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Bakhtin e o Círculo: línguas, discursos, gêneros e produção de sentido

A vitória de uma língua dominante (dialeto) sobre outras, o desalojamento de línguas, sua subjugação, sua instrução pela palavra verdadeira, a familiarização dos bárbaros e dos segmentos sociais inferiores com a língua única da cultura e da verdade [...] - tudo isso determinou o conteúdo e a forma da categoria de língua única no pensamento linguístico e estilístico e o seu papel criador e formador de estilos na maioria dos gêneros poéticos que se constituíram no curso das mesmas forças centrípetas da vida verboideológicas. [...] ao lado da centralização verboideológica e da unificação desenvolvem-se incessantemente os processos de descentralização e separação.

Mikhail Bakhtin (2015, p.41; itálicos do autor)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.

A promoção e a divulgação de pesquisas no campo dos estudos do discurso constituem o foco de Bakhtiniana. E nosso compromisso tem sido com a ciência de qualidade e sua necessária inserção social: os artigos publicados mostram a responsabilidade e a responsividade de seus autores diante da realidade contemporânea, muitas vezes difícil, especialmente na área da pesquisa científica e da educação.

No entanto, sabemos que, nos últimos tempos, não se concentram dificuldades apenas nessas áreas. Outro campo bastante negligenciado (ou maltratado) - na verdade, ao longo dos séculos de nossa constituição como país - tem sido o que envolve os povos indígenas e a preservação de suas línguas e suas culturas. Línguas e discursos das comunidades indígenas, há muito têm sido relegados ao esquecimento, reprimidos, abafados, pelo poder público, mas não pelos linguistas empenhados em descrevê-las e, com isso, mostrar a cultura dos povos que as falam, colocando sua visão de mundo em movimento. Segundo o IBGE, há no Brasil 305 etnias indígenas, que falam ao menos 274 línguas1 1 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51229884 .

Pelas razões acima apontadas, a importância de estudos como o de Diego Michel Nascimento Bezerra (Unicamp), A produção histórico-discursiva do nome da língua Apurinã, primeiro artigo deste número. Ao estudar o nome de uma “língua autóctone da Amazônia brasileira”, de uma sociedade inserida “marginalmente no cenário brasileiro”, o autor nos mostra como a própria voz dos indígenas, matéria prima dos documentos pesquisados, é pouco relevante nesses documentos, pois a construção do nome da língua atende à “necessidade de construção discursiva do referente pelo colonizador”.

O segundo artigo do número tem relação direta com os estudos que deram origem a nosso periódico. Após 40 anos da publicação da primeira obra de Bakhtin e do Círculo no Brasil - Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, em 1979 - e de nova tradução em 2017, é tempo de uma pesquisa mais aprofundada a respeito de sua recepção no Brasil. E é disso que tratam as autoras Beth Brait (PUC-SP/USP/CNPq) e Maria Helena Cruz Pistori (Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso) em Marxismo e filosofia da linguagem: a recepção de Bakhtin e o Círculo no Brasil. Por meio do estudo dos textos que emolduram essas duas edições, as autoras apresentam o modo como se recebeu/recebe e compreendeu/compreende a obra bakhtiniana na esfera acadêmica ao longo desses anos.

A realidade é múltipla, língua e discursos se concretizam em diferentes gêneros. Não há dúvida de que o conceito bakhtiniano de gênero do discurso está consagrado nos estudos da linguagem, ainda que nem sempre seja compreendido em termos do todo da obra do Círculo (cf. Brait, Pistori, 2012BRAIT, B.; PISTORI, M. A produtividade do conceito de gênero em Bakhtin e o Círculo. Alfa, Revista de Linguística. (São José Rio Preto), São Paulo, v. 56, n. 2, p. 371-401, dec. 2012. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942012000200002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 29/02/2020.
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). Para recordar sua importância, citemos Medviédev (2012, p.200)MEDVIÉDEV, P. N. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução, a partir do russo, e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.:

[...] a realidade do gênero é a realidade social de sua realização no processo da comunicação social. Dessa forma, o gênero é um conjunto de meios de orientação coletiva na realidade, dirigido para seu acabamento. Essa orientação é capaz de compreender novos aspectos da realidade. A compreensão da realidade desenvolve-se e origina-se no processo da comunicação social ideológica.

Em quatro outros artigos do número, o conceito de gênero será fundamental na análise dos diferentes objetos. A dança é o objeto do artigo de Marília Amorim (Universidade de Paris 8), no texto O discurso da dança e o conceito de gênero - alguns elementos de leitura. Fundamentada em conceitos teóricos da obra de Bakhtin, Medviédev e Volóshinov, aliados à concepção da dança como linguagem, do teórico Rudolf Laban, a autora apresenta elementos do discurso visual e verbo-visual de diferentes gêneros - balé clássico, balé moderno, hip-hop e streetdance, mostrando como cada um desses elementos atua na construção dos sentidos. Seu trabalho enriquece a compreensão da dança, de forma geral, e especialmente por um público sem formação específica, mero amador e frequentador de espetáculos de dança.

A sétima arte é o objeto sobre o qual se debruça Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva (UFBA), no artigo Hibridização e gêneros do discurso em Recife frio, de Kleber Mendonça Filho. O pensamento bakhtiniano também é a fundamentação teórica do estudo, que tem como objetivo refletir sobre a hibridização de gêneros na obra, criando sentidos e provocando determinada postura na interlocução com os espectadores. Cenas ou sequências do documentário são descritas e analisadas, de forma a levar o leitor a refletir sobre os modos de construção do jogo entre ficção e realidade.

