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A produção histórico-discursiva do nome da língua Apurinã

RESUMO

Procuramos, neste trabalho, demonstrar o caráter material do sentido do nome da língua indígena Apurinã a partir dos traços do seu espaço de memória. Para a consecução deste gesto, observamos os pressupostos da Análise do Discurso francesa quanto à produção dos sentidos das palavras com valor lexical. Assumimos a noção de pré-construído para caracterizar esse valor diante da historicidade da palavra apurinã. O corpus constitui-se por textos que versam sobre a sociedade Apurinã que vão desde o século XIX até o século XX. Procedemos a uma leitura de formulações onde houvesse termos que se referissem a esta sociedade e sua língua. Dessuperficializamos em níveis sintáticos as formulações contendo tais referências para a consequente dessintagmatização do nome em questão no nível do sintagma nominal. Concluímos que o nome desta língua possui um funcionamento pré-construído enquanto forma nominalizada, que joga metonimicamente com a necessidade de construção discursiva do referente pelo colonizador.

PALAVRAS-CHAVE:
Discurso; Pré-construído; Língua Apurinã

ABSTRACT

In this paper we try to demonstrate the material character of the meaning of the name of the Apurinã indigenous language from the traces of its memory space. In order to achieve this gesture, we have observed the premises of Discourse Analysis regarding the production of the meanings of words with lexical value. We have adopted the notion of preconstructed to characterize this value in light of the historicity of the word apurinã. Our corpus is comprised of texts about the Apurinã society from the nineteenth to the twentieth century. We have carried out a reading of formulations in which there were terms referring to this society and its language. We de-surfaced the formulations containing these references on syntactic levels for the consequent syntactic parsing of the noun in question at the level of the noun phrase. We have concluded that the name of this language is functionally preconstructed as a nominalized form that plays metonymically with the need for a discursive construction of the referent by the colonizer.

KEYWORDS:
Discourse; Preconstructed; Apurinã language

Introdução

Contemporânea à classificação dos grupos étnicos da Amazônia, a percepção da pluralidade linguística no rio Purus é patente desde os relatos de viajantes e exploradores que se aventuraram nesta região no século XIX (cf. Coutinho, 1863; Chandless, 1866CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866.; Labre, 1872LABRE, A. Rio Purus: Notícias. Maranhão: Tipografia do Paiz Imp. M. F. V. Pires, 1872.). O movimento de alteridade entre sociedades indígenas e sociedade ocidental desencadeou neste período a produção dos primeiros documentos sobre a língua/sociedade Apurinã. Desses contatos, em que a história é narrada pelo olhar do estrangeiro, novos sentidos são requeridos para indicar o lugar a ser ocupado pelo indígena no projeto de integração territorial e econômica do Brasil Império. Nessa conjuntura, o surgimento de uma metalinguagem para explicar a língua deste povo se dá como fato ligado não apenas ao reconhecimento dos povos do Purus, mas também à tentativa de lhes impor valores ocidentais.

A partir dessa conjuntura, a língua falada originalmente pelos Apurinã tem sido alvo de distintos objetivos no âmbito da descrição gramatical: etnificação, proselitismo, pesquisa acadêmica e, mais recentemente, ensino. Os documentos produzidos no período imperial que aportam sentidos sobre esta sociedade constroem sua identidade levando em conta a ideia de unidade linguística. A produção dos primeiros instrumentos linguísticos - lista de palavras, gramática e vocabulário - para o Apurinã no século XIX objetivava o uso da língua como instrumental de classificação étnica e de proselitismo cristão. A imagem que se constrói de unidade linguística nesses instrumentos é, então, processada na transparência de um significante: o etnônimo Apurinã. Portanto, a referência a expressões como ‘a língua Apurinã’ ou ‘a sociedade Apurinã’ resulta de acontecimentos absorvidos pela memória que oculta àquilo que as determinam. Um nome de uma língua que se dá a ler contemporaneamente como evidência da ideia de unidade linguística de um povo indígena.

Ao longo do tempo, o nome desta língua indígena foi registrado por distintas formas gráficas: aporiná, ipuriná, hypuriná, apurinã etc., formas pelas quais se estabiliza o sentido de língua enquanto artefato cultural relativo a um povo autóctone da região Norte do Brasil. Os três títulos das gramáticas abaixo, com filiações teóricas diferentes, ilustram o processo pelo qual ipuriná/apurinã se encaixa sintaticamente com acepção metalinguística:

A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language, de Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. .

Apurinã Grammar: Preliminary Version, de Pickering (1971)PICKERING, W. Apurinã Grammar: Preliminary Version. Arquivo Linguístico Nr. 008. Brasília, D.F., S.I.L, 1971..

The Language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak), de Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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Nesses títulos, ipuriná/apurinã dá especificidade às ideias de gramática, de língua e de povo. Uma especificação de sentidos na atualidade dessas três enunciações que é forjada a partir do encontro de conhecimentos linguísticos e etnográficos. Entrecruzamento que aponta para o fato de que subjazem à textualização de expressões como Ipuriná Language, Apurinã Grammar e Language of the Apurinã People, processos discursivos de produção de sentidos passíveis de reconstituição.

Ao pensar esta determinação histórica do sentido, neste trabalho nos ocuparemos da produção discursiva do nome da língua de uma sociedade indígena inserida marginalmente no cenário brasileiro. Ou seja, buscaremos mostrar como se construiu e se estabeleceu a referência para a palavra apurinã como nome de uma língua de uma sociedade indígena ao longo do tempo. Nesse percurso, refletiremos de que forma a nomeação da língua/sociedade Apurinã está ligada à necessidade de construção discursiva do referente por parte do colonizador, ao lado da necessidade de constituição de um conhecimento linguístico sobre a língua desse povo.

Diante disso, procuramos descrever especificamente, por meio da análise de relatos de viajantes, de gramáticas, de vocabulários e de dicionários, o efeito subjetivo de anterioridade e exterioridade que sustenta a legibilidade do nome de uma língua sob o qual se apoia contemporaneamente o trabalho de descrição gramatical da língua Apurinã.

Assumimos que o nome de uma língua emerge intradiscursivamente como elemento associado a outras “formas [...] de estabilização que produzem o sujeito” (PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.148). Assim, ao considerar que o sentido do nome de uma língua “não existe em si mesmo [...] mas determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico” (PÊCHEUX, 2014, p.146), levantamos as seguintes questões:

  1. Como a palavra apurinã adquire, historicamente, sentidos na relação com outras palavras e expressões?

  2. De que modo um item lexical dado passa a ser tomado de modo transparente no domínio da metalinguagem enquanto nomeação de uma língua?

Dada à articulação dessas questões, as respostas para demonstrar o caráter material do sentido do nome de uma língua podem ser esboçadas pela reconstituição dos traços do seu espaço de memória. Ou seja, pelo que é anterior e exterior a produção e interpretação de uma sequência linguística atestada historicamente.

Nessa direção, consideramos que a presença da palavra apurinã em distintas superfícies discursivas vincula-se a um sistema de reformulação sem o qual sua menção não seria possível para referir-se a uma sociedade e a língua falada por ela. Isso porque é necessário que haja um lastro de memória como princípio de legibilidade de tal palavra; um movimento da ideologia enquanto rede de sentidos pelos quais a palavra apurinã se estabilizou nas descrições gramaticais sob a égide da linguística após a segunda metade do século XX.

