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Educação como percurso: por uma mestria ativa, criativa e inventiva na educação de surdos

RESUMO

O presente artigo objetiva trazer uma reflexão sobre o aprender e a relação com o mestre em salas de aulas em que alunos surdos aprendem por processos de interpretação, ou seja, com a presença de intérpretes educacionais. O artigo se desenvolve a partir de aportes teóricos da filosofia francesa alinhados a questões postas sobre o campo da educação, mais especificamente na educação de surdos em espaços inclusivos. As cenas escolares serão trazidas como componentes articuladores da teoria, dessa forma, as análises foram desenvolvidas ao longo de toda a produção textual. Duas obras literárias, O mestre ignorante de Jacques Rancière e O mestre inventor de Walter Kohan, foram apresentadas como forma de ilustrar figuras de mestres que alçam produzir encontros criativos com seus alunos, nos quais aprendem, ensinam, criam e constroem-se. Esses dois experimentos de mestrias anunciados, alinhados ao lugar híbrido que o intérprete educacional ocupa na escola, foram usados como espaço de diálogo para repensar o processo educacional, e o aprender como sendo da ordem da singularidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação de surdos; Relação pedagógica; Interpretação educacional

ABSTRACT

This article aims to draw a reflection on learning and on the relationship with the schoolmaster in classrooms in which deaf students learn through interpretation processes, i.e., with the presence of educational interpreters. The article develops from theoretical contributions of French philosophy aligned with issues posed in the field of education, more specifically on the deaf education within inclusive spaces. School scenes will be drawn as articulating components of the theory; hence, analyses were developed throughout the entire textual production. Two literary works, The ignorant schoolmaster by Jacques Rancière and The inventive schoolmaster by Walter Kohan, were presented to illustrate figures of teachers who beget creative encounters with their students, in which they learn, teach, create, and build themselves. These two mastership experiments announced, aligned with the hybrid position the educational interpreter occupies in the school, were used as space for dialogue to rethink the educational process and the learning as being part of the singularity.

KEYWORDS:
Deaf Education; Pedagogical relationship; Educational interpretation

Introdução

O presente artigo objetiva problematizar teoricamente o fazer educação como ato relacional entre sujeitos, saberes e línguas. Nossa reflexão volta-se especificamente para as ações proferidas na educação de surdos com a presença de tradutores e intérpretes de língua de sinais educacional (TILSE)1 1 Faremos uso da nomenclatura TILSE e intérprete educacional como sinônimos nesse trabalho. . Para esse texto é relevante apresentar a perspectiva do ato educativo como ação que ocorre no percurso, no movimento de encontros de saberes, de desejos, de enunciações entre sujeitos. Portanto, o “entre” é o espaço mobilizador da aprendizagem. A relação processual entre sujeitos e o aprender (com corpos/signos) evidencia a tamanha complexidade em salas de aulas, em todos os níveis educacionais, ainda mais em espaços no qual a instrução é mediada pela figura do TILSE. Ressaltamos que a atuação de intérpretes no campo da educação tem sido muito estudada, porém, frequentemente apagando as marcas subjetivas da presença desse outro ator no processo, suas interferências e suas práticas pedagógicas. Nossa hipótese é a de que a complexidade referente à presença de intérpretes educacionais e os paradoxos gerados desse (não) lugar - no fazer interpretação, ensino ou as duas coisas - se dão pela ação da própria inclusão de surdos em espaço escolar. Isso porque a instrução não é pensada na língua de sinais, promovendo, por vezes o apagamento da diferença surda e da especificidade da própria atuação do TILSE, no ato especificamente tradutório (MARTINS, 2006MARTINS, V. O que me torna invisível?: a psicanálise como ferramenta para entender o “apagamento” das diferenças na inclusão escolar de surdos. ETD (Educação Temática Digital): v. 8, n. esp. 150 anos de Freud, p. 134-150, 2006. Disponível em: [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/718]. Acesso em: 20 jul. 2017.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
). Além disso, o apagamento do intérprete como também um ator pedagógico talvez se dê pela dificuldade de entender o lugar ocupado por ele dentro da educação (se atua mais na mediação entre línguas e culturas ou na construção parceira do ensino). A indefinição sobre a função do intérprete se reflete em dúvidas sobre os campos de saber e reflexão de sua prática: se sua ação deve ser alocada, dentro dos estudos da educação ou nos da tradução. Mais uma vez a aposta aqui é da inter-relação desses dois espaços, já que sua atuação se dá no entre-lugar e, por isso, parece-nos apropriado pensar na junção destes dois campos de saberes.

Ao tecer tais reflexões questionamo-nos: como o tradutor e intérprete de língua de sinais educacional produzirá em seu corpo a fala do outro sem a criação de vínculo com o aluno surdo, o qual acompanha diariamente? Que tipo de ensino a educação inclusiva produz ao instrumentalizar o aprender na objetificação do corpo do TILSE? Inúmeras questões como estas têm sido trazidas para a reflexão quando se pensa a atuação do tradutor e intérprete educacional (LACERDA, 2009LACERDA, C. Intérprete de Libras: em atuação na educação infantil e no ensino fundamental. Porto Alegre: Mediação/FAPESP, 2009.; MARTINS, 2007, 2013MARTINS, V. Posição-mestre: desdobramentos foucaultianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, Campinas, SP, 2013.; SANTOS, 2014SANTOS, L. O fazer do intérprete educacional: práticas, estratégias, criações. Tese (Doutorado em Educação Especial), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, 2014.; ALBRES, 2015ALBRES, N. Intérprete educacional: políticas e práticas em sala de aula inclusiva. São Paulo: Harminia, 2015.): a função que esse profissional ocupa em sala de aula, os cuidados éticos diante de seu fazer e tomadas de decisões, a relação com os professores regentes, os modos de condução das atividades, se devem ser mais ou menos próximas ao aluno surdo, se o ensino deve ou não ter intervenção deste profissional, entre tantas outras inquietações trazidas em análises de pesquisas. Entretanto, algo saliente é que a lógica inclusiva, na qual o sistema escolar está fundado atualmente, promove determinados paradoxos (traduzir ou ensinar; inclusão ou exclusão), inevitáveis, ainda, quando se pensa na educação de surdos: nesse sistema escolar operacionalizado pela mediação de intérpretes e (como mencionado acima) não na docência direta ao aluno surdo em sua própria língua/cultura. Ao pensarmos o ensino como ato relacional, conforme se aposta neste artigo, é inviável negar as influências que o TILSE produz nas ações pedagógicas, no anseio de adequar as práticas de ensino, voltadas ao público ouvinte, para os alunos surdos. Essa adequação no ensino, da lógica ouvinte para a perspectiva surda, promovida pelos intérpretes educacionais, muitas vezes é colocada como não sendo própria da atividade do TILSE ou, ainda, como não sendo sua função. No entanto, entendemos que tais práticas podem aparecer como tentativas resistivas de busca por caminhos mais assertivos e menos hostis de promoção de inclusão dos alunos surdos, que vivenciam (ou deveriam vivenciar) o ensino pela língua de sinais. Isso só ocorre porque o intérprete educacional acompanha diariamente o aluno surdo, e estabelece, sim, vínculos afetivos e de aprendizagens com ele (MARTINS, 2008MARTINS, V. Educação de surdos no paradoxo da inclusão com intérprete de língua de sinais: Relações de poder e (re) criações do sujeito. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, Campinas, SP, 2008.; 2013MARTINS, V. Posição-mestre: desdobramentos foucaultianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, Campinas, SP, 2013.).

