrutura intelectual de nossa época"2 2 Original: "sería quizás la base de la estructura intelectual de nuestra época". Esta e todas as outras traduções são minhas. (p.30). A perspectiva sociossemiótica crítica de Arán implica que o texto não é, para ela, autônomo, mas parte de um dispositivo mais amplo de produção de sentido. Contudo, mesmo discordando de Kristeva quanto ao estatuto do texto, Arán reconhece que a interpretação de Kristeva traz uma importante contribuição. Essa contribuição é estendida por Arán em seu texto, uma vez que esta propõe ali que o dialogismo poderia ser pensado como uma possível "nova ciência crítica do texto"3 3 Original: "nueva ciencia crítica del texto". (p.30), entendido "texto" como dispositivo enunciativo e não apenas como materialidade textual, que depende desta mas vai além dela.

Em Saussure, Bajtín, Verón: lingüística y semiótica, Arán discute algumas das diferentes implicações da leitura que Volochinov, Bakhtin e Eliseo Verón fizeram de Saussure. E ela o faz com uma meta ousada: mostrar que "a migração do pensamento do linguista genebrino continua ainda hoje gerando nova teoria"4 4 Original: "la migración del pensamiento del lingüista ginebrino continúa aún hoy generando nueva teoría". (p.35), em linha de continuidade com o que vimos em recentes congressos e seminários sobre Saussure no Brasil e em Genebra, por exemplo. Entenda-se "nova teoria" em sentido amplo, como leituras teóricas novas, desdobramentos, contestações de aspectos, releituras etc.

A autora vai ao centro da questão de se uma leitura refuta ou não uma dada proposta, ao opor-se de algum modo a ela, ou se "simplesmente" faz outra proposta, que, mesmo irreconciliável com a primeira, sustenta a legitimidade das duas. Tem sido infelizmente comum partir de propostas cujo centro difere e exigir de alguma delas que atenda ao centro de outra qualquer. Ora, se se faz a proposta Y em confronto com a proposta X, não se busca necessariamente uma refutação, mas elementos para, digamos, a criação de novos objetos partindo de novos pontos de vista.

Não posso exigir da sociocrítica, por exemplo, que seja aquilo que ela não se propõe a ser. Mas posso não aceitar nada dela e nem por isso a estarei refutando. A própria ideia de refutação parece estranha ao pensamento bakhtiniano, fundado na compreensão ativa, que é sempre valorada, legitimamente. Ao comparar três leituras, duas de várias décadas atrás (Bakhtin e Volochinov) e uma mais recente (Verón), Arán revela não apenas sua própria leitura de Saussure como as diferenças cronotópico-valorativas dessas leituras que discute, cada uma situada numa dada "cronotopia" (ver adiante).

Bajtín y Lotman: paradigmas y nuevos espacios culturales (p.47) é uma tentativa de Arán de pensar a possibilidade de uma proposta unindo Bakhtin e Lotman. Um dos grandes méritos da autora é partir da questão do sujeito e da linguagem nos processos de criação de sentidos tal como a veem esses dois pensadores. Estes, que muitos julgam, à primeira vista, distantes e mesmo irreconciliáveis, de fato diferem, mostra Arán, em termos de como, para que e a partir de que desenvolvem suas propostas, mas, mediante uma leitura cuidada, exibem alguns pontos de contato ou ao menos possíveis convergências.

Essa convergência, como ela deixa claro, não está nos textos, mas em sua leitura, exploratória e perfeitamente legítima. O trabalho do texto cria suas relações, instaura formas de ver. Como mostra Arán, pode-se dizer, de seu ponto de vista, que os dois pensadores veem o agir do sujeito, nos processos semióticos, como "um potencial historicamente ilimitado, aberto à mudança, à interação, à imprevisibilidade" (p.47)5 5 Original: "un potencial historicamente ilimitado, abierto al cambio, a la interacción, a la imprevisibilidad". . Nesta época em que se veem analogias entre autores lançadas a partir de termos "iguais", sem considerar o sentido que assumem em cada arcabouço teórico, esse tipo de esforço é extremamente recompensador: as propostas convergem de um dado ponto de vista, explicitado, não por analogias apressadas.

Por fim, em Reapropiaciones contemporáneas de Bajtín, Arán faz justiça a alguns outros leitores relevantes de Bakhtin, inseridos no que poderiam ser "estudos sociais": a sociocrítica Marie-Pierrette Malcuzinski (que, de sua coerente perspectiva, vê o dialogismo como dispositivo crítico de análise do texto em termos de intertextualidade, algo que Arán amplia em sua proposta) e a multiautora Iris Zavala (que, segundo Arán, apresenta "a espessura polifônica dos imaginários sociais"6 6 Original: "el espesor polifónico de los imaginarios sociales". , o que não é pouca coisa; p.65), ao lado dos teóricos-artistas brasileiros Arlindo Machado (que incorpora o dialogismo a uma poética multimídia) e Eduardo Kac (que propõe um dialogismo cibernético) - ambos explorando princípios bakhtinianos a fim de criar artefatos culturais que põem em destaque ou revelam, digamos, conclusões ou repercussões dialógicas.

