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Autoria institucional no jornal escolar O Colegial - órgão dos alunos do Colégio Catarinense (1945-50)

RESUMO

Discutimos, neste trabalho, a constituição de autoria no jornal escolar O Colegial - órgão dos alunos do Colégio Catarinense. Os fundamentos da análise dialógica do discurso do Círculo de Bakhtin respaldam a discussão proposta na Linguística Aplicada. Os dados são compostos pelas seis edições anuais desse jornal, publicadas pelo Colégio Catarinense no período de 1945-50, em Florianópolis - SC, e pelo gênero discursivo expediente. A metodologia parte da análise da dimensão histórica da publicação, seguida da análise das edições de O Colegial e do respectivo gênero. A análise revelou que O Colegial não era um dos meios de expressão da voz dos estudantes, como enunciado no seu título, pois a autoria foi concebida como institucional. A posição axiológica dessa publicação visava persuadir seus interlocutores sobre a qualidade da formação educacional do Colégio Catarinense e silenciava a voz dos estudantes que fossem contrários aos valores dessa instituição educacional.

PALAVRAS-CHAVE:
Autoria; Jornal escolar; Educação

ABSTRACT

The present paper discusses the concept of authorship in the school newspaper O Colegial - a publication by Colégio Catarinense [Santa Catarina School] students. The foundations of the Bakhtin Circle’s dialogical discourse analysis support the proposed discussion in Applied Linguistics. Data consisted of six annual editions of the newspaper published by Colégio Catarinense from 1945 to 1950, in Florianópolis - SC, and of the discursive genre imprint page. The methodology comprises the analysis of the historical dimension of the newspaper, followed by the analysis of the newspaper editions and the imprint page. Results show that, as authorship was conceived as institutional, O Colegial was not a vehicle for students to make their voices heard, as stated in the title. The axiological position of this publication was to persuade its interlocutors of the educational quality of Colégio Catarinense and to silence the voices of students who were contrary to the values of this educational institution.

KEYWORDS:
Authorship; School newspaper; Education

Introdução

O presente artigo é um recorte de minha tese de doutorado defendida na UFSC - “A posição axiológica do jornal escolar O Colegial (1945-1950) acerca das práticas de leitura”, que se insere no projeto “O ensino de língua portuguesa nas escolas de Santa Catarina no Século XX (1900 a 1980): o discurso e a práxis escolar”, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Rosângela Rodrigues Hammes.

O jornal escolar como atividade de sala de aula ou extraclasse foi incentivado pelos protagonistas da Escola Nova1 1 Segundo Saviani (2013), Lourenço Filho foi um dos principais divulgadores e defensores das ideias pedagógicas da Escola Nova no Brasil. Em Introdução ao estudo da Escola Nova (1930), Lourenço Filho explica o que se deve compreender por Escola Nova e as suas bases científicas dessas propostas: os estudos de biologia, psicologia e sociologia. através das instituições complementares ou associações auxiliares à escola desde as primeiras décadas do século XX (BASTOS, 2013BASTOS, M. Escritas estudantis em periódicos escolares. Revista Educação, Porto Alegre, v.10, n. 40, p.7-10, 2013.). A partir da pesquisa de Arroyo (1968)ARROYO, L. Literatura infantil brasileira: ensaios de preliminares para a sua história e suas fontes. São Paulo: Melhoramentos, 1968., a autora afirma que, na segunda metade do século XIX, já se encontram vestígios de jornais infantis e escolares no Brasil.

Como essa prática tem estado presente no ensino de língua portuguesa até os dias atuais (RUIZ, 2016RUIZ, T. O projeto didático do jornal escolar no ensino crítico de linguagem. Caminhos de Linguística Aplicada. Taubaté, SP, vol. 15, n.2, p.1-20, 2016., 2017bRUIZ, T. O jornal escolar De olho no carva: uma experiência de ensino e aprendizagem de escrita. Linguagem em Foco, v.9, p.115-135, 2017b.), retomamos Fávero (2009, p.31)FÁVERO, L. História da disciplina português na escola brasileira. Diadorim: revista de estudos linguísticos e literários. Rio de Janeiro, n. 6, p.13-35, 2009. para justificar a relevância de se investigar as práticas escolares do passado. Para essa autora, “em cada época, o estudo de Língua Portuguesa é marcado pelas condições [...] econômicas, políticas e sociais que determinam o tipo de escola e de ensino, e para que possamos melhor compreender o ensino de hoje e melhor interferir, é necessário que conheçamos o passado.”

Ademais, na visão do Círculo de Bakhtin, os discursos de hoje reenunciam práticas anteriores, numa cadeia ideológica contínua, portanto, o ensino e aprendizagem das práticas de linguagem atuais mantêm fortes elos com o que se fazia na esfera escolar em tempos passados. Essa ligação se dá porque a palavra enquanto signo social e ideológico “não é somente uma parte de uma realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade” (VOLOCHÍNOV, 2017 [1929], p.93). Partindo dessa constatação, nossa fundamentação teórico-metodológica está ancorada no Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 1998BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP: Hucitec, 1998, p.211-362. [1975], 2003BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filosofia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.307-335. [1979], 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. [1963], 2010BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João, 2010. [1920/1924], VOLOCHÍNOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Do Círculo) Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017. [1929]), na Linguística Aplicada (ACOSTA-PEREIRA, R.; RODRIGUES, H., 2014, 2015; ALVES FILHO, 2006ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo , v. 50, n. 1, p.77-89, 2006.; RODRIGUES, 2001). Também dialoga, por adotar a concepção da LA in/transdisciplinar, com os estudos da Historiografia da Educação (SAVIANI, 2013SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.; DALLABRIDA, 2001DALLABRIDA, N. A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense na primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2001., 2012DALLABRIDA, N. Usos sociais da cultura escolar prescrita no ensino secundário. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, SP, v. 12, n. 1 (28), p.167-192, 2012.; BASTOS, 2013BASTOS, M. Escritas estudantis em periódicos escolares. Revista Educação, Porto Alegre, v.10, n. 40, p.7-10, 2013.; AMARAL, 2013AMARAL, G. Reflexões sobre a produção de jornais estudantis em escolas de ensino secundário (1930-1960): a contribuição da obra Jornais escolares de Guerino Casasanta. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação. Cuiabá: UFMT, 2013. v.1. p.1-11.).