1 Orientações teórico-metodológicas

O corpus consiste em um conjunto de quatro textos produzidos a partir de posições ideológicas heterogêneas: i) o relatório da exploração do Rio Purus de J. M. da Silva Coutinho, apresentado em 1863 ao presidente da Província do Amazonas; ii) o relato de viagem do naturalista W. Chandless, publicado no Journal of the Royal Geographical Society of London em 1866CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866.; iii) a gramática e vocabulário do Ipuriná do missionário anglicano Polak, de 1894POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. ; e iv) a gramática descritiva do Apurinã, do linguista Sidney Facundes, publicada em 2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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. Confronta-se, portanto, uma escala de produção textual em um período longo de tempo para observar as determinações histórico-discursivas da nomeação de uma língua autóctone da Amazônia brasileira. A voz dos indígenas nesses documentos se dá apenas na forma de exemplos baseados na oralidade, que são a matéria-prima para a confecção das gramáticas e dos vocabulários.

Para uma leitura não subjetiva deste corpus, ao perseguir as questões (i) e (ii) propostas acima, seguimos os pressupostos da Análise de Discurso francesa que explicitam a relação entre interdiscurso e intradiscurso a partir da articulação entre o ENUNCIADO (grafado [E]) no nível interdiscursivo e a FORMULAÇÃO1 1 Courtine (2009, p.101) define a noção de formulação como “sequência linguística (de dimensão sintagmática inferior, ou igual a uma frase) que é uma reformulação possível de [E]”. O enunciado, por seu turno, como “uma forma ou um esquema geral que governa a repetibilidade no seio de uma rede de formulações” (COURTINE, 2009, p.100). Assim, a operacionalização da noção de enunciado não deve ser confundida com a de formulação, embora elas sejam complementares. (grafado [e]) no nível intradiscursivo. Consideramos, pois, para se chegar à descrição do processo discursivo de constituição de apurinã como equivalente semântico de ‘povo’ e de ‘língua’, a dessuperficialização linguística das formulações para sua consequente dessintagmatização enquanto objetos discursivos postos em relação.

Tal procedimento conduziu à extração de [e] dos documentos mencionados tendo como entrada o item lexical que designa uma referência à língua e à sociedade em questão. Em Coutinho (1863), identificou-se o item lexical sobre o registro gráfico ipuriná. Em Chandless (1866CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866.), identificou-se o item sob o registro hypuriná. Em Polak (1894POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. ), sob o registro ipuriná. E, por fim, em Facundes (2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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), apurinã. Considerando-se as possibilidades de leitura deste item lexical nos documentos, constituiu-se uma rede de [e] para as análises dos mecanismos sintáticos e, consequentemente, do processo discursivo de produção de seus sentidos na reflexão sobre a língua desta sociedade.

É importante justificar que a escolha desde item como entrada para a seleção das [e] se acha mediada pelo efeito de transparência. Ele já é tomado como um termo de dicionário que se apresenta de modo evidente. Desse modo, o que se pretende é ‘quebrar’ a leitura óbvia de seus sentidos pelo sujeito, no intuito de caracterizar o processo material de sua produção na atualidade de qualquer enunciação. Reconhecemos, inclusive, ao cercar a constituição desses sentidos, a reconfiguração incessante do domínio de saber de qualquer sistema de reformulação-paráfrase por sua relação com o interdiscurso. Isso significa que consideramos a heterogeneidade enunciativa de cada [e] apreendida como objeto linguisticamente dessuperficializado.

O procedimento adotado instrumentaliza, portanto, uma leitura dos traços constituintes do espaço de memória que engendra os sentidos da palavra em questão. Explora o efeito subjetivo de anterioridade e exterioridade evocado pelo uso desta palavra ao longo do processo de produção de saberes sobre os Apurinã e sua língua.

Em termos técnicos, acreditamos que a produção histórica dos sentidos de apurinã pode ser explicada pela noção de pré-construído (PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249.). Um elemento pré-construído representa o efeito de anterioridade e exterioridade dos sentidos que subjazem a uma palavra ou sintagma em uma enunciação/formulação dada. O pré-construído explicita, assim, o próprio funcionamento discursivo de uma palavra como efeito de sentido entre sujeitos da enunciação. Quando falamos não lidamos com o objeto do mundo em si, mas com uma representação simbólica desse objeto que se sustenta pode uma série de não-ditos. Assim, por se tratar de uma palavra com interpretações estabilizadas, os sentidos de apurinã podem ser analisados pela relação com o interdiscurso que a margeia. Isto é, o exterior específico a partir do qual seu encaixe em qualquer superfície linguística - intradiscurso das [e] - existe por desigualdade, contradição ou subordinação aos sentidos de outras palavras e expressões. É um processo discursivo que pode ser caracterizado a partir de uma série de enunciações anteriores que funcionam como o espaço de memória da atualidade de uma sequência linguística em que apurinã seja lida como evidência. Em outros termos, a sintagmatização de tal palavra mantém relação com não-ditos2 2 “Modalidades discursivas da presença do outro na identidade literal da sequência” (PÊCHEUX, 2015, p.150). A noção de pré-construído representa teoricamente o já-dito que emerge na sequência discrepando de outras séries de elementos do seu espaço interdiscursivo, os quais permanecem como não-ditos da sequência, isto é, como propriedades subjacentes à sua literalidade. presumivelmente recuperáveis pelo trabalho de arquivo.

2 Análises

2.1 O sentido da palavra Ipuriná no intradiscurso do relatório de Coutinho (1863)

O primeiro registro escrito do nome para designar a sociedade Pupỹkarywakury3 3 A referência pelo indígena dessa sociedade à sua língua em sua própria língua se materializa pela expressão “Pupỹkary sãkyri” (FERREIRA, 2014, p.03), que corresponde em português à expressão ‘língua Apurinã’. A construção discursiva do referente daquela expressão por parte do indígena Apurinã é recente. Ela se dá, conforme Link (2016, p.57), em função do surgimento de uma “política de reafirmação de fronteiras étnicas [e identitárias]” a partir da década de 1970. aparece no relatório de Matos4 4 Em 1945, atuou como represente militar da Comarca do Alto Amazonas subordinada à Província do Pará. , de 1845. Trata-se da palavra aporiná utilizada como etnônimo. No relatório de Coutinho de 1863, esta designação é retomada sob a forma ipuriná na descrição geográfica do Purus sem, entretanto, deslizar para a nomeação da língua falada por esta sociedade. O nome da língua aí não era uma evidência, ou seja, um puro já-dito, um efeito do interdiscurso enquanto pré-construído.

À produção-leitura de uma formulação subjaz uma cadeia de significações para cada elemento que a constitui. Apesar disso, essas significações anteriores e exteriores à produção linguística de cada sintagma da formulação se encontram acobertadas para o sujeito. Tudo não se diz, “isso porque há um impossível próprio da língua” (MILNER, 1987MILNER, J-C. O amor da língua. Tradução Ângela Cristina Jesuíno. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987., p.06). Diante disso, no nível das ligações horizontais de superfície, a interpretação de ipuriná em Coutinho (1863) se sustenta a partir de efeitos de sentidos já cristalizados de verbos, complementos e adjuntos que apontam para ações humanas que caracterizavam a vida “tribal”. Pode-se ilustrar esse fato pelas seguintes relações entre os sintagmas verbais (SV) e a palavra ipurinás no relatório:

As ações expressas pelos verbos, nas superfícies do quadro 01, apresentam argumentos à direita que exprimem aspectos da organização social do sujeito Apurinã. Os sentidos aportados nestes SV condicionam a leitura de ipuriná a propriedades de ‘indivíduos’, de ‘pessoas’, de ‘gentes’ etc. No entanto, essa relação de significação baseada em uma percepção puramente sintagmática dá apenas o arranque para se especificar a historicidade do nome ipuriná em relação aos sentidos de ‘indivíduo indígena’ ou de ‘sociedade indígena’.