A perspectiva de Malcuzinski está presente em outros textos da autora, como um dos diálogos constantes de Arán, e os trabalhos de Machado e Kac são relevantes para mostrar como as reapropriações não respeitam gênero nem esfera, ou mídia ou perspectivas teóricas. Mas vou destacar desse capítulo o comentário da visão personalíssima de Iris Zavala. Esta põe uma multiplicidade de autores a dialogar, de seu ponto de vista, com o Círculo, abordando o estético para, em decorrência, ir além dele e destacar o ético e o político contido nos escritos dialógicos.

Como mostra Arán, Zavala, precisamente tematizando as fronteiras, índice de fechamento, torna-as antes bordas, círculos que se tocam, índice de abertura, buscando precisamente propor, a partir também de Bakhtin, mas não só, um estudo do mundo em termos de "uma cultura sem fronteiras e um mundo de interseções"7 7 Original: "una cultura sin fronteras y un mundo de intersecciones". (p.71). A síntese dessa proposta é, nas palavras de Zavala, que são citadas por Arán: "[...] a palavra dialógica afirma que nada é conclusivo, que tudo caminha para um novo mundo, ainda não dito e não predeterminado" 8 8 Original: "La palabra dialógica afirma que nada es conclusivo, que todo se dirige hacia un nuevo mundo, aun no dicho y no predeterminado". (p.72). Esse ético e político, para além do estético, destaca Arán, tem a importância de denunciar "silêncios, exclusões, dominações e censuras"9 9 Original: "silencios, exclusiones, dominaciones y censuras". (p.72).

Arán encerra essa parte unindo, digamos assim, o ético, o estético e o político, deixando ao leitor duas questões: a primeira é a de como inserir o pensamento bakhtiniano, sem contradições, numa cultura que "vem tecendo uma nova trama na constituição dos sujeitos sociais" e, com ela, "novas linguagens para referir-se a ela" 10 10 Original: "está tejiendo una nueva trama en la constitución de los sujetos sociales y nuevos lenguajes para referirla". (p.78). A outra, questão de outra ordem mas igualmente relevante, é "São promissoras as diversas apropriações para o desenvolvimento da capacidade heurística do pensamento de Bakhtin?"11 11 Original: "¿Son promisorias las diversas apropiaciones para el desarrollo de la capacidad heurística del pensamiento de Bajtín?" (p.78). Voltarei a essas questões.

3 Segunda Parte (Categorías en discusión)

Na Segunda Parte (Categorías en discusión), temos os ensaios Dialogismo y producción de sentido, La pregunta por el autor, Géneros discursivos y géneros literarios, Cronotopías literarias e Cronotopías culturales. Apuntes para una categoría sociosemiótica de investigación. Percebem-se nesses textos propositivos apropriações e migrações feitas por Arán de conceitos do dialogismo.

A autora, partindo da questão do sentido no dialogismo, chega ao longo dessa parte à proposição da noção de "cronotopia", que se vincula, claro, com cronotopo, mas assume nuanças sociais, políticas e semióticas que enriquecem nossa compreensão desse conceito. Deve-se ler artigo por artigo, na ordem em que estão. A leitura feita assim mostra o percurso da autora e mesmo, uma arquitetônica para um diálogo entre dialogismo e sociocrítica.

Arán recorre, em Dialogismo y producción de sentido, especialmente aos seguintes trechos dos Apontamentos 1970-1971 de Bakhtin:

Chamo sentido as respostas a perguntas. Aquilo que não responde a nenhuma pergunta não tem sentido para nós [...] A índole responsiva do sentido. O sentido sempre responde a certas perguntas. Aquilo que a nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo. Sentido e significado. O significado está excluído do diálogo, mas abstraído dele de modo deliberado e convencional. Nele existe uma potência de sentido (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. M. Apontamentos 1970-1971. In: _______ Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.367-392., p.381).

Trata-se de trecho polêmico, que resume a concepção dialógica, mas incomoda alguns quando fala da exclusão do significado. Ainda que Bakhtin module ao dizer "mas abstraído dele de modo deliberado e convencional" e "Nele existe uma potência de sentido", mostrando os dois aspectos do significado: o de elemento da estabilidade do sistema da língua e o de recurso apreendido pelos processos de produção de sentido, há quem veja aí, por assim dizer, a negação da língua.

