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O eu-para-mim de intérpretes de língua de sinais experientes em formação

RESUMO

Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa de doutorado que discutiu a formação de intérpretes de língua brasileira de sinais (Libras) e língua portuguesa (LP). A pesquisa foi realizada em um curso de especialização em tradução e interpretação de Libras/LP, em uma instituição de ensino superior privada na cidade de São Paulo. Os participantes da pesquisa são intérpretes com, no mínimo, três anos de experiência. Em uma disciplina destinada ao aprimoramento da interpretação na direção Libras-LP, seis sujeitos interpretaram vídeos em duplas e, posteriormente, foram colocados diante da sua própria performance interpretativa por meio do dispositivo da autoconfrontação. Apresenta-se, aqui, como a posição dos sujeitos frente aos “outros de si mesmos”, reveladas na autoconfrontação simples, remete à alteridade constitutiva da atividade de trabalho, e a necessidade de um constante movimento de enfrentamento de si mesmo como outro para o aperfeiçoamento da prática profissional.

PALAVRAS-CHAVE:
Intérpretes de Libras; Formação; Autoconfrontação; Alteridade; Discurso

ABSTRACT

This article presents a section of a doctoral research that discusses Brazilian sign language (Libras) and Portuguese language (PL) interpreter training. The research was carried out in a specialization (lato sensu) graduate course in translation and the interpretation of Libras/PL at a private institution of higher education in the city of São Paulo. The participants of the research were interpreters with a minimum of three years of experience. In a class designed to improve Libras-PL interpretation skills, six subjects, in pairs, interpreted videos and were later shown their interpretive performance through self-confrontation sessions. This article presents how the position of the subjects, confronting the “other of themselves” through the simple self-confrontation, relies on the constitutive otherness of the professional activity and the need for a constant process of facing oneself as other in order to improve professional practice.

KEYWORDS:
Libras interpreters; Training; Self-confrontation; Otherness; Discourse

Não posso viver do meu próprio acabamento e do acabamento do acontecimento, nem agir; para viver preciso ser inacabado, aberto para mim - ao menos em todos os momentos essenciais -, preciso ainda me antepor axiologicamente a mim mesmo, não coincidir com a minha existência presente.

Mikhail Bakhtin

Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar o recorte de uma pesquisa de doutorado1 1 Trata-se da minha pesquisa de Doutorado (NASCIMENTO, 2016) realizada no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, sob a orientação da Profa. Dra. Elisabeth Brait (assinatura Beth Brait), com financiamento do CNPq (Processo: 164738/2013-4), a quem agradeço a possibilidade de desenvolver a pesquisa, da qual este artigo é resultado. Também agradeço à FAPESP (Processo 2017/21970-9) pelo Auxílio Regular à Pesquisa oferecido para o desenvolvimento do estudo atual "Tradução de Libras em materiais audiovisuais: usabilidade de janelas e sincronia verbo-visual no processo tradutório" que se relaciona, do ponto de vista da fundamentação teórica, com a tese. que tratou da formação de intérpretes de língua brasileira de sinais (Libras) e língua portuguesa (LP) (doravante ILP) com experiência e prática profissional. A pesquisa visou observar os modos como os ILPs experientes mobilizam, discursivamente, por meio do dispositivo da autoconfrontação, a relação entre os saberes prévios sobre a interpretação interlíngue na direção Libras-LP adquiridos na prática e os novos saberes adquiridos durante um curso de formação.

A pesquisa foi realizada em um curso de pós-graduação lato sensu em Tradução e Interpretação em Libras/LP ofertado por uma instituição de ensino superior privada localizada na cidade de São Paulo. Este curso soma-se a outros da mesma modalidade ofertados no Estado de São Paulo por diferentes instituições, como resposta ao Decreto 5.626/05, que determinou a formação de tradutores e intérpretes de Libras/LP em nível de graduação e, para os que possuem nível médio, cursos de educação profissional, cursos de extensão universitária e cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por secretarias de educação (BRASIL, 2005BRASIL. Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm]. Acesso em: 20 jan. 2010.
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).

O curso em que o corpus foi coletado oferece aos participantes uma carga horária de 388 horas, que são divididas em aulas presenciais (realizadas uma vez por mês, aos fins de semana - sábado e domingo, com oito horas por dia) e atividades supervisionadas à distância, com módulos organizados em dois núcleos: (i) o núcleo básico, que reúne módulos conceituais e teóricos sobre linguagem, línguas, tradução, interpretação, surdez e estudos linguísticos e discursivos da Libras e da LP; e (ii) o núcleo específico, que reúne módulos práticos sobre expressividade e práticas de tradução e de interpretação em diferentes esferas. O corpus foi coletado na disciplina Interpretação da Língua Brasileira de Sinais para a Língua Portuguesa, que está alocada no Núcleo Específico dentro do eixo de Prática em Tradução e Interpretação. A disciplina possui carga horária total de 20 horas, sendo 16 horas presenciais e 4 horas em atividades supervisionadas a distância, e objetiva propiciar aos estudantes em formação a vivência da interpretação de discursos em Libras para a LP na modalidade oral.