Diante dessa polêmica, e amparados pela perspectiva de ensino como encontro entre signos (DELEUZE, 2010aDELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.), bem como de educação como espaço produzido no movimento, no encontro entre corpos-sujeitos, tecemos esse texto no anseio de traçar reflexões sobre a educação de surdos produzida com a presença de TILSE a partir da lente filosófica de Gilles Deleuze. A tarefa é a de pensar a diferença como mobilizadora de aprendizados nos sujeitos e, com ela, alterações cotidianas: mudanças menores que só podem ser observadas quando atentamos aos micro-movimentos e às falas de sujeitos (os processos operacionalizados) em seus percursos. Para isso traremos ainda considerações de duas obras, em especial: O mestre ignorante, de Jacques Rancière; e O mestre inventor, de Walter Omar Kohan, atreladas, como mencionado, aos conceitos de Gilles Deleuze em Prost e os signos (2010a) e aos estudos de Sílvio Gallo (2008GALLO, S. Deleuze & a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., 2011GALLO, S. Sob o signo da diferença: em torno de uma educação para a singularidade. In: SILVEIRA, R. (Org.). Cultura, poder e educação: um debate sobre estudos culturais em educação. 2.ed. Canoas, RS: Ed. ULBRA, 2011. p.213-223., 2012)GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. In: Congresso de educação básica: aprendizagem e currículo: anais e resumos do evento. Florianópolis: UFSC, 2012. p.1-10. em artigos e obras que aprofundam temáticas sobre a educação como ato criador, pela multiplicidade de encontros possíveis, em torno de uma filosofia pautada na diferença.

O conceito de mestria é desenvolvido como aporte para pensar o processo do aprender com o outro, aplicando-o a salas de aulas em que temos estudantes surdos. A mestria aqui é entendida como prática de condução proferida no percurso do aprender. Alguns eventos convocados no interior do texto são usados como pilar para pensar a teoria proposta e referem-se ao cotidiano escolar de uma escola municipal inclusiva bilíngue, nomeada como escola-polo de surdos, no interior do estado de São Paulo, na etapa do ensino fundamental II, com a presença de intérpretes educacionais. As análises estão em diálogo no corpo do texto todo e não em uma única parte, ainda que destaquemos um acontecimento cotidiano escolar como elemento analítico no final do texto. Esse modo de escrita alinha-se à teoria proposta, pelas filosofias da diferença, a qual intenta produzir fraturas nos modelos, inclusive no modo de fazer pesquisa, por vezes, padronizado em modelos únicos.

No decorrer do artigo problematizamos o efeito da inclusão como ideologia perigosa e que pode conduzir à lógica do ensino pela mesmidade e apontamos algumas resistências políticas cotidianas contra a perspectiva hegemônica de ensino de surdos proposta pelo apagamento das diferenças. A inclusão de surdos, de modo geral, tem sido gerida para a massificação de um ensino pensado para um público ouvinte. O movimento de resistência surda segue para a ruptura desse modelo e a ressignificação do que sejam práticas, de fato, inclusivas (MARTINS, 2008MARTINS, V. Educação de surdos no paradoxo da inclusão com intérprete de língua de sinais: Relações de poder e (re) criações do sujeito. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, Campinas, SP, 2008.). É por esse motivo que esse texto partilha (metodologicamente), através de uma cena, eventos e experiências observadas de uma pesquisa que tem acontecido em uma escola pública municipal e inclusiva com projeto de educação bilíngue no ensino fundamental II, com a presença de intérpretes educacionais2 2 A pesquisa mencionada aconteceu (de 2015 a 2017) em uma escola municipal do interior do Estado de São Paulo, nomeada por escola-polo inclusiva bilíngue. A proposta dessa unidade é inovadora em partes, pois nos anos iniciais oferece salas com instrução direta na língua de sinais por meio de professores bilíngues e só após essa vivência, ou seja, no ensino fundamental II que os alunos surdos terão instrução por meio de processo tradutório, na presença de TILSE. No entanto, a atuação dos intérpretes tem sido promovida com formação continuada e há momentos de trocas entre professor regente e intérprete para trocas sobre o conteúdo ensinado em sala de aula. Por isso, afirmamos ser uma proposta diferente da comum (de inclusão), na qual a língua de sinais aparece mais no espaço do atendimento especializado que nas salas de aula. No entanto, a pesquisa, de modo geral, e seus resultados não serão apresentados em detalhes no texto, mas será usada em cenas como elemento articulador teórico. Além disso, detalhes da estrutura da escola-polo bilíngue de surdos também não serão aqui apresentados. . Na observação realizada, e pelas mudanças curriculares verificadas, afirma-se que essa escola tem buscado construir uma forma outra de ensino de surdos com a língua de sinais presente e não como um mero adereço escolar. Um espaço que tenta produzir uma ação menor, que de um modo revolucionário, tem operado de dentro da perspectiva inclusiva um ensino outro, ou uma heterotopia, se acionarmos o conceito foucaultiano, como condução e construção no mesmo espaço de espaços novos, desconhecidos. Foucault (2009)FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa Dits et al. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. (Ditos & Escritos; III) traz a figura do barco como alegoria para o conceito cunhado de heterotopia:

[...] e se imaginarmos, afinal, que o barco é um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel em bordel, chegue até as colônias para procurar o que elas encerram de mais preciso em seus jardins você compreenderá porque o barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos nossos dias, ao mesmo tempo não apenas, certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso que falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia por excelência (p.421-422).