Como mostra Arán, é possível dizer que é refutada aí a noção de código, mas não a de língua. Arán explora o potencial desse trecho, e de outros conexos, mostrando poeticamente (e com rigor teórico) que, nessa concepção, "O sentido é 'universal' e 'eterno' enquanto ontologicamente fundante do humano em sua 'finitude', mas sempre se renova, na dialógica interpretativa que move a história" (p.87)12 12 Original: "El sentido es 'universal' y 'eterno', en tanto ontológicamente fundante de lo humano en su 'infinitud', pero se renueva siempre, en la dialógica interpretativa que mueve la historia." . O potencial de sentido se realiza, portanto, cronotópica e interativamente, para além do significado, mas sem prescindir dele.

Em La pregunta por el autor13 13 Publicado em Bakhtiniana, São Paulo, Número Especial: 4-25, Ene./Jun. 2014. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/17700/14622 , Arán defende a ideia de que, em sua concepção de autor, Bakhtin permite substituir o "sujeito civilizatório da Modernidade" por "um sujeito moral do discurso"14 14 Original: "sujeto civilizatorio de la Modernidad"; "sujeto moral del discurso'. . Nessa época, em que por vezes se destaca como positiva a fragmentação dos sujeitos, dando-se a impressão de que a identidade é tão fluida que podemos ser o que quisermos, é altamente relevante contestar esse sujeito civilizatório sem cair no sujeito todo-capaz que só serve à dinâmica desestabilizante da fase global do capitalismo. O "sujeito moral do discurso" é um sujeito concreto, responsável apesar de si mesmo. Essa descrição pode nos servir como forma de resistência ao sujeito flexível e alienado do capitalismo - que vende, sem moral, as diferenças palatáveis entre os sujeitos, a fim de manter a homogeneização necessária a economias de escala que buscam apenas maximizar os lucros.

A autora explora os diversos "vestígios" de autoria tematizados por Bakhtin, ou seja, as várias maneiras como este define o autor e seu agir (o "amor pelas variações"). Ao reconhecer que Bakhtin é um fundador de discursividade (seguindo Foucault), ela denomina essa discursividade, interpretando legitimamente Bakhtin, "alteridade intersubjetiva"15 15 Original: "alteridad intersubjetiva". . Ou seja, somos todos eus e outros, porque nossa alteridade se une à nossa subjetividade (tal como o fazem no outro) no complexo processo mediante o qual nos constituímos em sujeitos, na vida e no discurso. Destaca, assim, que eu e alter são relacionais, algo por vezes esquecido, embora aí resida a base da concepção dialógica: eu e outro se constituem mutuamente, para o bem ou para o mal, por bem ou por mal.

Esse tema me é muito caro, e o abordei em vários textos, fundados essencialmente na questão da forma arquitetônica (que no ensaio de Arán é apenas mencionada) em sua relação com a forma composicional, e sua mobilização pelo projeto arquitetônico de dizer e outros aspectos do gênero. Cabe destacar que Arán torna presente a questão da relação enunciativa como aspecto relevante do trabalho autoral. Há no texto nuanças e uma outra forma de ver a questão do autor em Bakhtin, bem como um excelente levantamento dos distintos momentos (e textos) de teorização sobre essa questão ao longo da obra do autor.

Em Géneros discursivos y géneros literarios, Arán une os principais fios da definição de gênero em geral em Bakhtin para pensar gêneros literários. De certo modo, nesse texto convergem elementos sobre o sentido em Bakhtin e a questão da autoria, dos ensaios anteriores, que a meu ver "pediam" que os gêneros entrassem em cena, uma vez que sentido e autoria implicam enunciados, e gêneros são formas de enunciado.

Para seus fins sociocríticos, Arán vê a proposta de Bakhtin como uma espécie de "sociologia dos gêneros literários", mas reconhece que ela é igualmente "o reconhecimento da função social de certos géneros"16 16 Original: "reconocimiento de la función social de ciertos géneros". (p.119). De minha perspectiva, trata-se da proposição de princípios para o reconhecimento de formas de interlocução; os gêneros organizam a fala e a escrita. Não que ela não o reconheça, mas, como seu ponto de vista requer certa centração em seus aspectos mais estáveis, julgo vital acentuar a necessidade de lembrar os aspectos variáveis.

Há um recomendável levantamento de momentos da obra dos autores da concepção dialógica em que a questão é abordada. Um ponto alto do texto é mostrar que os trabalhos de maturidade de Bakhtin mantêm, com alterações, a perspectiva do começo. A autora se integra à comunidade de comentadores, em que me incluo, que não vê rupturas nem uma súbita "virada linguística" nas obras de Bakhtin. Na verdade, a linguagem em uso está presente na obra de Bakhtin, ao lado da ideia de que a base do sentido é a relação eu-outro, desde o texto que recebeu o título de "Para uma filosofia do ato".