Quadro 01
relação sintagmática Ipuriná - SV em Coutinho (1863)COUTINHO, J. Considerações gerais sobre os rios que descem da cordilheira dos Andes nas proximidades de Cuzco, Cochoeiras do Purus e Juruá. 1º de março de 1863. In: O tratado de limites Brasil-Peru: Documentos para a História do Acre. Brasília: Senado Federal, 2009 [1863]. p.253-299..

Ainda no eixo das relações sintagmáticas, o nome ipuriná no relatório se apresenta majoritariamente na posição de núcleo (N’) de sintagma nominal (SN) como equivalente semântico de ‘povo’ ou ‘tribo’. Para exemplificar isso, têm-se os seguintes recortes com destaque para o N’ dos SN em itálico:

Como se constata, a interpretação de ipurinás na posição de núcleo de SN já se produz pelo efeito de transparência calcado na literalidade do significante. Contudo, para as [e] lidas em Coutinho (1863), a transparência deste nome nesta posição sintagmática pode ser pensada como determinada interdiscursivamente mediante sua relação de substituição entre elementos discursivos de outros textos/autores.

Consequentemente, diante das possibilidades de substituição paradigmática, uma ordem específica de sentidos intervém na leitura evidente de ipuriná como N’ de SN. Trata-se de elementos lexicais com acepção referencial que permanecem como traços do interdiscurso na reescritura do cotexto de Coutinho (1863). Elementos que apontam para as determinações sucessivas do processo de reformulação-paráfrase que sustenta o sentido étnico de ipuriná na atualidade deste autor. Nesse processo, ipuriná como forma nominalizada estabelecida por relação a seu funcionamento no SAdj é índice do contato do relatório com um exterior que lhe é específico. Em [e] 4 , [e] 5 e [e] 6 , abaixo, ipuriná aparece qualificando substantivos como ‘moços’, ‘tribo’ e ‘índios’:

Sintaticamente, os três sintagmas destacados acima têm o sentido de seus núcleos nominais [moços], [tribo] e [índios] especificados pelo funcionamento de ipuriná enquanto qualificativo sem acepção referencial5 5 Do ponto de vista gramatical, a função de adjetivo da palavra se define por relação ao núcleo do sintagma nominal. Uma relação de posicionamento que não é definida formalmente, mas por critérios semânticos. Conforme Perini et al. (1998, p.221; grifo do autor), “o núcleo é o termo do SN que está tomado em acepção referencial — ou seja, como ‘designação de uma coisa’”. Gramaticalmente, nesse caso, ipuriná significaria por relação aos sentidos dos núcleos, que apontam para o extralinguístico, considerando-se nisso a produção discursiva do referente por meio dos processos de substitutibilidade entre elementos que caracterizam o espaço de memória de uma palavra, expressão ou proposição. . Pode-se falar da delimitação do sentido ‘étnico’ das categorias genéricas representadas por ‘moços’, ‘tribo’ e ‘índios’. Ipuriná qualifica substantivos nestas ocorrências, dando lhes um traço étnico.

O encaixe de ipuriná em estruturas do tipo [SN [Det [N’]]] ou [SN [Det] [N’ [SAdj] [N]] em Coutinho (1863) indica seu caráter pré-construído enquanto etnônimo a partir de possibilidades de substituição orientada entre comutáveis. As relações exteriores que geram o sentido desta palavra enquanto etnônimo se estabelecem por metonímia a partir de elementos de seu interdiscurso. Logo, em uma reformulação do tipo “The Apurinãs refer to this festival as “xingané”” (FACUNDES, 2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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, p.25), apurinã já possui de modo naturalizado a especificidade de uma identidade individual ou coletiva. Tal palavra subsume na sua sintagmatização em [SN [Det [N’]]] todos os sentidos outros de categorias mais genéricas que podem ser lidas desde Matos (1845), tais como ‘índio’, ‘alma’, ‘tribo’, ‘nação’, ‘raça’, ‘errantes’ etc.

O exterior específico das [e] de Coutinho nas quais se tem tal etnônimo põe em jogo também a própria relação de ipuriná com o nome das outras etnias da região. Todas igualmente significando uma ‘tribo/pessoa indígena’ da bacia do Purus, cujos costumes são descritos ao longo do relatório. Portanto, esses traços de memória pelos quais se constitui o sentido de ipuriná como equivalente de ‘povo’ ou de ‘indivíduo’ remetem ao espaço do não-dito das [e] analisadas. Em outras palavras, as condições da produção e interpretação destas [e] em que esta palavra se efetiva como núcleo de sintagma nominal ou sintagma adjetival reside na relação com a existência histórica dos sentidos dos nomes para outros grupos étnicos como ‘Pamarys’, ‘Catauixis’, ‘Ubaias’ etc., que também intervêm semanticamente como corpo de traços interdiscursivo.

Ainda no que pese a caracterização do alhures discursivo pelo qual se pode cercar o sentido de ipuriná enquanto equivalente de ‘povo’ no texto de Coutinho (cf. 1863), ressaltamos uma importante relação de substitutibilidade no que tange às interpretações correntes à época a respeito do elemento ‘índio’, materializadas na descrição do relatório de Matos (1845). Trata-se da regularidade das expressões “indígenas [...] já domesticados” (MATOS, 1845, p.168) e “indígenas [...] ainda bravios” (MATOS, 1845, p.168) que orientam a leitura sobre a diversidade étnica nos rios do Amazonas, em que se acham as sociedades autóctones do Purus. Trata-se de uma escala hierárquica de valor cujos efeitos intervêm na constituição metonímica de ipuriná nas posições de núcleo de SN e de SAdj em Coutinho.

O sentido étnico desta palavra advém, assim, das relações de sentido mantidas com um exterior específico circunscrito à conjuntura do Brasil Império. Nela, os sentidos que circulam para ‘índio’, ‘tribo’, ‘maloca’, nomes de outras etnias etc. se comportam como condições de produção de ipuriná. Palavras e expressões que eventualmente aparecem como elementos de reescritura na própria superfície do texto analisado. O efeito de sentido de uma palavra na atualidade de uma enunciação se dá por meio de uma reformulação que mantém esquecido-acobertado o espaço de substituição que lhe sustenta a leitura. Assim sendo, só há repetição do sentido étnico de ipuriná em função de um trajeto de memória que faz com que o seu significante, ao ser retomando, “[queira] dizer o que realmente [diz]” (PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.146), tornando-se “[uma evidência] pela qual todo mundo sabe” (PÊCHEUX, 2014, p.146).