Todos os alunos matriculados no curso possuíam experiências mínima de três anos como ILP em diferentes contextos. De todos os participantes, seis intérpretes compuseram três duplas para uma atividade didática de interpretação na direção Libras-LP, no qual eles assistiram a um vídeo em Libras, sentados um ao lado do outro no meio da sala à frente da tela de projeção, e o interpretaram para a LP. Os vídeos em Libras tinham um tempo médio de cinco minutos e os sujeitos realizaram a interpretação alternando as posições durante a atividade como intérprete de turno (IT), aquele que detém a palavra no momento da interpretação, e como intérprete de apoio (IA), que é aquele que oferece ao IT suporte quando ele não compreende algo que foi dito pelo locutor, além de dar feedbacks imediatos sobre a atuação do colega (NOGUEIRA, 2016NOGUEIRA, T. Intérpretes de libras-português no contexto de conferência: uma descrição do trabalho em equipe e as formas de apoio na cabine. 2016. 211 f. Dissertação. (Mestrado em Estudos da Tradução). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.).

A atividade de interpretação aconteceu em dois momentos: no início da disciplina, antes da discussão teórico-prática sobre possíveis estratégias para a interpretação, e no penúltimo momento da disciplina, após os alunos terem vivenciado os conteúdos. O objetivo, com isso, foi identificar posteriormente, por meio da autoconfrontação, o saber prévio dos intérpretes sobre a interpretação na direção Libras-LP e as mudanças decorrentes do processo formativo. Para a atividade foram utilizadas como ferramentas: (i) três câmeras de áudio e vídeo posicionadas em três perspectivas objetivas; (ii) uma tela de projeção; (iii) um aparelho de projeção e computador.

Na última parte da disciplina, os alunos foram submetidos, então, à autoconfrontação simples, no qual as duplas participantes da atividade de interpretação assistiram aos vídeos de suas performances e realizaram anotações pessoais sobre o que acharam relevante. Na sequência, foi realizada a autoconfrontação cruzada, quando os colegas da sala e o professor/pesquisador comentaram sobre as atividades de interpretação realizadas pelas duplas. Os comentários foram baseados nas observações e anotações pessoais produzidas durante a exibição do vídeo da interpretação para o coletivo. Destaca-se que, no que diz respeito à autoconfrontação simples, foi considerado que os dois sujeitos, apesar de possuírem diferentes experiências, compuseram o protagonismo da atividade devido à alternância das posições de IT e IA durante a atividade de interpretação2 2 Chamamos atenção para este acontecimento porque, tradicionalmente, a autoconfrontação simples é promovida com apenas um participante da atividade observada (FAÏTA, 2005). Na adaptação que realizamos aqui, consideramos os dois como protagonistas da atividade de interpretação. .

Neste artigo, apresenta-se como a posição enunciativo-discursiva assumida pelos sujeitos diante de sua imagem na autoconfrontação simples remete à alteridade constitutiva da atividade de trabalho do ILP, e a necessidade de um constante movimento de enfrentamento de si mesmo como outro para o aperfeiçoamento da prática profissional. Discute-se, primeiramente, a tradução e a interpretação como atos enunciativo-discursivos de mediação com base no pensamento bakhtiniano e, na sequência, apresenta-se o recorte da análise da autoconfrontação simples tendo como lente a categoria bakhtiniana de eu-para-mim (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

1 Interação, alteridade e atos enunciativo-discursivos de mediação

As reflexões teórico-metodológicas realizadas por Bakhtin e seu Círculo, em suas diferentes obras, contribuíram de maneira significativa para a compreensão da interação discursiva. A insistência dos membros do Círculo, sobretudo de Mikhail M. Bakhtin e Valentín Volochínov, em olhar a linguagem em uso atentando para as relações interlocutivas são indicações de que um dos grandes interesses desse coletivo de intelectuais russos era a interação. A “teoria da interação bakhtiniana”, se assim podemos dizer, pode ser encontrada nas diferentes obras deixadas pelo Círculo. Todavia, para o objetivo deste artigo, percorreremos, apenas, duas dessas obras: Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (doravante MFL), escrita por Volóchinov e publicada pela primeira vez em 19293 3 Nesse artigo, será usada a recente tradução de MFL realizada por Sheilla Grillo e Ekaterina Vólkova Américo e publicada pela Editora 34 em 2017. Nessa tradução, que foi realizada diretamente do russo, a obra é assinada por Valentin Volochínov e não por Bakhtin/Volochínov como na primeira tradução brasileira realizada do francês para o português em 1979, hoje em sua 13ª edição. Destaca-se que a recepção da obra no Ocidente foi marcada pela tensão da assinatura. Algumas traduções mantiveram a autoria original de Valentin Volochínov enquanto outras, como a francesa e a brasileira, acrescentaram o nome de Bakhtin, deixando a obra, então, com dupla autoria. ; e O autor e a personagem na atividade estética, ensaio inconcluso de Bakhtin escrito na década de 1920 e reunido com outros textos na coletânea Estética da criação verbal.