O barco está no mar, mas não é o mar, produz em si outros lugares e, ao mesmo tempo, faz parte de um espaço comum que parece uma infinita continuidade. Por meio das viagens e nas paradas, o barco possibilita perceber outras paisagens, produz outras afecções, constrói outros sentidos e cria outros espaços. Essa alegoria do barco nos remete a dois pontos: um pouco do que a presença do surdo provoca numa escola comum; e um tanto do que a presença do TILSE produz no encontro com signos da língua portuguesa, ressignificando-os na língua de sinais. Os enunciados traduzidos pelo TILSE são dirigidos ao aluno surdo que os recebe a partir de suas significações e experiências visuais, tão distintas das perspectivas de um aluno ouvinte que tem suas experiências de mundo perpassadas pela relação sonora - que aprende e sente também o ensino por meio e com a sonoridade. O intuito do texto, portanto, é o de apresentar a ativação da resistência na inclusão de surdos, considerando-a como “[...] um conjunto de ações sobre ações possíveis” que operam no campo das experiências, inscrevendo comportamentos nos sujeitos (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, M. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In: DREYFUS, H; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense, 2010., p.287). Essas ações ocorrem como estratégias silenciosas que alteram o sistema escolar formatado, produzindo um ensino de surdos em que prevaleça a singularidade surda3 3 Singularidade surda se refere às práticas e experiências surdas dadas pela visão, pela língua de sinais na relação cultural desta com o sujeito surdo. Um olhar conferido não pela discursividade clínica que considera quase que exclusivamente a questão biológica e a falta de audição, tomando a surdez pela deficiência, não alargando o que de específico e de singular esses sujeitos trazem e reivindicam. . Portanto, apresentaremos as ações ofertadas nessa escola municipal, e como a presença de TILSE, com inúmeras ressalvas, tem sido favorecedora para produções de conhecimentos na escola, a partir do 6º. ano do ensino fundamental II, na parceria construtiva e inventiva com os professores regentes da escola.

1 Pressupostos teóricos sobre o conceito de mestria ativa, criativa e inventiva

1.1 Criação nas filosofias da diferença: um olhar sobre o aprender com signos

As filosofias da diferença serão aqui definidas como o “[...] pensamento que atravessa o campo das variações” (BRITTO; GALLO, 2016GALLO, S. Em torno de uma educação menor: variáveis e variações. In: BRITTO, M.; GALLO, S. (Orgs). Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Livraria da Física, 2016, p.1-12., p.11). Na filosofia francesa contemporânea, autores como Gilles Deleuze, Michel Foucault, Félix Guattari, Jacques Derrida debruçaram seus estudos no que concerne à proliferação de um pensamento pela diferença: na multiplicidade, nos espaços outros (ou heterotopia, como vimos com Foucault), na singularidade, na desconstrução como processo diferenciador. É nesse sentido que apontamos as filosofias da diferença, fincada em alguns desses autores, como máquina de guerra contra a mesmidade, como espaço de um nomadismo no pensamento e nas ações, pelas variações4 4 Em Mil platôs, Deleuze e Guattari (1997) pensaram a máquina de guerra dos povos nômades em luta contra o Estado, invenção dos sedentários (ver o Tratado de nomadologia, no volume 5 da edição brasileira). Aqui pensamento a própria filosofia da diferença como máquina de guerra na luta contra um pensamento e uma educação institucionalizados, que reproduzem o mesmo e nada criam de novo. . Vale ressaltar a afirmação de Deleuze e Guattari (1992)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. no que concerne ao ato criativo na filosofia. Os autores afirmam que três “potências do pensamento” produzem a criação: a ciência, a filosofia e a arte. A primeira contribui na criação de verdades centradas em funções analíticas, a segunda, na criação de conceitos que disparam o pensamento e a última, na criação de percepções, sensações e afecções. São, assim, espaços criativos de ordens distintas. Portanto, faremos uso dos conceitos filosóficos como ferramentas que criam lugares, ou platôs, para determinada produção. “Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes” (DELEUZE e GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p.31), e, sendo “criados, não são jamais criados do nada” (DELEUZE e GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p.31). Ainda sobre a construção conceitual, afirmam que a “filosofia apresenta três elementos”: “O plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), ou os personagens pró-filosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos filosóficos que ela deve criar (consistência). Traçar, inventar, criar, esta é a trindade filosófica” (DELEUZE e GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p.101).

Para este estudo, usaremos dois conceitos/ferramentas básicos, que serão norteadores para as análises de salas de aulas inclusivas com a presença de surdos e intérpretes educacionais: 1) o de educação menor; e 2) o do aprender por signos.

A educação menor aparece nos estudos de Gallo (2008)GALLO, S. Deleuze & a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. a partir de reflexões sobre a obra de Deleuze e Guattari (2014)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. e de Deleuze (1997)DELEUZE, G. Gaguejou. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997, p.122-129. 5 5 Deleuze e Guattari problematizaram a literatura menor. Sílvio Gallo, a partir do conceito “menor” na obra “Kafka - por uma literatura menor”, dos autores apresentados, aproximou a perspectiva para o campo da educação, criando o conceito, por deslocamento: o de educação menor. Neste trabalho faremos o mesmo movimento para pensar a ação menor na educação a partir de uma língua minoritária, a Libras - Língua Brasileira de Sinais, no processo de ensino de surdos, atuando na diferença da aula que originalmente é produzida e pensada na e para a língua portuguesa. . Deleuze (1997)DELEUZE, G. Gaguejou. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997, p.122-129. aposta que a língua menor é um catalisador de diferenças, variações na língua maior, e, portanto, espaço de resistência para a produção de uma arte linguística outra. E é nessa mesma linha que Gallo (2008GALLO, S. Deleuze & a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., 2016)GALLO, S. Em torno de uma educação menor: variáveis e variações. In: BRITTO, M.; GALLO, S. (Orgs). Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Livraria da Física, 2016, p.1-12. desenvolve seu estudo, apostando que experiências menores podem ser produzidas no campo da educação.