2.2 O sentido da palavra hypuriná no intradiscurso do relato de Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866.

O relato de Chandless, publicado sob o título Ascent of the River Purûs no Journal of the Royal Geographical Society of London em 1866, resulta de uma expedição não oficial realizada durante o Governo Imperial do Brasil (LINK, 2016LINK, R. Vivendo entre mundos: o povo Apurinã e a última fronteira do Estado brasileiro nos séculos XIX e XX. Porto Alegre, 2016. 357 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/142913/000994268.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 25/01/2019.
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). Ele apresenta o primeiro estudo cartográfico deste rio baseado em observações astronômicas, além de listas de vocábulos de algumas línguas autóctones, dentre as quais o Apurinã. Seu objetivo central é a descrição das condições de navegabilidade do Rio Purus. Nele, as descrições das populações que aí viviam foram feitas lateralmente por meio de uma visão relacional entre territorialidade e linguagem no século XIX.

Este texto se estrutura em relação aos discursos de quatro viagens exploratórias oficiais precedentes. Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866. menciona informações dessas viagens sob uma heterogeneidade constitutiva6 6 Noção utilizada por Authier-Revuz (1982) para referir-se a presença discreta do interdiscurso nos processos de produção textual sem marcação explícita das fontes de enunciação. , sem marcar linguisticamente as fontes pelas quais toma conhecimento delas. Uma forma de alteridade enunciativa pela qual podem ser rastreados traços de memória do exterior específico que joga com a produção e interpretação de hypuriná.

A partir da análise da relação de sentido entre elementos sintagmáticos de Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., vislumbra-se a mesma identidade de sentido segundo se lê em Coutinho (1863)COUTINHO, J. Considerações gerais sobre os rios que descem da cordilheira dos Andes nas proximidades de Cuzco, Cochoeiras do Purus e Juruá. 1º de março de 1863. In: O tratado de limites Brasil-Peru: Documentos para a História do Acre. Brasília: Senado Federal, 2009 [1863]. p.253-299. e Matos (1845)MATOS, J. Relatório do estado de decadência em que se acha o Alto Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 325, p.143-180, 1979 [1845].. Dentre as superfícies linguísticas extraídas daquele texto, a palavra hypuriná aparece encaixada como sujeito gramatical, onde verbos a ligam a predicações humanas, como se interpreta no seguinte quadro das relações entre SN e SV:

Quadro 02
relação sintagmática Hypurinás - SV em Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866..
Quadro 03
relação sintagmática Ipuriná - SV em Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. .

Essas conexões sintagmáticas produzem um sujeito gramatical com sentido de indivíduos que ‘realizam festival’, que ‘se vestem’, que ‘se pintam’ etc. Ou seja, comportamentos e atitudes humanas. Uma interpretação que por si só não preenche as condições para explicar a construção histórica de hypuriná enquanto equivalente semântico de ‘povo’, ‘etnia’, ‘pessoa’, porque uma interpretação dessas se baseia em uma percepção de superfície sem relação com qualquer verticalidade paradigmática que aponta para o interdiscurso. Isso representa o fato de que um leitor, em uma situação de recepção desse texto, se torna sujeito - “refém” - de seus sentidos sem consciência de todas as determinações discursivas que subjazem a ele - processo de produção de uma sequência a partir dos esquecimentos inerentes ao discurso. Sobre este ponto, retomamos a definição de esquecimento como condição psicanalítica da enunciação pelo sujeito. Só dizemos afetados por um duplo condicionamento da ideologia como inconsciente: (i) acobertamento da defasagem entre formações discursivas e, (ii) acobertamento das relações de paráfrase da sequência concreta.

Assim, o sentido étnico de hypuriná em relação aos verbos que os ligam a predicações humanas se estabelece em todas as ocorrências de sua articulação léxico-sintática na estrutura [SN [N’]] com mesmo sentido atribuído à ‘aporiná’ em Matos (1845)MATOS, J. Relatório do estado de decadência em que se acha o Alto Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 325, p.143-180, 1979 [1845]. e à ‘ipuriná’ em Coutinho (1863)COUTINHO, J. Considerações gerais sobre os rios que descem da cordilheira dos Andes nas proximidades de Cuzco, Cochoeiras do Purus e Juruá. 1º de março de 1863. In: O tratado de limites Brasil-Peru: Documentos para a História do Acre. Brasília: Senado Federal, 2009 [1863]. p.253-299..

O mecanismo que dota a palavra hypuriná deste sentido na atualidade das enunciações em Chandless é, portanto, mais do que a relação interfrástica entre constituintes sintáticos na sucessão sintagmática. É, antes de tudo, um processo discursivo caracterizado por regras semânticas preexistentes que seriam nada mais que a articulação contraditória entre os elementos discursivos do sistema de relações de substituições prévio ao texto do viajante, o que, nos termos de Courtine (2009, p. 99)COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução Patrícia Chittoni Ramos Reuillard et al. São Carlos, SP: EdUFScar, 2009. seriam as relações de sentido que uma palavra mantém com o “domínio de saber [que lhe é] próprio”. Logo, a produção do sentido de hypuriná é da ordem de uma interdiscursividade que fornece os elementos previamente à ação enunciativa do viajante. Desse modo, tem-se o sentido de hypuriná no relato por relação aos sentidos de ‘índios’, ‘indígenas’, ‘tribo’, ‘nação’, ‘selvagens’, ‘domesticados’ etc., alguns dos quais permanecem como elementos de reescritura no texto; outros, no entanto, mantêm-se na “zona do rejeitado” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.175). Assim, a interpretação de hypuriná resulta da relação parte-todo que ela mantém com esses elementos discursivos pré-existentes.

A partir do domínio semântico de hypuriná na reescritura deste relato, cujo sentido se dá por relação a itens como ‘tribe’, ‘indians’, ‘maloca’, nomes de etnias etc., sua leitura ocorre apenas como etnônimo. Não há nele, além do mais, o encaixe de hypuriná enquanto adjetivo na estrutura [SN [Det] [N’ [SAdj] [N]], qualificando e determinando substantivos genéricos, como se lê no texto de Coutinho (1863), em que figuram expressões como ‘moços ipurinás’, ‘tribo ipuriná’ e ‘índios ipurinás’. Em outros termos, esta palavra não é lida neste relato como um termo do SN tomado sem acepção referencial, isto é, como adjetivo. Ela é significada apenas na posição de núcleo nominal. Isso prova que o funcionamento nominalizado de hypuriná dissimula as determinações sucessivas dos traços de memória na sua produção literal na sequência.

As superfícies de [e] 7 a [e] 12 , abaixo, exemplificam o funcionamento exclusivo deste item enquanto núcleo nominal; reformulações para as quais se mantém acobertada a memória de ‘nação’, ‘tribo’, ‘selvagem’, ‘bravios’, ‘domesticados’ ‘errantes’ etc.:

Esses traços de memória, que garantem a legibilidade de hypuriná nos sintagmas destacados acima, não são tomados como meros implícitos. Eles remontam a operações efetuadas antes da realização material do termo na posição sintática de núcleo de SN em Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., o que pode ser explicado pela relação metonímica de hypuriná com os sentidos de categorias genéricas, como, por exemplo, de ‘índios’, ‘indígenas’, ‘tribo’ e ‘nação’. O sentido desta palavra constitui-se, assim, por um mecanismo de substituição orientada como equivalente semântico de ‘tribo/povo’ ou de ‘indivíduo’ na atualidade de formulações em posição de núcleo nominal neste autor.

