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A semiosfera colocada à prova pela enunciação antropossemiótica

RESUMO

A confrontação entre o modelo da semiosfera, a teoria greimasiana e a antropologia contemporânea coloca em evidência a dificuldade de se implementar uma epistemologia da diversidade a partir da obra de Lotman. Essa dificuldade leva a questionar sistematicamente as condições necessárias para uma enunciação antropológica, convocando em particular as posições de Descola, Latour e Viveiros de Castro. Esta confrontação busca atualizar o modelo de semiosfera.

PALAVRAS-CHAVE:
Semiosfera; Enunciação; Antropossemiótica; Alteridade

ABSTRACT

The confrontation between the model of semiosphere, the Greimassian theory and contemporary anthropology highlights the difficulty of implementing an epistemology of diversity starting from Lotman's work. This difficulty leads to question systematically the conditions required for an anthropological enunciation, in particular summoning the positions of Descola, Latour and Viveiros de Castro. This confrontation tries to update the semiosphere model.

KEYWORDS:
Semiosphere; Enunciation; Anthropo-semiotics; Otherness

RÉSUMÉ

La confrontation entre le modèle de la sémiosphère, la théorie greimassienne et l’anthropologie contemporaine met en évidence la difficulté à mettre en œuvre une épistémologie de la diversité en partant de l’œuvre de Lotman. Cette difficulté conduit à interroger systématiquement les conditions requises pour une énonciation anthropologique, en convoquant en particulier les positions de Descola, Latour et Viveiros de Castro. Cette confrontation s’efforce de réactualiser le modèle de la sémiosphère

MOTS-CLÉS:
Sémiosphère; Énonciation; Anthropo-sémiotique; Altérité

1 A semiosfera à prova1 1 Este estudo retoma certos aspectos de FONTANILLE, 2000.

O diálogo aqui proposto, entre a teoria semiótica de Lotman, aquela que resulta do trabalho de Greimas, e as posições da antropologia contemporânea, tem por objetivo localizar na semiótica de Lotman as propriedades que permitiriam acesso a uma dimensão antropossemiótica mais geral. Trata-se, em suma, de avaliar a atualidade científica do modelo da semiosfera e, se possível, de identificar sob quais condições ele poderia ser atualizado. Esse modelo adota desde o início um escopo antropológico geral transversal, mesmo universal, que ele recebe de sua definição a partir do funcionamento natural observado em todo o mundo vivo (a biosfera). Ele deve, portanto, ser confrontado à epistemologia da diversidade, fundadora de uma perspectiva antropossemiótica. Neste caso, como vamos mostrar, o modelo antropológico que coloca mais problemas àquele da semiosfera é a antropologia perspectivista de Viveiros de Castro.

O desafio não é pequeno, e vai muito além da ambição limitada desta contribuição, pois seria necessário identificar as condições específicas e restritivas que permitam reconhecer hoje, no modelo da semiosfera, uma validade científica renovada, mas circunscrita, e de relacionar essas condições àquelas, mais gerais, que fundam a possibilidade de uma enunciação e de um discurso antropológicos. Essa última menção já constitui uma delimitação de nossa pesquisa: ao colocar o foco sobre as condições necessárias para que uma enunciação possa ocorrer e produzir as semioses interpretáveis, não somente tocamos o próprio coração da epistemologia de dimensão antropológica, mas, além disso, tomamos posição acerca do tipo de semiótica que nos parece a mais apropriada para tratar da confrontação entre a semiosfera de Lotman e os outros tipos de abordagem.

A enunciação pode ser definida, de maneira geral, como o conjunto de atos que realizam e fazem existir as configurações semióticas (as “semióticas-objeto”, nos termos de Hjelmslev ou de Greimas). Para realizar e fazer existir as semioses, a enunciação deve satisfazer certas condições, que são mais frequentemente as modalidades da experiência subjacente e do modo de existência visado. As semioses em questão são de alcance, composição e de complexidade muito variáveis2 2 Já propusemos uma tipologia de planos de pertinência (signos, textos-enunciados, objetos, práticas, estratégias e formas de vida) em Pratiques sémiotiques (2008), revisado (signos, obras, práticas, existências) em Terres de sens (2018). , desde os textos até formas de vida e de existência: no limite, como mostrado por Philippe Descola (2005DESCOLA, Ph. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005. e 2015)DESCOLA, Ph. La composition des mondes. Entretiens avec Pierre Charbonnier. Paris: Flammarion, 2015., eles suscitam e instauram “mundos” inteiros, ou, conforme Bruno Latour (2012)LATOUR, B. Enquête sur les modes d’existence. Une anthropologie des Modernes. Paris: La Découverte, 2012., “modos de existência”. Se nos referimos à posição original de Greimas, em Semântica estrutural (GREIMAS, 1966GREIMAS, A.J. Sémantique structurale. Paris: Seuil, 1966.), a significação seria pesquisada em “universos de sentido” de grande amplitude, mas que, por razões baseadas nas escolhas e limitações metodológicas da época, eram inacessíveis à análise; Greimas propôs, então, circunscrever a construção da significação aos “micro universos de sentido” apreendidos imediatamente e de maneira sincrônica pela percepção (GREIMAS, 1966GREIMAS, A.J. Sémantique structurale. Paris: Seuil, 1966., p.126-127). Mas os “universos de sentido” em sua totalidade (os “mundos”) permanecem a explorar, desde que sejam tomadas as disposições metodológicas necessárias para consegui-lo.

Uma dessas disposições é justamente associar a construção da significação desses “mundos” ou “universos de sentido” a das enunciações, elas mesmas sujeitas a certas condições. É nesse sentido que podemos falar de “enunciação antropológica ou antropossemiótica”: trata-se da maneira pela qual as coletividades humanas conseguem suscitar e estabelecer os “mundos” nos quais elas podem encontrar, projetar ou construir o sentido de suas vidas, de suas práticas e de suas interações, principalmente com seus ambientes.

2 A experiência semiótica e o ato semiótico

Segundo Lotman, nos mundos do sentido a experiência precede o ato. No que concerne a produções semióticas, o ato em questão é o da enunciação, que realiza a semiose. A semiosfera é, portanto, um “espaço” semiótico onde são reunidas as condições para que as enunciações se produzam. A experiência semiótica proporcionada pelo espaço, a semiosfera, é a mesma para todos que o ocupam. Encontramo-nos, portanto, no ponto central do tema, sabendo das condições necessárias para tornar possível e legítima a enunciação antropológica, isto é, ao nível de culturas e civilizações inteiras.