Um ponto de discordância, de meu ponto de vista, é a sugestão da autora de que Bakhtin teria proposto uma tipologia e de que esta teria sido elaborada por Volochinov. Minha leitura é de que os autores de fato fazem tentativas de inventariar gêneros, mas cedo desistem da ideia, dado que verificam serem infinitas as possibilidades de surgimento de gêneros segundo as necessidades das esferas. O que eles fazem é apresentar critérios e parâmetros para o entendimento dos gêneros, tanto em termos de estabilidade como de variação, e recorrem para isso ao inventário. Talvez o que Arán sugira seja um inventário, que é algo perfeitamente legítimo. Tipologia tem outras ressonâncias, sugerindo uma espécie de proposta de classificação dos gêneros, algo que a perspectiva de Arán não parece indicar.

Partindo da correlação entre as formas de presença dos gêneros e a realidade a que os gêneros têm acesso e recortam, a autora propõe sua sociocrítica dos gêneros, que recupera uma importante formulação de Bakhtin. Para Arán, Bakhtin "quer demonstrar que a linguagem é 'a arena de luta das classes sociais', como assinalou Voloshinov, e que depende do ouvido atento do criador o poder representar esses conflitos no romance"17 17 Original: "Bajtín quiere demostrar que el lenguaje es "la arena de lucha de las clases sociales" como había señalado Voloshinov y que depende del oído atento del creador el poder representar estos conflictos dentro de una novela. (p.132). Ela destaca assim, magistralmente, a questão da arquitetônica autoral. Merece destaque o fato de a autora mostrar a convergência de pontos de vista entre não apenas as várias formulações de autores do Círculo (Medviédev, Voloshinov e Bakhtin), como também as distintas formulações ao longo do tempo, ao lado da profícua exploração da concepção de "memória de gênero" e dos mecanismos de sua dialogização no âmbito das vozes sociais.

Além disso, Arán mostra e explora a relação que Bakhtin estabelece entre "fala viva" e gêneros literários. Sua maneira de abordar o tópico ecoa a formulação de Medviédev de que o cimento da relação da estrutura do discurso com a vida ideológica da comunidade é a avaliação social, a valoração. A autora mostra ainda de que maneira gêneros unem em tensão forças centrípetas e forças centrífugas; estas últimas dão conta da variação (o "relativamente" da definição) e, aquelas, da estabilidade.

Em Cronotopías literarias, Arán dialoga com o conceito de cronótopo literário e desenvolve a ideia de cronotopia, que vai ser retomada no texto final para sustentar a categoria de "cronotopia cultural". Descrevendo detalhadamente o conceito bakhtiniano, o que muito contribui para sua compreensão, a autora mostra o "grande valor heurístico e metodológico" (p.135) deste, destacando que para ele convergem "a noção de linguagem como materialidade comunicativa, do enunciado como acontecimento único e irrepetível e da consciência do sujeito histórico como postura de sentido"18 18 Original: "la noción de lenguaje como materialidad comunicativa, del enunciado como acontecimiento único e irrepetible y de la conciencia del sujeto histórico como postura de sentido". (p.136).

Arán afirma que trabalhar com o cronótopo levanta

outra questão problemática do ponto de vista metodológico: o reconhecimento e denominação do cronótopo dominante, assim como a seleção de seus motivos encadeados, é em larga medida atribuição do analista, de sua leitura e interpretação, assim como do corpus disponível. É para nós muito importante destacá-lo, porque não pretendemos que se naturalize o concepto como algo dado espontaneamente, facilmente reconhecível em sua imanência textual. Pelo contrário, trata-se de uma operação interpretativa, a partir de uma categoria semiótica, daquilo que consideramos uma mediação ou refração artística da experiência de real mediante a linguagem (p.145; grifos meus) 19 19 Original: "otra cuestión problemática desde el punto de vista metodológico: el reconocimiento y denominación del cronotopo dominante, así como la selección de sus motivos encadenados, es en buena medida atribución del investigador, de su lectura e interpretación, así como del corpus disponible. Resulta muy importante para nosotros destacar esto porque no quisiéramos que se naturalice el concepto como algo dado espontáneamente, fácilmente reconocible en su inmanencia textual. Por el contrario, es una operación interpretativa a partir de una categoría semiótica de lo que consideramos una mediación o refracción artística de la experiencia de real por el lenguaje". .

De fato, destacando assim o caráter do cronótopo de "centro organizador do mundo narrado", a autora mostra que, se isso permite ao analista discernir vários "vetores cronotopizados" e embora haja dominantes cronotópicas nos textos, cabe considerar que "as redes de motivos e figuras cronotópicas surgem da análise particularizada" de cada romance - o que tem grande relevância para as explorações do conceito. Como ela explica, não se trata de algo dado, mas de algo a ser conquistado com o trabalho analítico; não se trata de aplicar categorias, mas de tomá-las como parâmetros respeitando a especificidade dos objetos analisados.