Pode-se dizer, portanto, que tal nomeação, em Chandless, configura-se como uma abreviação, pois sua interpretação se sustenta pela retomada da memória de ‘indígenas’, ‘índios’, ‘tribo’ ou ‘nação’ e não seu contrário. A respeito de ipuriná ser uma forma abreviada com sentido étnico em Chandless, seguimos a posição de Sériot (1986SÉRIOT, P. Langue Russe et discour politique soviétique: analysis des nominalisations. Languages, n. 81, p.11-41, 1986.) sobre a memória de um nome ou de um SN retomado em um texto dado. Para este analista, “os nomes (os SN em geral) funcionam como as abreviações” (SÉRIOT, 1986SÉRIOT, P. Langue Russe et discour politique soviétique: analysis des nominalisations. Languages, n. 81, p.11-41, 1986., p.30)7 7 Os Hypurinás vestem tanga. resultantes de relações predicativas produzidas anteriormente ao ato atual de enunciação. Isto é, resultados da construção discursiva do referente da palavra por meio do espaço de reformulação-paráfrase onde seu sentido se estabiliza. Esta construção pode ser recuperada, inclusive, pelo funcionamento de adjetivos em textos anteriores que especificam etnias, isto é, nomes sem acepção referencial no sintagma. Realidade linguística que se lê, por exemplo, em “em um lado desse rio [...] vivem os indígenas Quaruná” (MATOS, 1845MATOS, J. Relatório do estado de decadência em que se acha o Alto Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 325, p.143-180, 1979 [1845]., p.171; grifo meu), em “os índios Muras desertaram” (COUTINHO, 1863COUTINHO, J. Considerações gerais sobre os rios que descem da cordilheira dos Andes nas proximidades de Cuzco, Cochoeiras do Purus e Juruá. 1º de março de 1863. In: O tratado de limites Brasil-Peru: Documentos para a História do Acre. Brasília: Senado Federal, 2009 [1863]. p.253-299., p.316; grifo meu), em “não é bem conhecida a tribo Uaipuiçá” (COUTINHO, 1863COUTINHO, J. Considerações gerais sobre os rios que descem da cordilheira dos Andes nas proximidades de Cuzco, Cochoeiras do Purus e Juruá. 1º de março de 1863. In: O tratado de limites Brasil-Peru: Documentos para a História do Acre. Brasília: Senado Federal, 2009 [1863]. p.253-299., p.300; grifo meu), ou em “A Nação Mundurucu [...] gosta mais de habitar o coração das brenhas” (MATOS, 1845MATOS, J. Relatório do estado de decadência em que se acha o Alto Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 325, p.143-180, 1979 [1845]., p.173; grifo meu).

É mediante este movimento de nominalização do SAdj em N’ de SN que se pode compreender, por exemplo, a retomada de Hypuriná e de Jamamadýs, em Chandless (1866, p.95)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., enquanto nomes transparentes usados para interpretar sociedades do Purus como no trecho abaixo:

Apart from all other distinctions, Indians in these regions may be divided into Indians of the land and Indians of the water. The Jamamadýs are exclusively a land tribe, living on small streams only, and not using canoes. The Hypurinás are also a land tribe, but less exclusively (CHANDLESS, 1866CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., p.95; grifos meus)8 8 Os Hypurinás têm um festival. .

A aceitação do sentido étnico de hypuriná no ato de sua produção e interpretação constitui-se como forma do processo de assujeitamento por seu funcionamento pré-construído. A produção e interpretação das [e] em Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., em que hypuriná aparece exclusivamente como N’ de SN, se dá em relação a um corpo de traços discursivos que constitui seu espaço de memória, que caracterizamos a partir de textos anteriores. Fez-se necessário a imersão desse cartógrafo na rede de significação preexistente para construir em seu texto a coerência da descrição desta sociedade, num processo de assujeitamento reconstituível pela relação entre o intradiscurso de textos mais antigos e o de seu relato, o qual oculta/subsume o sentido de ‘errantes’, ‘bravios, ‘tribo’ etc. em todas as formulações onde ocorre hypuriná.

A palavra hypuriná no relato de Chandless repete o sentido ‘étnico’ encontrado em textos anteriores. Nas [e] deste relato, embora a ideia de língua seja tomada para identificação das sociedades indígenas do Purus, a palavra hypuriná não qualifica ou subsume na transparência do seu significante tal ideia linguística. Contudo, mesmo que haja uma instrumentação de unidades lexicais com finalidade etnográfica, este relato aporta uma percepção de unidade linguística vinculada a uma territorialidade, representada em seu registro cartográfico, que testemunha a localização dos Hypurinás.

2.3 Sentidos da palavra ipuriná no intradiscurso da gramática de Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894.

Jacob Resyek Polak foi um missionário anglicano que atuou entre os Apurinã no Purus durante oito anos. Onze anos após o fechamento da missão anglicana9 9 Os Hypurinás pintam-se. neste rio, ele publicou sua gramática e vocabulário do Ipuriná na Inglaterra. Trata-se da primeira descrição gramatical do Apurinã de que se tem conhecimento. Sumariamente, ela apresenta uma ortografia baseada em caracteres latinos, uma descrição de classes de palavras conforme a gramática latina, quatro listas de vocábulos e orações em Apurinã e Língua Geral.

Ao observarmos em sua gramática o encaixe léxico-sintático de ipuriná em relação ao núcleo de distintos SV, o significado do verbo e de seus argumentos indicam pistas na produção de sua interpretação. Mais especificamente, o verbo transitivo ‘says’ (dizer) e as locuções verbais ‘have peeped out’ (têm espreitado), ‘are susceptible’ (são susceptíveis) e ‘is printed’ (está impresso), indicam relações de sentidos na leitura do nome:

Embora na mesma posição de núcleo nominal sujeito lido nos textos de viajantes, este nome desliza para uma nova leitura em Polak (1984): The Ipuriná is printed in italics. Ou seja, uma nova possibilidade de ligação entre objetos discursivos surge, para além das articulações sintagmáticas que exprimem aspectos comportamentais do sujeito Apurinã. No entanto, para explicitar o mascaramento do caráter material da produção do etnônimo e do nome de língua na posição de sujeito gramatical é necessário ir além da relação mantida pelo termo com os sentidos dos verbos e dos argumentos dos verbos.

De modo geral, a reconstituição dos traços de memória que dotam a legibilidade de ipuriná nas [e] em Polak perpassa pela movimentação sintática entre seu funcionamento enquanto núcleo de SN e SAdj, o que aponta para a construção discursiva do referente do nome ipuriná por meio de relações predicativas anteriores e exteriores a esta gramática. Nela leem-se ocorrências em que tal palavra qualifica nomes que designam categorias genéricas em dois eixos semânticos de modo interdependente: categorias etnográficas como ‘indians’ e ‘tribe’, como se pode ler em [e] 13 e [e] 14 ; e categorias metalinguísticas como ‘grammar’, ‘verb’ e ‘lenguage’, como se pode ler em [e] 15 , [e] 16 e [e] 17 :

Portanto, para além da evidência do sentido étnico de ipuriná, “inaugura-se” no intradiscurso desta gramática a produtividade de seu sentido metalinguístico. Um novo sentido evidente que se acha articulado à memória da tradição gramatical europeia. A estabilidade de seu sentido enquanto equivalente de ‘língua’ nesta gramática articula-se também por relação ao sentido primeiro do termo enquanto equivalente de ‘povo’. Um deslocamento de sentido marcado pela homonímia que permite compreender como se processou historicamente, a partir de traços interdiscursivos, a definição e a reprodução do objeto discursivo ‘língua Ipuriná’.