Se podemos afirmar que a semiosfera é o espaço onde a competência semiótica toma forma e onde ela se adquire em meio a experiência coletiva, essa formulação convida imediatamente a um confronto com a teoria de Greimas, confrontação que coloca em evidência uma primeira dificuldade: a representação da competência semiótica assume nesta última a forma de um percurso gerativo, de uma estratificação linear de níveis de pertinência, enquanto que a de Lotman repousa sobre um espaço tridimensional de diálogo, dotado de fronteiras, de um centro e de uma periferia.

O percurso gerativo é concebido para ordenar de maneira racional e a priori as articulações semióticas partindo de uma estrutura elementar isotópica; ele postula, portanto, globalmente, como condição de possibilidade do ato semiótico, a coerência e a homogeneidade de uma categoria original, homogeneidade que será conservada até os níveis mais superficiais do percurso gerativo. A semiosfera, pelo contrário, é assimétrica e heterogênea. Ela também supõe uma rearticulação incessante dos conteúdos e das categorias, um aumento da informação e do sentido, mas não de um modo linear:

A estrutura da semiosfera é assimétrica. A assimetria encontra sua expressão nas correntes de tradução internas que tornam permeável toda a espessura da semiosfera [..] E já que na maioria dos casos as diversas linguagens da semiosfera são semioticamente assimétricas, [..] a totalidade da semiosfera pode ser considerada como uma geradora de informação (LOTMAN, 1988LOTMAN, I. La sémiosphère. Traduction A. Ledenko. Limoges: PULIM, 1998., p.8)3 3 Todas as traduções de Lotman (1988) são de responsabilidade das tradutoras do artigo. .

Entendemos, então, que o objeto é bem diferente: não se trata, como em Greimas, de um “universo de sentido”, cuja apreensão levaria à construção da significação, mas de um espaço de informação, que é precisamente concebido para produzir e gerir os fluxos de informações entre semiosferas e no interior de cada semiosfera. O princípio de assimetria se manifesta em “traduções”, que poderiam ser relacionadas ao princípio greimasiano da tradução intersemiótica. Mas, em Greimas, a tradução intersemiótica não é a gestão de um fluxo de informação, mas simplesmente o único meio pelo qual se pode apreender a significação, na passagem de uma semiótica à outra.

A semiosfera é heterogênea porque a estratificação que a caracteriza resulta da coexistência entre diferentes graus de desenvolvimento:

A semiosfera é marcada pela heterogeneidade. As linguagens que preenchem o espaço semiótico são variadas, e conectadas umas às outras ao longo de um espectro que vai de uma possibilidade completa e mútua de tradução a uma impossibilidade igualmente completa e mútua de tradução (LOTMAN, 1988LOTMAN, I. La sémiosphère. Traduction A. Ledenko. Limoges: PULIM, 1998., p.5).

Em todos os lugares da semiosfera, várias camadas de experiência coexistem, várias épocas do devir da cultura se sobrepõem. A heterogeneidade é máxima em sua periferia, e a homogeneidade não é alcançada senão no centro. Por outro lado, a competência semiótica, conforme Greimas, é avaliada somente a partir de um processo significante acabado, estabilizado e homogêneo. Ela implica uma congruência de camadas de significação e, por consequência, ela se ocuparia somente do centro da semiosfera. Na concepção de Lotman, cada enunciação influi a todo momento na organização da competência, movendo o centro, remanejando as camadas sobrepostas: deste ponto de vista, ela se assemelharia à praxis enunciativa definida por Greimas e Fontanille da seguinte maneira:

A práxis enunciativa é esse ir e vir que, entre o nível discursivo e os demais, permite constituir semioticamente culturas. [...] Nesse sentido, a práxis enunciativa concilia um processo4 4 N. T. Na tradução brasileira, “processo”; no francês, “percurso” [parcours]. gerativo e um processo genético e associa no discurso os produtos de uma articulação atemporal da significação e os da história (1993, p.80)5 5 GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. .

O percurso gerativo aparece, nessa confrontação, como estático, no sentido de que ele propicia a imagem de um simulacro de competência coerente e estabilizada, ao qual se deve acrescentar a práxis enunciativa para lhe dar uma dinâmica. Em comparação, a semiosfera aparece imediatamente e sem acréscimo como um movimento permanente, que submete a competência semiótica e as condições das enunciações a incessantes remanejamentos.

Os dois pontos de vista se opõem, especialmente no que concerne à topologia da teoria (um percurso linear entre profundidade e superfície / percursos múltiplos entre exterior e interior, periferia e centro de uma esfera), mas eles se articulam em torno de uma mesma problemática. O ponto de vista do percurso gerativo privilegia o centro de coerência na estratificação semiótica e, por consequência, dá preferência às relações hierárquicas e lineares entre estratos de significação, e delega à praxis enunciativa a tarefa de explorar as outras zonas da semiosfera. O ponto de vista da semiosfera privilegia as interações conflituais ou pacíficas entre zonas de congruência variável e, por consequência, dá preferência a uma outra topologia, uma topologia de campo (centro, profundidade e horizontes).

Essa rápida confrontação ampara a sugestão anterior: a teoria greimasiana pode recobrir a totalidade da semiosfera, mas na condição de completar a competência semiótica construída no percurso gerativo - que coincide com a parte coerente no centro da semiosfera - com a práxis enunciativa - que estende os efeitos até a periferia.

A este ponto da confrontação, a semiosfera parece mais bem adaptada a uma epistemologia da diversidade e a uma perspectiva antropológica, já que comporta, em sua própria definição, o princípio de uma variação contínua, de acidentes aleatórios, de congelamentos provisórios, de rupturas e de bifurcações e, sobretudo, de uma capacidade de armazenamento e de memorização de todos esses eventos semióticos. Mas é preciso discernir bem a razão dessa diferença teórica: para a semiótica greimasiana, é a significação que se deve construir e não, como em Lotman, a informação. Ora, se a informação é muito amplamente difundida na semiosfera e para além dela, a mesma coisa não se pode dizer da significação, que requer certa taxa de redundância e de possibilidades de coerência. Uma vez que o problema estabelecido é o das condições requeridas para uma enunciação antropológica, para que haja enunciação e semiose, a informação não é suficiente e é a significação que está implicada na semiose.

3 Papéis dialógicos e passionais

A co-presença de camadas de sentido na semiosfera é interpretada por Lotman, fiel à tradição da semiótica russa (cf. Bakthin), como uma polifonia implicada num diálogo. Da mesma forma, para a práxis enunciativa, o sujeito da enunciação nunca está solitário, sua enunciação está em interação com todas as enunciações passadas e presentes, às vezes mesmo futuras, e se abre um caminho através delas, sempre fazendo referência, menção ou alusão a algumas dessas outras enunciações.

