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Reflexões acerca da presença de intérpretes de língua de sinais nos anos iniciais de escolarização

RESUMO

Este artigo tem como objetivo problematizar a prática dos intérpretes de língua de sinais - línguas orais nos anos iniciais de escolarização e discutir as implicações da presença deste profissional para os processos de assimilação da língua de sinais pelos alunos surdos e para seus processos de aprendizagem escolar. Conclui-se que, por meio destes profissionais, além de ser mantida a reprodução ideológica que privilegia grupos de poder político, linguístico, social e cultural, uma nova relação de poder tem sido estabelecida no interior da escola, contribuindo para a exclusão educacional dos surdos. Torna-se assim premente uma ressignificação do conceito de inclusão, distanciando-se daquele que o reduz aos espaços escolares, para um sentido mais amplo, que assegure o reconhecimento social, cultural e linguístico das pessoas surdas em todas as esferas sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação inclusiva; Alunos surdos; Intérpretes de língua de sinais

ABSTRACT

This article aims to question the practice of sign language - oral language interpreters in the first school years and to discuss the implications of the presence of this professional in the process of sign language assimilation by deaf students and their learning process. We conclude that, through these professionals, besides the maintenance of the ideological reproduction that privileges groups of economic, political, linguistic, social, and cultural power, a new power relation is established within the school, contributing to the exclusion of deaf people from education. It is mandatory that we re-signify the concept of inclusion, distancing it from that which is restricted to school spaces in order to assign it an extensive meaning that ensures the social, cultural and linguistic recognition of deaf people in all social spheres.

KEYWORDS:
Inclusive Education; Deaf Students; Sign Language Interpreters

Introdução

A educação de surdos tem sido compreendida de forma distinta no Uruguai e no Brasil. No Uruguai, privilegia-se, desde 1987, a educação bilíngue para os anos iniciais de escolarização, período em que as escolas e classes para surdos começaram a migrar do paradigma clínico oralista ao bilíngue, apesar de ainda se manterem, até os dias de hoje, sob a da ótica da educação especial. Entende-se por educação bilíngue para surdos aquela em que os alunos estudam em escolas e/ou classes em que toda a educação é desenvolvida em língua de sinais uruguaia (LSU), por se compreender ser um direito dos alunos uma educação na língua que lhes é constitutiva e, portanto, responsável por seu desenvolvimento linguístico, cognitivo e educacional.

Nesse contexto, as escolas iniciais e primárias, destinadas à educação infantil e anos iniciais de escolarização, estão sob a responsabilidade de professores ouvintes que dominam a LSU e de instrutores surdos que os acompanham; apenas em Montevideo algumas salas estão sob a responsabilidade de professoras surdas (PELUSO; VALLARINO, 2015PELUSO, L. Traducción entre español y lengua de señas Uruguaya videograbada: un nuevo desafio. Cadernos de Tradução, v.35, n.2, p.479-504, 2015.; PELUSO; LARRINAGA; LODI, 2016). Não são previstos, desse modo, em nenhum desses espaços, intérpretes de língua de sinais - língua oral (ILS). Esses profissionais passam a integrar a educação de surdos na educação secundária (anos finais do ensino fundamental no Brasil), em salas exclusivas para surdos, quando o professor não possui conhecimentos da LSU suficiente para ministrar aulas nesta língua, e naquelas cidades em que, neste nível educacional, não existem salas para surdos; esta realidade se transforma, em todo o país, no período em que os alunos ingressam no ensino médio, como denominado no Brasil, já que todos os processos educacionais ocorrem em classes em que surdos e ouvintes partilham de um mesmo espaço-sala.

Essa mesma organização escolar desenvolvida no Uruguai foi prevista pelo decreto federal nº 5.625/05 para ser implantada no Brasil; no entanto, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, publicada em 2008, ao atribuir novo sentido ao conceito de educação bilíngue, conforme discutido por Lodi (2013)LODI, A. Educação bilíngue para surdos e inclusão segundo a Política Nacional de Educação Especial e o Decreto nº 5.626/05. Educ. Pesqusa, São Paulo, v.39, n.1, p.49-63, jan./mar. 2013., passou a orientar que os alunos surdos sejam matriculados e permaneçam, em toda a educação básica, em salas organizadas e pensadas por e para ouvintes, com a presença dos tradutores e intérpretes de língua brasileira de sinais (Libras) - língua portuguesa. Este tem sido o modelo majoritariamente adotado no Brasil desde então1 1 No estado de São Paulo, este profissional, quando inserido na rede estadual de ensino e em algumas escolas municipais do interior paulista, é denominado Professor Interlocutor. .

Contrariando os pressupostos da educação bilíngue, na educação inclusiva, como é denominada, além de se reconhecer uma preocupação bastante relativa quanto aos processos de construção da(s) subjetividade(s), desenvolvimento linguístico, cognitivo e educacional dos alunos surdos, observa-se uma concepção da língua de sinais como um instrumento para a transmissão dos conteúdos pedagógicos e para a aprendizagem da linguagem escrita da língua majoritária e, nesse sentido, a prática do profissional tradutor e intérprete de língua de sinais - língua portuguesa (Tilsp2 2 A diferença na forma de se referir a este profissional no Brasil e no Uruguai será discutida na seção seguinte. ) acaba por sofrer uma transformação (LODI, 2013LODI, A. Educação bilíngue para surdos e inclusão segundo a Política Nacional de Educação Especial e o Decreto nº 5.626/05. Educ. Pesqusa, São Paulo, v.39, n.1, p.49-63, jan./mar. 2013.).