As discussões aqui propostas estão ancoradas na concepção de língua como discurso e, portanto, nas relações dialógicas e no dialogismo, que são os fundamentos da concepção dialógica de linguagem, e nos escritos sobre autor/autoria do Círculo de Bakhtin. O percurso metodológico delineado para a análise parte da dimensão histórica, ou seja, os discursos que incidiam na esfera escolar na época de publicação do jornal escolar O colegial, concebido como um conjunto de enunciados. Na sequência, discorremos sobre as regularidades encontradas nos dados analisados, que foram as seis edições do jornal escolar O colegial e o gênero discursivo expediente. Por fim, analisamos a posição axiológica do jornal escolar O colegial e os efeitos de sentido que essa posição refrata nos textos nele publicados.

1 Autor/autoria nos escritos do Círculo de Bakhtin e seus interlocutores contemporâneos

A partir de uma concepção enunciativa e dialógica de linguagem, o Círculo postula que a realidade da língua é a da interação verbal, porque os sujeitos não tomam as formas prontas da língua de um sistema sígnico abstraído das relações sociais em suas enunciações. Pelo contrário, a situação social de uso da língua integra a seleção das formas linguísticas, uma vez que cada falante/escrevente está situado em um contexto sócio-ideológico definido, as esferas da atividade humana, e o uso da língua é inseparável dessa situação concreta, dos falantes e de seus valores. A linguagem, portanto, está prenhe de intenções dos outros, visto que a língua enquanto discurso é viva, concreta e real, e faz parte das atividades humanas.

Nas palavras de Bakhtin (1998 [1975], p.88)BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP: Hucitec, 1998, p.211-362., “o discurso nasce do diálogo com sua réplica viva, forma-se na mútua orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto”. Nessa perspectiva, o discurso se origina da sua relação dialógica com outro discurso, sendo que a palavra alheia é o elemento organizador da construção do discurso. Por isso, para Bakhtin (2003 [1979], p.308)BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410., “todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve) [...]. Dois elementos que determinam o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção.”

A ideia expressa no trecho acima é a de que não existem palavras sem voz e, por isso, traz à tona o papel do autor/autoria na produção de discursos. Essa discussão sobre o autor/autoria no pensamento bakhtiniano é tratada na esfera da arte, especificamente a literária, e de modo especial no gênero romance. Bakhtin (2003 [1979])BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. estabelece a diferença entre o autor-pessoa (escritor, artista, o indivíduo em si) do autor-criador (aquele que produz o enunciado). Essa concepção ampliou a visão tradicional dos estudos clássicos, que misturava a posição do autor com a do indivíduo.

Em outras palavras, o autor-criador dá forma ao conteúdo a partir de certa posição axiológica, pois todo ato cultural está inserido em uma dada atmosfera ideológica. Considerando que as produções discursivas são situadas nas esferas da atividade humana, a questão da assinatura do autor em um texto é vista muito além de ser um simples ato, indicando o seu reconhecimento do conteúdo desse ato: “não é o conteúdo da obrigação escrita que me obriga, mas a minha assinatura colocada no final, o fato de eu ter, uma vez, reconhecido e subscrito tal obrigação” (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João, 2010. [1920-1924], p.94). Na assinatura de uma obra, engloba-se a dimensão da responsividade do projeto de dizer do autor inserido em relações sociais e culturais estabelecidas dentro de determinados papéis sociais dos sujeitos, constituídos conforme seu pertencimento nos grupos sociais.

A autoria pode ser vista tanto como um elemento formal que representa o trabalho do autor na organização do todo da obra, quanto uma posição enunciativa, isto é, a posição do autor. Em relação ao papel ativo e responsivo do autor, este se expressa no campo do objeto e do sentido, visto que o “autor é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo do personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. [1979], p.10). Com esse enfoque, faz-se necessário conhecer o todo de uma obra para depreender a autoria, isto é, o projeto de dizer do autor:

O autor se encontra naquele momento inseparável em que o conteúdo e a forma se fundem intimamente, e é na forma que mais percebemos a sua presença. [...] o verdadeiro autor não pode tornar-se imagem, pois é o criador de toda a imagem, de todo sistema de imagens da obra (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. [1979], p.399).

