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Entre polêmicas abertas e veladas

O mundo ‘pós-verdade’ [...] demonstra total desconsideração até por fatos visíveis e verificáveis e, como consequência, qualquer consideração pela verdade parece implausível. Diversamente ao “mundo de mentiras” que sabe da verdade e a encobre com mentiras, o mundo pós-verdade distorce a verdade livremente em uma abordagem em que “tudo vale”.

Lakshmi Bandlamudi

Todos os campos da ideologia usam a língua, mas cada um a seu modo.

Mikhail Bakhtin

[...] ler é fazer o nosso corpo trabalhar [...] ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam [...]

Roland Barthes

São muitos os acontecimentos que têm nos surpreendido e chocado nos últimos tempos, no Brasil e no mundo, ampliados pelo universo virtual. Espaços e eventos públicos e privados se confundem e passamos a habitar um mundo da “pós-verdade”, no dizer de muitos e, entre esses, Lakshmi Bandlamudi, que nos empresta a primeira epígrafe deste editorial (2019, p.184).

Um dos aspectos chocantes de nossa realidade atual é o reduzido apreço ao conhecimento científico, com o qual todos nós, das esferas científica e acadêmica, temos sofrido. Assim, nos números mais recentes, os textos introdutórios de Bakhtiniana têm lembrado o “dificílimo momento pelo qual passa a pesquisa brasileira, as agências de fomento, o CNPq, de maneira particular, e a educação como um todo”. Sabemos ainda que nossas pesquisas, realizando-se no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, estão entre aquelas cuja importância, talvez, seja menos percebida e compreendida pela população em geral. Por isso, Bakhtiniana reafirma seu comprometimento com a ciência de qualidade, publicando artigos que mostram a responsabilidade e a responsividade de seus autores em relação a essa realidade e às linguagens que a encarnam.

“Todos os campos da ideologia usam a língua, mas cada um a seu modo”, afirma Bakhtin (2016, p.139)BAKHTIN, M. Diálogo II. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p.125-150.. Assim, na ânsia de leitura e compreensão de objetos pertencentes a esferas ideológicas tão diferentes, como as postagens na web, o fotojornalismo, protestos públicos, a literatura e seu ensino, e o próprio discurso da ciência -, os estudos do discurso, em suas diferentes vertentes e no diálogo entre elas são acionados no conjunto dos artigos e na entrevista que passamos a apresentar.

Os três primeiros artigos oferecem-nos reflexões acerca de aspectos de nossa realidade contemporânea, apresentando-nos uma leitura enriquecedora dela. Eliane Fernandes Azzari, Maria de Fátima Silva Amarante, Eliane Righi de Andrade, todas da PUC-Campinas/SP, assinam “É verdade este bilete”: relações dialógicas e(m) discurso no ciberespaço. Fundamentando-se teoricamente sobretudo na perspectiva dialógica e nas discussões foucaultinas acerca da vontade de verdade, o artigo analisa um bilhete, escrito por uma criança de 5 anos, mostrando o diálogo entre os universos on line e acontecimentos off-line, e interpretando as réplicas e posições axiológicas derivadas daquela postagem que viralizou no Facebook.

A seguir, Ângela Cristina Salgueiro Marques (UFMG) e Luís Mauro Sá Martino (Faculdade Cásper Líbero, SP) analisam um importante aspecto do fotojornalismo: o modo como o enquadramento fotográfico engendra o enquadramento biopolítico de cidadãs e mulheres empobrecidas no contexto da implementação de políticas sociais. No artigo Entre o digno e o precário: enquadramento biopolítico de mulheres em fotografias jornalísticas sobre o Programa Bolsa-Família, os autores apresentam a produção midiática de narrativas por meio de fotografias que se posicionam diante de modos de vida considerados “dignos” ou não.

O fotojornalismo também é o tema de outro texto: O conceito de aspas verbo-visuais e suas classificações, redigido por Rodolfo Vianna (PUC-SP). O artigo visa contribuir para os estudos da linguagem, apresentando um novo instrumental teórico-metodológico para a análise da dimensão verbo-visual dos enunciados e suas formas de produção de sentido. Paolo Demuru (UNIP-SP) é o autor de Entre acidentes e explosões: indeterminação e estesia no devir da história. Tomando como aportes teóricos os conceitos de acidente (E. Landowski) e de explosão (I. Lotman), inicialmente o autor compara-os e esboça uma síntese teórico-metodológica entre eles; a seguir, busca demonstrar sua pertinência e relevância na análise das jornadas de protesto ocorridas em junho de 2013 no Brasil e seu impacto no processo eleitoral que se seguiu a elas.

“Ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito”, afirma Bakhtin (2016, p.83)BAKHTIN, M. Diálogo II. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p.125-150.. Com essa mirada, estudamos literatura. E com essa mirada também podemos compreender o estudo Outros Quixotes - notas sobre o discurso em Cervantes e Borges, de Newton de Castro Pontes e Edson Soares Martin, ambos da Universidade Regional do Cariri - URCA, Crato, CE. Baseando-se nos estudos bakhtinianos sobre o discurso romanesco, os autores colocam em diálogo as obras Dom Quixote, de Cervantes e o conto Pierre Menard, autor do Quixote, de Jorge Luis Borges. Indo mais além, os autores terminam por discutir como a própria teoria bakhtiniana também reproduz parcialmente o peculiar pensamento do Quixote.

Mais uma vez com foco na literatura, mas a partir do ponto de vista da educação, Débora Ventura Klayn Nascimento (UFRJ) escreve Formação de leitores literários: diálogos possíveis entre concepções do Círculo de Bakhtin e atividades de livros didáticos. A educadora (e pesquisadora) convoca as concepções do Círculo, especialmente os conceitos de dialogismo e de responsividade, pretendendo contribuir com a desaprendizagem de práticas referentes à abordagem da leitura literária na escola.

E, fechando a seção de artigos, o importante ensaio de Irene Machado (USP), Refrações do discurso citado como episteme discursiva na criatividade verbal. Precisamos da teoria para descrever, analisar e interpretar os discursos; precisamos sempre refletir sobre ela, fazê-la avançar e aprofundar-se. A ciência nos oferece as lentes que nos permitem ler e compreender os discursos e a realidade, mas ela está sempre se fazendo e refazendo. É nesse sentido que o texto de Machado valoriza e retoma a análise crítica de V. N. Volóchinov a respeito dos processos de transmissão do discurso, entendendo o ideologema e a reação ativa ao discurso de outrem como uma nova episteme discursiva nos estudos dialógicos.

Como último texto do número, temos a tradução de uma entrevista. Talvez poucos de nossos leitores conheçam Lakshmi Bandlamudi, professora de Psicologia na LaGuardia Community College, City University of New York, autora de obras como Dialogics of Self, The Mahabharata and Culture: The History of Understanding and Understanding of History, entre outras. É Anselmo Lima (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) que vai nos apresentá-la e, junto com Miriam Ruffini (Universidade Tecnológica Federal do Paraná), traduzir uma entrevista que ela concede a Thomas Fink (LaGuardia Community College, City University of New York) a respeito de seu livro Difference, Dialogue, and Development: a Bakhtinian World. Como nos conta Lima, Lakshmi apresenta um posicionamento original na leitura que faz da obra bakhtiniana e vigotskiana; e, na entrevista, aborda temas políticos atuais e delicados no cenário estadunidense, que, por analogia, fazem muito sentido no próprio contexto do Brasil e do mundo de hoje.

“[...] ler é fazer o nosso corpo trabalhar [...] ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam [...]” (BARTHES, 2004BARTHES, R. Escrever a leitura. In: O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeiras. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.26-29., p.29). É para essa atividade que convidamos o leitor em mais este número de Bakhtiniana. A quantidade de submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a este excelente resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos da linguagem. Nesse sentido, agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do MCTI/CNPq/MEC/CAPES e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPE’q) / Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) - 2019.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p.71-107.
  • BAKHTIN, M. Diálogo II. In: BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p.125-150.
  • BANDLAMUDI, L. Thomas Fink entrevista Lakshmi Bandlamudi: Difference, Dialogue and Development: a Bakhtinian World. Tradução de Anselmo Lima e Miriam Ruffini. In: Bakhtiniana Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, Vol. 15, n.1, jan./fev./mar. 2020, p.180-197.
  • BARTHES, R. Escrever a leitura. In: O rumor da língua Trad. Mario Laranjeiras. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.26-29.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020
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