Em MFL, que foi a primeira obra a chegar ao Ocidente (FARACO, 2009FARACO, C. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.), Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. discorre sobre signo, ideologia, consciência, palavra, língua, enunciado, interação e discurso citado. O autor persegue um método sociológico no âmbito da filosofia da linguagem discutindo, dentre outros importantes conceitos, a dimensão semiótico-ideológica da palavra e a sua relação direta e imprescindível com seu contexto de realização.

A concepção de linguagem mobilizada por Volochínov em MFL é fundada em uma episteme sociológica de linha marxista e considera as relações interlocutivas estabelecidas por sujeitos históricos e sociais que se posicionam, agem, projetam-se enunciativa e discursivamente a partir de quem são seus interlocutores. O conceito de interação explorado aqui “[...] é bem mais amplo do que outras concepções, dado que se concentra no projeto enunciativo ou relação enunciativa/interlocutiva” (SOBRAL, 2011SOBRAL, A. Gêneros discursivos, posição enunciativa e dilemas da transposição didática: novas reflexões. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p.37-45, 2011. Disponível em: [http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/9246/6370]. Acesso em: 20 fev. 2017
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, p.38) e toma a palavra como aspecto constitutivo da interação. Nesse prisma, a interação acontece a partir do posicionamento de sujeitos em determinadas situações sociais e a palavra é orientada a alguém do mesmo modo que ela procede de alguém. Toda a fala, nessa perspectiva, é endereçada; “toda palavra serve de expressão ao ‘um’ em relação ao ‘outro’” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.117). O que está em jogo nessa concepção de palavra e de interação são, então, as relações interlocutivas estabelecidas na situação social imediata de produção. É a partir do posicionamento do sujeito social frente ao seu outro, ou seus outros, que um projeto de dizer se configurará marcando, com isso, toda a situação comunicacional:

Não pode haver um interlocutor abstrato, por assim dizer, isolado; pois com ele não teríamos uma língua comum nem no sentido literal, tampouco no figurado [...]. Na maioria dos casos, pressupomos um certo horizonte social típico e estável para o qual se orienta a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos; isto é, para um contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, das nossas leis (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.205).

Observa-se, então, que a interação, em MFL, é definida pela (i) situação social mais imediata, que considera os posicionamentos dos interlocutores numa dada situação dialógica específica; (ii) direcionalidade da palavra, condição sine qua non para que a interação ocorra, ou seja, o locutor define sua forma de produção e expressão em função de quem a receberá, ainda que este interlocutor seja o próprio enunciador que encara a si próprio como seu outro no diálogo interior; (iii) horizonte social, ligado à época e ao grupo social em que a criação ideológica está sendo realizada e que se relaciona, nesse sentido, à contemporaneidade, à moral, aos costumes, às leis, etc.; e (iv) auditório social, que abrange as esferas de recepção e circulação do enunciado não apenas na situação imediata, mas que reverberará, em um dado momento, em outros discursos e enunciados futuros.

A elaboração teórica de Volóchinov em MFL aponta para um dos conceitos centrais no pensamento bakhtiniano para a discussão de uma “teoria da interação discursiva”: a alteridade. Esse conceito, entretanto, não é abordado apenas pelas alternâncias de turno dos parceiros, por exemplo, num diálogo, mas está ligado, acima de tudo, às diferentes formas como o homem se constitui sujeito, pela linguagem, na relação com seu outro.

Em O autor e a personagem na atividade estética, Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. destrincha os movimentos constitutivos do processo de autoria nas atividades estéticas em geral e debate o processo de constituição do sujeito. Nesse texto, o filósofo russo explora a significativa constituição alteritária do homem por meio de um rico debate sobre as diferentes condições de autoria e das posições que o autor assume em relação às personagens por ele construídas. Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. apresenta, ainda, conceitos centrais para a compreensão da constituição e formação do sujeito: o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e o outro-para-mim. O eu-para-mim corresponde às imagens e representações que o sujeito tem sobre si; são os aspectos psiquícos que lhe fazem perceber quem ele é. O eu-para-outro são representações construídas nas interações sobre quem o sujeito é para aquele com quem interage. E o outro-para-mim constitui-se nos modos como o sujeito enfrenta e encara o outro nas e por meio das relações sociais. A batalha da identidade - conforme apresentam Pires e Sobral (2013)PIRES, V.; SOBRAL, A. Implicações do estatuto ontológico do sujeito na teoria discursiva do Círculo de Bakhtin, Medvedev, Voloshínov. Bakhtiniana, São Paulo, v. 8, n.1, p.205-219, 2013. Disponível em: [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2176-457320130001000 13&script=sci_abstract&tlng=pt]. Acesso em: 20 fev. 2017.
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- acontece entre esses dois extremos: o ser para si e o ser para o outro. Segundo Bakhtin,

[...] esse ou aquele vivenciamento interior e o todo da vida interior podem ser experimentados concretamente - percebidos internamente - seja na categoria do eu-para-mim, seja na categoria do outro-para-mim, isto é, como meu vivenciamento ou como vivenciamento desse outro indivíduo único e determinado. [...] O excedente de minha visão em relação ao outro indivíduo condiciona certa esfera do meu ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas ou externas que só eu posso praticar em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim; tais ações completam o outro justamente naqueles elementos em que não pode completar-se (2010, p.22-23).