Para o Círculo, a seleção dos recursos linguísticos e dos gêneros do discurso é decorrente da intencionalidade do autor. Isso ocorre porque a situação da enunciação acaba por determinar as especificidades estilístico-composicionais, e a escolha do gênero do discurso medeia a situação de interação. Assim sendo, todo enunciado tem como ponto de partida, para a sua estruturação, um posicionamento axiológico, uma posição autoral. Em relação ao autor-criador da obra e sua atividade, Bakhtin explica que o autor fora de sua obra é um homem que vive a sua história, mas enquanto autor-criador (dentro da obra) situa-se fora dos cronotopos2 2 Bakhtin (1998 [1975]) entende que as situações sociais de interação são constituídas por uma instância de tempo e espaço definidos, o cronotopo. Por isso, investigou os discursos no romance para compreender a representatividade das experiências sociais, históricas e culturalmente construídas a partir do cronotopo artístico-literário do mundo por ele representado, tendo como atividade a composição da obra.

Já sobre a questão do ouvinte-leitor, sua posição cronotópica e seu papel de renovador da obra, o autor afirma apenas que “toda a obra literária é dirigida para fora de si, para o ouvinte-leitor e, em certa medida, antecipa suas possíveis reações” (BAKHTIN, 1998BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP: Hucitec, 1998, p.211-362. [1975], p.361, grifos do autor). Bakhtin afirma que a dimensão cronotópica dos enunciados se estende para outros domínios, pois “qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos” (BAKHTIN, 1998BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP: Hucitec, 1998, p.211-362. [1975], p.362).

Desse modo, a identificação do cronotopo nas produções discursivas, como o jornal escolar O colegial (1945-1950), pode auxiliar a nos revelar a visão de homem, de sociedade e cultura de determinado tempo histórico, e essa é uma visão axiológica e ideologicamente construída da realidade. Por isso, retomamos Acosta-Pereira e Rodrigues (2014, p.189), quando afirmam que o cronotopo “[...] é, de fato, o campo de visão axiologicamente marcado para [os] eventos [do homem]”; e buscamos depreender o cronotopo predominante ou englobador no qual o jornal escolar O colegial estava inserido através da análise da dimensão social e histórica.

Na perspectiva da teoria bakhtiniana, Alves Filho (2006)ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo , v. 50, n. 1, p.77-89, 2006. apresenta o seguinte agrupamento das possibilidades de autoria: autoria de caráter individual privado; autoria de caráter socioprofissional; autoria institucional e autoria cultural. O primeiro tipo de autoria, autoria de caráter individual privado, refere-se aos casos em que o autor assume a responsabilidade do seu dizer como indivíduo da vida privada. Na autoria de caráter socio-profissional, “[...] há uma superposição entre posição-indivíduo e a classe sócio profissional, de modo que as referências a primeira pessoa são também uma referência a toda classe socio-profissional ao qual o autor se vincula”. A autoria institucional é definida como aquela em que “[...] a voz que fala e assume a conclusividade e a posição axiológica é a voz de uma empresa ou entidade, havendo deliberadamente o apagamento a qualquer referência que aponte para o redator individual [...]”. Na autoria cultural, a responsabilidade pelo dizer ultrapassa o indivíduo e as instituições, ancorando-se em universo cultural mais amplo. Esse agrupamento de autorias não pretende ser uma classificação taxionômica, porque o autor concebe que a autoria se constitui nas práticas sociais de linguagem, tendo como base a abordagem de autor/autoria do Círculo de Bakhtin. Mas essa proposta de Alves Filho e nosso referencial téorico-metodológico nos auxiliam a analisar com uma visão exotópica o nosso objeto de análise, ou seja, a concepção de autoria no jornal escolar O colegial.

2 A trajetória da pesquisa e metodologia

Nossa pesquisa sobre a produção de jornais em Santa Catarina teve início na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPSC), situada na cidade de Florianópolis/SC, onde fomos informados sobre um projeto de ampliação de seu acervo: o “Catálogo de Jornais Catarinenses: 1831-2013”. A maioria desse material está digitalizada e disponível para consulta no site da Fundação Catarinense de Cultura como parte integrante da Hemeroteca Digital Catarinense3 3 Este projeto foi desenvolvido pelo bibliotecário Alzemi Machado em parceria com a Universidade do Estado de Santa Catarina/UFSC (UDESC). . A partir desse acervo, selecionamos os dados que são compostos pelas seis edições anuais do jornal escolar O colegial, publicadas pelo Colégio Catarinense no período de 1945-50, em Florianópolis, Santa Catarina. Dessas seis edições anuais (Anos I, II, III, IV, V e VI), nossos dados correspondem aos 44 (quarenta e quatro) exemplares.

Partimos do fato de que o jornal escolar O colegial é concebido como um conjunto de enunciados, para delinearmos alguns procedimentos analíticos. Inicialmente analisamos os discursos que incidiam sobre a esfera escolar da época, a partir dos estudos da Historiografia da Educação (SAVIANI, 2013SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.; ROMANELLI, 2014ROMANELLI, O. História da educação no Brasil (1930/1973). Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. 8. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.1). Esse cronotopo predominante dialoga com outros cronotopos que se referem ao ensino secundário catarinense (DALLABRIDA, 2001DALLABRIDA, N. A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense na primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2001., 2012DALLABRIDA, N. Usos sociais da cultura escolar prescrita no ensino secundário. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, SP, v. 12, n. 1 (28), p.167-192, 2012.), aos documentos oficiais do período e à produção de jornais na área educacional (BASTOS, 2013BASTOS, M. Escritas estudantis em periódicos escolares. Revista Educação, Porto Alegre, v.10, n. 40, p.7-10, 2013.; AMARAL, 2013AMARAL, G. Reflexões sobre a produção de jornais estudantis em escolas de ensino secundário (1930-1960): a contribuição da obra Jornais escolares de Guerino Casasanta. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação. Cuiabá: UFMT, 2013. v.1. p.1-11.). Na sequência, retomamos os já-ditos sobre o Colégio Catarinense e a pedagogia católica para situarmos a dimensão social mais imediata do jornal escolar O colegial. Por fim, analisamos a constituição da autoria nas edições do jornal escolar (1945-50) e, como recorte desses dados, no gênero discursivo expediente.