Este artigo tem como objetivo problematizar a prática dos ILS/Tilsp nos anos iniciais de escolarização e discutir as implicações da presença deste profissional para os processos de assimilação da língua de sinais pelos alunos surdos e para seus processos de aprendizagem escolar. Para tal, serão tecidas três seções: na primeira, será traçado um breve histórico dos intérpretes de língua de sinais - línguas orais e das concepções que sustentam, majoritariamente, sua formação no Uruguai e no Brasil, a fim de ser possível assumir um posicionamento que delas se diferencia: a prática de interpretação como um processo de interação verbal, que coloca em diálogo as histórias de todos os envolvidos. Pareceu-nos relevante comparar a organização da educação de surdos e os processos de formação dos profissionais ILS/Tilsp nos dois países ao se considerar que ambos, ao mesmo tempo que vivenciaram práticas similares no decorrer da história da educação de surdos, acabaram por seguir caminhos diferentes tanto no que diz respeito aos aspectos legais quanto no que se refere às políticas linguística e educacional para surdos. Nesse sentido, esta comparação permite abordar o tema a partir de duas perspectivas distintas.

Na segunda, será discutido o porquê não é viável a presença dos ILS/Tilsp nos anos iniciais de escolarização e como sua prática se altera ao se considerar a necessária assimilação da língua de sinais pelos alunos, a fim de ser possível sua aprendizagem escolar. Na terceira, serão tecidas reflexões sobre como, por meio da presença destes profissionais nas salas de aula, a histórica reprodução ideológica que sempre se voltou para grupos de maior poder político, linguístico, social e cultural tem sido mantida, e como sua presença instaura uma nova relação de poder no interior da escola. Nas considerações finais, as três seções serão articuladas a fim de se discutir o quanto a prática da interpretação nos anos iniciais de escolarização, ao invés de propiciar a educação de alunos surdos tem contribuído para a exclusão educacional deste grupo sociocultural.

1 Breve histórico dos ILS/Tilsp: a realidade do Uruguai e do Brasil

Não há registro de quando a interpretação entre língua orais - línguas de sinais teve início, mas se reconhece que esta prática existe há muitos anos, a fim de se garantir interações verbais entre comunidades surdas e ouvintes, já que estes grupos sociais convivem cotidianamente. Esta convivência, no entanto, sempre ocorreu de modo assimétrico, na medida em que nem todo ouvinte precisa conviver com surdos falantes de língua de sinais; entretanto, esta mesma relação não é verdadeira ao se pensar em surdos, pois, por compartilharem um mesmo tempo-espaço com os ouvintes, eles acabam sendo obrigados a estar em permanente contato interlinguístico. Este fato acaba por instaurar a ideia equivocada de que são os surdos que necessitam de intérpretes para se comunicarem com os ouvintes e que, portanto, não há reciprocidade nesta relação; ou seja, que os ouvintes não necessitam dos intérpretes para se comunicarem com os surdos, pois eles pouco têm a dizer aos primeiros.

Nesta relação desigual, a prática da interpretação Libras - língua portuguesa e LSU - língua espanhola, a princípio, era realizada de maneira informal, não havendo preocupação com a formação do profissional que a exercia. Reconhece-se, no Uruguai, que os intérpretes, inicialmente, eram ouvintes filhos de pais surdos (Children of Deaf Adults - Codas), que assumiam a tarefa de “ajudar” seus pais nas relações cotidianas em diferentes esferas de atividade (FAMULARO, 2011FAMULARO, R. Despejar X. Interpretación en lengua de señas y en lengua oral. Montevideo: TUILSU/Udelar, 2011.). No Brasil, esta realidade não foi muito diferente, apenas somou-se aos Codas, familiares ouvintes com filhos surdos e pessoas que atuavam em escolas de surdos; a sistematização desta prática ocorreu na década de 1980, principalmente nos espaços religiosos (ROSA, 2005ROSA, A. Entre a visibilidade da tradução da língua de sinais e a invisibilidade da tarefa do intérprete. 2005. 199 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Campina, São Paulo .; ALMEIDA, 2010ALMEIDA, E. O papel de professores surdos e ouvintes na formação do tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais. 2010. 104 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo.).

Independentemente de quem realizava esta prática, o conhecimento da língua de sinais foi sendo construído por meio da interlocução dos ouvintes com as comunidades surdas, que passaram a auxiliá-los também em como realizar a interpretação (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, E. O papel de professores surdos e ouvintes na formação do tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais. 2010. 104 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo.). Criou-se, nesse processo, a falsa ideia de que para se atuar como intérprete de Libras e/ou de LSU bastava saber língua de sinais, mesmo que este conhecimento fosse restrito aos contatos cotidiano com surdos, fato que retardou o reconhecimento da necessária formação destes profissionais. Em função deste equívoco, a prática da interpretação acabou por ser, por muito tempo, banalizada e compreendida como uma atividade mecânica: cabia ao intérprete escolher as construções que ele julgava serem adequadas, de forma a garantir sua proximidade com aquelas da língua em que os enunciados eram produzidos (LODI, 2007LODI, A. O interprete de Língua Brasileira de Sinais /Língua Portuguesa e sua prática em diferentes espaços sociais. In: IV Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação. São Paulo, UNIBERO, 2007.).