Toda identidade é marcada pela alteridade. Em Bakhtin, essa é uma relação imprescindível porque o sujeito só se constitui como tal graças à extraposição que ocupa em relação ao outro. Essa extraposição promoverá um movimento no qual o outro vê nele aquilo que ele não pode ver de si e, dialeticamente, ele vê no outro aquilo que, também, o outro não acessa em si mesmo. No pensamento bakhtiniano, então, a subjetividade e a identidade só podem ser constituídas por meio das interações sociais, as quais, por sua vez, são constituídas de linguagem, ou seja, trata-se aqui da intersubjetividade na qual o sujeito é um ser social e histórico, mas que, ao mesmo tempo, é responsável pelo seu agir no mundo.

Todo agir e dizer do sujeito envolve o conteúdo e o processo de seu ato, unidos pela entoação avaliativa (a que corresponde à resposta ativa do interlocutor): o sujeito avalia seu ato de acordo com seu contexto de interação, não havendo um valor absoluto já dado antes da interação, embora haja restrições contextuais para os valores possíveis (SOBRAL & GIACOMELLI, 2015SOBRAL, A.; GIACOMELLI, K. A concepção dialógica e os dois planos da linguagem e da constituição do sujeito: algumas considerações. Nonada, Porto Alegre, v. 24, n. 1, p.204-223, 2015. Disponível em: [https://seer.uniritter.edu.br/index.php?journal=nonada&page= article&op=view&path%5B%5D=1174&path%5B%5D=730]. Acesso em: 10 fev.2017
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, p.210-211)

As palavras alheias, dos outros, e as nossas não são iguais em todos os contextos. Elas são organizadas a partir das relações estabelecidas a priori e fundam nossas enunciações na vida cotidiana. Percebe-se, nessa direção, que o principal aspecto da interação são as relações entre sujeitos estabelecidas na e pela palavra que é, conforme destaca Volóchinov (2017, p.206)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., a “zona limítrofe” entre os sujeitos da interação. Se não há palavra, não há interação e, ao contrário, toda interação é imbuída do tecer a palavra em função de quem vai encontrá-la, no outro que vai recebê-la. Toda interação, nesse prisma, é constituída de um intenso movimento de alteridade porque “o quê e o como se diz supõem sempre o ‘outro’ em sua fundamental diversidade” (AMORIM, 2007AMORIM, M. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, M.; SOUZA, S.; KRAMER, S. (Orgs.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2007., p.11).

Há que se considerar, todavia, que o jogo interacional e, consequentemente, alteritário apresentado pelo Círculo considera a necessidade do uso de uma mesma semiose, de uma palavra comum entre diferentes enunciadores, pois ela é a ponte, o canal, que promove a interação. A palavra, no pensamento bakhtiniano é, por si só, mediadora de homens, de culturas e de linguagens. É nela e por ela que os homens interagem, constituem-se sujeitos, memorizam discursos e internalizam e externalizam vozes. Esse território comum na interação recupera, de cada lado da ponte, os enunciados outrora falados e os tornam novos, singulares, porque são atualizados em cada enunciação em um novo tempo, espaço, contexto e situação.

Diante disso, o que dizer, então, da necessidade interacional de sujeitos que não partilham de um mesmo sistema linguístico-enunciativo-discursivo? Em situações dialogais, como um falante, que precisa se comunicar emergencialmente em uma dada situação face-a-face, mas desconhece a língua do sujeito que está ali, diante de si, pode interagir com seu par? E quando um leitor não pode acessar uma obra desejada porque desconhece a língua na qual ela foi escrita? Há que se pensar, então, em atos discursivos que estabeleçam e construam a zona fronteiriça não estabelecida devido à ausência de uma significação partilhada. Esse é o caso da tradução e da interpretação interlíngue.

Todo ato de tradução e de interpretação são constitutivamente movimentos de encontro com o outro porque promovem a mediação de diferentes sujeitos, línguas, linguagens e culturas. O tradutor e o intérprete, agentes protagonistas dessas atividades, assumem uma posição de mediação e podem, devido ao conhecimento aprofundado das línguas e culturas dos envolvidos na interação a ser estabelecida pelo seu ato discursivo, construir pontes entre diferentes mundos e realidades. Podemos, nessa direção, conceber a tradução e a interpretação interlíngue como atividades discursivas que promovem a aparição da alteridade, ou seja, fazem aparecer, para os participantes da interação mediada, o outro, pela linguagem, outrora inacessível devido ao desconhecimento total ou parcial do plano linguístico utilizado pelo parceiro da interação.

Entretanto, emboram sejam atividades que promovam a interação de sujeitos, elas não podem - e não devem - ser observadas, do ponto de vista da realização, como sinônimas. Se observamos a interpretação interlíngue veremos que a tensão da mediação é intensificada porque lida diretamente com a imprevisibilidade das interações face-a-face. O intérprete é o sujeito que vive o constante drama de mobilizar um enunciado desconhecido, inacessível, porque é preciso esperar o outro dizer, primeiro, para poder interpretar. Entre o dizer do locutor e a compreensão do dito do intérprete, e a depender do gênero mobilizado isso se intensifica, vivencia uma espera angustiante atravessada pela dramática de um gerenciamento ainda intangível dos enunciados que podem afetá-lo total ou parcialmente, seja pela força valorativa do discurso enunciado pelo locutor, seja pela sua concordância ou discordância daquilo que é preciso mobilizar para o interlocutor.