3 A dimensão social e histórica de O COLEGIAL

Cada esfera social tem uma finalidade ideológico-discursiva e, por isso, um modo particular de se orientar para a realidade. Assim sendo, as esferas produzem produtos e discursos sob certo ângulo, de uma dada posição axiológica, o que significa um modo específico de significar a realidade e refratá-la, uma vez que, “no interior do próprio campo dos signos, isto é, no interior da esfera ideológica, há profundas diferenças, pois fazem parte dela a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica e assim por diante (VOLOCHÍNOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Do Círculo) Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017., [1929], p.94).

A sociedade moderna e contemporânea instituiu que a esfera escolar é o local que tem como função o ensino/aprendizagem de conhecimentos sistematizados e de práticas interativas, considerados relevantes para a formação dos sujeitos em determinado período histórico e social. Não obstante, a escolha de determinados saberes e de metodologias de ensino indica uma dada posição ideológica, uma vez que a opção por determinada pedagogia em detrimento de outra a ser desenvolvida nas práticas de ensino demonstra o predomínio de valores que marcam diferentes posições axiológicas em relação à concepção de educação e de formação dos sujeitos.

No tocante à história da educação brasileira, Saviani (2013)SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013. propõe que as ideias pedagógicas no Brasil podem ser agrupadas em quatro períodos, com base na noção de predominância ou hegemonia. O primeiro (1559-1759) é caracterizado pelo monopólio da vertente religiosa da pedagogia tradicional, que se divide em: pedagogia brasílica (1549-1599) e pedagogia jesuítica ou a Ratio Studiorum (1599-1759). No segundo período (1759-1932), há a coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da pedagogia tradicional. No terceiro período (1932-1961), predomina a pedagogia nova, com as seguintes fases: o equilíbrio entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (1932-1947), o predomínio da pedagogia nova (1947-1961) e a crise da pedagogia nova e a articulação da pedagogia tecnicista (1961-1969). O quarto período (1969-2001) se caracteriza pela configuração da concepção pedagógica produtivista.

Com base em Saviani (2013SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013., 2015)SAVIANI, D. A trajetória da pedagogia católica no Brasil: da hegemonia à renovação pela mediação da resistência ativa. In: SAVIANI, D. História do tempo e tempo da história: estudos de historiografia e história da educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2015. p.55-67., nossos dados se inserem em parte do terceiro período (1932-1961). Os discursos pedagógicos da época situada entre a Revolução de 30 e o final do Estado Novo demonstram um equilíbrio tenso entre as influências das concepções humanista tradicional dos católicos e da moderna dos pioneiros da Educação Nova, promovendo certa hegemonia entre essas duas correntes educacionais na história das ideias pedagógicas do nosso país (SAVIANI, 2013SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.). Esses discursos se situam em dois cronotopos distintos que estão em relação dialógica de embate, confronto, mas fazem parte de um cronotopo maior, englobador, que seria o do discurso autoritário do governo Vargas (1937-1945). Como enunciador das diretrizes da educação brasileira, podemos dizer que o discurso desse governo tinha como finalidade implantar o projeto de “modernização conservadora” na educação brasileira.

A partir da retomada do processo democrático no Brasil, com a posse de Dutra no fim de janeiro de 1946, começam a ocorrer mudanças nos discursos educacionais. A promulgação da Constituição de 1946, “caracterizada pelo espírito liberal de seus enunciados” (ROMANELLI, 2014ROMANELLI, O. História da educação no Brasil (1930/1973). Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. 8. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014., p.175), estabeleceu (artigo 5º, inciso VI, letra “d”) que cabe à União legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional4 4 Segundo Saviani (2013), os educadores renovadores são chamados pelo ministro da Educação e Saúde, Clemente Mariani, para integrar uma comissão com outros educadores católicos a fim de elaborar um anteprojeto para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Tal projeto suscitou inúmeros debates e entraves provenientes das divergências ideológicas entre os educadores tradicionais e os renovadores. Com isso, a aprovação da nossa primeira LDB ocorreu apenas em 20 de dezembro de 1961, entrando em vigor em 1962. . Essas alterações, segundo Saviani (2013)SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013., fortaleceram a retomada das ideologias dos educadores renovadores e forçaram os educadores católicos a promover mudanças nas suas práticas educativas.

Para Saviani (2015)SAVIANI, D. A trajetória da pedagogia católica no Brasil: da hegemonia à renovação pela mediação da resistência ativa. In: SAVIANI, D. História do tempo e tempo da história: estudos de historiografia e história da educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2015. p.55-67., a pedagogia católica no Brasil buscava se adaptar às mudanças que ocorriam na sociedade brasileira, que estavam articuladas, na esfera educacional, aos avanços das ideias novas, o que originou a “Escola Nova Católica”. Como “não [há] neutralidade dos discursos, uma vez que estes são sempre marcados pela valoração de uma dada ideologia” (PEREIRA, R.; RODRIGUES, R. 2014, p.178), o Colégio Catarinense passou a incorporar, no seu discurso pedagógico, os métodos de ensino renovadores, como a ênfase às atividades complementares e, dentre essas, a de produção do jornal escolar O colegial (1945-1950).