Desse ponto de vista, a noção de diálogo seria muito redutora, pois faria da interação entre dois actantes o elemento de composição obrigatório da totalidade das interações. Seria necessário, então, adicionar a minima uma lei de propagação dessas relações duais à totalidade da semiosfera. O processo da propagação cultural foi sistematicamente desenvolvido em antropologia teórica por Dan Sperber (Sperber 1996)SPERBER, D. La contagion des idées. Théorie naturaliste de la culture, Paris, Odile Jacob, 1996., numa perspectiva naturalista, individualista e mecanicista; é claro que, nesse caso, o processo de propagação não depende do “diálogo”. E se adotamos uma outra solução antropológica, baseada nas práticas de transmissão e nos processos da tradição, como Paul Ricœur ao longo de sua obra, invocamos a longa cadeia de solidariedades e reatualizações entre enunciações sucessivas e acumuladas, que também estão muito distantes de um “diálogo”, mesmo considerado de maneira bem abrangente.

Além disso, a noção de diálogo não seria nem mesmo apropriada para tratar da semiosfera, já que os interactantes são de antemão definidos por Lotman como a pessoa (nós) e a não-pessoa (eles). A pessoa pode influenciar ou mobilizar a não-pessoa, mas certamente não pode dialogar com ela, salvo se a converter em pessoa (tu, vós)! Seria, portanto, mais prudente começar por estabelecer o princípio das interações multilaterais, constitutivas de um coletivo mínimo e no devir, a precisar em seguida, conforme o caso, os papéis actanciais em formação, assim como os tipos de relações que eles mantêm (incluindo, eventual e localmente, o “diálogo”). Com efeito, de um ponto de vista antropossemiótico, somente podemos invocar relações entre nós e eles, ou entre eu e tu depois de ter compreendido como o coletivo que age e significa na semiosfera toma forma e identidade.

Essa precaução é ainda mais necessária à medida que a heterogeneidade intrínseca da semiosfera já implica a existência de um nós: que reagrupa um conjunto de eu e de tu ou um conjunto de eu-tu e de eles; nós é necessariamente heterogêneo. Essa heterogeneidade implica, então, uma alteridade interna da semiosfera: há tantos outros em seu interior quanto fora dele. Se o coletivo não é um nós homogêneo, um conjunto de “mesmos”, mas sim de “outros”, a questão se coloca então sobre a maneira pela qual se chega a uma significação coerente. É preciso levantar a hipótese de uma força axiológica que reuniria todos esses “outros” aglomerados no centro, e que, inversamente, se enfraqueceria à medida que se aproximasse da fronteira.

Essa força axiológica é uma assunção: assumimos ou não os valores, os objetivos das práticas, as normas e as regras comuns. O que pertence a eles está fora da esfera do nós e, por conseguinte, não é assumido. Os movimentos de integração progressiva das produções semióticas do eles no interior da esfera do nós, movimentos que vamos descrever a seguir, supõem que o nós assume progressivamente essas semioses, até assumi-las totalmente quando atingem o centro da semioesfera. Como vários tipos de semioses se dão ao mesmo tempo, em cada zona da semiosfera coabitam camadas assumidas, outras não, algumas fortemente, outras fracamente.

Para Lotman, a variação da força de assunção se traduz por meio de julgamentos axiológicos: o domínio interior é o da harmonia, da cultura, da segurança; o domínio exterior é o do caos, da barbárie e da ameaça. Os dois domínios se opõem através de diferenças de assunção, que repousam sobre diferenças de percepções dos fatos culturais. A assunção é, com a predicação, uma das duas operações elementares da enunciação: a predicação é o próprio ato de enunciação, e a assunção, sua modalização, pela qual a natureza e a intensidade do vínculo entre a instância da enunciação e aquela que ela enuncia são afirmadas ou negadas.

Essas percepções-assunções repousam sobre duas dimensões semióticas elementares. A primeira, mais cognitiva, visa as semioses através de sua estrutura mereológica interna, as relações entre as partes e sua totalidade (harmoniosas em um caso, caóticas em outro). A segunda, mais afetiva e emocional, visa as semioses através dos fluxos de energia que sustentam ou comprometem os cursos de existência: conforme estes sejam acomodados ou comprometidos, os efeitos do eles sobre o nós são percebidos como segurança ou como ameaça. Mas esses efeitos são variáveis e graduais. Lotman assinala, por exemplo, o brilho inquietante de que se beneficiam os aportes estrangeiros no momento em que entram na esfera do nós: a ameaça no exterior, a inquietação na periferia, a segurança no interior. A semiosfera suscita, assim, uma grande variedade de efeitos passionais, baseados na variedade das percepções afetivas da estabilidade e da instabilidade cultural.

Essas duas dimensões são as duas grandes vias de constituição das semioses: semioses totalizantes de um lado (visando a coerência ou a congruência entre seus componentes), e semiosescursivas e fluentes de outro (visando a persistência, a proteção ou a resiliência dos cursos de existência). Na concepção lotmaniana, elas dão lugar a dois tipos de percepção dos fatos culturais, a percepção cognitiva que captura as relações entre as partes e o todo, e a percepção afetiva que experimenta sua estranheza ou familiaridade, os dois tipos sujeitos a movimentos incessantes no campo da semiosfera (entradas, saídas, integrações, expulsões). Podemos ver melhor, então, sobre o que repousam aqui as condições necessárias para uma enunciação antropológica: as variações de assunção (uma condição necessária para enunciar) são efeitos (ou consequências) da estrutura das semioses a identificar ou a construir, efeitos de sua morfologia semiótica. Trata-se de um caso de estruturas de significação, e não somente de informação.

No entanto, os actantes em presença no campo perceptivo da semiosfera se caracterizam principalmente, conforme Lotman, por sua atividade informativa: cada um à sua vez, eles emitem e recebem, seja na fase ativa, seja na fase passiva. A alternância e as combinações entre esses papéis e essas fases alteram a cada vez a orientação da relação, o nível de atividade, a quantidade da produção cultural, e a intensidade de energia depreendida em cada fase. Isso se expressa nas duas dimensões, nos dois tipos de semioses: quando o nós emite, e o eles recebe, a coerência e a segurança são alcançadas; quando o eles emite, e o nós recebe, a incoerência aparece e a ameaça se faz sentir; globalmente, a orientação centrífuga dos movimentos no campo é coesa e tranquilizadora, enquanto a orientação centrípeta é dispersiva e inquietante. Quando os dois tipos de actantes emitem e produzem ao mesmo tempo (ambos ativos), tem-se as fases intermediárias onde o efeito passional (da inquietude à familiarização, passando pela inquietante familiaridade) depende do equilíbrio entre os dois tipos de atividade.