A formação dos intérpretes começou a ganhar atenção na década de 2000, a partir das novas políticas linguísticas que passaram a reconhecer o direito dos surdos ao uso da língua de sinais em todo e qualquer espaço social. No Uruguai esta formação teve início antes deste período em uma instituição privada de atendimento aos surdos, a partir dos mesmos pressupostos descritos anteriormente; foi apenas em 2009, que a Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la Universidad de la República instituiu a Tecnicatura Universitaria en Interpretación en Lengua de Señas Uruguaya (Tuilsu), realizada, atualmente, em três cidades do país.

No Brasil, embora a formação destes profissionais tenha sido reconhecida em 2000, apenas em 2005, por meio do decreto federal nº 5.626, dispôs-se sobre como ela deveria ser realizada: em cursos superiores de tradução e interpretação, com habilitação em Libras - língua portuguesa (BRASIL, 2005BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm]. Acesso em: 30 abr. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, Artigo 17) e/ou em nível médio, em cursos de educação profissional, de extensão universitária ou de formação continuada desde que promovidos por instituições de educação superior credenciadas por secretarias de educação (BRASIL, 2005BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm]. Acesso em: 30 abr. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, Artigo 18, Incisos I, II e III). No entanto, a formação superior foi vetada pela lei nº 12.319/10, que regulamenta a profissão, por se entender que esta disposição viola o Artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. A partir de janeiro de 2020, porém, por meio da Lei Brasileira de Inclusão, a formação superior será exigida para a interpretação nas salas de aula de cursos de graduação e pós-graduação, reconhecendo a formação em nível médio, unicamente, para a prática na educação básica (BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm]. Acesso em: 10 dez. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, Artigo 28, § 2o).

Importante destacar que em todas as legislações brasileiras a formação exigida para o profissional, tanto na educação superior como em nível médio, deve incluir tanto práticas de interpretação quanto de tradução, mesmo se reconhecendo, na literatura, tratar-se de práticas/formações distintas. Com isso, no Brasil, privilegiam-se pessoas ouvintes nestes cursos e pouco se questiona sobre a presença de surdos para a realização de traduções língua de sinais - escrita da língua majoritária e vice-versa e/ou para a interpretação de línguas de sinais de diferentes países.

No Uruguai, desde o início da década de 2010, passou-se a se compreender que a tradução poderia ser também realizada entre LSU - língua espanhola escrita - LSU, a partir do uso de vídeo-gravações, ou seja, de textos enunciados em língua de sinais, levando à abertura desta formação também para pessoas surdas (PELUSO, 2015PELUSO, L. Traducción entre español y lengua de señas Uruguaya videograbada: un nuevo desafio. Cadernos de Tradução, v.35, n.2, p.479-504, 2015.). Assim, a formação, hoje oferecida pela Tuilsu, tem como maior ênfase as práticas de tradução se comparadas às de interpretação, já que, pela própria organização escolar do Uruguai, tem sido cada vez mais necessária a produção de textos em LSU para circulação nas esferas escolares. Entende-se que estas práticas são fundamentais para a consolidação de uma verdadeira educação intercultural bilíngue, a fim de que os estudantes possam ter acesso a diferentes textos enunciados em sua própria língua, sejam aqueles produzidos diretamente em LSU, sejam aqueles que envolvam tradução: do espanhol para a LSU ou da LSU para o espanhol. Soma-se a isso a reduzida demanda, se em comparação ao Brasil, de intérpretes para o acompanhamento dos alunos nas salas de aula. De forma contrária, no Brasil, o foco dado aos processos formativos dos Tilsp centra-se nas práticas de interpretação português - Libras - português, muito em função da política educacional em desenvolvimento no país e da participação, cada vez mais crescente, dos surdos em espaços sociais de participação política e cultural, fato que demanda profissionais para interpretá-los.

Desse modo, ao se considerar os objetivos deste artigo e que a produção em e a tradução de textos de e para a LSU são práticas recentes na realidade uruguaia e pouco discutida e explorada no Brasil, o foco das discussões recairá apenas sobre a interpretação (e não para os processos de tradução), razão pela qual os profissionais serão denominados, a partir de agora, unicamente, intérpretes de língua de sinais (ILS), da forma como são nomeados no Uruguai.

Ao se pensar ainda nos processos de formação, observa-se também que diferentes concepções sobre língua/linguagem e sobre como devem se constituir as práticas de interpretação têm perpassado os cursos de formação profissional, tanto no nível superior quanto no médio (no caso do Brasil), e que aquela que esteve na base da prática da interpretação não profissional ainda é privilegiada hoje em dia, fato que tem determinado a primazia dos conhecimentos linguístico-gramaticais das línguas de sinais por se julgar suficientes para uma boa prática interpretativa.