Esse jornal era uma das atividades do Grêmio Cultural “Padre Schrader”, sendo produzido pela direção, estudantes, professores do Colégio Catarinense, e ainda tinha a participação de antigos alunos. O primeiro exemplar desse jornal escolar foi publicado em 1945. Na voz de Dallabrida (2012)DALLABRIDA, N. Usos sociais da cultura escolar prescrita no ensino secundário. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, SP, v. 12, n. 1 (28), p.167-192, 2012.,

[...] O ano letivo de 1945, no Colégio Catarinense, iniciou com uma novidade: o lançamento do primeiro número do jornal “O Colegial: órgão dos alunos do Colégio Catarinense”. O título reforçava o status de “colégio” conseguido pelo estabelecimento dos padres jesuítas em 1943, ou seja, a partir daquele ano ele passava a oferecer os dois ciclos do ensino secundário - ginasial e colegial - determinados pela Lei Orgânica do Ensino Secundário (p.147).

Essa publicação estava em consonância com os discursos e ideologias da Escola Nova e da legislação educacional, no que se refere às Leis Orgânicas do Ensino Secundário, que enfatizavam as atividades complementares. Além disso, a legislação catarinense reafirmou o discurso oficial federal, pois instituiu a Escola Nova em Santa Catarina através da promulgação do decreto n. 2991, de 28 de abril de 1944SANTA CATARINA. Decreto n.2991, 28 de abril de 1944. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.. Com essas ações, o Colégio Catarinense passa a incorporar ao seu discurso educacional as práticas de ensino renovadoras, como as que propunham o trabalho em grupos para estimular o próprio esforço do educando; mas, ao enunciá-las, atribuía os valores da pedagogia tradicional católica visando manter sua posição axiológica no cenário da educação catarinense da época.

4 A constituição da autoria em O colegial - órgão dos alunos do Colégio Catarinense

O primeiro número do jornal escolar O colegial foi publicado em janeiro de 1945, e procurava acompanhar os discursos da pedagogia renovadora que incidiam na esfera escolar brasileira daquela época, conforme abordamos anteriormente. A partir daí, constituiu-se uma publicação periódica do Colégio Catarinense de 1945 a 1950. A periodicidade dessas edições era mensal, mas alguns números continham duas edições agrupadas, em decorrência das férias escolares dos alunos no meio e no final de cada ano letivo.

Para reafirmar sua posição axiológica na sociedade catarinense, ou seja, uma instituição educacional católica que adotava a pedagogia tradicional renovada, o Colégio Catarinense passou a adotar algumas das metodologias de ensino provenientes da Escola Nova e da legislação educacional como, por exemplo, a elaboração de um jornal escolar. Por isso, o projeto de dizer de O colegial - Órgão dos alunos do Colégio Catarinense - tinha como interlocutores não apenas os estudantes e os seus pais, mas também os antigos alunos, as autoridades catarinenses (políticas, religiosas, educacionais, jornalísticas, dentre outras) e os demais sujeitos que integravam essa comunidade escolar e a sociedade catarinense daquela época.

Como “todo discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, à sua compreensão e a sua efetiva resposta potencial, essa orientação a outro, a um ouvinte, pressupõe inevitavelmente que se tenha em conta a correlação sócio-hierárquica entre ambos os interlocutores (VOLOCHÍNOV, 2013VOLOCHÍNOV, V. (Do Círculo). A construção da enunciação. In VOLOCHÍNOV, V. Trad. João Wanderley Geraldi. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos, SP: Pedro &Editores. 2013. p.157-188. [1930], p.168, grifos do autor)”. Assim sendo, a organização editorial de O colegial era composta pela direção do Colégio Catarinense, pelos professores (os padres jesuítas), estudantes dos ensinos superior e secundário, antigos alunos do colégio e, eventualmente, pelas autoridades eclesiásticas, civis e militares, integrando a cultura escolar dessa instituição educacional.

Na leitura das edições de O colegial, depreendemos certas regularidades quanto aos temas dos discursos, a saber: datas cívicas e religiosas; heróis nacionais; santos da Igreja Católica; fatos da vida escolar; homenagens; esportes; literatura (resenhas de livros, poemas, hinos, contos, crônicas, peças teatrais, etc.); memórias do colégio; orientações pedagógicas e educacionais; atividades extracurriculares; lazer (piadas, charge, etc.); e algumas outras matérias, abordando assuntos nacionais e internacionais relacionados aos valores difundidos pelo Colégio Catarinense e pela pedagogia católica.