O conceito menor é uma criação coletiva da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. É uma espécie de “conceito-adjetivo”, na medida em que ele aparece, quase na totalidade das vezes, qualificando um campo de produção. Sua primeira aparição foi na obra que os filósofos escreveram sobre Kafka, publicada em 1975. E a aparição foi já em grande estilo, no título do livro: “Kafka - por uma literatura menor”. [...] uma literatura menor é diferente de uma literatura maior. Essa toma a língua como cânone e a explora segundo suas possibilidades estabelecidas; aquela faz rachar a língua, introduz diferenças, linhas de fuga, faz “gaguejar” (DELEUZE, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 5) as palavras. (GALLO, 2016GALLO, S. Em torno de uma educação menor: variáveis e variações. In: BRITTO, M.; GALLO, S. (Orgs). Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Livraria da Física, 2016, p.1-12., p.23-24; grifos e aspas do autor).

Tal perspectiva é potente para os estudos que tomam a escola como espaço a ser investigado e investido, sobretudo para a educação de minorias, como o caso dos surdos, que se constituem como grupos minoritários em termos de poder, e minorizados em termos dos efeitos políticos de grupos hegemônicos.6 6 Estando em posição de minoria, em um status menor, as comunidades surdas estão em condições de criar, posto que estão fora dos lugares de circulação dominantes. De modo que lutar pela inclusão nos espaços dominantes significa sair da posição minoritária e criativa, para ocupar um lugar de reprodução do mesmo entre os “maiores” e por essa razão as resistências cotidianas e a produção da ação pedagógica do intérprete em contexto inclusivo ao operar no não esperado (padrão), funciona como ações menores. No entanto, ao trazer o “menor” como potência de criação, Deleuze (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 5 e Deleuze e Guattari (2014)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., oferecem uma ferramenta que empodera a ação permanente. Uma educação menor é uma educação nas diferenças e para as diferenças, sem modelo, sem forma única, é, portanto, uma educação que acontece através da experiência. É um processo educativo que coloca acento nas experiências singulares dos estudantes, pois é ali que o aprender acontece.

Uma educação menor é trincheira (ou, para dizer como Deleuze e Guattari, toca, resultado de um devir-animal), espaço de resistência, não um programa. Colocar-se à deriva, como barcos em águas desconhecidas. E, na repetição destas experiências, criar o diferente [...] justapor, no mesmo espaço, a experiência, a aventura, a política como emergência do inusitado nas relações (GALLO, 2016GALLO, S. Em torno de uma educação menor: variáveis e variações. In: BRITTO, M.; GALLO, S. (Orgs). Filosofias da diferença e educação. São Paulo: Livraria da Física, 2016, p.1-12., p.43, grifos do autor).

Sobre os signos e seu papel nos processos de aprender, importa salientar que o ensino se faz por meio de produções e encontros entre sujeitos e corpos (enunciações, linguagem, arte, outro). Para Deleuze (2010a)DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., a concepção de signos está diretamente ligada à noção de força e violência nietzschiana, porque é exatamente esse outro novo que surge abruptamente no sujeito, e sua estranheza (pela novidade produzida) que força o movimento do ser ao pensamento e às descobertas, portanto, produz deslocamento, e ativa o sujeito a novos encontros. Como destacou Roberto Machado:

Trata-se, como afirma Deleuze, sempre de um encontro: encontramo-nos com signos que nos desconcertam, que nos arrebatam e nos colocam no trabalho da interpretação; por essa razão mesma, tampouco se poderia controlar esse desenvolvimento por um método. Ao contrário, como se verá, a experiência violenta dos signos não requer método, mas sim um aprendizado, que levará, enfim, ao reconhecimento, a partir da interpretação artística final, do funcionamento de uma nova imagem do pensamento (MACHADO, 2009MACHADO, L. A formação do conceito de imagem do pensamento na filosofia de Gilles Deleuze. Tese (Doutorado em filosofia). Programa de Pós-graduação em filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009., p.194; grifos do autor).

Foi em sua obra sobre Proust que Deleuze (2010a)DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. apontou a questão do encontro com os signos como sendo a base de todo e qualquer aprendizado, tendo-a retomado depois em Diferença e repetição (2010b). Só aprendemos com estes encontros e nestes encontros, pois são os signos que nos afetam: “O signo é sempre o sinal de um corpo; na verdade, mais do que isso, é ele mesmo um corpo, uma força ou uma potência de afetar” (MACHADO, 2009MACHADO, L. A formação do conceito de imagem do pensamento na filosofia de Gilles Deleuze. Tese (Doutorado em filosofia). Programa de Pós-graduação em filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009., p.195). A afecção produzida pelo signo nos tira do lugar comum, da mesmidade, e nos lança numa aventura insuspeitada, mobilizando em nós forças do pensamento que, colocando-nos em relação com estes corpos outros, produzem a passagem de um não-saber ao saber, que é como Deleuze (2010b)DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010b. caracteriza o ato de aprender: “[...] a passagem viva de um para o outro” (p.238).

Não se pode saber como um signo afeta cada sujeito (dada a ação da singularidade); por esta razão, Deleuze (2010aDELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., 2010b)DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010b. afirma que não há métodos para aprender. O que preside o aprendizado é o acontecimento do encontro e os acontecimentos são regidos pelo acaso. Podem-se planejar os encontros, mas nada nos garante que eles acontecerão; por outro lado, muitas vezes encontramo-nos com pessoas, coisas (signos, enfim) sem qualquer planejamento e aí, neste encontro, a relação acontece e o aprender se processa.

“Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender”, afirmou Deleuze (2010b, p.237)DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010b., por isso o ensino é como o navio do qual falou Foucault e que citamos páginas atrás para caracterizar a heterotopia. O aprender é de natureza heterotópica, produção de espaços outros no mesmo espaço da sala de aula, irrupção de acontecimentos e de encontros que se fazem na deriva do estar aí, na presença de outros, na relação com os outros. O professor pode planejar maravilhosamente suas aulas, mas isso apenas não garante que o aprender aconteça; ele se dará - ou não se dará - de diferentes formas e em diferentes tempos para cada estudante.