Essa afetação pode ser identificada imediatamente no intérprete pelos participantes da interação por meio de alguns sinais como, por exemplo, uma pausa prolongada, a hesitação durante a produção da fala, a mudança sutil ou brusca das expressões corporais e facias ou a tremulação da voz. Isso é possível porque o intérprete está, como destaca Jakubinskiji (2015, p.63)JAKUBINSKIJ, L. Sobre a fala dialogal. Trad. Doris de Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. São Paulo: Parábola, 2015. ao discutir as formas dialogais mediatizadas e não mediatizadas em interações sociais, em uma situação de “percepção imediata, visual e auditiva, da pessoa que fala”. Essas respostas podem acontecer porque o dizer do outro é sempre desconhecido. Do mesmo modo, a reação e resposta do interlocutor, que também precisará ser interpretada em situações que sua atuação será bidirecional, está em penumbra (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. A experiência é formadora? Educação e Realidade, v. 35, n. 1, p.35-48, 2010. Disponível em: [http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/ 11030/7181]. Acesso em: 30 mar. 2016.
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) porque pode ser completamente diferente do esperado pelo locutor.

O desconhecimento do enunciado do outro é constitutivo de toda interação face-a-face. Os participantes da interação nunca sabem “o que vem por aí” em uma interação dialogal. Todavia, diferente de interações corriqueiras, o intérprete precisa estar sempre “pronto” para traduzir, no imediatismo, não só a fala, mas as visões de mundo que entrarão em contato e tensão durante a interação. O que significa que esse “enunciado em penumbra” passará por ele antes de chegar no sujeito-alvo colocando-o, então, numa posição de extrema tensão e responsabilidade.

A tradução, diferentemente da interpretação, lida com enunciados finalizados (embora não acabados, porque o acabamento será dado pelo leitor da obra traduzida escrita ou em vídeo), com um tempo maior de compreensão do dito, de pesquisa terminológica, com um movimento metarreflexivo, com a garantia da recursividade e da retomada e revisão (PAGURA, 2015PAGURA, R. Tradução e interpretação. In: AMORIM, L.; RODRIGUES, C.; STUPIELLO, E. (Orgs.). Tradução & perspectivas teóricas e práticas. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2015.) daquilo que foi traduzido. Essa diferença, todavia, não minimiza em nada a responsabilidade do movimento discursivo de mediação do enunciado, já que, diferente da interpretação, o discurso poderá ser revisitado, retomado e relido pelo interlocutor quantas vezes ele achar necessário (para o bem e para o mal). Em suma: enquanto a tradução mobiliza, na instância da linguagem, o já dito a interpretação mobiliza o vir a ser.

O tradutor e o intérprete, portanto, não são agentes externos, periféricos, em uma interação mediada. Não são máquinas de reprodução de frases ou transmutadores de códigos linguísticos transpondo sistemas (e é por isso que os tradutores e intérpretes automáticos e digitais são limitados e, em grande maioria, insuficientes para o objetivo de mediação das interações). O tradutor e o intérprete são, também, outros que ligam outros outros, o que significa dizer que o ato de linguagem desse sujeitos mediadores é, sem dúvida, marcado pela presença de enunciados ditos por outros sujeitos em diferentes contextos.

Nesse sentido, há valoração, posicionamento e reposicionamento a partir da posição que ele ocupa na interação como mediador frente aos diferentes interlocutores. Se a interação social, que é “determinada pela situação de fala, quanto a mais distante, definida por todo o conjunto das condições desssa coletividade falante” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.216), e que possui como produto central o enunciado, o tradutor e o intérprete são enunciadores em potencial que não só dialogam linguística e culturalmente com seus públicos, mas constroem as relações dialógicas, que “são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas, carecem de momento dialógico” (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013., p.209), entre os diferentes falantes que demandam deles os seus serviços.

Assim como a prática desses profissionais, o processo formativo constitui-se e clama por um constante movimento de promoção da alteridade. Para tornar-se tradutor e/ou intérprete, é necessário dominar os sistemas linguísticos falados pelas comunidades que se pretende mediar, bem como sua dimensão cultural expressa, se pensarmos na linguagem, em produções discursivas em diferentes gêneros. Além desses, alguns outros saberes são necessários a esses profissionais como, por exemplo, o saber procedimental da tradução e/ou da interpretação, ou seja, da atividade linguageira em si, e o saber declarativo, que diz respeito ao saber dizer aquilo que se sabe fazer (HURTADO ALBIR, 2005HURTADO ALBIR, H. A. A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In: PAGANO, A.; MAGALHÃES, C.; ALVES, F. Competência em tradução: cognição e discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.).

A pesquisa aqui apresentada focou, apenas, a interpretação interlíngue justamente por assumir-se, com base na discussão acima, que a tradução e a interpretação são atividades distintas conceitual e operacionalmente. O dispositivo da autoconfrotação, utilizado na pesquisa, reiterou a necessidade de se pensar práticas pedagógicas específicas à interpretação e, também, o modo como os sujeitos, que vivenciam essas práticas, se alocam discursiva e enunciativamente frente a sua prática interpretativa e especificidade da imprevisibilidade deste ato discursivo de mediação.