Entendemos, então, por que tudo isso não pode ser descrito somente como um “diálogo”, e por que o que se passa pode menos ainda ser reduzido a uma troca de informações. Quer seja na perspectiva da semiose mereológica e totalizante, quer na semiose cursiva e fluente, as interações são elas mesmas de uma grande diversidade, muito além de apenas uma troca, bem além da informação apenas. Entendemos igualmente que colocar a categoria nós/eles previamente à definição da semiosfera volta a fundar o modelo sobre um problema não resolvido, ou pior, a impor um obstáculo epistemológico. Pois, antes de poder entender como o coletivo é capaz ou não de assumir as semioses, ainda é necessário saber como ele mesmo é constituído.

4 Esquematização da diversidade

Propomos inicialmente esquematizar os movimentos na semiosfera para avaliar o potencial de diferenciação e de diversificação. Os movimentos no campo conhecem, conforme Lotman, quatro fases principais (não exclusivas de outras combinações): (a) B é ativo em produção, e A é passivo em recepção. (b) A é ativo em recepção, B é passivo em produção. (c) A é passivo em recepção, e B é passivo em produção. (d) A é ativo em produção, e B é passivo em recepção. Cada uma dessas fases é definida da seguinte maneira:

  • (Fase a) A contribuição de B é percebida por A como brilhante e singular, supervalorizada como prestigiosa ou inquietante. A percepção axiológica de A é ambivalente: positiva quanto à surpresa ou ao interesse que a contribuição de B suscita, negativa quanto a sua força subversiva ou distintiva no seio da cultura de acolhida.

  • (Fase b) A contribuição de B é imitada, reproduzida, transposta e traduzida por A nos termos do “próprio” e do “nosso”, o que lhe permite ser difundido e integrado em todo o campo interno. Ele perde então o brilho, assim como sua característica surpreendente e inquietante.

  • (Fase c) A contribuição de B assim integrada não é mais reconhecida como estranha, A lhe retira tudo o que ela tem de específico; A pode mesmo ocultar sua origem estranha, e tudo o que poderia lembrá-la, para melhor a assimilar à cultura de acolhida; o domínio de B parece então ainda mais singular, confuso, incompreensível.

  • (Fase d) A contribuição de B, cuja origem apagamos, pode ser erigida em norma universal, e proposta em retorno não somente nos limites de domínio de A, mas também nos domínios externos, como paradigma de toda cultura.

No “diálogo” entre as semiosferas, os fatos culturais conhecem portanto estados diversos e bem identificáveis: puro brilho, puro escândalo inassimilável, tradução ou simples imitação, especificação marginal, ou ainda produção de formas universais. Os quatro estados selecionados, dentre outras possibilidades, se diferenciam principalmente, de um lado, pela intensidade (forte ou fraca) da atividade e dos afetos, e de outro lado, por uma capacidade (estendida ou restrita) de difusão cultural. O brilho ameaçador da fase (a) se caracteriza assim por uma forte intensidade afetiva e uma fraca difusão. A tradução-replicação na fase (b) enfraquece a intensidade afetiva e aumenta a capacidade de difusão. Na fase (c), a intensidade e a difusão são as mais baixas. Na fase (d) a intensidade e a capacidade de difusão são as mais altas. Essa divisão é representada no diagrama seguinte, onde as flechas plenas representam o percurso canônico conforme Lotman, e as flechas pontilhadas, os percursos disponíveis.


Este esquema é uma estrutura tensiva, que define todas as combinações possíveis entre os graus respectivos da intensidade afetiva (gradiente representado por convenção verticalmente à esquerda) e a capacidade de difusão cultural (gradiente representado por convenção horizontalmente embaixo). Isso implica que o espaço assim definido comporta uma infinidade de posições possíveis, e não apenas quatro. As quatro fases identificadas são definidas pelos graus extremos (máximo e mínimo) nos dois gradientes. O princípio de diversidade é agora adquirido, formalizado, e potencialmente explorável. Resta, e esse não é o problema menor, explorar a significação antropológica.

5 A epistemologia da diversidade

O modelo da semiosfera é colocado por Lotman como universal, e são seus funcionamentos internos que engendram a diversidade. Além disso, esse universal se apoia em dois outros universais: a biosfera de Vernadsky, à qual a semiosfera pertence, e a cibernética, que subentende a análise da produção e da troca de informações. O modelo lotmaniano não pode, portanto, reinvindicar uma epistemologia da diversidade, aquela que funda a antropologia contemporânea.

Erigir a diversidade em princípio epistemológico leva a deslocar o valor de universalidade (ou de generalidade) científica, dos modelos para a estruturação de sua diversidade. Para a antropologia contemporânea, não são os modelos explicativos e o funcionamento da “natureza humana”, como disse ainda Levis-Strauss, que têm um alcance universal ou geral. Estes são, ao contrário, os princípios estruturais de sua diversificação. De fato, se postulamos que existe uma natureza humana, uma somente, e que para conhecê-la é necessário criar um sistema de leis que valem em qualquer tempo e em qualquer lugar, então a diversidade das culturas humans se torna não um verdadeiro objeto de conhecimento, mas um conjunto de acidentes provisórios e marginais que é preciso, na melhor das hipóteses, descrever caso a caso e, na pior, reduzir a leis gerais (como por exemplo “a explosão da cultura”, em Lotman).

Disso decorre, além disso, que essas diversas culturas são hierarquizadas: no alto da lista, as culturas que exprimem e cumprem de modo mais claramente os universais ou os modelos gerais, e na parte de baixo da lista, as outras culturas, tão particulares ou tão exóticas que muitos se autorizam a crer, de boa fé, que é necessário “ajudá-las” a sair de seu estado primitivo e inacabado, para não dizer erradicá-las e substituí-las por culturas mais conformes aos modelos universais. É bem difícil reler serenamente hoje Levis-Strauss quando ele fala do “pensamento selvagem” e de suas diferentes manifestações sem sentir algum embaraço diante da enunciação deste qualificativo “selvagem”: deveríamos colocá-lo no primeiro degrau? Ou como uma menção colocada à distância? E com quantos pares de aspas? Nesse grau de generalidade, podemos temer certa condescendência em relação a um pensamento que não aplica as normas argumentativas do naturalismo científico. Mas, se levamos em consideração as propriedades desse “pensamento selvagem”, a saber, seu caráter mítico e mágico, nós, ocidentais, sabemos que praticamos este regime de significação no cotidiano: certamente, eu penso como um “moderno naturalista” quando falo da semiótica, mas eu pratico sem vergonha o pensamento dito “selvagem”, isto é, mítico e mágico, quando eu cultivo meu jardim, no qual sinto a presença de nossos pais que nos legaram certo arbusto, tal espécie de rosas. Igualmente, quando degustamos um vinho, apreciamos seu terroir, suas tradições de fabricação, as cepas da uva, o carvalho dos barris onde enriqueceu seus aromas e seus sabores, sem nos perguntarmos sobre a natureza dos vínculos entre todas essas propriedades. O pensamento selvagem habita em todos nós, graças à mobilidade que nos proporcionam as mudanças de regimes de significação, e as oscilações de ponto de vista. Voltaremos a isso.