Por discordar desta compreensão, neste texto será assumida uma concepção distinta: considera-se que o intérprete é um profissional que atua na fronteira de sentidos das línguas de sinais - línguas orais, e desenvolve, portanto, um trabalho de e com a linguagem, razão pela qual seu conhecimento deve transcender ao da gramática; ele deve conhecer o funcionamento das línguas, seus diferentes usos a depender das esferas de atividade humana nas quais elas são enunciadas. Isso porque, ao se assumir que a língua se materializa nas enunciações, tem-se que o foco desta prática se volta para o enunciado concreto, para os sentidos nele presentes em sua intrínseca relação com a cadeia ininterrupta de comunicação verbal. É uma prática, assim, que leva o profissional a perceber os sentidos no discurso a ser interpretado, a fim de ser possível a construção de um novo enunciado que assegure a completude do que está sendo interpretado (LODI, 2007LODI, A. O interprete de Língua Brasileira de Sinais /Língua Portuguesa e sua prática em diferentes espaços sociais. In: IV Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação. São Paulo, UNIBERO, 2007.; FAMULARO, 2011FAMULARO, R. Despejar X. Interpretación en lengua de señas y en lengua oral. Montevideo: TUILSU/Udelar, 2011.; ALMEIDA; LODI, 2014ALMEIDA, E.; LODI, A. Formação de intérpretes de Libras - língua portuguesa: reflexões a partir de uma prática formativa. In: ALBRES, N.; NEVES, S. (Orgs) Libras em Estudo: formação de profissionais. São Paulo: Feneis, 2014, p.109-129.). Desse modo, esta prática depende, fundamentalmente, de se estar entre interlocutores que dominem as línguas envolvidas, pois o ato de interpretar não pode ser considerado um ato solitário. Ele se constitui em forma de diálogo, de interação verbal e, assim, “locutor/intérprete/interlocutor participam ativamente, na medida em que, por serem potencialmente infinitos, os sentidos só podem ser construídos e atualizados se em contato com outros sentidos” (LODI, 2007LODI, A. O interprete de Língua Brasileira de Sinais /Língua Portuguesa e sua prática em diferentes espaços sociais. In: IV Congresso Ibero-Americano de Tradução e Interpretação. São Paulo, UNIBERO, 2007., s./p.).

Ao se ter estes princípios como base, buscar-se-á problematizar a formação dos intérpretes de Libras/LSU e, portanto, a inviabilidade de sua presença nos anos iniciais de escolarização, já que, em sua maioria, os alunos surdos ainda não assimilaram a língua de sinais como sua primeira língua.

2 A assimilação da língua de sinais pelos alunos e os ILS: pressupostos

De acordo com o pensamento de Bakhtin (2000)BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.23-220., ao nascermos, somos imersos, por meio das interações verbais, em um mundo que já existe anteriormente a nós; ocupamos, fisicamente, no mundo concreto, nosso lugar único na existência; mas nosso corpo, neste momento, restringe-se apenas ao corpo interior: sensações orgânicas, necessidades. Nosso corpo exterior ainda é o corpo do outro, cujo registro só pode se dar de forma fragmentada; não conseguimos reagir, de forma autônoma, imediatamente a ele. Recebemos, ainda de forma dispersa, todos os atos que são a nós dirigidos (de amor, de atenção, de cuidado), modulados por uma linguagem carregada de tons de valores a nós atribuídos: recebemos um nome, envolvemo-nos em sentidos sobre nós mesmos, sobre nosso corpo, sobre nossas sensações; recebemos uma linguagem que nos liga, como uma resposta, ao nosso corpo exterior. Este outro que nos olha e que é responsável pelo nosso primeiro olhar para nós mesmos, introduz-nos nas primeiras palavras, aquelas que, posteriormente, serão também faladas por nós.

Nesta relação em que nos transformamos a cada momento, dialética e dialógica em essência, transformamos também o outro, deslocando-o de sua posição a cada ato que nós a ele dirigimos: o choro, o sorriso, a satisfação de nossas necessidades, as primeiras palavras que enunciamos (e que já foram anteriormente a nós enunciadas). Respondemos ao projeto de futuro daqueles que viviam sua existência antes da nossa, ao “algo-a-ser-alcançado”, conforme discutiu Geraldi (2013)GERALDI, J. Bakhtin tudo ou nada diz aos educadores: os educadores podem dizer muito com Bakhtin. In: FREITAS, M. (Org). Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.11-28., que nos dá sentido e direção (nunca reta nem linear); um projeto possível, apenas, pelo excedente de visão que este outro tem de nós, pois na vida, continua o autor, “é preciso projetar um futuro para dele extrair os critérios de seleção do que é passado que possa funcionar como alavanca de construção desse futuro” (p.19). Vivemos, portanto, nossa vida, nossa história, nosso presente, no diálogo com o passado e com o que ainda está por vir-a-ser.

Este processo, no entanto, difere ao se considerar o nascimento de um bebê surdo em uma família ouvinte. Da mãe e dos próximos receberá carícias, sorrisos e expressões; verá os lábios de sua mãe se moverem, dirigirem-se a ele, mas não poderá ouvir as palavras que, pouco a pouco, vão dando sentido à sua existência; palavras que ele mesmo, futuramente, iria enunciar. A linguagem pode ser por ele percebida apenas de forma fragmentada - pelo extraverbal constitutivo do discurso ou por meio de palavras soltas de um contexto maior relacionado à vida. Da mãe receberá um nome ao nascer, mas tomará conhecimento dele apenas posteriormente; seu nascimento não será a ele narrado. Ele se torna distante, portanto, das histórias constitutivas de seu grupo familiar, histórias que dialogariam com sua própria, à medida que elas são compartilhadas no decorrer de nossa existência apenas pela linguagem.