2 A autoconfrontação como dispositivo revelador da alteridade: o eu-para-mim e os saberes sobre a interpretação da língua de sinais

O dispositivo da autoconfrontação possui dimensão enunciativo-discursiva e alteritária porque convida/convoca sujeitos a observarem uma certa atividade retomando os discursos nela produzidos e, também, a olharem a si mesmos produzindo novos discursos sobre aquilo que eles apreendem da atividade por eles realizada. Faïta (2005, p.70)FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional. Trad. Maristela Botelho França, Maria da Glória Correa di Fanti e Marcos Antonio M. Vieira. Rio de Janeiro: Imprinta Express, 2005., ao discutir o uso deste dispositivo em análises de situações de trabalho, salienta que as tramas discursivas constitutem a “[...] confrontação entre o sujeito, pego (traído, poderíamos dizer) por suas práticas, e a forma com que as práticas aderem às maneiras de ser e de agir estabilizadas pelo meio de trabalho, ou ao contrário dele, se distinguem”.

Nosso corpus revelou uma rica e profícua arena dialógica com marcas de alteridade por meio de estruturas de citação, pois são sujeitos singulares enunciando “outros de si mesmos” e ouvindo outros falando sobre eles. Esses sujeitos, por sua vez, mobilizaram, por meio de uma atividade interpretativa, discursos de enunciadores outros numa rede de significação e de sentidos marcada, dentre outros aspectos, pela consciência do espaço-tempo de cada participante, ou seja, todos sabiam que estavam na condição de sujeitos em formação e que estariam colocados diante de seus próprios saberes enquanto intérpretes. Mesmo aqueles que estiveram na posição de, apenas, “expectadores” das duplas que assumiram a posição de intérpretes no centro da sala e que não participaram da atividade interpretativa em si, foram sujeitos atuantes na arena alteritária sobre o saber interpretivo advindo da prática e protagonistas do encontro destes saberes com os que foram mobilizados no contexto formativo. Isto significa que mesmo estes participantes, alocados enunciativamente em uma extraposição em relação aos que se colocaram como protagonistas da atividade interpretativa, se viram diante do desafio de encarar o outro, enquanto colega de trabalho e de formação, na perspectiva de enunciar sobre o que ele estaria fazendo e, com isso, enxergar neles reflexos e refrações de seus próprios saberes e experiências.

Na autoconfrontação simples, essa extraposição é bem delimitada e visível, uma vez que é o sujeito da atividade frente-a-frente consigo mesmo que narra, comenta, descreve e revivencia aquilo que observa. Esta vivência gera diversos tipos de comportamentos e sensações que vão de aceitação à repulsa daquilo que está sendo assistido pelo sujeito, mobilizando-o, então, à produção de discursos que revelam como o seu eu-para-mim se constitui antes e durante a observação. Esse eu-para-mim, entretanto, revela-se e materializa-se do discurso interior para o discurso exterior quando o sujeito se desloca de sua posição de retratado para a de contemplador. A exteriorização desse discurso não acontece apenas, como defendeu Jakubinski (2015, p.68)JAKUBINSKIJ, L. Sobre a fala dialogal. Trad. Doris de Arruda C. da Cunha e Suzana Leite Cortez. São Paulo: Parábola, 2015., pela dimensão verbal, mas “às vezes, mímicas e gestos desempenham um papel de réplica no diálogo, substituindo, assim, a expressão verbal”, ou seja, a forma como o autoconfrontado reage, do ponto de vista corporal, também revela porções do enfrentamento de seu eu-para-mim.

Na autoconfrontação realizada com a primeira dupla, os sujeitos assistiram ao vídeo sem comentar nada um com o outro durante a exibição e ficaram com os braços cruzados sobre a mesa e com o corpo inclinado em direção ao vídeo em boa parte do tempo. Com poucas reações durante a exibição e com muita atenção, a dupla assistiu do começo ao fim sem pronunciar palavra alguma. Ao final do vídeo, o professor/pesquisador (PP) perguntou se elas gostariam de comentar o que viram primeiro ou ir direto para o segundo vídeo. A proposta do PP foi de apresentar primeiro os dois vídeos para que depois as duplas comentassem, mas, nesse caso, a primeira dupla achou melhor falar do primeiro vídeo antes de assistir ao segundo. Diante disso, Cristiane e Rose4 4 Os nomes utilizados para identificar os sujeitos participantes da pesquisa neste artigo, assim como na tese, foram seus nomes reais. O uso foi autorizado pelos participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O objetivo de manter os nomes reais foi o de dar autoria aos enunciados analisados, uma vez que, em outros momentos, imagens dos sujeitos enunciando em Libras e em LP simultaneamente também foram utilizados. decidiram falar sobre o que viram de si mesmas no vídeos apresentados:

EXCERTO 1
AUTOCONFRONTAÇÃO SIMPLES D15 5 Os dados orais foram transcritos de acordo com a proposta dos estudos realizados pelo Grupo NURC/USP (PRETTI, 2003).