Quando generalizamos os princípios de estruturação e de diversificação, em vez de generalizar os modelos dominantes, não caímos, porém, no relativismo. Pelo contrário, é a escolha dos modelos dominantes que engendra o relativismo: frente à diversidade de culturas atestadas e observadas, somos levados justamente a “relativizar” os modelos dominantes, a admitir que eles sofrem numerosas exeções, e a nos vermos na incapacidade de explicar como podemos passar dos modelos gerais às realizações específicas. Construído a partir do modelo da biosfera, emprestado de Vernadsky, o modelo da semiosfera se apresenta como uma hipótese global e única de organização de todas as culturas, repousando (1) no ambiente que rodeia cada uma delas com uma fronteira permeável a trocas com as culturas vizinhas e estrangeiras, (2) numa topologia interna diferenciada, indo do centro à periferia, onde se distribuem as diferentes etapas da integração à identidade cultural central, (3) numa capacidade reflexiva, dando lugar a “autodescrições” da semiosfera por ela mesma. Mas, quando se trata de descrever culturas específicas, o modelo é disseminado entre realizações particulares, sem que sejamos capazes de explicar essas diferenciações, a não ser pelo contato direto e pelas trocas de proximidade (temporal e espacial) entre semiosferas específicas. E quanto à diferenciação de culturas que não estão em contato? Que estão distantes no tempo e no espaço? Podemos falar menos ainda. A isso, soma-se o fato de que o próprio modelo original, o da biosfera, foi explodido nas nuvens de Umwelten, sob a pressão da teoria do Umwelt, elaborada por Jacob von Uexküll (2015[2010])UEXKÜLL, von J. Milieu animal et milieu humain. Traduction de Ch. Martin-Fréville. Paris: Payot, 2015 [2010]., que é ela mesma, em sua própria constituição, um modelo da especificação e da diversificação de ambientes vivos.

Quando generalizamos, pelo contrário, os princípios de diversificação estrutural, construímos uma teoria cujo objetivo é o de descrever e explicar a diferenciação e a especificação, e sobretudo controlar-lhe as condições e os efeitos. Podemos dar dois exemplos consideráveis. O primeiro exemplo é o da constituição dos coletivos antropológicos (cf. supra): trata-se de engendrar uma diversidade de tipos de coletivos cujas diferenças sejam globalmente pertinentes e significativas para a humanidade, e não deixadas aos acasos da história de grupos humanos e da geografia de seus assentamentos. Questionamo-nos de início qual o princípio geral que funda tais coletivos: é a diferença entre o Si e o Outro, ou, nos próprios termos de Lotman a respeito da semiosfera, a diferença entre nós e eles. Mas como essa distinção geral não é um princípio de diferenciação dos coletivos, devemos interrogar a composição dos coletivos, e mais precisamente sobre o que estrutura suas diferenças.

Buscamos, então, as propriedades mais profundas para explicar a constituição dos coletivos, propriedades estruturantes, que fundam o sistema interno de cada coletivo. A antropologia contemporânea identifica duas propriedades julgadas pertinentes para a constituição dos coletivos, e somente duas: as interioridades e as exterioridades. Trata-se de saber se tal coletivo admite dessemelhanças e/ou semelhanças interiores ou exteriores entre seus membros. As exterioridades são de natureza psíquica, e derivam das interações entre o ser vivo e seu meio (l'Umwelt). As interioridades são de natureza reflexiva, eventualmente psíquica, e derivam das interações do ser vivo com ele mesmo e com os outros. A categoria /interioridade vs. exterioridade/ não descreve, portanto, como em Lotman, a delimitação do coletivo da semiosfera, mas um modo de diferenciação e de identificação interna desse coletivo. Além disso, exterioridades e interioridades não são dados ontológicos, mas construções próprias a cada tipo de coletivo.

A diversificação controlada dos coletivos antropológicos é estruturada por uma tipologia, na qual cada tipo de coletivo é instaurado por uma das combinações dessas propriedades elementares. Como se trata de um actante coletivo e de suas interações internas, a solução adotada deve organizar as possibilidades de interações entre os membros do coletivo, cujas diferenças são maiores ou marcadas. Essas possibilidades de interações que fundam a base comum da existência coletiva e do “mundo de sentido” que dela decorre, e são as condições para que esse coletivo possa ele mesmo enunciar sua identidade. Os antropólogos, seguindo Descola (2005)DESCOLA, Ph. Par-delà nature et culture. Paris: Gallimard, 2005., distinguem então:

  • Os coletivos para os quais o mundo é constituído apenas de diferenças, interiores e exteriores, reparam essa dispersão por um amontoado de analogias (os coletivos analogistas).

  • Os coletivos para os quais o mundo é constituído apenas de semelhanças, interiores e exteriores, compensam esta similitude geral projetando filiações distintivas, entre clãs humanos, espécies animais e vegetais, e figuras de paisagens naturais (os coletivos totemistas).

  • Os coletivos para os quais todos os existentes se diferenciam radicalmente por suas propriedades físicas compensam essa clivagem atribuindo-lhes uma mesma reflexividade interior (os coletivos animistas).