Numa análise verbo-visual da capa do jornal (vide Anexo), temos, na parte superior, o brasão do Colégio Catarinense dessa época (1945), o nome do jornal e a ilustração da ponte Hercílio Luz de Florianópolis, SC. O brasão é composto pelo símbolo da Companhia de Jesus, colocado na parte superior esquerda do cabeçalho, para estar em destaque para o leitor. Com isso, é enfatizado que o jornal escolar é publicação de um grupo de sujeitos ligados à educação tradicional de base católica, como aponta o texto visual do edifício do Colégio Catarinense. Acima dele, está o símbolo da Companhia de Jesus, ou seja, dos padres jesuítas, uma vez que o Colégio Catarinense integra o conjunto de instituições educacionais católicas que seguem a pedagogia inaciana. No centro, temos cinco estrelas e, do lado direito, temos a letra C que remete às iniciais do Colégio Catarinense, ou seja, essa instituição educacional teria os requisitos necessários para atuar como Colégio, segundo a legislação educacional da época. A imagem enfatiza que o Colégio Catarinense se situa geograficamente na capital do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, e faz uma relação entre o nome do colégio e a palavra catarinense, uma vez que as pessoas nascidas nesse estado são assim denominadas por esse adjetivo pátrio.

O nome do jornal escolar se encontra ao centro do cabeçalho e em destaque, tanto em relação ao tamanho das letras quanto pela tipologia da letra. A disposição gráfica do nome ao centro está dividindo a página em duas partes: acima o brasão do Colégio Catarinense e embaixo a cidade de Florianópolis, apontando que a passagem por esse caminho - o do Colégio Catarinense - seria um marco na trajetória do sujeito, uma vez que a ideologia dessa instituição destaca o esforço nos estudos para a futura inserção na sociedade florianopolitana.

A denominação O colegial também se refere ao período da educação brasileira em que os ginásios passaram a oferecer o curso colegial, com duração de três anos, nas seguintes modalidades: curso clássico e científico. Essa escolha aponta que o Colégio Catarinense estava se posicionando axiologicamente enquanto instituição educacional que seguia as disposições legais daquela época e que oferecia os dois níveis de ensino do secundário, o ginasial e o colegial. Como o Colégio Catarinense seguia a legislação educacional da época, o jornal escolar utiliza a palavra órgão, no sentido de publicação periódica e impressa, na segunda parte do título: O Colegial, órgão dos alunos do Colégio Catarinense. Essa expressão indica que o jornal escolar seria uma publicação dos estudantes do Colégio Catarinense, pois marca o enunciador e o local de enunciação. No entanto, como discorremos mais adiante, esse discurso tinha apenas a intencionalidade de posicionar o Colégio Catarinense, frente a sociedade catarinense daquela época, como uma instituição educacional que estava seguindo as mudanças na educação da época propostas pelos renovadores.

A ilustração da ponte Hercílio Luz, situada em Florianópolis, é um dos símbolos dessa cidade, bem como a imagem da natureza com o mar e o sol se pondo ao fim do dia. Em uma tarja abaixo dessa parte gráfica são apresentadas as informações da edição: Ano 1, local de publicação - Florianópolis, a data de sua publicação (01/1945) e o número (1). A distribuição de informações do cabeçalho do jornal seguiu as “instruções” do Decreto 2.991 de 28 de abri1 de 1944, que propunha: “o corpo do jornal compreende o seguinte: o título, a localidade, o município, a data, o número, o ano e o nome dos dirigentes”.

Por fim, um dos símbolos do Colégio Catarinense é a imagem de Santa Catarina, padroeira do Colégio, que se encontra na primeira página do jornal ao lado da Apresentação. Esse signo visual indica que a publicação do Colégio Catarinense tem como valores os ideais cristãos da Igreja Católica (esfera religiosa). Abaixo dessa imagem, temos um espaço destinado às seguintes homenagens a sujeitos pertencentes aos grupos sociais das esferas política, religiosa, educacional e militar, respectivamente: a S. Ex.ª Dr. Nereu Ramos, interventor Federal em Santa Catarina; a S. Ex.ª Rev. D. João Domingues de Oliveira, arcebispo metropolitano; aos Ex.º Inspetores do Colégio Catarinense, ciclo ginasial e colegial; ao Rev. P. Diretor do Colégio Catarinense, e as demais autoridades civis, militares e eclesiásticas de Santa Catarina.

Em nossa análise inicial das seis edições de O colegial, não encontramos indícios de que a autoria seria dos estudantes, como enunciado no título, formado pelo substantivo “órgão” seguido de locução adjetiva: “dos alunos do Colégio Catarinense”. Os discursos apontam para os valores da pedagogia católica e inaciana, que são enunciados através de signos verbal (os textos do jornal) e visual (fotografias do prédio do Colégio Catarinense, das atividades dos estudantes, dos passeios, das turmas, dos esportes, entre outras). Isso porque o projeto de dizer de O colegial visava destacar a vida dos estudantes no Colégio Catarinense e o papel desse estabelecimento educacional em sua formação científica e moral. Os valores enunciados são o esforço nos estudos e a disciplina individual, com base nos valores cristãos e nacionalistas, com a intencionalidade de persuadir os estudantes de que “esse era o caminho” para adquirir “a formação moral e científica”, e assim “poder se integrar na sociedade e ter um futuro próspero”. Essa ideologia perpassou os discursos de todas as edições do jornal, o que nos remete a Bakhtin quando trata do significado temático do cronotopo, cujo papel é de organizar os principais acontecimentos dos fatos narrados, ou seja, das narrativas sobre o Colégio Catarinense. Por isso, consideramos que o tema Colégio Catarinense é o cronotopo predominante a partir do qual os enunciados de O colegial se organizam, e essa dimensão cronotópica afeta tanto a produção quanto a compreensão de seus enunciados.