No último ensaio dessa parte, Cronotopías culturales. Apuntes para una categoría sociosemiótica de investigación, a autora de certo modo retoma os vários fios que vem tecendo nesta parte do livro e propõe a categoria de cronotopia cultural. Trata-se de uma "categoria descritiva condensadora"20 20 Original: "categoría descriptiva condensadora". resultante da junção entre o conceito de cronótopo e princípios sociocríticos de análise semiótica (p.149) que foi elaborada para estudar fenômenos de produção de sentido nos ambientes culturais de uma perspectiva semiótica sociocrítica.

A autora parte da ideia de cronótopo histórico real de Bakhtin, e do conceito de cronótopo aplicado à estética, para pensar as cronotopias na vida concreta e não apenas nos discursos estéticos, visando empregá-la na análise semiótica da cultura. Ela aprofunda a distinção entre formações cronotópicas como fenômenos que surgem espontaneamente nos discursos (e na sociedade) e a designação descritiva (ou descrição) de formações cronotópicas nesses discursos (e urbes) como resultado de um trabalho da metalinguagem. A autora distingue assim entre as formas de refração estética das cronotopias e os usos concretos da temporalização e da espacialização na vida social em nossos dias, e destaca aquilo que distingue a linguagem-objeto da linguagem de descrição do objeto. As formas de refração estética das cronotopias são a base da linguagem de descrição, que é a maneira de a autora descrever a linguagem-objeto, configurada nos referidos usos concretos da temporalização e da espacialização da vida social.

A autora vincula a categoria de cronotopia cultural a manifestações da construção de identidades a partir da apropriação de "lugares de identidade social" (p.152), mas a restringe aqui a "locações públicas reconfiguradas simbolicamente como locais sociais mediante a intervenção de grupos que os transformam em espaços identitários"21 21 Original: "lugares de identidad social"; "emplazamientos públicos que se reconfiguran simbólicamente como lugares sociales por la intervención de grupos que los convierten en espacios identitarios". (p.152). E propõe uma espécie de classificação provisória das cronotopias: as espontâneas, pouco regradas e não oficiais, e as institucionalizadas, regradas, oficiais, algo que lembra os critérios de definição dos gêneros primários e secundários, respectivamente, bem como a distinção entre ideologia do cotidiano e ideologia "oficial".

Importa a Arán caracterizar as espontâneas como performativas (p.154-55), que define como tendo duplo sentido: de um lado, como "encenação", e, do outro, como "discurso que replica a ação que enuncia"22 22 Original: "como puesta en escena y como discurso que replica la acción que enuncia". . A Praça de Maio, por exemplo, foi ao longo do tempo objeto de diferentes cronotopias: o 17 de outubro peronista, espaço das Mães de Maio (de desaparecidos) e de Blumberg, tendo sido assim ressignificada nos termos aqui definidos por Arán. Essas cronotopias tanto representam, no sentido teatral, como descrevem as ações representadas de uma maneira que parece uma reencenação em discurso daquilo que é representado por elas.

4 Terceira parte (Campos de Exploración)

Temos nesta parte, como eu disse, textos de outros autores acolhidos por Arán, todos inéditos, a maioria escrita em espanhol, e um, de Beth Brait, traduzido do português por Ana Inés Leunda com a colaboração de Brait.

O primeiro ensaio desta parte, La comprensión dialógica. Una ética para la teoría feminista, de Adriana Boria, tem potencial para provocar polémicas, tanto no campo de alguns feminismos pós-modernos como de alguns tipos de leitores de Bakhtin que se prendem a tópicos e por vezes desprezam a(s) temática(s) e/ou esquecem a radicalidade da Filosofia Dialógica.

A autora propõe que elementos da ética bakhtiniana, notadamente a questão da compreensão, poderiam ser ressignificados no âmbito dos feminismos, e ao mesmo tempo servir de motivadores para novas conceituações feministas. O texto aproxima Butler e Bakhtin no tocante à questão da diferença radical, da alteridade, fundada na ideia de suspensão da síntese "como permanência das diferenças" (p.169)23 23 Original: "permanencia de las diferencias"; "el hacerse varón o mujer es siempre histórico, situado y en un sentido, casual". , propondo que a filosofia de Bakhtin pode ser um dos alicerces de sustentação da ideia de que "tornar-se homem ou mulher é sempre histórico, situado e, em certo sentido, casual" (p.169).