Inúmeras tentativas de transformação desta realidade são feitas pela família, com a orientação, principalmente, dos profissionais da saúde, que buscam, a todo custo, tratar esta criança por meio de práticas descontextualizadas de ensino de fala e de restituição de sua audição por meio de aparelhos auditivos e/ou de procedimentos invasivos, como no caso das cirurgias de implante coclear. Nestes casos, são negadas à criança interações em língua de sinais, relações com surdos adultos e entre pares por intermédio desta língua e, portanto, sua(s) subjetividade(s) é(são) construída(s) a partir do modelo ouvinte que não virá, por ele, a ser alcançado. Nessa história que persiste por anos, nesse processo no qual lhe faltam palavras para poder significar o mundo, o outro e a si mesmo, o surdo cresce a partir do lugar que os muitos outros com quem convive lhe atribuem: o do deficiente (da fala e da audição), do diferente (no sentido negativo do termo), do incapaz de participar nas e das inúmeras interações verbais plenas de sentido e, porque não, de aprender.

Este discurso hegemônico que se insere no grande tempo da história dos surdos, traz consigo as marcas de um passado de isolamento, de dificuldades, de silenciamento; mas também, em contrapartida, carrega consigo um passado de lutas para serem reconhecidos socioculturalmente como surdos; como pessoas que enunciam em uma língua distinta da maioria ouvinte: em língua de sinais (LANE, 1988LANE, H. When the Mind Hears: a History of the Deaf. London: Penguin Books, 1988.; MOURA, 2000MOURA, M. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.). No entanto, este passado em diálogo com o presente, orienta-se para uma transformação do futuro que ainda está longe de ser alcançada, pelo menos no que diz respeito à educação.

O discurso da política de educação inclusiva, tal como implantada no Brasil hoje, é um exemplo deste não vir-a-ser-alcançado, na medida em que se nega aos alunos surdos seu direito a assimilação da língua de sinais, já que até o momento em que eles ingressam na escola e, posteriormente também naquele espaço, eles não terão oportunidades de interações verbais com outros surdos em língua de sinais, realidade que é mascarada pela presença dos ILS. Desconsidera-se, desse modo, ao se pensar nos espaços educacionais em que surdos compartilham uma mesma sala com ouvintes, que não há educação sem linguagem, sem interação verbal; que “não há educação fora da relação entre o eu e o outro” (GERALDI, 2013GERALDI, J. Bakhtin tudo ou nada diz aos educadores: os educadores podem dizer muito com Bakhtin. In: FREITAS, M. (Org). Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.11-28., p.15), no caso professor-alunos e alunos-alunos. A construção de interações em língua de sinais reduz-se à relação alunos surdos - intérpretes, que são responsabilizados e responsabilizam-se, frente a esta realidade, tanto pela mediação dos processos de aprendizagem escolar quanto pelo ensino desta língua aos alunos.

Nesse contexto, só lhes resta a tentativa de ensinar a língua de sinais aos alunos a partir de sua orientação a um contexto específico - os conteúdos escolares - de maneira indiferente e isolado dos demais. Afastada de sua história e do horizonte social no qual ela é enunciada, essa maneira de abordar a língua permite, apenas, conhecer a forma pela qual seus elementos constituintes organizam-se, muitas vezes tendo como base a linguagem oral, já que é a língua em circulação em sala de aula e na escola. Esta concepção de língua determina, portanto, uma relação na qual o aprendiz deve aceitar, passivamente, as informações presentes.

Tem-se, desse modo, o que Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. discutiu em relação ao ensino de línguas maternas ou nativas (como nomeadas no decorrer da obra) e/ou de línguas estrangeiras a partir da oposição entre o tratamento dado à palavra como “sinal” ou como signo. Para o autor, a palavra como “sinal”, constitui-se um instrumento utilizado para designar objetos, sendo, dessa forma, compreendida como uma entidade de conteúdo imutável e idêntico a si mesmo - a palavra dicionarizada - e, portanto, não pertencente ao campo da ideologia. A palavra como signo, por sua vez, insere-se na esfera ideológica, situando-se entre indivíduos socialmente organizados; materializa-se ao ser enunciada em um dado contexto sócio-histórico e cultural; dirige-se sempre a alguém, carregando-se de diferentes acentos responsáveis por lhe dar vida. A ela torna-se invariavelmente necessário gerar uma resposta. Por sua ubiquidade social, por meio dela é possível acompanhar e compreender todos os processos evolutivos que ocorrem nas diferentes esferas sociais; nela a história de quem a vive é, portanto, materializada.

No entanto, ao se considerar que a relação que os surdos estabelecem com a língua de sinais nos espaços escolares ocorre por meio de interlocutores que não a vivem e que não se constituem por meio desta língua, tem-se, uma vez mais, a negação, aos alunos que vivem esta realidade, da história da língua e da cultura por ela determinada e que lhe é determinante. Soma-se a isso o fato da palavra, ou mais exatamente seu produto, a enunciação, responsável pelos processos de interação verbal, orientar-se em função dos interlocutores; logo, em relação a uma coletividade. Portanto, se o grupo para o qual os enunciados dos surdos serão dirigidos é constituído por ouvintes, tem-se a sua submissão à coletividade que enuncia em língua portuguesa.

Nesse sentido, a depender da formação oferecida ao profissional ILS, ou seja, se for considerada a primazia da gramática, das formas linguísticas tratadas em sua “sinalidade”, em detrimento dos sentidos em circulação social, sua atuação pressuporá a transparência e determinação da linguagem e, portanto, de que, ao mesmo tempo em que os alunos estão “aprendendo” sinais (tanto no sentido bakhtiniano quanto das “palavras” da língua de sinais), eles podem aprender os conteúdos pedagógicos, por se acreditar que o importante, na interpretação, é a equivalência da forma mais do que os sentidos do que está sendo enunciado. Em sendo assim, a cisão educação e vida, realidade da maioria dos espaços escolares, acentua-se, de forma significativa, na educação dos surdos, inviabilizando um processo que deveria propiciar a transformação de todos os envolvidos.