Na análise das edições de 1949, um dado relevante foi o de que não houve a participação dos estudantes e dos antigos alunos na produção de textos para o jornal escolar, pois os textos publicados eram apenas de autoria institucional (ALVES FILHO, 2006ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo , v. 50, n. 1, p.77-89, 2006.). Em uma nova leitura desta edição, encontramos, na coluna do Grêmio Padre Schrader (O colegial, n.7, 1949, p.2), um texto de autoria de um professor que tinha como projeto de dizer convencer os estudantes a participar das atividades desse grupo de estudos e do jornal escolar. Ao comparamos essa edição com as de 1945 a 1948, em que havia a participação dos estudantes na autoria dos textos, desde que fossem enunciados os temas elegidos pela direção do Colégio Catarinense, consideramos relevante investigar os motivos que podem ter levado a um aparente silenciamento das vozes dos estudantes a partir de 1949.

Com esse dado, retomamos a análise das edições de O colegial dos anos de 1945 a 1948. Na leitura, notamos que, apesar de diferentes vozes enunciadas nos textos (a direção do Colégio Catarinense, os professores, os estudantes que cursavam o ensino secundário, os antigos alunos do colégio, bem como, mais eventualmente, as autoridades catarinenses)5 5 RUIZ (2017c). , os discursos endossam a posição axiológica do Colégio Catarinense, ou seja, uma só voz, caracterizando a autoria institucional (ALVES FILHO, 2006ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo , v. 50, n. 1, p.77-89, 2006.), concebida como “[...] a voz que fala e assume a conclusividade e a posição axiológica [é] a voz de uma empresa ou entidade, havendo deliberadamente o apagamento a qualquer referência que aponte para o redator individual [...]”.

Esse dado nos levou a analisar o gênero expediente no jornal escolar O colegial - órgão dos estudantes do Colégio Catarinense, durante o período de 1945 a 1950, por considerar que, como as produções discursivas são situadas nas esferas da atividade humana, a questão da assinatura em um texto é vista muito além de ser um simples ato, pois indica o reconhecimento do conteúdo deste ato: “não é o conteúdo da obrigação escrita que me obriga, mas a minha assinatura colocada no final, o fato de eu ter, uma vez, reconhecido e subscrito tal obrigação” (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João, 2010. [1920-1924], p.94). Na assinatura de uma obra, engloba-se a dimensão da responsividade do projeto de dizer do autor inserido em relações sociais e culturais estabelecidas dentro de determinados papéis sociais dos sujeitos, constituídos conforme seu pertencimento nos grupos sociais.

3.1 O gênero discursivo expediente

Na análise, depreendemos que o expediente foi publicado somente no segundo ano de O colegial, em 1946 (Ano II), e no terceiro número. A partir deste número, torna-se constante nas edições subsequentes, a saber: 1947, 1948, 1949 e 1950. O primeiro expediente (1946, p.2) apresentava as seguintes informações, constantes no quadro 1. Nesse ano, os dados indicam que um grupo de sujeitos, com funções distintas, era responsável pela edição e linha editorial do jornal escolar O colegial, jornal escolar do Colégio Catarinense.

Quadro 1
Primeiro expediente no jornal escolar O COLEGIAL (1946)

Esse expediente se manteve inalterado até o número 2 do ano de 1947, ano em que foi alterado o nome do diretor do Colégio Catarinense, sem aparecer mais as funções e os respectivos nomes de gerente e redatores, sendo enfatizado que o jornal escolar está “sob a responsabilidade da Diretoria do Estabelecimento”, conforme quadro 2.

Quadro 2
Segundo expediente no jornal escolar O COLEGIAL (1947)

Em 1948, quarto ano de publicação do jornal escolar O colegial, ocorre nova alteração no expediente, pois são tiradas as funções de Diretor e Gerente, com seus respectivos nomes, reafirmando que essa publicação é de “responsabilidade da Diretoria do Estabelecimento”, conforme quadro 3.

Quadro 3
Último expediente no jornal escolar O COLEGIAL (1948)

O expediente acima se manteve inalterado nos anos seguintes: 1949 e 1950. Nesse período, observamos que há poucos textos dos estudantes publicados no jornal. Essa análise nos indicou que foi alterada, significativamente, a responsabilidade por essa publicação e, com isso, a seleção dos textos (1945-1950). Esses dados e a análise das edições do jornal escolar O colegial apontou que, apesar de ser enunciado desde o primeiro número em 1945 que essa publicação tinha sido criada para dar voz aos estudantes e pelo título - O colegial - órgão dos alunos do Colégio Catarinense, para demonstrar que essa instituição de ensino estava em consonância com o discurso pedagógico renovador da época, a publicação defendia o discurso da pedagogia tradicional católica, tendo em vista que prevalecia a palavra autoritária, pois a autoria estava sob a responsabilidade apenas da Diretoria do Estabelecimento.