Por aí se vê que a questão do signo e a noção de uma educação menor estão intrinsecamente relacionadas: se esta última não possui modelos e não pode ser um modelo, é justamente porque está aberta aos signos, à multiplicidade de signos e à profusão de encontros que se produzem com eles, abrindo inúmeros horizontes e possibilidades. Que signos pode disparar a presença de um intérprete de língua de sinais numa sala de aula? Que efeitos produtivos, potencializadores do aprender, tal presença mobiliza? Em seguida, trabalharemos com dois exemplos filosóficos pela tematização do mestre, numa educação pensada como experiência singular, no contexto de uma educação menor, como efeito de relação com signos, os quais nos ajudarão a pensar tais questões.

1.2 O mestre ignorante e o mestre inventor: o aprender no percurso

Pode-se ensinar o que se ignora [...]

Jaques Rancière

Na obra O mestre ignorante, de Jacques Rancière, é apresentada a experiência vivida pelo educador francês Joseph Jacotot, na aventura de relação de instrução para uma turma de estudantes holandeses que não falavam o francês (sua língua materna), sendo que por sua vez ele não falava o holandês, experiência tal que põe em relevo os dilemas de uma sala de aula em que a barreira linguística poderia impedir o processo educativo. No entanto, Jacotot aposta em um laço mínimo, “uma coisa comum” (RANCIÈRE, 2007RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p.18), aposta no uso do Telêmaco (obra clássica francesa de Fénelon publicada em edição bilíngue) e, por meio de interpretação (de um intérprete), pede aos alunos para fazer a leitura, estudando via tradução (francês/holandês), e que produzam ao final do estudo um texto sobre suas leituras, em francês. O educador propõe um ensino, viabiliza recursos, mas encaminha o fazer para os alunos sem seu controle da instrução, sobre o texto e da língua. Como resultado, para além do esperado, e para sua surpresa, verifica que “[...] seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam saído tão bem dessa difícil situação [...]” (RANCIÈRE, 2007RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p.18-19). Nesse pequeno recorte da obra alguns pontos sobre a prática da interpretação em contexto de ensino podem ser analisados: primeiro, a importância do “laço comum” ligando mestre e aluno no processo, ainda que a situação linguística não favorecesse; segundo, a relação entre os dois estabelece-se não pela interpretação do que era para ser feito, mas pela ação do “desejo” do mestre, na entrega da obra, e da “ação” do aluno com o objeto em si. A relação docente não ficou atravessada pela presença do intérprete, que apenas informou o que era para ser feito. O encontro entre mestre e aluno deu-se na relação em torno do Telêmaco (material comum possível de acesso para os dois públicos, dada à edição bilíngue do material apresentado). Diante disso, há que ponderar a necessidade do encontro por meio de um laço comum entre docente e aluno. Situação interpelada quando a rotina diária escolar, no caso de surdos, se dá pela mediação constante de um sujeito, o intérprete educacional. Essa obra apresenta outro aspecto instigante, a saber: os recursos para deslocar o que seja a atividade de um mestre (para além do que a figura do professor já remete em si) como aquele que pode ensinar aquilo que desconhece.

Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito. Até ali, ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los gradativamente à sua própria ciência. [..] Em suma, o ato principal do mestre era explicar, destacar os elementos simples dos conhecimentos e harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato, que caracterizam os espíritos jovens e ignorantes (RANCIÈRE, 2007RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p.19)

Na análise de Rancière da experiência de Jacotot é destacado o fato de que, ao sair da rotina e da imposição da explicação (alguém só aprende quando um outro, que sabe, explica), se evidencia a possibilidade de uma emancipação intelectual. O mestre que ensina aquilo que ignora o faz porque é emancipado intelectualmente e confia que o aprendiz também o seja, por isso mobiliza nele as forças do aprender. Ainda que a proposta apresentada sobre o mestre ignorante, na busca pela emancipação, traga formas distintas de pensar a formação subjetiva, e nesse texto não aprofundaremos tais elementos, o modo de condução do processo de ensino realizado na obra parece interessante. Desloca a perspectiva conteudista de um professor que deve explicar os conhecimentos assegurando, controlando o que o aluno vai absorver. Esse ponto em si mesmo já é bem significativo para repensar formas de condução na relação professor-aluno. Para Rancière (2007)RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., “quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez” (p.37). Tal afirmação move a própria lógica escolar que se prende na avaliação do “aprendido” como algo fulcral do processo. E, ao que parece, o processo é mais importante do que o produto, que poderá ter variadas formas, segundo o interesse de cada um. Ainda nessa lógica de se ensinar para fazer sentido no corpo do outro, a presença do intérprete educacional na condução ou explicação de algo é o laço linguístico e de saber entre professor regente e aluno. No entanto, não sendo objeto (instrumento), esse laço se estreita entre intérprete educacional e aluno surdo e os caminhos podem ser outros, não orquestrados pelo professor regente. A instrução pela língua de sinais promove agenciamentos não previsíveis. Se observado pela perspectiva dos estudos da tradução, veremos que a interpretação e o movimento de versar de uma língua para outra caracterizam efeitos criativos, próprios da estrutura da língua alvo, que podem ser outros na língua fonte (CAMPOS, 2013CAMPOS, H. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: TÁPIA, M.; NÓBREGA, T. (Orgs). Haroldo de Campos: Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013.), como ocorrem nos efeitos da transcrição, por exemplo, em textos literários/poéticos.

Todavia, para além desse movimento da ação de versar de uma língua para outra, envolvendo elementos culturais e criativos, o enlace entre os dois personagens (intérprete educacional e aluno surdo) é necessário para que a relação pedagógica, de algum modo, se estabeleça. O mestre pode ignorar conteúdos, mas de algum modo ele liga-se ao aluno no processo ou no percurso e, como no exemplo da obra mencionada, uma língua comum entre os dois deve ser ativada para a articulação entre ambos na condução, que não é única, nem em um único caminho. A sala de aula com TILSE é um espaço que potencializa ver a necessidade do encontro com o outro por meio de signos para o aprender, tal qual Deleuze (2010a)DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. destacou: “a verdade depende do encontro com alguma coisa que nos força a pensar [...]” (p.15) e esse encontro se dá pela ação violenta do signo no sujeito. E é exatamente a violência que move o ser no ato do pensamento. E se esses signos se dão também pela linguagem, mediados pela língua, a língua de sinais, trazida na ação tradutória do TILSE, produz inúmeros signos dos quais o professor regente não terá controle. O mestre, nesse sentido, emite variados signos (imagens, palavras, músicas...) dos quais não controla os efeitos que terão no corpo do outro.