3 Educação e vida: a palavra dos outros nos processos de aprendizagem

O processo de ensino objetivado da língua e sua exclusão do mundo do real, do vivido, vai ao encontro do que Bajtín (2005)BAJTÍN, M. Arte y responsabilidad. In: BAJTÍN, M. Estética de la creación verbal. Trad. Tatiana Bubnova. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores Argentina, 2005, p.11-12. e Bakhtin (2012)BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2. ed., 2012. discutiu em seus primeiros trabalhos: a impossibilidade de se cindir cultura e vida. Para o autor, o mundo teórico, do conhecimento, das disciplinas específicas, obtido por meio de uma abstração, torna-se idêntico e fechado em si mesmo. A ele nada se pode acrescentar, na medida em que ele vive dissociado da existência não podendo, portanto, nada oferecer para a vida da práxis e do ato. Para Bakhtin (2012)BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2. ed., 2012., o mundo deve ser dado a partir do lugar único e singular em que cada um se encontra, para que assim ele possa ser vivido de maneira real e responsável. Isso implica o reconhecimento da diferença singular de cada um de nós. Bakhtin (2012)BAKHTIN, M.M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2. ed., 2012. discorda da ideia de existência de uma verdade universal, geral, reiterável e constante (истина4 4 Istina. ) que em nada dialoga com a verdade do vivido, com a entonação do ato (правда5 5 Pravda. ). Esta cisão, pode ser reconhecida ainda nos dias atuais nas práticas escolares que separam o conhecimento da vida, ao invés de se buscar o estabelecimento de uma relação dialética entre ambos.

Bajtín (1997)BAJTÍN, M. Autor y héroe en la actividad estética. In: BAJTÍN, M. Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos. Trad. Tatiana Bubnova. Rubí (Barcelona): Anthropos; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1997, p.82-105. ao discutir a arquitetônica que compõe os eventos do mundo e da vida exemplifica esta questão da seguinte forma: a geografia, por si, não conhece o que é perto e longe, o aqui e o ali, assim como a história desconhece o que é passado, presente e futuro. Para que estes conceitos tenham sentidos (ainda que relativos) devem partir de um centro axiológico absoluto - o homem em seu tempo e espaço específicos. O tempo-espaço infinito - único sentido que garante uma determinação teórica - é percebido de forma única apenas no exterior da vida humana, pois tempo e espaço são vividos diferentemente por cada um de nós. O tempo intrínseco ao acontecimento só terá sentido, portanto, se posto em relação com o tempo extrínseco de sua ocorrência, a partir dos tons emotivo-volitivos singulares na unidade de cada um. Um passado que ao ser posto em relação com o presente, projete-se a um futuro diferente, construindo um caminho em que somos ao mesmo tempo em que produzimos.

Entende-se, assim, que a objetivação do conhecimento e da língua - logo, sua desvinculação com a vida -, acaba por determinar relações no interior da escola assimétricas, interações verbais professor-alunos que se refletem na maneira pela qual os conhecimentos são transmitidos. Esta assimetria se intensifica, de forma significativa, ao se considerar a presença dos surdos nas salas de aula de ouvintes, local em que todo o conhecimento é abordado a partir dos contextos socioculturais e linguísticos da maioria, sendo-lhes, portanto, oferecida uma interpretação para Libras dos conteúdos/conceitos em sua relação direta com o contexto em que os enunciados são produzidos pelo professor aos alunos ouvintes. Assim, se o diálogo entre conhecimento/cultura e vida ainda não é, salvo raras exceções, uma realidade no interior da escola, seu distanciamento em relação aos contextos socioculturais e linguísticos dos surdos aumenta de forma considerável.

Acrescenta-se ainda, conforme discutiu Bakhtin (1998BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et. al . 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998, p.71-210., 2000)BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.23-220., a relação entre nossa existência e as palavras dos outros. Bakhtin reconhece que vivemos envoltos de palavras de outros e que reagimos a elas no decorrer de nossa existência. É por intermédio dessas palavras que assimilamos as riquezas da cultura humana. Sua presença na vida do homem coloca-o ante a necessária tarefa de responder a elas e de compreendê-las (compreensão e resposta fundem-se em uma relação dialética reciprocamente condicionada, não sendo possível a existência de uma sem a outra). Nesse processo, a palavra do outro, ao ser assimilada por mim, torna-se minha-alheia e no diálogo com outras palavras-alheias, torna-se minha-palavra, não sem antes travar um duro combate ideológico.

As palavras dos outros, responsáveis pelo processo de formação ideológica da consciência individual (à medida que, por seu intermédio, nossas atitudes ideológicas em relação ao outro e ao mundo podem ser (re)definidas), passam, segundo Bakhtin (1998)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et. al . 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998, p.71-210., por diferentes procedimentos de elaboração e de transmissão, determinados pelo enquadramento contextual ao qual elas são submetidas. No entanto, independente da forma como o discurso de quem fala (re)elabora o discurso do outro, a relação dialógica estabelecida entre eles irá determinar que as palavras-alheias se transformem em termos de sentidos e de acentos socioideológicos, a partir do projeto discursivo daquele que fala. Estas palavras podem surgir de duas formas: como palavra autoritária e como palavra interiormente persuasiva.