Destaco que poucos são os autores que se referem ao caráter construído da condição de homem. Nesse sentido, o artigo de Boria traz uma importante contribuição para a temática de gênero de uma perspectiva feminista sobremodo ponderada, capaz de colaborar para uma reflexão mais aprofundada de questões para as quais a autora mostra que a ética bakhtiniana pode ser considerada um dos pontos de apoio, em diálogo com outros pontos de vista. O respeito à diferença de constituição e à igualdade de estatuto tem na ética proposta por Boria um importante aliado. E essa é uma temática que a meu ver requer que se busquem, ao menos, parceiros de diálogo, em vez de descartar alguns e privilegiar outros.

Em La escena que retorna: memoria y escritura, Beth Brait analisa o livro Retrato Calado, de Salinas Fortes. Retrato Calado aborda os anos de chumbo, anos da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964, merecendo atenção não apenas por isso mas devido à sua arquitetônica peculiar, complexa. Brait discute questões sobre as relações entre memória vivida e memória contada, individualidade e coerções sociais, e sobre como o eterno retorno (na forma de citação, inspiração e presença dialógica mais geral) informa numa obra específica as relações entre memória e escritura, ou como se dizer dizendo outros. A partir da questão da retomada, da ressurreição de sentidos, o artigo mostra que a construção da arquitetônica do texto, que altera sutil e substancialmente o gênero em que se insere a obra, se funda na "corporificação da memória" (p.173)24 24 Original: "corporificación de la memoria". .

O tom individual de memórias não impede o autor de convocar numerosas vozes outras, vozes sociais, num processo no qual o discurso filosófico, por exemplo, "ao falar, fazer-se voz, tenta fazer aflorar aquilo que cala" (p.186).25 25 Original: "al hablar, al hacerse voz, intenta hacer aflorar aquello que calla." Retrato Calado/Falado são memórias que integram "a diversidade de discursos sociais" e a "dissonância individual" que nele se instala26 26 Original: "diversidad de discursos sociales y de la disonancia individual". (p.188), e não simplesmente memórias ou autobiografia. O livro analisado evoca a necessidade de não tomar textos simplesmente como exemplares desse ou daquele gênero, mas examinar a arquitetônica de sua construção para verificar como os gêneros são desestabilizados, recombinados, alterados.

O mesmo se aplica à autoria: quem é o autor objetivado do livro? Como mostra Brait, ele se constrói a partir de algo aparentemente óbvio quando um autor escreve sobre si, a "dificuldade [do autor] de ser ao mesmo tempo sujeito e objeto da enunciação"27 27 Original: "la dificultad de ser, al mismo tiempo, sujeto y objeto de la enunciación". (p.198), mas que, ao impelir Salinas Fortes a recorrer a diversas estratégias enunciativas, permite que Brait identifique haver ali as bases de uma redefiniçao de denominações como livro de memórias, autobiografia etc. para além do texto em si.

Eva Da Porta, em Aportes de Bajtín para una profundización analítica de la comunicación, explora possibilidades para que teorias da comunicação dialoguem com a teoria dialógica e, quem sabe, reúnam dados para uma reformulação profícua. A autora pisa em terreno movediço ao propor uma reflexão bakhtiniana sobre a comunicação, ou ao discutir teorias da comunicação e propor uma reformulação ou mesmo o abandono de alguns pressupostos da área. A proposta de Da Porta para estudar a comunicação pretende libertar a teorização desta do foco em mecanismos estritamente linguísticos e ver os processos comunicacionais como dinâmicas de instauração de discursos no seio da sociedade.

Sua reflexão traz um novo olhar tanto para pensar a comunicação como para repensar possíveis contribuições que a teoria dialógica pode obter do diálogo com teorias de estudo da comunicação. Essa reflexão corajosa leva o dialogismo a um diálogo tenso com teorias da comunicação em que, a meu ver, os dois têm a ganhar, mas que também pode fazer alguns, usando uma expressão antiga, franzir os sobrolhos.

Ernesto Pablo Molina Ahumada, em El cronotopo y la ciudad digital. Una lectura bajtiniana del videojuego Watch Dogs enfrenta, com sucesso, a partir de recursos bakhtinianos, notadamente o cronótopo, um "discurso" que remete, com base em outros recursos, ao livro de Orwell 1984. Trata-se do videogame Watch Dogs, que traz um sombrio cenário relativo à vida dos cidadãos na cidade, na tela e na vida.

Também este artigo retoma a questão da cronotopia. Ahumada define o cronotopo como uma grande contribuição para "ler as conexões complexas entre obra artística e contexto social" (p.221)28 28 Original: "leer las conexiones complejas entre obra artística y contexto social". , ou entre a arquitetônica da obra e a ideologia, e aborda o cronótopo tanto em sua concretização na cidade como em sua virtualização no jogo, mostrando os paradoxos aí criados ou implantados.