A dupla decide, como podemos ver no diálogo recortado acima, comentar o primeiro vídeo antes de prosseguir com o segundo. A primeira enunciação foi a de Cristiane que foi completamente supreendida pela sua perfomance na primeira atividade de interpretação. Essa surpresa foi marcada, especialmente, pela forma com que consegiu realizar a interpretação na direção Libras-LP. Por meio de uma retomada do discurso proferido pelo PP durante as aulas sobre o saber da prática presente em todos os alunos daquela turma e da citação direta “nossa você foi muito bem, você interpretou muito bem”, que demonstrou a reação e a repercurssão dos colegas diante de sua performance, Cristiane assumiu sua posição enunciativo-contempladora de si mesma. Antes da autroconfrontação, o eu-para-mim de Cristiane era constituído da certeza da impossibilidade de realizar a interpretação na direção Libras-LP e reforçado, sobretudo, pela relação que ela mesma estabelecia com esta atividade. Enquanto fonoaudióloga e intérprete, sua experiência em interpretação era menor que a de comunicação direta com surdos em contexto clínico, embora já tivesse experiência em alguns contextos como intérprete.

Quando o PP fez o convite nos momentos inicias da primeira aula para que três duplas fossem formadas para a realização da atividade, Cristiane foi a última a se voluntariar. Sua parceira, Rose, foi quem a convenceu a se juntar a ela nessa tarefa e enquanto se direcionava para a cadeira no centro da sala, enunciava o quanto não sabia realizar a interpretação nesta direção e que ao contrário, LP-Libras, era muito mais confortável. O medo de Cristiane revelado no preparo da gravação do primeiro vídeo, mostrava um eu-para-mim marcado pela possibilidade - e apenas possibilidade já que, segundo ela, foi a primeira vez, de fato, que ela encarava algo desse tipo - de não conseguir realizar a interpretação. O seu discurso interior era o da falta de capacidade e competência para realizar a interpretação, perceptível pelo enunciado “nem eu esperava isso de mim mesma, então eu também me surpreendi comigo mesma...”, ou seja, ela, assim como seus colegas, ficou surpresa com sua performance.

A autoconfrontação de Cristiane neste primeiro vídeo se constituiu pela surpresa com aquilo que viu de si, com a repercursão do seu feito perante os colegas e com sua habilidade e seu saber diante do imprevisível, durante a interpretação. Ao assumir um extra lugar em relação à atividade realizada, Cristiane pôde ver que os medos que possuía para fazer a interpretação povoavam o seu imaginário e pouco correspondiam à realidade da sua condição de intérprete já que, conforme narra, essa havia sido sua primeira vez em atuação na interpretação de Libras-LP com um texto de alto grau de formalidade. Para Bakhtin (2010, p.35)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., “enquanto a representação de outro indivíduo corresponde plenamente à plenitude de sua visão real, minha auto-representação está construída e não corresponde a nenhuma percepção real; o essencial no vivenciamento real de mim mesmo permanece à margem da visão externa”. Quando Cristiane deslocou-se da posição de sujeito da atividade para a de sujeito contemplador de si, pôde dar ao seu eu-intérprete um acabamento desconstruindo a autorrepresentação prévia de incapacidade. Esse acabamento, conforme se vê em sua enunciação, foi marcado pelo lugar que ocupou fora da atividade de interpretação. Além de não ter vivenciado a interpretação na direção Libras-LP antes, Cristiane parece nunca ter-se visto na condição de intérprete o que, conforme sua narrativa, a surpreendeu positivamente. Isto significa que sua identidade profissional nesta função passou de um vir-a-ser para um já-sou, mobilizando-a, por meio da formação e da autoconfrontação, a um eu-para-mim como trabalhador do campo da interpretação da língua de sinais com potencial habilidade para mobilizar discursos na direção trabalhada na disciplina em questão.

O enfrentamento do olhar alheio na situação construída para a atividade didática foi outro aspecto bastante relevante para os intérpretes. A avaliação, aspecto constitutivo de qualquer situação comunicativa, mas que, nesse caso, salientava-se devido às características do contexto formativo, pesou sobre os sujeitos revelando um eu-para-mim temeroso e receoso com o olhar do outro. Carol, da segunda dupla, expressou essa sensação quando falava e justificava algumas das escolhas realizadas durante a atividade interpretativa:

EXCERTO 2
AUTOCONFRONTAÇÃO SIMPLES D2

No excerto acima, Carol apresenta seu desconforto nas situações em que percebe uma avaliação programada, tal como a autoconfrontação, mesmo não objetivamente, propõe. A oportunidade, nesse sentido, de vivenciar o confronto com sua própria atividade possibilitaria, em sua visão, uma mudança no seu eu-para-mim, uma oportunidade de testar seus limites enquanto intérprete e enquanto sujeito que teme o olhar do outro. O fato de Carol ter aceitado assumir a posição de intérprete na atividade proposta mostra o quanto o dispositivo da autoconfrontação no contexto formativo impulsiona os sujeitos a testarem seus limites, suas resistências e medos já que a experiência de autoconfrontar-se pode “[...] nos impulsionar a um deslocamento para explorar, de forma inédita, as razões de nossas escolhas” (FAÏTA, 2005FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional. Trad. Maristela Botelho França, Maria da Glória Correa di Fanti e Marcos Antonio M. Vieira. Rio de Janeiro: Imprinta Express, 2005., p.73)