A palavra autoritária exige de nós reconhecimento e assimilação e, portanto, por seu intermédio, torna-se mais difícil modificar seus sentidos e acentos quando em sua incorporação no discurso de quem fala. O autor acrescenta ainda o fato de sua existência ser inseparável daquilo que representa “autoridade” para um determinado grupo: política, institucional, pessoal. De forma contrária, a palavra interiormente persuasiva se entrelaça às nossas palavras, tornando-se metade nossa e metade de outrem, sendo capaz de organizar, do interior, nossas próprias palavras. Seu desenvolvimento na consciência individual é constante, adaptando-se aos novos contextos e situações e, por esta razão, pode inter-relacionar-se de forma tensa e conflituosa com outras palavras interiormente persuasivas. Por ser e permanecer aberta a novos sentidos, revela-os a cada novo contexto dialogizado, não sendo possível, portanto, saber tudo a seu respeito e o que ela pode ainda nos dizer.

Depreende-se assim que, ao trabalhar com conteúdos objetivados que não propiciam o acabamento estético do conhecimento, a relação que os alunos com eles estabelecem não pode ser outra do que sua assimilação de forma autoritária, como verdade [истина]. Este fato terá implicações ainda mais sérias para a formação das consciências individuais dos estudantes ao se considerar que, conforme discutiu Freire (2014)FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014., historicamente, a escola tem, por meio de um trabalho de e com a linguagem, reproduzido a ideologia da classe que está no poder.

Nesse sentido, ao se pensar em salas de aula em que se fazem presentes duas línguas, que se relacionam socialmente de maneira bastante assimétrica, a autoridade da palavra do professor desdobra-se também na palavra do intérprete, que ao interpretar o discurso daquele que detém o poder institucional, o faz a partir da lógica da língua portuguesa. Este processo, que acaba por reproduzir a ideologia dominante, instaura ainda e ao mesmo tempo, uma nova relação de poder no interior da escola: o ILS é a pessoa que detém o conhecimento do que o professor diz, da forma como o faz, mas também o da língua de sinais, fato que o coloca no centro de todas as interações que envolvam os surdos. Não há, desse modo, possibilidade de diálogo entre as histórias dos alunos surdos e daqueles que enunciam em português/espanhol que não passe pela mediação dos ILS, e esta restrição acaba por não permitir que as palavras dos outros (do professor, dos alunos ouvintes), da forma como por eles enunciadas, transformem-se, assim, em interiormente persuasiva para os surdos; elas não se entrelaçam às suas palavras, não sendo, portanto, capazes de organizar, do interior, suas próprias palavras.

Pode-se dizer, portanto, que as práticas pedagógicas se distanciam do concreto cultural e histórico do grupo de surdos com quem se está trabalhando, excluindo-os da possibilidade de transformação individual, de aprendizagem. Compreende-se assim que o passado que inviabilizou uma educação em equidade entre surdos e ouvinte é reproduzido no presente (mesmo que com outro discurso), projetando, novamente, um futuro de exclusão, de não aprendizagem, de desconhecimento da história e da cultura da humanidade - dos surdos e também dos ouvintes. O ILS ganha, assim, papel de destaque na réplica desta realidade, contribuindo para a manutenção ainda das relações de poder entre línguas e entre grupos sociais.

Considerações finais

No decorrer deste texto buscou-se discutir as implicações da formação e da prática dos ILS nos anos iniciais de escolarização, os pressupostos subjacentes à sua atuação neste nível educacional; logo, do discurso da educação inclusiva tal como organizada hoje no Brasil, e com o risco de ser implantada no Uruguai. Embora a educação inclusiva seja a pretensão de alguns setores com poder nas decisões políticas educacionais nacionais no Uruguai, os resultados dos trabalhos em desenvolvimento na educação básica e na academia (formação profissional que enfatiza a produção e a tradução de textos de e para a LSU) apontam para o fato de que o caminho que tem sido seguido é o que mais respeita as singularidades socioculturais e linguísticas dos surdos.

Assim, apesar da existência do discurso de aceitação da diversidade e da transformação necessária das instituições escolares a fim de assegurar o respeito às particularidades de todos os alunos, mantém-se o status quo das condições de desigualdade e de desrespeito que marcam, historicamente, a educação dos surdos, mascarado pela presença dos ILS. Eles, por sua vez, por não poderem assumir seu papel de interlocutores dos alunos surdos, já que, em sua maioria, não assimilaram a língua de sinais, responsabilizam-se por ensinar esta língua aos estudantes, realizando esta prática a partir de uma concepção de língua objetivada, voltada a contextos escolares específicos. Contribuem, assim, para a falsa ideia de que é possível a assimilação de uma língua a partir do conhecimento das formas linguísticas e/ou de orações que em nada dialogam com a história e com a cultura dos que nela enunciam, ao considerar que, com raras exceções, os ILS também não vivem a língua de dentro, logo, na cultura que determina e é determinada pela Libras/LSU. Colaboram ainda para a manutenção da compreensão equivocada de que a aprendizagem escolar poderá ocorrer apenas com os conhecimentos linguísticos por eles disponibilizados aos alunos surdos.

Corroboram, neste sentido, sem muitas vezes questionarem seu papel, com (i) o mito de que sem linguagem há aprendizagem; (ii) para a visão histórica de que os surdos dependem deles para a convivência com os ouvintes (em uma relação de não-reciprocidade), como se os surdos não tivessem nada a dizer e/ou a compartilhar, em termos de experiência e vida, com os grupos sociais majoritários; e (iii) para o estabelecimento de uma nova relação de poder ouvintes/surdos no interior da escola. Nesta relação assimétrica, as palavras dos outros são transmitidas aos alunos surdos de forma autoritária - a palavra do professor, do ILS - sem haver possibilidade de, com elas, ser estabelecido um diálogo.