Diante das duas leituras possíveis - ‘um nome específico de tribo’ e ‘um nome específico para a língua dessa tribo’ - para o nome ipuriná como núcleo nominal sujeito em Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. , as formulações apresentam as seguintes configurações: de um lado, seu uso na posição de N’ de SN como equivalente semântico de ‘povo indígena’ ou de ‘indivíduo indígena’; de outro lado, seu uso na mesma posição de N’ de SN como equivalente semântico de ‘língua’ ou ‘gramática’. Para exemplificar isso, observe-se que [e] 18 matem o mesmo sentido de etnônimo dos textos anteriores, ao passo que [e] 19 apresenta uma acepção metalinguística:

Embora a enunciação de ipuriná nestas duas formulações se deem na mesma estrutura sintática [SN [N’]], sua leitura é distinta em função da relação de sentido entre os sintagmas das sentenças, como também pela relação paradigmática com o “estoque” lexical disponível enquanto traços de memória.

Do ponto de vista paradigmático, não encontramos vestígios para a interpretação de [e] 19 se relacionada aos textos dos viajantes como seu exterior específico. Ou seja, a enunciação de ipuriná em Polak como N’ de SN significando ‘língua’ materializa-se em relação à construção discursiva prévia dos referentes de ‘povo’ ou ‘tribo’. Um deslizamento na produção e interpretação do termo a partir de relações interdiscursivas, que abre espaço ao seu uso por homonímia no domínio metalinguístico. O fato é explicável pela reconstituição da memória no funcionamento das duas formulações acima, em que ocorre a dissimulação de elementos discursivos prévios para que ipuriná signifique na literalidade do seu significante como ‘povo’ em [e] 18 , e como ‘língua’ em [e] 19 . Dois efeitos de pré-construído - na forma abreviada do SN - que são sustentados por determinações dissimétricas ao longo do processo discursivo de substituições que funcionam entre elementos linguísticos.

Assim sendo, as duas possibilidades de sentido - ‘língua’ e ‘ povo’ - atestadas sob o mesmo significante neste autor resultam de operações de asserção efetuadas em enunciações precedentes. Diante da recomposição da relação de substituição entre constituintes para a mesma estrutura sintagmática, observamos que este nome aparece como cabeça de SN em uma relação de implicação de sentidos que caracterizam seu caráter pré-construído nas enunciações de Polak. Essa estabilidade dos sentidos de ipuriná em Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. pode ser explicitada pelo reconhecimento das relações de equivalência e de implicação a partir da comparação das [e] extraídas dos discursos analisados. Essa sobreposição de substituíveis levou à estruturação de dois blocos parafrásticos10 10 Os Hypurinás seguraram seus arcos. que exemplificam o aparecimento do nome na superfície sintática enquanto objeto discursivo na posição de sujeito gramatical pela discrepância do interdiscurso no intradiscurso sob a modalidade de pré-construído:

Figura 1

Ao observarmos as relações de sinonímia e de metonímia nestes blocos, compreendemos que a produção dos sentidos étnico e linguístico acoberta uma série de elementos discursivos (índio, povo, nação, tribo, língua, gíria etc.) para que ipuriná signifique de modo evidente como N’ de SN nas superfícies discursivas - determinação discursiva sob a autonomia relativa da sintaxe cujas marcas aparecem na alteridade derivacional de adjetivo em substantivo ao longo do tempo. Deste modo, constatamos linguística e discursivamente que ipuriná “não é a invariante primeira, mas o ponto de estabilização do processo” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.236).

2.4 Sentidos da palavra apurinã no intradiscurso da gramática de Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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A tese The language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak) é a primeira obra de descrição gramatical do Apurinã feita por um brasileiro11 11 Os Hypurinás mostraram-nos uma prancha. . Esta obra é, portanto, um marco importante na constituição do espaço brasileiro de produção linguística sobre o Apurinã. Ela pode ser tomada como a engrenagem fundamental da produção dos saberes linguísticos do Apurinã no contexto acadêmico brasileiro. Filiadas explicitamente a ela, podem ser achadas uma série de outras obras científicas que inserem a linguística brasileira na gramatização do Apurinã.

Diante das condições da produção dos sentidos no limiar do século XXI, os sentidos de ‘língua’ e de ‘povo’ legíveis para apurinã em Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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já se acham naturalizados. Uma estrutura-funcionamento da interpelação observável pelo encaixe intradiscursivo desta palavra em distintas articulações sintáticas desta gramática-tese. Trata-se da explicitação por meio da base linguística do assujeitamento pelos sentidos de apurinã. Interpelado por esses sentidos evidentes, este autor é levado a dizer de modo que o que ela diga faça sentido em sua área de saber.

O encaixe léxico-sintático de apurinã nas [e] de Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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apresenta o mesmo funcionamento gramatical ao designar o nome do povo e de sua língua, tal como analisado na gramática de Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. . Nas formulações daquele linguista, a palavra apurinã aparece como adjetivo qualificando nomes que significam elementos étnicos ou linguísticos, bem como na posição de núcleo de sintagma nominal designando metonimicamente ‘língua’ ou ‘povo’. Nesses termos, os sentidos de apurinã podem ser descritos observando-se as representações dos processos de implicação nos blocos parafrásticos (a) e (b) na seção 2.3, acima.

Nas funções sintáticas constatadas, os sentidos desta palavra se dão sintagmaticamente por relação às duas ordens de sentidos outros (caracterizáveis como linguísticos e etnográficos). Elas são recuperáveis enquanto traços lexicais que dotam a legibilidade de apurinã. Ou seja, a evidência deste nome tanto como N’ de SN ou como SAdj se dá a partir das relações de substitutibilidade que articulam sua sintagmatização na gramática de Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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.

Assim, a sintagmatização horizontal, nas [e] deste autor, põe apurinã, de um lado, em relação aos sentidos de ‘communities’, ‘indigenous’, ‘people’, ‘speakers’, ‘society’ etc., e, por outro lado, em relação aos sentidos de ‘language’, ‘grammar’, ‘songs’, ‘polysynthetic’, ‘sintax’ etc. Em contrapartida, a produção discursiva dos sentidos de apurinã põe em xeque a produção de seu sentido étnico, pois os traços lexicais que subjazem como memória de seu encaixe apontam para a oposição selvagem/civilizado que determinavam a percepção da alteridade no século XIX. Realidade que se interpreta nos primeiros relatos a partir de termos e expressões como ‘tribe ill-famed’, ‘race’, ‘domesticados’, ‘bravios’, ‘savages’, ‘civilised people’ etc.

A leitura das [e] em relação à verticalidade paradigmática do interdiscurso e a sintagmatização horizontal do intradiscurso corrobora a produção material dos sentidos de apurinã nesta tese. Seus sentidos são dados pela relação mantida com os traços de memória de seu exterior específico nas duas ordens de sentidos apontadas. Em outras palavras, os sentidos desse termo se tornam evidência do real por meio da produção discursiva de seus referentes a partir de uma rede de substitutibilidade de palavras e expressões exteriores ao encaixe do termo na gramática de Facundes.