A análise dos dados apontou que ocorria uma seleção dos discursos veiculados por essa publicação, mas, nos anos iniciais (1945 e 1946), havia mais liberdade de expressão do que a partir de 1947, quando essa publicação passa a estar “Sob a responsabilidade da Diretoria do Estabelecimento”. Ademais, apesar da redemocratização do país e da Constituinte de 1946, que iniciou um processo de renovação econômica e cultural, o discurso normativo voltou a prevalecer na esfera escolar. Geraldi (2010, p.21-27)GERALDI, J. Tranças do poder, dança dos letrados: a infatigável tarefa de frear a língua. In: GERALDI, J. A aula como como acontecimento. São Carlos, SP: Pedro & Editores, 2010, p.13-27. discorre sobre a relação entre a reflexão sobre a língua e o exercício do poder no Brasil desde meados do século XIX até os dias atuais. Nesse período, destacamos a posição desse autor em relação à redemocratização de 1945 e a Constituição de 19466 6 Vide capítulo 04 de RUIZ (2017c). . Segundo ele, “em termos de língua, reencontra-se a necessidade de corrigir (ou fazer calar). São desse período as gramáticas ainda hoje editadas (com exceção de Rocha Lima, um pouco anterior”. Esse contexto pode explicar, de certo modo, as mudanças ocorridas no Expediente e nos discursos desse jornal escolar, que, inicialmente propuseram dar voz aos estudantes (1945-46), influenciados pela corrente renovadora da Escola Nova, e, em seguida, voltam ao controle dos discursos escritos de O colegial (1947-50), decorrente da nova posição do Colégio Catarinense frente ao novo contexto histórico do país.

Considerações finais

A proposta editorial inicial de O colegial - órgão dos alunos do Colégio Catarinense - era a de ser um jornal escolar estudantil que representasse a voz dos estudantes e da instituição educacional, no caso o Colégio Catarinense, o que estava em consonância com os discursos educacionais (Escola Nova) e da legislação oficial da época que reafirmava as ideologias dos educadores renovadores. O projeto de dizer dessa publicação é enunciado na Apresentação: “abordar a vida colegial, estabelecer uma maior proximidade com os estudantes e a comunidade escolar, incentivar a cultura das letras, estabelecer um elo entre a teoria das disciplinas e a prática, principalmente auxiliando os alunos na ‘difícil arte de escrever’, promover o intercâmbio literário e ser o portador das lembranças dos antigos alunos”. Esse discurso pedagógico sobre a função do jornal escolar O colegial está em conformidade com as diretrizes propostas pela Escola Nova, o que evidencia que essa instituição procurava se adaptar às tendências pedagógicas em relevância naquele momento histórico.

No entanto, esse discurso das edições de 1945 e 1946 visava apenas persuadir os interlocutores de que a educação católica foi renovada porque incorporou o discurso renovador daquela época, uma vez que eram mantidos os valores da pedagogia inaciana. A partir de 1947, esse discurso foi gradativamente se alterando até reafirmar que se tratava de um jornal escolar institucional, com base nas ideologias e valores da pedagogia tradicional católica. Esse artigo também foi decorrente dos temas publicados a partir das edições de 1948, e da pouca participação dos estudantes tanto na organização do jornal, como enunciado no primeiro expediente, quanto nas autorias dos textos em 1949 e 1950, ano de sua última publicação.

Como vimos na seção teórica sobre o autor/autoria no Círculo de Bakhtin, podemos dizer que, no jornal escolar O colegial, a autoria se constitui como autoria institucional, que é definida como aquela em que “[...] a voz que fala e assume a conclusividade e a posição axiológica é a voz de uma empresa ou entidade, havendo deliberadamente o apagamento a qualquer referência que aponte para o redator individual [...]” (ALVES FILHO, 2006ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo , v. 50, n. 1, p.77-89, 2006., p.20). Com isso, consideramos que a posição axiológica de O colegial era a de persuadir os estudantes e os interlocutores dessa publicação sobre a proposta educacional do Colégio Catarinense: a pedagogia tradicional de base inaciana e os valores nacionalistas daquele período histórico da sociedade brasileira. Esse discurso tinha a intencionalidade de demonstrar que o Colégio Catarinense seria a melhor opção para a formação educacional, intelectual e moral dos estudantes por promovê-los ao ensino superior e, em consequência, à futura inserção profissional na sociedade catarinense, sendo silenciadas as vozes estudantis contrárias a esses valores.

  • 1
    Segundo Saviani (2013)SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013., Lourenço Filho foi um dos principais divulgadores e defensores das ideias pedagógicas da Escola Nova no Brasil. Em Introdução ao estudo da Escola Nova (1930), Lourenço Filho explica o que se deve compreender por Escola Nova e as suas bases científicas dessas propostas: os estudos de biologia, psicologia e sociologia.
  • 2
    Bakhtin (1998 [1975])BAKHTIN, M. O discurso na poesia e o discurso no romance. In BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: UNESP: Hucitec, 1998, p.85-106. entende que as situações sociais de interação são constituídas por uma instância de tempo e espaço definidos, o cronotopo. Por isso, investigou os discursos no romance para compreender a representatividade das experiências sociais, históricas e culturalmente construídas a partir do cronotopo artístico-literário
  • 3
    Este projeto foi desenvolvido pelo bibliotecário Alzemi Machado em parceria com a Universidade do Estado de Santa Catarina/UFSC (UDESC).
  • 4
    Segundo Saviani (2013)SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013., os educadores renovadores são chamados pelo ministro da Educação e Saúde, Clemente Mariani, para integrar uma comissão com outros educadores católicos a fim de elaborar um anteprojeto para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Tal projeto suscitou inúmeros debates e entraves provenientes das divergências ideológicas entre os educadores tradicionais e os renovadores. Com isso, a aprovação da nossa primeira LDB ocorreu apenas em 20 de dezembro de 1961, entrando em vigor em 1962.
  • 5
    RUIZ (2017c).
  • 6
    Vide capítulo 04 de RUIZ (2017c).

ANEXO

Fig. 1: O colegial, Florianópolis, jan. 1945, n. 1, Ano I, p.1.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2017
  • Aceito
    02 Nov 2018
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