A arte literária é o foco de Autobiografia e (res)significação, artigo de Yuri Andrei Batista Santos (USP) e Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC-BA). Suas reflexões, amparadas na confluência entre a teoria dialógica do discurso e estudos sobre as escritas de si, destacam a ocorrência de um entrecruzamento de sentidos, memórias e vivências ressignificadas numa autobiografia, sob a luz do que o sujeito não só foi como agora é. E também é a preocupação com a literatura, agora incidindo em seus leitores, que levam Maria da Penha Casado Alves (UFRN) e Roxane Helena Rodrigues Rojo (Unicamp) à realização da pesquisa que deu origem ao texto Comunidades de leitores: cultura juvenil e os atos de descolecionar. Concepções advindas do Círculo de Bakhtin assim como reflexões de Néstor G. Canclini e Roger Chartier servem de base para as autoras problematizarem a “boa leitura” fora do cânone pré-estabelecido na comunidade escolar.

Em Um brinde ao entrecruzamento de vozes, redigido por Eliete Hugueney de Figueiredo Costa (UFMT) e Simone de Jesus Padilha (UFMT), as autoras observam as diferentes vozes presentes em uma revista feminina - A Violeta, publicada em Cuiabá, na primeira metade do século XX (1916-1950), cujos diversos números circularam em diferentes pontos do território nacional. Questões locais, nacionais e mesmo internacionais foram matéria de discussão nas páginas da revista, e muitas delas compuseram os conteúdos dos enunciados, expressando o nível de politização das redatoras, em sua grande maioria, normalistas. As autoras tomam o enunciado de uma das edições e buscam desvelar as tensões discursivo-ideológicas ali presentes, fundamentando-se também na teoria de Bakhtin e o Círculo e nos pressupostos da análise da verbo-visualidade propostos por Brait (2010BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010., 2013BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 8,n. 2, p.43-66, dec. 2013. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso. Acesso em 01/03/2020.
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, entre outros).

Os dois outros artigos, cuja análise também é baseada no pensamento bakhtiniano, tratam de questões ligadas à educação. O primeiro, O meme em material didático: considerações sobre ensino/aprendizagem de gêneros do discurso, de Marina Totina de Almeida Lara (UNESP) e Marina Célia Mendonça (UNESP), debate a efemeridade do gênero meme e como tal característica pode impactar (ou não) sua possível presença em materiais didáticos. No texto seguinte, A constituição da subjetividade na criança com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Rita de Cassia Fernandes Signor (Hospital Infantil Joana de Gusmão - Setor de Fonoaudiologia, Florianópolis, Santa Catarina) e Ana Paula de Oliveira Santana (UFSC) assumem postulados de Bakhtin e o Círculo para mostrar os modos como a autoimagem da criança se constrói ao olhar do outro e os efeitos da patologização na formação da subjetividade.

Duas resenhas encerram o número. Orison Marden Bandeira de Melo Júnior (UFRN) apresenta-nos nova tradução de ensaios de Mikhail Bakhtin traduzidos e organizados por Paulo Bezerra: BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2019. 144p. A leitura da resenha faz-nos compreender melhor essa nova organização de textos, todos ligados aos estudos bakhtinianos acerca do romance, apontando também novos e importantes aspectos da nova tradução e das Notas do tradutor. Já Cibele Cheron (PUCRS) apresenta-nos uma instigante obra para os desejosos de se aprofundar nas origens, limites e diferenças do conceito de diálogo, fundamental no pensamento bakhtiniano: GUILHERME, Alexandre Anselmo; MORGAN, W. John. Philosophy, dialogue, and education. Nine Modern European Philosophers. London: Routledge, 2018. 190 p.

Fechando o Editorial com nosso costumeiro balanço, destacamos que este número reuniu 11 textos, de 17 autores, representando 12 diferentes instituições (Unicamp, PUC-SP, USP, Paris 8, UFBA, UESC, UFRN, UFTM, UNESP, UFSC, Setor de Fonologia do Hospital Infantil Joana de Gusmão, PUC-RS); isso sem contarmos os vários tradutores envolvidos nos diferentes textos. É esta a coletânea que convidamos os leitores a saborear e incluir em suas pesquisas. Este é o modo como Bakhtiniana participa ativamente da vida cultural e acadêmica brasileira e internacional.

A quantidade de submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a este excelente resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos da linguagem. Nesse sentido, agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do MCTI/CNPq/MEC/CAPES e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPE’q) / Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) - 2020.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.
  • BRAIT, B. Literatura e outras linguagens São Paulo: Contexto, 2010.
  • BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 8,n. 2, p.43-66, dec. 2013. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso Acesso em 01/03/2020.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732013000200004&lng=en&nrm=iso
  • BRAIT, B.; PISTORI, M. A produtividade do conceito de gênero em Bakhtin e o Círculo. Alfa, Revista de Linguística (São José Rio Preto), São Paulo, v. 56, n. 2, p. 371-401, dec. 2012. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942012000200002&lng=en&nrm=iso Acesso em 29/02/2020.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942012000200002&lng=en&nrm=iso
  • MEDVIÉDEV, P. N. (Círculo de Bakhtin). O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução, a partir do russo, e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020
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