  • Os coletivos para os quais os existentes se diferenciam radicalmente por suas capacidades reflexivas interiores (os que têm um “espírito” e uma “consciência”, e os que não a têm) compensam esta outra clivagem atribuindo-lhes as mesmas propriedades físicas, obedecendo às mesmas leis naturais (os coletivos naturalistas, que se autodesignam “modernos”)

Estabelecidas as possibilidades de interações, o segundo exemplo de diversificação racional é o das próprias práticas de relação. Lévi-Strauss, e em seguida a semiótica narrativa do século XX, conheceram apenas uma prática antropologicamente pertinente, a troca, a comunicação de bens, de mulheres e de símbolos, ou, como em Lotman, a troca de informações. Se todos os coletivos apenas comunicam e trocam, não haveria lugar para conceber uma diferenciação significativa das práticas dominantes em cada tipo de coletivo. O princípio de estruturação da diversidade leva a selecionar duas propriedades de práticas de relações: (1) a relação se estabelece entre actantes de estatutos idênticos ou diferentes, (2) a relação admite ou não a reversibilidade ou a reciprocidade dos papéis actanciais. A diversificação pode, então, ser estabelecida: a troca é uma prática recíproca entre actantes idênticos; o dom e a apropriação-predação são práticas não recíprocas entre actantes mais ou menos semelhantes; a transmissão e a proteção são práticas não recíprocas entre actantes de estatuto diferente, etc. Esta diversificação é particularmente apropriada para dar conta das práticas que engendram os movimentos internos da semiosfera, sem as reduzir a troca de informações.

A epistemologia da diversidade não se resume a esses dois exemplos. A estruturação da diversidade permite situar e comparar grandes tipos de concepções de coletivos homem-natureza, sem postular nenhum modelo dominante, nenhum coletivo de referência: a referência dominante é a combinatória que engendra a diversidade dos modelos de explicação.

6 Subjetalidade e alteridade: a antropossemiótica perspectivista

Os conceitos de subjetividade e de alteridade pareceriam óbvios se a estruturação da diversidade repousasse de início na distinção entre nós e eles: o subjetivo estaria no interior, e a alteridade, no exterior. A reflexividade estaria no interior, e o exterior seria desprovido dela. Mas essa concepção, tradicional numa perceptiva naturalista e retomada pela semiótica da cultura (Lotman), é seriamente discutida pela etologia e pela antropologia.

Primeiramente, não é de todo óbvio que o outro esteja no exterior. Se ele é “outro” porque ele não pertence ao coletivo, postulamos então de forma abusiva uma fronteira hermética, porque mesmo as teorias que repousam sobre a dissimetria entre nós e eles, eu e ele, admitem uma porosidade da fronteira: um dos problemas cruciais de que trata especialmente a semiótica da cultura ou a psicanálise é justamente a integração do Outro ao Si, do eles ao nós. Se ele é “outro” somente porque ele é diferente, então nada impede que ele pertença ao mesmo coletivo que Si: vimos que os quatro tipos de coletivos antropossemióticos estão fundados sobre alteridades internas, dessemelhanças internas e externas, ou ambas. Além disso, o outro não é somente um outro humano, mas todo outro existente com o qual cada ser vivo interage em seu meio e no contexto mais amplo da semiosfera. Finalmente, o outro já está no plural: há tantos meios (Umwelten), e outros específicos que os povoam quanto espécies e seres vivos. No que concerne mais precisamente aos humanos, existem tantos perfis do outro quanto existem de coletivos homem-natureza. Se o outro está no interior do coletivo, ele seria portanto constitutivo da subjetividade, e ele a faria explodir em uma multidão de Si? O problema se complica singularmente.

É necessário fazer um desvio pela etologia animal para tratar a aporia ameaçadora. Nos anos trinta do século passado, Jacob von Uexküll (2015[2010])UEXKÜLL, von J. Milieu animal et milieu humain. Traduction de Ch. Martin-Fréville. Paris: Payot, 2015 [2010]. imaginou o conceito de Umwelt, para substituir o de “meio”, e mais geralmente o de “ambiente”. O ambiente é o todo que nos rodeia porque nós o habitamos; o meio é o que determina e dirige nossa adaptação; o Umwelt é tudo com o que interagimos, que nos transforma e que nós transformamos interagindo com ele. Dito de outro modo, o Umwelt de um ser vivo é seu perímetro de interações que transformam, quer dizer, que são pertinentes de um ponto de vista semiótico. Para Jacob von Uexküll, todos os “outros” pertinentes para o Si estão no interior do Umwelt, e não no exterior, num “meio ambiente”. A partir disso, para dar conta da dissimetria entre o centro das interações (o Si do ser vivo) e todas as outras partes do Umwelt, Uexküll caracterizou esse centro como um centro de atividade e de sensibilidade, e o Umwelt como um ponto de vista “subjetal” sobre um perímetro de interações pertinentes. Esse centro de sensibilidade e de reflexividade é indispensável para explicar que o Umwelt resulta de uma seleção de interações pertinentes para o ser vivo, com um perímetro delimitado, e que, por essa razão, ele é significante. Esse centro e tudo com o que ele interage se selecionam e se transformam reciprocamente, e o ponto de vista pode a todo momento oscilar, porque o Umwelt é povoado por outros seres vivos: podemos, então, passar do Umwelt de A, que contém B, para o Umwelt de B, que não contém necessariamente A, ou pelo menos não identicamente! Por exemplo, para A, B pode se resumir a um odor e a uma textura, enquanto que para B, A será somente uma forma em movimento. O Umwelt se assemelha à semiosfera, mas sem as projeções antropomórficas, e sobretudo com um alargamento considerável das práticas de relações, bem além do diálogo dual, e além da troca: o Umwelt é agora uma máquina a produzir e a tratar dos signos e das significações das percepções e das ações, e não a produzir e a tratar da informação.

Voltemos aos humanos e a seus coletivos. A subjetalidade do coletivo de cada um de seus membros é apenas um efeito do ponto de vista a partir do qual eles apreciam suas alteridades, o mínimo de reflexividade e de sensibilidade que permitem regular a interação com esses Outros. A subjetalidade e a alteridade são elas mesmas constituídas pelo tipo de coletivo no qual nos colocamos: a alteridade de um coletivo totemista é aquele de um outro clã, e não aquela de uma outra sorte de existência; a alteridade de um coletivo naturalista é aquele de uma outra cultura, e não o das leis físicas naturais que se impõem a todos. Etc... Doravante, o problema não é o Eu, ainda menos a transcendência de um Eu universal, mas a instauração e a gestão dos Outros, em toda sua diversidade.

É Viveiros de Castro quem tirará as últimas consequências dessa alteração epistemológica, intitulada “antropologia perspectivista”. A reflexão de Viveiros de Castro tem suas raízes no movimento brasileiro dito “antropofágico”, nascido no início do século XX como reação à submissão das elites brasileiras aos cânones estéticos, às normas culturais e aos pontos de vista científicos forjados na Europa. Viveiros de Castro (2009)VIVEIROS DE CASTRO, E. Métaphysiques cannibales. Paris: Presses Universitaires de France, 2009. assume essa herança especialmente ao dar a um de seus livros o título Métaphysiques cannibales [Metafísicas canibais].