Com O mestre inventor, de Walter Omar Kohan, a relação entre mestre e aluno é da ordem da vida. Ela opera mudanças significativas para além do programado e, nesse sentido, alinha-se à perspectiva de Rancière (2007)RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. sobre a ação do mestre. Com este mestre inventor, a viagem, ou seja, a mudança permanente e as experiências de lugares outros, saberes outros, distintos dos consolidados, é ponto relevante na formação do mestre, que aprende nos espaços e com os sujeitos que menos achava ser potenciais de ensino. Na obra de Kohan, é com Thomaz, o negro, o estudante-estrangeiro no grupo, que Simón Rodriguez (o “mestre inventor” do título) aprende que “terá de viver, a partir do encontro com o pequeno Thomaz, uma nova vida” (KOHAN, 2015KOHAN, W. O mestre inventor: relatos de um viajante educador. Trad. Hélia Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p.35). Pela leitura se percebe outra concepção de mestre, aquele que se reinventa no processo, que cria com os alunos e percebe que o saber é construído na andança e em suas descobertas. Nesse sentido, a aproximação, o contato, o “olho no olho” é parte primordial para o ensino. Nas situações de surdos incluídos com intérpretes educacionais, esse ato de linguagem do corpo, da ordem do encontro, não pode ser apagado, senão temos o risco de apagar também a singularidade dos surdos e suas criações por meio da língua de sinais. “Simón Rodriguez inventa uma figura singular de educador, que poderíamos chamar de um educador errante, da errância de um educador” (KOHAN, 2015KOHAN, W. O mestre inventor: relatos de um viajante educador. Trad. Hélia Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p.60). Na invenção de outro modo de ser mestre, o autor nos apresenta possibilidades de pensar o ensino e o aprender que se dão por meio de tipos de relações construídas. Um ensino com dois sujeitos condutores (professor regente e intérprete educacional) não é algo comum, e por isso gera tantas inquietações do que deve ser feito e do que não se pode fazer. E ainda um ensino sem o apego ao controle, na errância e na deriva do que o aluno pegará para si, dos signos emitidos em sala, não é o mais trivial no campo da educação. Ao passo que pensar o ensino como afeto, ou seja, como relação com o outro, é sem dúvida traçar outros diálogos sobre formação, sobre escola e sobre processo escolar. Em relação às duas obras apresentadas:

Com Jacotot, Rodríguez parece ter compartilhado sua ocupação pelos excluídos. Ambos pensam a educação para os descartados, os analfabetos [...] Ambos estão empenhados em governar o menos possível a vida de cada pessoa e em criar as condições para que essa potência se atualize em todos, sem exceções (KOHAN, 2015KOHAN, W. O mestre inventor: relatos de um viajante educador. Trad. Hélia Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p.117-118).

Ainda que estas obras tragam concepções distintas de educação, de processo escolar, neste artigo o uso delas serve como espaço aberto para pensar a construção de processos de ensino e mestria que valorizem o percurso. Esses processos trazem a possibilidade do aluno como participante ativo e evidenciam o ensino como imprevisível, exatamente porque o encontro com a violência do signo e os efeitos que ele gera não são previsíveis nem mensuráveis. Se nos desapegarmos do controle do processo, talvez percebamos que muitos professores não são mestres ignorantes nem inventores, e que há inúmeros mestres, nestes dois sentidos, que não possuem formação docente. Sobre isso ainda, apostar na relação do intérprete educacional e no laço estabelecido com o aluno, na abertura para um ensino singular pela língua de sinais não é - e nem se pretende - tirar a figura do professor regente, mas anunciar que singularidades produzem encontros e que o TILSE em hipótese alguma será instrumento, já que, em sala de aula, produz saberes, mobiliza sua produção e que essa relação influencia (para o bem ou não) o processo de aprendizagem do aluno surdo. De maneira que apostar numa parceria entre TILSE e professor regente nos parece ser um passo importante para o aprender do aluno surdo em contexto inclusivo.

2 Interpretação e mestria na ação de tradutores e intérpretes de língua de sinais educacionais

Professor Regente: Hoje, em nossa aula de educação física, ficaremos na sala para uma avaliação oral. (O professor, segurando uma folha com 15 questões, inicia as perguntas direcionando-se para o grupo de alunos ouvintes. Faz a primeira pergunta rapidamente, lê as respostas e pede para o grupo ressaltar a correspondente)

TILSE: (Fica inquieta e vai até o professor regente) Lembra que conversei com o senhor que essa atividade avaliativa não favorece aos alunos surdos, porque até eu interpretar cada item e depois terem que olhar qual a resposta demora muito mais tempo que na língua oral. Não é produtivo. É uma proposta que pode favorecer aos ouvintes, mas não aos surdos. Entende?

Professor Regente: Não tem problema, você pode ficar com eles na segunda aula, ao invés de irem para a quadra, podem ficar mais tempo para resolução das questões.

TISLE: (com ar de incômodo questiona novamente) Mas professor, ainda assim essa atividade não favorece a construção dos alunos e eles não vão querer perder a quadra.

Professor Regente: (fica pensando um tempo) Calma, dará certo. Vai tentando a atividade com eles.

TILSE: (Volta para frente dos alunos e eles olham para ela sem entender o que está acontecendo. A intérprete coloca o papel de avaliação em uma mesa a sua frente e inicia uma conversa com os alunos surdos, daquela sala, sobre os conteúdos daquela avaliação. Não interpreta simultaneamente a fala do professor porque os alunos, na primeira tentativa, interveem com questões e dúvidas. Não consegue fazer como o professor espera. Fica até o final da aula em uma única questão das 15 propostas. Toca o sinal para o lanche, olha para a pesquisadora e diz): Não sei se deveria fazer assim, mas pelo menos os alunos participaram melhor da atividade, né? O que você acha que é certo fazer nesses casos em que o professor não entende as questões dos alunos surdos?

Pesquisadora: (Sorri sem uma resposta precisa para aquele momento, dá um abraço na TILSE, sai reflexiva!)