O estudo de Watch Dogs centra-se na questão da "instabilidade da experiência urbana contemporânea"29 29 Original: "inestabilidad de la experiencia urbana contemporánea". (p.221). O jogo é, por assim dizer, tomado como metáfora e metonímia do paradoxo moderno da reprodução, mediante a construção do espaço, de "lógicas urbanas globais, mas particularizadas pela própria interação do jogador [cidadão] nesse espaço" (p.221)30 30 Original: "lógicas urbanas globales pero particularizadas por la propia interacción del jugador en ese espacio." . Essa particularização, como mostra o autor, não é, no jogo ou na vida, tão livre quanto parece ser.

Em analogia com a estranheza da vida na moderna cidade global, que desarraiga os sujeitos ao tempo em que lhes dá a ilusão de estar integrados livremente a uma comunidade, o autor mostra que, no jogo, o jogador (cidadão) é na verdade colocado na condição de turista, estranho, estrangeiro, mero acessório (porque necessário, mas não suficiente, para ser cidadão pleno), objeto de despersonalização. O que lhe é permitido percorrer são os lugares seguros, lugares apropriados a percursos de quem não conhece a urbe nem se apropriou dela a ponto de andar por si, sem guia. Pode ele ir aonde quiser, desde que no âmbito dos roteiros preparados antecipadamente.

Em meus termos, está em jogo, e no jogo, a interpelação por vezes violenta e outras vezes sutil (mas sempre enganosa) dos sujeitos pela conformação da urbe, uma estruturação que os induzem a hipervalorizar seu papel precisamente para integrá-los à ordem geral. Como diz o autor, o jogo, tal como a cidade moderna, é paradoxal porque supõe a imobilidade dos jogadores (cidadãos) justo para lhes apresentar "uma cidade hiperestimulante com um protagonista em constante movimento"31 31 Original: "una ciudad hiperestimulante con un protagonista en continuo movimiento". (p.221).

Acabamento, mas não término

Como tentei mostrar, La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones é um livro de ensaios variadíssimos cujos fios condutores não vêm da linearidade do(s) texto(s), mas dos sentidos que interinstauram, de suas relações dialógicas em torno da teoria e análise dialógica. Essas relações são apresentadas, pressentidas, caladas, destacadas, e ocorrem tanto entre os textos da própria organizadora como entre estes e o de outros autores que se fazem presentes nos vários artigos, de modo direto ou indireto, ou mesmo destes últimos entre si. Para não mencionar diálogos outros dos próprios textos de base, comentados, explorados e mobilizados de várias maneiras.

Uso o clichê, talvez ressignificado: trata-se de um livro instigante, uma vez que cria novos elos na cadeia universal de diálogos sobre a qual a concepção dialógica teoriza, seguindo o que Bakhtin praticou: a valorização da variação, da variedade, a diferença radical como fator de enriquecimento da experiência vivida e de seu relato valorado.

Retomo aqui as duas questões apresentadas por Arán:

Como inserir o pensamento bakhtiniano, sem contradições, numa cultura que "vem tecendo uma nova trama na constituição dos sujeitos sociais" e, com ela, "novas linguagens para referir-se a ela" (p.78)32 32 Original: "está tejiendo una nueva trama en la constitución de los sujetos sociales"; "nuevos lenguajes para referirla". .

São promissoras as diversas apropriações para o desenvolvimento da capacidade heurística do pensamento de Bakhtin?33 33 Original: "Son promisorias las diversas apropiaciones para el desarrollo de la capacidad heurística del pensamiento de Bajtín?" (p.78).

Para uma brevíssima discussão da primeira, comecemos por examinar o sentido de "sem contradições". Trata-se não de normalizar o pensamento bakhtiniano, mas de inseri-lo de modo coerente, não contraditório ou incoerente. Destaco a "nova trama" de constituição dos sujeitos sociais; estes se constituem como o "sujeito moral do discurso", oposto ao sujeito todo-poderoso ou submisso.

O sujeito "bakhtiniano", assim, não pode tudo nem é incapaz de fazer algo: é um sujeito responsável, situado, mas capaz de iniciativa. E uma nova forma de concebê-lo requer novas linguagens. O livro que comento dá respostas ao como integrar sem contradições o pensamento de Bakhtin: interpretando-o e interpelando-o, com respeito por sua cronotopia e pela cronotopia do momento dessas ações, e sempre deixando claro o ponto de vista do qual se interpreta e interpela.

Isso responde igualmente à questão "São promissoras as diversas apropriações para o desenvolvimento da capacidade heurística do pensamento de Bakhtin?". Vemos antes de tudo o uso de "capacidade heurística", que faz justiça à ética bakhtiniana de não propor soluções prontas, mas sempre explorar parâmetros. Capacidade heurística é, como se sabe, capacidade de descrever e analisar, em vez de estabelecer categorias fixas e tentar identificá-las. Vimos que as apropriações feitas pelo livro são promissoras, demonstrando na prática formas legítimas de apropriação desse pensamento - em tensão, mas sem contradições irreconciliáveis.