Para entender a chave do ritual antropofágico, é necessário recordar as duas cenas fundadoras que relata Suely Rolnik em Anthropophagie zombie [Antropofagia zumbi] (2008, p.13-15)ROLNIK, S. Anthropophagie zombie. Traduction et notes par R. Barbaras. Paris/Bruxelles: BlackJack, 2011. [2008]. Na primeira, um bispo português é feito prisioneiro, ele se mostra firme em seus engajamentos e convicções, e enfrenta a adversidade: ele será digno de ser consumido. Na segunda, um aventureiro alemão é capturado, ele suplica que o poupem, aceita todas as condições: ele não será convidado ao festim antropofágico, principalmente como prato principal. Devorar o bispo permite se apropriar da pujança do colonizador. Não comer o aventureiro alemão, em contrapartida, protege de sua covardia contagiosa. O primeiro afirmou ao mesmo tempo sua força, sua convicção e sua alteridade; e o segundo, não. A escolha do Outro de cuja identidade queremos nos apropriar depende, portanto, da intensidade de sua presença sensível e corporal, e da intensidade que ele emprega para assumir sua própria alteridade. A alteridade escolhida, valorizada e desejada será então incorporada ao próprio ser daquele que a devora, para o engrandecer e o enriquecer ainda mais.

Essa prática coletiva de apropriação-predação começa, portanto, por um tributo à alteridade do Outro. Consumir o Outro não é destruí-lo, mas o respeitar como Outro que se assume, e perenizá-lo em si mesmo depois da ingestão. A prática antropofágica começa pela projeção e/ou o reconhecimento do valor (no Outro) e continua pela absorção do valor (no Si). Retendo apenas as dimensões simbólicas e culturais do ritual, o movimento cultural dito “antropofágico” aparece então como uma experiência de pensamento, e uma configuração semiótica de grande amplitude. Essa experiência de pensamento pode ser generalizada, bem além do ritual que a inspira, e ela fundará um amplo movimento intelectual e cultural no Brasil, e em particular a antropologia perspectivista de Viveiros de Castro. No começo do século XX, o Brasil viveu um estado quase colonial, de um ponto de vista político, econômico e cultural, apesar da independência política e formal obtida em 1822 e a proclamação da República em 1889. O movimento antropofágico explora, então, a experiência de pensamento singular resultado da interpretação do ritual antropofágico: ele recusa a troca pós-colonial com o Ocidente, e valoriza a predação antropofágica de sua identidade e de seus valores. Mas é preciso primeiro admitir que a troca não é um esquema prático universal, e que ela dá lugar a outros esquemas, como a apropriação-predação. O movimento antropofágico provocará importantes transformações nas ciências humanas e sociais brasileiras, e se difundirá em todas as dimensões da vida coletiva: estética, política, religiosa, social, universitária, intelectual. Um mundo sendo instaurado, sobre a base de um esquema prático dominante, de múltiplas semióticas concretas se tornaram então possíveis.

Essa experiência de pensamento tem por efeito uma transição de formas de vida. Toda forma de vida emerge de uma confrontação com outras formas de vida, anteriores, posteriores ou concomitantes, próximas ou distantes. Toda forma de vida se afirma na congruência entre sistemas valores, regimes de sentido, estilos de comportamento, etc. Esse é precisamente o caso para o movimento antropofágico.

A mudança de ponto de vista é tão radical que modifica a fronteira entre nós e eles. Recoloca mesmo em questão a composição tanto do nós como do eles: o antropófago come tanto o indígena quanto o chamado civilizado. Dito de outro modo, ele se apropria tanto de uma parte do eles como de uma parte do nós, distinção que não é para ele de todo pertinente, já que conta apenas a possibilidade de sua transformação em um “Outro” assimilável ao Si: a categoria da pessoa (nós/eles) é neutralizada, e substituída por uma categoria perspectivista (Si/Outrem). E, sobretudo, ele se concentra no Outro, adota seu ponto de vista para descobrir o potencial de valor e, portanto, apreciar o que ele é suscetível de lhe oferecer durante o banquete antropofágico.

Viveiros de Castro retoma essa experiência de pensamento que reinventa o Outro como apropriável, e define uma posição de enunciação antropológica, aquela da enunciação alterante, criadora a todo momento de Outros e do valor desses Outros. O problema a tratar, mais uma vez, é a diversidade de Outros, e não a identidade do Si. Mas como a experiência antropofágica de alteração se distingue de uma experiência fechada na alteridade? Graças à mobilidade dos pontos de vista. Viveiros de Castro submete de fato a alteração enunciativa às mobilidades críticas do ponto de vista. O Ocidente postula que os outros concebem a alteridade tal como nós a concebemos, quer dizer, exclusivamente recíproca: eu sou o outro do meu outro. Ora, isso não é necessária e exclusivamente o caso, porque os Outros são outros justamente porque eles não são os mesmos Outros que nós! E essa é a razão pela qual a antropologia é “assimétrica”.

Para Viveiros de Castro, a oscilação do ponto de vista libera as interações enunciativas com o nativo (VIVEIROS DE CASTRO,1992VIVEIROS DE CASTRO, E. From the Enemy’s Point of View. Humanity and Divinity in an Amazonian Society. Chicago and Londres: The University of Chicago Press, 1992.), sob uma condição de empatia radical. Se a empatia pode ser definida como a experiência pela qual o Si pode ocupar o ponto de vista do Outro sem perder a consciência de Si, então é necessário acrescentar que ele o faz certificando-se de manter e engrandecer a consciência do Outro. A oscilação do ponto de vista é, então, controlada por uma dupla reflexividade (consciência de Si, consciência do Outro). Para Viveiros de Castro, o ponto de vista crítico é justamente a reflexividade do Outro. Porque o que bloqueia as interações enunciativas, do pondo de vista “ocidental”, é o pressuposto segundo o qual o que faz do nativo um nativo é que a sua relação com a própria cultura seria espontânea, não reflexiva, implícita, melhor ainda: inconsciente. Era o ensinamento de Lévi-Strauss, mas é também a posição de Lotman, para quem o domínio exterior é necessariamente confuso, caótico e bárbaro: ambos concebem a antropologia na perspectiva de coletivos naturalistas (uma só natureza, e múltiplas culturas hierarquizadas). Nesse caso, apenas o antropólogo poderia manter com sua cultura e a de outros uma relação reflexiva e consciente. Compreendemos, então, por que a recusa de qualquer reflexividade no Outro, e de uma reflexividade diferente daquela do Si, pode se tornar um obstáculo epistemológico, na perspectiva de uma epistemologia da diversidade.