A cena acima será usada como condutora da problematização a seguir porque revela a imprevisibilidade do cotidiano e as decisões que são tomadas diante dos acontecimentos. Ao direcionar determinada atividade para os alunos surdos, não a proposta pelo professor regente, a profissional TILSE o faz a partir daquilo que observa e é levada na deriva da relação produzida com os alunos surdos. A perspectiva de uma educação com o outro e não como o outro (professor ou qualquer modelo prévio estabelecido) é o destaque da perspectiva proposta neste artigo em consonância com as teorias até então apresentadas, evidenciando que “[...] nunca aprendemos como, mas sempre com alguém” (GALLO, 2012GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. In: Congresso de educação básica: aprendizagem e currículo: anais e resumos do evento. Florianópolis: UFSC, 2012. p.1-10., p.4; destaque do autor), por meio dos encontros com signos, que na multiplicidade de dizeres (vozes e enunciações) se ligam a outra, agenciando a singularidade. São estes outros os intercessores que potencializam o aprender e o encontro do novo para o sujeito aprendiz (no processo criativo). Todavia, o ato, o aprender em si, é sempre individual e singular.

O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer seu próprio movimento [...] o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artista ou cientista; para um cientista, filósofo, ou artista - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. [...] sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê (DELEUZE, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p.156).

A aprendizagem aparece coletiva porque é efeito da multiplicidade dos encontros com as coisas, as palavras, os corpos: são estes os intercessores qualificados como tal. As ações cotidianas na escola, e apresentada pela cena acima, referem-se tanto à imprevisibilidade das ações diante do inesperado, quanto à necessidade de escolha e posicionamento diante dos acontecimentos. E nesse sentido o aprendizado é violência porque tira a inércia. Aprender a ser intérprete educacional e fazer escolhas tanto tradutórias quanto éticas se refere à lógica desse espaço aberto, desse oceano “inclusão” e com ele os “perigos” próprios e postos neste contexto. Diante disso, o adjetivo educacional conferido ao sujeito intérprete anuncia especificidades que devem ser direcionadas a esta esfera e dilemas que se apresentam exatamente pelas experiências possíveis trazidas em torno desse lugar. A aprendizagem é em si uma interpretação, estamos diante de múltiplas interpretações em salas de aula, o intérprete educacional interpreta discursos para si e possibilita múltiplas interpretações para o outro (surdo).

Baseando em Deleuze (2010)DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., o aprender é tomado como sinônimo de interpretação (aprender = interpretar) de signos que são emitidos por alguém e que se faz corpo-sentido quando há (cria-se) uma significação interpretada por quem o recebe. “Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos” (DELEUZE, 2010DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., p.4). Portanto, existe uma cumplicidade nessa ação da dupla emissão-recepção de signos na construção do aprender [...] (MARTINS, 2013MARTINS, V. Posição-mestre: desdobramentos foucaultianos sobre a relação de ensino do intérprete de língua de sinais educacional. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, Campinas, SP, 2013., p.153).

Como dizer o certo e errado diante de ações tão singulares e que revelam a orquestra de várias vozes: professor regente, intérprete educacional, alunos surdos, alunos ouvintes. Como apontado anteriormente em Deleuze (2010aDELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., 2010b)DELEUZE, G. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2010b., a proliferação de signos e o encontro com eles é o que mobiliza o aprender: encontro com alunos, encontro com produções linguísticas, encontro com produções corporais, todos estes espaços abertos que podem produzir sentidos não definidos previamente.

Mais uma vez, então, o modo de exposição deleuziano diz respeito aos efeitos que certa atividade provoca (no caso, o sentido diferencial que o signo porta consigo); e os efeitos do signo sobre nós se ligam certamente muito mais à metade livre e aberta da experiência de seu sentido não identificado do que à sua relação com o objeto que o emite (MACHADO, 2009MACHADO, L. A formação do conceito de imagem do pensamento na filosofia de Gilles Deleuze. Tese (Doutorado em filosofia). Programa de Pós-graduação em filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009., p.197).

Estamos falando da concretude da escola e da sala de aula. Um espaço feito por muitas pessoas, muitos saberes, conteúdos obrigatórios, papéis esperados (ou idealizados) para cada um dos personagens que compõem essa dinâmica toda. E para somar a todos esses pontos temos ainda os questionamentos como, por exemplo, se o intérprete educacional deve ser considerado profissional que se comporta dentro dos estudos da educação ou da tradução. O TILSE hibridiza-se entre esses dois lugares, já que a necessidade de conhecimento e estudos sobre a área da educação (ensinar e aprender) não são suficientes, pois o conhecimento linguístico da língua de sinais e as nuances sobre as estratégias tradutórias para a transição de sentidos, no movimento entre discursos de uma língua para outra, compõem também a atividade desempenhada por esse profissional e devem ser consideradas. Diante disso, retomamos novamente a necessidade de diálogo entre esses dois campos de saber e a transversalidade desses conhecimentos, sendo-o de extrema riqueza para a formação do intérprete educacional. Esse diálogo é percebido na afirmação de que

[A] a tradução não consiste, portanto, simplesmente na transferência de um código monossistemático para outro do mesmo tipo, mas de um processo de procura de equivalência entre desvios, por vezes extremamente complicados, desses códigos, que vêm a ser polissistemáticos. Daí dizer-se que o tradutor jamais é apenas bilíngue. Tem de ser plurilíngue para poder levar a cabo a sua tarefa e dominar as várias modalidades de expressões, a ponto de permitirem-se malabarismos, muitas vezes indispensáveis no exercício de sua profissão (THEODOR, 1976THEODOR, E. Tradução: ofício e arte. São Paulo: 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1976., p.20).

As escolhas tradutórias, os desvios necessários ou ainda “os malabarismos necessários” para a versão de uma língua para outra já destacam escolhas e inúmeras possibilidades, alinhados à imensidão de possibilidades não controladas na condução do ensino. Por esses motivos, derivamos que a atividade de TILSE se mostram ainda mais desafiadoras.

Não sei se faço certo ou errado, mas tem horas que percebo a importância de assumir um lugar diferente com os alunos, de direcionar o ensino, sabe? Os alunos perguntam coisas e dúvidas que, às vezes, o professor não entende, porque desconhece as questões linguísticas do aluno surdo e principalmente as dificuldades que trazem em anos anteriores que não usavam a Libras na escola. Eu explico para o professor a dúvida e depois retomo, às vezes de outros modos, com os alunos surdos. Assim é mais fácil. (TILSE, A. Escola-polo inclusiva bilíngue, 2016).7 7 Enunciação a partir de dados coletados em entrevistas com TILSEs.