Considerações finais

A distância entre o esperado e o encontrado nas situações analisadas demonstra que a autoconfrontação enquanto dispositivo formativo movimentou representações internas e externas dos intérpretes tanto positiva quanto negativamente. A tomada de consciência, no primeiro caso, da posição de intérprete não vivenciada anteriormente e o enfrentamento de si mesmo em contextos avaliativos, no segundo caso, aponta para a tese bakhtiniana de que “o território social não é apenas a expressão exterior, mas também a vivência interior” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.211), ou seja, aquilo que o sujeito constrói internamente sobre si é marcado pela sua relação com o externo, com o outro, com o contexto. Essa atividade mental gerada pelo confronto de ver a si mesmo contribuiu para que os intérpretes reelaborassem um eu-para-mim como trabalhadores do campo da interpretação, seja no vir-a-ser, seja no já-ser.

As autoconfrontações após as atividades interpretativas revelaram, por meio das enunciações sobre o eu-para-mim como a formação desses intérpretes, no contexto em tela, promoveu os encontros e mobilizações, na atividade didática, entre os saberes investidos, aqueles adquiridos na prática, na vivência, e os saberes instituídos, os adquiridos em contextos formais (SCHWARTZ, 2010SCHWARTZ, Y. A experiência é formadora? Educação e Realidade, v. 35, n. 1, p.35-48, 2010. Disponível em: [http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/ 11030/7181]. Acesso em: 30 mar. 2016.
http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoe...
). A pesquisa apresentou sujeitos que se constituíram intérpretes na prática - e por isso arbitravam, antes da entrada em um curso de formação, no plano dos saberes investidos - e que desejam reconfigurar essa prática por meio da formação, do acesso aos saberes instituídos. A formação acadêmica dos sujeitos que participam desta pesquisa, que é diversa e distante das atividades de tradução e de interpretação, demonstra que os conhecimentos sobre essas atividades foram apreendidos apenas na dimensão da vivência, da prática. Eis aí, então, o eu-para-mim desses sujeitos: um eu que necessita revisitar as próprias experiências para aperfeiçoar as habilidades técnicas da interpretação.

  • 1
    Trata-se da minha pesquisa de Doutorado (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, V. Formação de intérpretes de libras e língua portuguesa: encontro de sujeitos, discursos e saberes. 2016. 318 f. Tese. (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos a Linguagem), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.) realizada no Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, sob a orientação da Profa. Dra. Elisabeth Brait (assinatura Beth Brait), com financiamento do CNPq (Processo: 164738/2013-4), a quem agradeço a possibilidade de desenvolver a pesquisa, da qual este artigo é resultado. Também agradeço à FAPESP (Processo 2017/21970-9) pelo Auxílio Regular à Pesquisa oferecido para o desenvolvimento do estudo atual "Tradução de Libras em materiais audiovisuais: usabilidade de janelas e sincronia verbo-visual no processo tradutório" que se relaciona, do ponto de vista da fundamentação teórica, com a tese.
  • 2
    Chamamos atenção para este acontecimento porque, tradicionalmente, a autoconfrontação simples é promovida com apenas um participante da atividade observada (FAÏTA, 2005FAÏTA, D. Análise dialógica da atividade profissional. Trad. Maristela Botelho França, Maria da Glória Correa di Fanti e Marcos Antonio M. Vieira. Rio de Janeiro: Imprinta Express, 2005.). Na adaptação que realizamos aqui, consideramos os dois como protagonistas da atividade de interpretação.
  • 3
    Nesse artigo, será usada a recente tradução de MFL realizada por Sheilla Grillo e Ekaterina Vólkova Américo e publicada pela Editora 34 em 2017. Nessa tradução, que foi realizada diretamente do russo, a obra é assinada por Valentin Volochínov e não por Bakhtin/Volochínov como na primeira tradução brasileira realizada do francês para o português em 1979, hoje em sua 13ª edição. Destaca-se que a recepção da obra no Ocidente foi marcada pela tensão da assinatura. Algumas traduções mantiveram a autoria original de Valentin Volochínov enquanto outras, como a francesa e a brasileira, acrescentaram o nome de Bakhtin, deixando a obra, então, com dupla autoria.
  • 4
    Os nomes utilizados para identificar os sujeitos participantes da pesquisa neste artigo, assim como na tese, foram seus nomes reais. O uso foi autorizado pelos participantes por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O objetivo de manter os nomes reais foi o de dar autoria aos enunciados analisados, uma vez que, em outros momentos, imagens dos sujeitos enunciando em Libras e em LP simultaneamente também foram utilizados.
  • 5
    Os dados orais foram transcritos de acordo com a proposta dos estudos realizados pelo Grupo NURC/USP (PRETTI, 2003PRETTI, D. (Org.). Interação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas, 2003.).

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  • VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2017
  • Aceito
    14 Maio 2018
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