A enunciação alterante deve, então, visar aos elementos específicos de reflexividade implicados no ponto de vista do Outro: mudando o ponto de vista, o antropólogo deve encontrar a forma que o nativo dá, ele mesmo, à sua cultura. Viveiros de Castro adianta um exemplo preciso: os antropólogos contemporâneos, como Descola ou Latour, pretendem ter inventado o conceito de “multinaturalidade” (naturezas múltiplas, tanto quanto as culturas), para se distanciar do mundo “naturalista” (uma só natureza universal) ao qual eles pertencem. Viveiros de Castro retruca a eles: não, não são os antropólogos que inventaram o multinaturalismo, são os próprios animistas, e com todo conhecimento de causa e com toda consciência!

A reflexividade do Outro é, portanto, o ponto decisivo na construção do valor do Outro que nos preparamos para “absorver”: esse já era o caso para o bispo e para o aventureiro no ritual do banquete antropofágico. Para uma antropossemiótica perspectivista, a alteridade não preexiste, ela é produzida pela enunciação antropológica: ela se torna alterante precisamente em razão da mudança crítica de ponto de vista, e a reflexividade do Si enunciante só se completa e se realiza plenamente na descoberta da reflexividade do Outro.

Conclusão

Se o Outro é o problema central a tratar é, portanto, porque ele está no próprio campo de presença do analista, na imediação, e não nos antípodas. Ele está mesmo, às vezes, em nós ou no espelho, aqui e agora, ao menos um próximo e um familiar, e integrável ao Si. A análise implica certamente um distanciamento, mas interior; mudanças de ponto de vista, mas críticos e reversíveis. A enunciação antropológica satisfaz apenas as condições requeridas se ela enuncia em imanência, do interior da cultura visada, e não em posição sobrepujante e transcendente.

Como conceber uma semiosfera em que os “outros do meu outro” não seriam os mesmos que “meus próprios outros”? Uma semiosfera em que a interação entre a cultura A e a cultura B levasse a primeira a reconhecer de maneira crítica a reflexividade da segunda, e vice-versa? Seria necessário primeiramente renunciar à repartição ontológica e estáticaentre “nós” e “eles”. Seria necessário em seguida conceber não um diálogo entre culturas em contato, mas uma rede de interações multilaterais, em que cada cultura estaria buscando Outros mais valorizáveis, especialmente cuja reflexividade seria a mais diferente e a mais enriquecedora para o Si, para alimentar práticas de interação de doação, de apropriação-predação, de transmissão, de troca, de proteção e de produção, e não somente de troca.

Mas o modelo topológico mais adaptado não seria então este de uma esfera, mas aquele de um rizoma, tal como definido por Deleuze e Guattari (1972DELEUZE, G. et GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie 1. L'Anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1972. e 1980)DELEUZE, G. et GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie 2. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980., quer dizer, sem centro, sem hierarquia, animado pela replicação e repetição, em constante metamorfose, e capaz de oscilar entre pontos de vista provisórios e reversíveis. Projetadas sobre essa topologia reticular, as propriedades estruturantes da diversificação suscitariam os modos de constituição do coletivo, e os esquemas práticos de relação. É então que emergiriam formas locais e em via de estabilização, nuvens, bolhas e talvez mesmo esferas!

  • 1
    Este estudo retoma certos aspectos de FONTANILLE, 2000FONTANILLE, J. Formes tensives et passionnelles du dialogue des sémiosphères. In WESTFALL, B. (dir.). Géocritique. Limoges: Pulim, 2000..
  • 2
    Já propusemos uma tipologia de planos de pertinência (signos, textos-enunciados, objetos, práticas, estratégias e formas de vida) em Pratiques sémiotiques (2008)FONTANILLE, J. Pratiques sémiotiques. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., revisado (signos, obras, práticas, existências) em Terres de sens (2018)FONTANILLE, J. et COUEGNAS, N. Terres de sens. Essai d’anthropo-sémiotique.Limoges: Pulim, 2018..
  • 3
    Todas as traduções de Lotman (1988)LOTMAN, I. La sémiosphère. Traduction A. Ledenko. Limoges: PULIM, 1998. são de responsabilidade das tradutoras do artigo.
  • 4
    N. T. Na tradução brasileira, “processo”; no francês, “percurso” [parcours].
  • 5
    GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993.
  • Tradução de Jaqueline Esther Schiavoni jeschiavoni@yahoo.com.br e Maria Helena Cruz Pistori mhcpist@uol.com.br; https://orcid.org/0000-0003-0751-3178

REFERÊNCIAS

  • DELEUZE, G. et GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie 1. L'Anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1972.
  • DELEUZE, G. et GUATTARI, F. Capitalisme et schizophrénie 2. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.
  • DESCOLA, Ph. Par-delà nature et culture Paris: Gallimard, 2005.
  • DESCOLA, Ph. La composition des mondes. Entretiens avec Pierre Charbonnier. Paris: Flammarion, 2015.
  • FONTANILLE, J. Formes tensives et passionnelles du dialogue des sémiosphères. In WESTFALL, B. (dir.). Géocritique Limoges: Pulim, 2000.
  • FONTANILLE, J. Pratiques sémiotiques Paris: Presses Universitaires de France, 2008.
  • FONTANILLE, J. et COUEGNAS, N. Terres de sens. Essai d’anthropo-sémiotique.Limoges: Pulim, 2018.
  • GREIMAS, A.J. Sémantique structurale Paris: Seuil, 1966.
  • GREIMAS, A.J. et FONTANILLE, J. Sémiotique des passions. Des états de choses aux états d’âme. Paris: Seuil, 1991.
  • LATOUR, B. Enquête sur les modes d’existence. Une anthropologie des Modernes. Paris: La Découverte, 2012.
  • LOTMAN, I. La sémiosphère Traduction A. Ledenko. Limoges: PULIM, 1998.
  • ROLNIK, S. Anthropophagie zombie Traduction et notes par R. Barbaras. Paris/Bruxelles: BlackJack, 2011. [2008]
  • SPERBER, D. La contagion des idées. Théorie naturaliste de la culture, Paris, Odile Jacob, 1996.
  • UEXKÜLL, von J. Milieu animal et milieu humain Traduction de Ch. Martin-Fréville. Paris: Payot, 2015 [2010].
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Métaphysiques cannibales Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. From the Enemy’s Point of View. Humanity and Divinity in an Amazonian Society. Chicago and Londres: The University of Chicago Press, 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2018
  • Aceito
    20 Ago 2019
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