Essa relação menor e singular que “liga” intérprete educacional e aluno surdo importa para o percurso e trilhas do aprender e revela as marcas da língua de sinais como produtoras de saber específicos da experiência de pessoas surdas. Novamente o surdo opera um desafio nas escolas ao revelar, mais uma vez, que seu funcionamento tem se dado pela lógica do igual ou do padrão majoritário: a língua portuguesa, o ensino para ouvintes, a relações de aprendizados pela lógica sonora (desde a alfabetização). As trilhas paralelas em torno de uma educação pela língua de sinais, numa lógica outra, pela experiência visual, são sem dúvidas anunciações de resistências cotidianas e práticas que marcam uma educação para as diferenças. As ações resistivas se dão em fragmentos de experiências singulares, mas oxigenam em muito as práticas corriqueiras.

Considerações finais ou diálogos possíveis neste texto

Nesse espaço final fizemos o movimento de alinhar questões perigosas e inquietantes que tentamos trazer ao longo da produção teórica discorrida neste artigo: 1) que o mestre se coloca como personagem que caminha com o aprendiz em seus descaminhos; que a errância e o não controle fazem parte do processo de aprender e, portanto, intérpretes educacionais, e suas atividades, produzem efeitos no aluno surdo pelo simples fato de partilharem momentos e possíveis encontros no dia a dia da sala de aula; 2) que a interpretação é da ordem da criação de sentidos e, portanto, o aprendizado se dá pela interpretação-criadora, nesse sentido aproximar os estudos da tradução ao campo da educação parece promissor; 3) que o TILSE se coloca no entre-lugar pela natureza híbrida dos campos apresentados, pela intermediação que deve fazer entre línguas, culturas, e por emitir signos (verbais e não verbais) que operam no imprevisível daquilo que o aluno surdo tomará para si e quiçá aprenderá; 4) que o aprender se dá no encontro com signos, na violência abrupta que o novo produz no pensamento e desloca o sujeito da tranquilidade do conhecido para um novo lugar. Portanto, aprender é movimentar-se.

Diante dessas considerações gerais, destacamos uma para o momento: a de que é possível ver ações singulares, ainda que pouco frequentes, mas potentes em força, nas quais a experiência surda de constituição pela língua de sinais e pela visualidade aparece, mesmo que em espaços em que a “opressão” ou um sistema aparentemente opressor se colocam em cena. A ação pontual de escolha de um caminho diferente do esperado pelo professor regente na cena apresentada é uma ilustração pequena da potência criativa que o cotidiano prova. A delicadeza de olhar para o processo do outro e permitir-se fazer outra coisa, para além do prescrito, marcam o tom inventor e ignorante da ação de um mestre intérprete. Que mais mestres ignorantes enxerguem nos alunos a possibilidade de emancipação pela ação ativa deles mesmos no processo do aprender. Talvez estas reflexões e a incerteza do que deve ser feito, e qual o papel (prescrição) exato para o intérprete educacional, revelem a necessidade de incerteza do próprio ato educativo: espaço aberto, oceano de possibilidades que se ramificam nos inúmeros encontros entre sujeito/corpos/saberes, sempre na direção da criação.

  • 1
    Faremos uso da nomenclatura TILSE e intérprete educacional como sinônimos nesse trabalho.
  • 2
    A pesquisa mencionada aconteceu (de 2015 a 2017) em uma escola municipal do interior do Estado de São Paulo, nomeada por escola-polo inclusiva bilíngue. A proposta dessa unidade é inovadora em partes, pois nos anos iniciais oferece salas com instrução direta na língua de sinais por meio de professores bilíngues e só após essa vivência, ou seja, no ensino fundamental II que os alunos surdos terão instrução por meio de processo tradutório, na presença de TILSE. No entanto, a atuação dos intérpretes tem sido promovida com formação continuada e há momentos de trocas entre professor regente e intérprete para trocas sobre o conteúdo ensinado em sala de aula. Por isso, afirmamos ser uma proposta diferente da comum (de inclusão), na qual a língua de sinais aparece mais no espaço do atendimento especializado que nas salas de aula. No entanto, a pesquisa, de modo geral, e seus resultados não serão apresentados em detalhes no texto, mas será usada em cenas como elemento articulador teórico. Além disso, detalhes da estrutura da escola-polo bilíngue de surdos também não serão aqui apresentados.
  • 3
    Singularidade surda se refere às práticas e experiências surdas dadas pela visão, pela língua de sinais na relação cultural desta com o sujeito surdo. Um olhar conferido não pela discursividade clínica que considera quase que exclusivamente a questão biológica e a falta de audição, tomando a surdez pela deficiência, não alargando o que de específico e de singular esses sujeitos trazem e reivindicam.
  • 4
    Em Mil platôs, Deleuze e Guattari (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 5 pensaram a máquina de guerra dos povos nômades em luta contra o Estado, invenção dos sedentários (ver o Tratado de nomadologia, no volume 5 da edição brasileira). Aqui pensamento a própria filosofia da diferença como máquina de guerra na luta contra um pensamento e uma educação institucionalizados, que reproduzem o mesmo e nada criam de novo.
  • 5
    Deleuze e Guattari problematizaram a literatura menor. Sílvio Gallo, a partir do conceito “menor” na obra “Kafka - por uma literatura menor”, dos autores apresentados, aproximou a perspectiva para o campo da educação, criando o conceito, por deslocamento: o de educação menor. Neste trabalho faremos o mesmo movimento para pensar a ação menor na educação a partir de uma língua minoritária, a Libras - Língua Brasileira de Sinais, no processo de ensino de surdos, atuando na diferença da aula que originalmente é produzida e pensada na e para a língua portuguesa.
  • 6
    Estando em posição de minoria, em um status menor, as comunidades surdas estão em condições de criar, posto que estão fora dos lugares de circulação dominantes. De modo que lutar pela inclusão nos espaços dominantes significa sair da posição minoritária e criativa, para ocupar um lugar de reprodução do mesmo entre os “maiores” e por essa razão as resistências cotidianas e a produção da ação pedagógica do intérprete em contexto inclusivo ao operar no não esperado (padrão), funciona como ações menores.
  • 7
    Enunciação a partir de dados coletados em entrevistas com TILSEs.

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  • THEODOR, E. Tradução: ofício e arte. São Paulo: 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1976.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2017
  • Aceito
    14 Ago 2018
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