  • 1
  • 2
    Original: "sería quizás la base de la estructura intelectual de nuestra época". Esta e todas as outras traduções são minhas.
  • 3
    Original: "nueva ciencia crítica del texto".
  • 4
    Original: "la migración del pensamiento del lingüista ginebrino continúa aún hoy generando nueva teoría".
  • 5
    Original: "un potencial historicamente ilimitado, abierto al cambio, a la interacción, a la imprevisibilidad".
  • 6
    Original: "el espesor polifónico de los imaginarios sociales".
  • 7
    Original: "una cultura sin fronteras y un mundo de intersecciones".
  • 8
    Original: "La palabra dialógica afirma que nada es conclusivo, que todo se dirige hacia un nuevo mundo, aun no dicho y no predeterminado".
  • 9
    Original: "silencios, exclusiones, dominaciones y censuras".
  • 10
    Original: "está tejiendo una nueva trama en la constitución de los sujetos sociales y nuevos lenguajes para referirla".
  • 11
    Original: "¿Son promisorias las diversas apropiaciones para el desarrollo de la capacidad heurística del pensamiento de Bajtín?"
  • 12
    Original: "El sentido es 'universal' y 'eterno', en tanto ontológicamente fundante de lo humano en su 'infinitud', pero se renueva siempre, en la dialógica interpretativa que mueve la historia."
  • 13
    Publicado em Bakhtiniana, São Paulo, Número Especial: 4-25, Ene./Jun. 2014. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/17700/14622
  • 14
    Original: "sujeto civilizatorio de la Modernidad"; "sujeto moral del discurso'.
  • 15
    Original: "alteridad intersubjetiva".
  • 16
    Original: "reconocimiento de la función social de ciertos géneros".
  • 17
    Original: "Bajtín quiere demostrar que el lenguaje es "la arena de lucha de las clases sociales" como había señalado Voloshinov y que depende del oído atento del creador el poder representar estos conflictos dentro de una novela.
  • 18
    Original: "la noción de lenguaje como materialidad comunicativa, del enunciado como acontecimiento único e irrepetible y de la conciencia del sujeto histórico como postura de sentido".
  • 19
    Original: "otra cuestión problemática desde el punto de vista metodológico: el reconocimiento y denominación del cronotopo dominante, así como la selección de sus motivos encadenados, es en buena medida atribución del investigador, de su lectura e interpretación, así como del corpus disponible. Resulta muy importante para nosotros destacar esto porque no quisiéramos que se naturalice el concepto como algo dado espontáneamente, fácilmente reconocible en su inmanencia textual. Por el contrario, es una operación interpretativa a partir de una categoría semiótica de lo que consideramos una mediación o refracción artística de la experiencia de real por el lenguaje".
  • 20
    Original: "categoría descriptiva condensadora".
  • 21
    Original: "lugares de identidad social"; "emplazamientos públicos que se reconfiguran simbólicamente como lugares sociales por la intervención de grupos que los convierten en espacios identitarios".
  • 22
    Original: "como puesta en escena y como discurso que replica la acción que enuncia".
  • 23
    Original: "permanencia de las diferencias"; "el hacerse varón o mujer es siempre histórico, situado y en un sentido, casual".
  • 24
    Original: "corporificación de la memoria".
  • 25
    Original: "al hablar, al hacerse voz, intenta hacer aflorar aquello que calla."
  • 26
    Original: "diversidad de discursos sociales y de la disonancia individual".
  • 27
    Original: "la dificultad de ser, al mismo tiempo, sujeto y objeto de la enunciación".
  • 28
    Original: "leer las conexiones complejas entre obra artística y contexto social".
  • 29
    Original: "inestabilidad de la experiencia urbana contemporánea".
  • 30
    Original: "lógicas urbanas globales pero particularizadas por la propia interacción del jugador en ese espacio."
  • 31
    Original: "una ciudad hiperestimulante con un protagonista en continuo movimiento".
  • 32
    Original: "está tejiendo una nueva trama en la constitución de los sujetos sociales"; "nuevos lenguajes para referirla".
  • 33
    Original: "Son promisorias las diversas apropiaciones para el desarrollo de la capacidad heurística del pensamiento de Bajtín?"

REFERÊNCIAS

  • ARÁN, Pampa Olga (Org.) La herencia de Bajtín: reflexiones y migraciones. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados. Universidad Nacional de Córdoba, 2016. Prólogo de Silvia N. Barei. 253 p. Edição impressa e Edição digital. ISBN 978-987-1751-40-2.
  • BAKHTIN, M. M. Apontamentos 1970-1971. In: _______ Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.367-392.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2017
  • Aceito
    25 Mar 2018
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