Como já pontuamos anteriormente, o termo ipuriná (hypuriná ou apurinã) usado como equivalente de língua não é uma invariante primeira, mas o ponto de estabilização de um processo discursivo. Tal nomeação na gramática de Facundes se constitui em relação a traços de memória recuperáveis desde as primeiras reformulações do século XIX. Traços que se acham dissimulados na atualidade de enunciações desta gramática para que apurinã se encaixe como um pré-construído nas superfícies discursivas abaixo:

Apurinã, legível enquanto ‘língua’ em posições como N’ de SN ou N’ de SAdj em Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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, retoma a memória do início da sua gramatização. Em Chandless (1866)CHANDLESS, W. Ascent of the River Purûs. Journal of the Royal Geographical Society of London, v. 36, p.86-118, 1866., mesmo sendo o primeiro documento a conter uma discursividade metalinguística sobre o Apurinã, a palavra ipuriná ainda não é interpretada como ‘língua’ na ordem de seu encaixe léxico-sintático. É em Polak (1894)POLAK, J. E. R. A Grammar and a Vocabulary of the Ipuriná Language. London: Kegan Paul, Trench, Trübner and Co., 1894. que toda uma discursividade baseada na tradição gramatical greco-latina oferece condições ao processo metonímico que sustenta o sentido de ipuriná enquanto equivalente de língua.

De todo modo, a caracterização interdiscursiva dos traços de memória de apurinã nos permite afirmar, histórico-discursivamente e léxico-sintaticamente, que na rede de [e] analisada tal palavra enquanto nome do ‘povo’ possui um funcionamento pré-construído em relação à sua legibilidade como equivalente de ‘língua’. Isso demonstra que, para qualquer [e] em que o termo signifique ‘língua’, o sentido de ‘povo’ é necessariamente um traço de memória dissimulado sob a transparência do significante homônimo. Isto é, o sentido de ‘língua’ em expressões como ‘Apurinã is spoken’, ‘Children are still learning Apurinã’ etc., funciona por discrepância em relação ao sentido de ‘povo’ em enunciações como ‘The Apurinãs lost their culture’, ‘The Apurinãs stopped’ etc., ao longo da gramática. O bloco parafrástico (c), abaixo, resume esse deslizamento. Nele, X é tomado como espaço de substitutibilidade dos traços lexicais como ‘nação’, ‘tribo’, ‘maloca’, ‘comunidade’, ‘sociedade’:

Figura 2

Nesta gramática, o sentido metalinguístico de apurinã resulta de uma exterioridade rastreável a partir das evidências no nível léxico-sintático da gramática de Polak no século XIX. Ou seja, o termo apurinã em Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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como nomeação de uma língua indígena funciona como abreviação decorrente do processo metonímico que caracterizamos no bloco parafrástico (b), seção 2.3.

Diante da confrontação das formulações, os traços interdiscursivos a partir dos quais se estabelece o nome da língua e da sociedade dos Pupỹkarywakury nas línguas dos “brancos” nos três primeiros textos analisados não aparecem como elementos de reescritura nas enunciações de Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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. Enunciativamente, este autor adota uma posição desvinculada dos sentidos dos primeiros traços lexicais pelos quais se materializam os sentidos de ipuriná (ou hypuriná). Uma aparente contradição estruturada por meio de uma heterogeneidade marcada na superfície das descrições gramaticais mais recentes. Ao evocar a palavra tribo, por exemplo, este autor a circunscreve na modalidade da citação direta, marcando a discrepância entre sua voz e as vozes de viajantes, colonos e missionários do século XIX.

Labre would eventually have the aid of Apurinãs during his journey on the Ituxi river. Moreover, that permanent contact between some Apurinãs and “Whites” had already started is attested by the fact that “[i]n 1879, three youths of the [Hypuriná] tribe were entrusted to him [Colonel Labre] for education” (LABRE, 1889LABRE, A. Rio Purus: Notícias. Maranhão: Tipografia do Paiz Imp. M. F. V. Pires, 1872. apud FACUNDES, 2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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, p.31; grifo meu)12 12 No original: “Les noms (les SN en général) fonctionnent ainsi comme des abréviations”. .

Mesmo lida sob uma nova ordem de elementos lexicais na reescritura desta gramática que apontam para uma dignificação do povo e de sua língua, os sentidos de ‘sociedade Apurinã’ e de ‘língua Apurinã’ não se reproduzem em Facundes (2000)FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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desvinculados da memória que sustenta sua existência em reformulações do século XIX. Queremos dizer com isso que a legibilidade da palavra apurinã no século XXI encontra-se, de forma incontornável, sob a dependência do “todo complexo com dominante das formações discursivas” (PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.149) do qual derivam os primeiros sentidos sobre os Pupỹkarywakury nos documentos de viajantes e colonizadores. Sentidos que mesmo não sendo mais textualizados como elementos lexicais na ordem de uma sintagmatização horizontal permanecem como memória. Ou seja, como seu exterior específico, “falando” enquanto alhures discursivo.

Consequências teóricas

O estudo aqui realizado resume a produção material dos sentidos da palavra apurinã. Nele, analisamos como as determinações discursivas, que margeiam como não-dito o sequenciamento de apurinã, produzem historicamente seus sentidos por relação aos sentidos de outras palavras e expressões. O que significa que “o sentido de uma palavra [...] não existe em si mesmo” (PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização de perspectivas (1975). Tradução Péricles Cunha. In: GADET, F; HAK, T. (org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. p.159-249., p.146), mas pela relação que tal palavra mantém com seu exterior específico, seu interdiscurso.

A noção de pré-construído foi crucial, neste empreendimento, por explicitar o encadeamento da nomeação em uma enunciação/formulação como efeito por discrepância em relação ao lastro de memória que constitui seu interdiscurso. Assim sendo, a partir das questões propostas na introdução, ressaltamos duas consequências acerca das problemáticas históricas em torno da constituição do nome da língua Apurinã e, por extensão, do nome das línguas do mundo.

A consequência primeira é sobre a produção histórica do nome de uma língua indígena a partir de um etnônimo assumido pelo colonizador. Um trabalho da memória sobre a base invariante de algumas línguas europeias por meio de um processo de substituição orientada que estabiliza os sentidos de apurinã. “Ser apurinã” é lido como “ser indígena”, mas ser “indígena” não corresponde, pari passu, a “ser apurinã”. A construção discursiva do referente passa aí por uma relação de implicação. Ipuriná/hypuriná/apurinã não é uma invariante primeira, mas resultado de um processo de substitutibilidade. Uma objetividade material contraditória do interdiscurso dissimulada no funcionamento pré-construído do nome da língua Apurinã como forma nominalizada, cujo índice de exterioridade se observa a partir de sua ocorrência na posição de adjetivo.

A segunda consequência diz respeito à compreensão do nome de uma língua como um saber fruto da universalização das reflexões metalinguísticas. Ou seja, diz respeito a seu uso no domínio da metalinguagem como equivalente semântico de língua. Nessa direção, propomos que, ao considerarmos o processo metonímico da nominalização de apurinã, a reflexão metalinguística e, consequentemente, as tradições gramaticais são condições histórico-ideológicas essenciais sem as quais não existiria um nome para qualquer língua do mundo como efeito de uma unidade linguística. Queremos pensar com isso sobre a (im)possibilidade histórica de sociedades que não possuam qualquer relação com a escrita criarem uma reflexão linguística capaz de produzir a noção homogeneizante de língua enquanto realidade especulativa, cujo acontecimento exigiria um nome.