Defende-se, neste texto, que uma educação que se proponha, efetivamente, a ser inclusiva/equitativa, não pode ser reduzida à existência, no espaço escolar, de pessoas que falam duas línguas; além disso, esta convivência não pode ser tratada como se fosse pacífica. Viver este conflito implica possibilitar que os múltiplos discursos em circulação, a palavra-alheia, longe de uma transmissão autoritária, se tornem enunciados interiormente persuasivos, possibilitando aos alunos a “constituição mútua da mente pelo mundo e do mundo pela mente, dos seres humanos pela sociedade e da sociedade pelos seres humanos” (SOBRAL, s/d., p.6). Discursos que, ao invés de tratarem a educação de forma dissociada da vida, busquem estabelecer com ela uma relação intrínseca, de modo que a vida seja vivida na educação e a educação na vida. Esta relação entre línguas/culturas torna-se ainda mais complexa quando se considera tratar-se de duas línguas/culturas que possuem valores sociais de prestígio bastante assimétricos, como é o caso entre a língua portuguesa/espanhola - Libras/LSU e entre as culturas ouvintes/surdas.

Desse modo, uma educação que se proponha a ser inclusiva, deveria envolver uma intrincada transformação nas relações sociais construídas no interior da escola, principalmente, na responsabilidade ética estabelecida pelos olhos do professor, dada a posição exotópica dupla que ele possui em relação aos seus alunos: para dar-lhes completude e para deslocá-los, constantemente, em direção (não linear), à construção de conhecimentos - seu projeto de futuro enquanto professor.

Uma mudança desta realidade só seria alcançada no Brasil, portanto, com a implantação da educação bilíngue da forma como prevista e em desenvolvimento no Uruguai que, ao possibilitar às crianças e aos jovens surdos a assimilação de uma língua por meio da qual se torna possível ser-como-evento, a unidade estética conhecimento/ciência e vida pode vir a ser conseguida, por meio de interações verbais com surdos e/ou diretamente pelo professor que enuncia em língua de sinais. Não se trata, nesse caso, de se acreditar que apenas a mudança de língua seria determinante deste processo, mas de considerar a possibilidade que se abre quando se transformam as condições de produção para a aprendizagem. Desse modo, não se está ignorando os inúmeros outros fatores também determinantes para uma prática educacional que viabilize este processo: o professor e seu excedente de visão sobre os alunos e sobre o seu projeto educacional; os alunos como excedente de visão do professor; o questionamento da tradição escolar que trabalha com a objetivação do conhecimento, para citar apenas três de muitos outros.

Ao se mudar o contexto de aprendizagem para um espaço onde se enuncia em língua de sinais, vivida e não ensinada aos alunos, estabelecem-se outras relações de poder no interior da escola/classe, na medida em que os professores (por serem em sua grande maioria ouvintes), são obrigados a deslocar-se de sua “zona de conforto linguístico”, ao enunciarem em uma língua distinta daquela na qual se constituem(íram), fato que, potencialmente, irá demandar uma transformação de suas práticas pedagógicas e da forma como seus discursos serão elaborados. Diz-se, potencialmente, porque para que isso seja possível, deve haver, por parte do professor, uma compreensão da linguagem em sua dimensão discursiva e, portanto, da língua de sinais como aquela que permite novos processos de significação do mundo e de constituição socioideológica dos surdos. Língua que não pode ser enunciada apenas para a garantia das interações entre pares e para a troca de experiências cotidianas e informais, mas sim como aquela que permitirá o desenvolvimento e a construção dos conhecimentos veiculados social e culturalmente (LODI; HARRISON; CAMPOS, 2002LODI, A.; HARRISON, K.; CAMPOS, S. Letramento e surdez: um olhar sobre as particularidades dentro do contexto educacional. In: LODI, A. et al. (Orgs.). Letramento e minorias. Porto Alegre: Mediação, 2002, p.35-46.).

Torna-se necessário, portanto, questionar a concepção de inclusão como limitada aos contextos escolares, pois da forma como ela tem sido compreendida atualmente no Brasil, estes processos estão longe de vir a ser alcançados e a exclusão escolar, que marcou a história da educação dos surdos, perpetuada pelas práticas educacionais dos professores e pelas relações entre ILS e alunos surdos. Falar e defender inclusão de surdos deve, portanto, levar, necessariamente, a uma ampliação deste conceito a todas as esferas sociais, fato que implica o reconhecimento dos surdos como pertencentes a grupos sociais, culturais e linguísticos minoritários, a fim de que seus direitos e deveres de cidadania venham a ser assegurados.

  • 1
    No estado de São Paulo, este profissional, quando inserido na rede estadual de ensino e em algumas escolas municipais do interior paulista, é denominado Professor Interlocutor.
  • 2
    A diferença na forma de se referir a este profissional no Brasil e no Uruguai será discutida na seção seguinte.
  • 3
    Como o tema deste artigo envolve questões relacionadas à língua de sinais, sempre que for usado o termo “sinal” na concepção de Bakhtin, ele estará grafado entre aspas.
  • 4
    Istina.
  • 5
    Pravda.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2018
  • Aceito
    19 Ago 2018
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