  • 1
    Courtine (2009, p.101)COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução Patrícia Chittoni Ramos Reuillard et al. São Carlos, SP: EdUFScar, 2009. define a noção de formulação como “sequência linguística (de dimensão sintagmática inferior, ou igual a uma frase) que é uma reformulação possível de [E]”. O enunciado, por seu turno, como “uma forma ou um esquema geral que governa a repetibilidade no seio de uma rede de formulações” (COURTINE, 2009COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Tradução Patrícia Chittoni Ramos Reuillard et al. São Carlos, SP: EdUFScar, 2009. , p.100). Assim, a operacionalização da noção de enunciado não deve ser confundida com a de formulação, embora elas sejam complementares.
  • 2
    “Modalidades discursivas da presença do outro na identidade literal da sequência” (PÊCHEUX, 2015PÊCHEUX, M. Análise de discurso: Michel Pêcheux, textos selecionados por Eni Purccinelli Orlandi. Tradução Eni Purccinelli Orlandi et al. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2015. , p.150). A noção de pré-construído representa teoricamente o já-dito que emerge na sequência discrepando de outras séries de elementos do seu espaço interdiscursivo, os quais permanecem como não-ditos da sequência, isto é, como propriedades subjacentes à sua literalidade.
  • 3
    A referência pelo indígena dessa sociedade à sua língua em sua própria língua se materializa pela expressão “Pupỹkary sãkyri” (FERREIRA, 2014FERREIRA, A. Alfabetizando em Pupỹkary Sãkyri. São Leopoldo, PR: Oikos, 2014. , p.03), que corresponde em português à expressão ‘língua Apurinã’. A construção discursiva do referente daquela expressão por parte do indígena Apurinã é recente. Ela se dá, conforme Link (2016, p.57), em função do surgimento de uma “política de reafirmação de fronteiras étnicas [e identitárias]” a partir da década de 1970.
  • 4
    Em 1945, atuou como represente militar da Comarca do Alto Amazonas subordinada à Província do Pará.
  • 5
    Do ponto de vista gramatical, a função de adjetivo da palavra se define por relação ao núcleo do sintagma nominal. Uma relação de posicionamento que não é definida formalmente, mas por critérios semânticos. Conforme Perini et al. (1998, p.221; grifo do autor)PERINI, M. et al. Sobre a classificação das palavras. DELTA, São Paulo, v. 14, n. spe, p.209-225, 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/delta/article/download/43404/28871 Acesso em: 25/01/2019.
    https://revistas.pucsp.br/delta/article/...
    , “o núcleo é o termo do SN que está tomado em acepção referencial — ou seja, como ‘designação de uma coisa’”. Gramaticalmente, nesse caso, ipuriná significaria por relação aos sentidos dos núcleos, que apontam para o extralinguístico, considerando-se nisso a produção discursiva do referente por meio dos processos de substitutibilidade entre elementos que caracterizam o espaço de memória de uma palavra, expressão ou proposição.
  • 6
    Noção utilizada por Authier-Revuz (1982)AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogéneité montrée et hétérogéneité constitutive: elements pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, Paris, n. 26, p.91-151, 1982. para referir-se a presença discreta do interdiscurso nos processos de produção textual sem marcação explícita das fontes de enunciação.
  • 7
    Os Hypurinás vestem tanga.
  • 8
    Os Hypurinás têm um festival.
  • 9
    Os Hypurinás pintam-se.
  • 10
    Os Hypurinás seguraram seus arcos.
  • 11
    Os Hypurinás mostraram-nos uma prancha.
  • 12
    No original: “Les noms (les SN en général) fonctionnent ainsi comme des abréviations”.
  • 13
    Independentemente de todas as outras distinções, indígenas nessas regiões podem ser divididos entre indígenas da terra e indígenas da água. Os Jamamadys são exclusivamente uma tribo da terra, vivendo apenas em pequenas correntes e não utilizando canoas. Os Hupurinás também são uma tribo da terra, mas não exclusivamente (CHANDLESS, 1866, p.95; grifos meus)13 13 Independentemente de todas as outras distinções, indígenas nessas regiões podem ser divididos entre indígenas da terra e indígenas da água. Os Jamamadys são exclusivamente uma tribo da terra, vivendo apenas em pequenas correntes e não utilizando canoas. Os Hupurinás também são uma tribo da terra, mas não exclusivamente (CHANDLESS, 1866, p.95; grifos meus)13. .
  • 14
    A Igreja Anglicana manteve sua missão no Rio Purus entre os anos de 1872 a 1883 (LINK, 2016).
  • 15
    Os ipurinás têm espreitado para fora de seu isolamento.
  • 16
    Os ipurinás causam boas impressões.
  • 17
    Os ipurinás simplesmente dizem: Eu te amo muito (Tradução minha do inglês conforme aparece em Polak (1894).
  • 18
    Os ipurinás está impresso em itálicos.
  • 19
    O SN2 “called Ipuriná” é classificado como nominal, pois o verbo está em uma das formas nominais; de toda forma, esse sintagma carrega um traço adjetival.
  • 20
    Para a esquematização dos blocos seguiu-se Pêcheux (2015, p.259): “as barras verticais agrupando dois elementos indicam a identificação de expressões [...] sinônimas; as flechas agrupando os elementos significa a relação de implicação entre eles, de forma que um implica o outro e não vice-versa”.
  • 21
    Sidney da Silva Facundes nasceu no estado brasileiro do Amapá. Em 2000, defendeu sua tese em Linguística pela State University of New York at Buffalo. Atualmente, trabalha como professor adjunto do Instituto de Letras da Universidade Federal do Pará (UFPA).
  • 22
    Labre teve o auxílio eventual de Apurinãs durante sua excursão ao rio Ituxi. Além disso, aquele contato permanente entre alguns Apurinãs e “brancos” já tinha começado e é atestado pelo fato de que “[e]m 1879, três jovens da tribo dos [Hypurinás] foram confiados a ele [Coronel Labre] para educação” (LABRE, 1889 apud FACUNDES, 2000, p.31; grifo meu)22 22 Labre teve o auxílio eventual de Apurinãs durante sua excursão ao rio Ituxi. Além disso, aquele contato permanente entre alguns Apurinãs e “brancos” já tinha começado e é atestado pelo fato de que “[e]m 1879, três jovens da tribo dos [Hypurinás] foram confiados a ele [Coronel Labre] para educação” (LABRE, 1889 apud FACUNDES, 2000, p.31; grifo meu)22. .

REFERÊNCIAS

  • AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogéneité montrée et hétérogéneité constitutive: elements pour une approche de l’autre dans le discours. DRLAV, Paris, n. 26, p.91-151, 1982.
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  • FACUNDES, S. The Language of the Apurinã people of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Linguística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000. Disponível em: http://www. etnolinguistica.org/local--files/tese:facundes-2000/Facundes.pdf Acesso em: 25/01/2019.
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  • FERREIRA, A. Alfabetizando em Pupỹkary Sãkyri. São Leopoldo, PR: Oikos, 2014.
  • LABRE, A. Rio Purus: Notícias. Maranhão: Tipografia do Paiz Imp. M. F. V. Pires, 1872.
  • LINK, R. Vivendo entre mundos: o povo Apurinã e a última fronteira do Estado brasileiro nos séculos XIX e XX. Porto Alegre, 2016. 357 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/142913/000994268.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 25/01/2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2019
  • Aceito
    26 Out 2019
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