Acessibilidade / Reportar erro

A constituição da subjetividade na criança com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar implicações subjetivas decorrentes do processo de patologização da educação. Para tanto, foram realizadas entrevistas com duas crianças com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, seus pais e professores, observação em sala de aula, avaliação fonoaudiológica individual e pesquisa documental. Os resultados do estudo apontam que os discursos que se instauram em torno do aluno considerado resistente ao que a escola propõe terminam por comprometer a formação da sua subjetividade, uma vez que ele passa a assimilar parte das percepções de seu grupo de convivência. Assumindo os postulados de Bakhtin, de que a autoimagem se constrói em meio ao olhar do outro, conclui-se que a criança pode apresentar sinais de desatenção e hiperatividade (e sintomas de sofrimento) a depender da qualidade das interações sociais em que está inserida.

PALAVRAS-CHAVE:
TDAH; Patologização da educação; Subjetividade; Aprendizagem

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze subjective implications arising from the process of pathologization of education. Therefore, interviews were conducted with two children diagnosed with attention deficit/hyperactivity disorder, their parents and teachers, in addition to in-classroom observation, individual speech-language pathology assessment and documentary research. The results of the study indicate that the discourses, established around students considered resistant to what the school proposes, eventually compromise the shaping of his or her subjectivity, since they start to assimilate part of the perceptions of their interactional group. Based on Bakhtin’s postulates that self-image is built in the midst of the other’s gaze, it is concluded that the child may present signs of inattention and hyperactivity (and symptoms of suffering) depending on the quality of the social interactions in which he/she is engaged.

KEYWORDS:
ADHD; Pathologization of education; Subjectivity; Learning

Introdução

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é considerado a desordem neuropsiquiátrica mais comum da infância (BARKLEY, 2006BARKLEY, R. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: manual para diagnóstico e tratamento. Tradutor: Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2006.). Os sinais de hiperatividade, impulsividade e desatenção seriam decorrentes de uma falha genética que levaria a uma disfunção na porção frontal do cérebro que, por sua vez, afetaria de 3 a 5% da população de escolares. A disfunção cerebral seria caracterizada pelo aporte insuficiente de neurotransmissores, como a dopamina e norepinefrina. Para repor o que faltaria são prescritos medicamentos ditos estimulantes, a exemplo do metilfenidato, do qual o Brasil é o segundo maior consumidor mundial, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Contudo, esse entendimento vem sendo questionado por pesquisadores (SIGNOR; SANTANA, 2016SIGNOR, R; SANTANA, A. TDAH e medicalização: implicações neurolinguísticas e educacionais. São Paulo: Plexus, 2016.; GERALDI, 2013GERALDI, W. Educação sem enxada e sem ritalina: alfabeto, alfabetização e higienização. In: COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.) Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras, 2013. p.311-322.; COLLARES, MOYSÉS; RIBEIRO, 2013COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras, 2013.), que afirmam que os problemas relatados pelos professores - que se traduzem na queixa - não decorreriam de alguma alteração no cérebro dos escolares, mas de uma multiplicidade de fatores, entre eles, afetivos, pedagógicos, culturais, interacionais e políticos. Seguindo essa visão, os sinais que costumam orientar o diagnóstico, tais como “agita mãos ou pés e se remexe na cadeira”; “está a mil ou a todo vapor”; “dá respostas precipitadas”; “levanta-se da carteira quando não esperado”, etc, são vistos como uma construção social/contextual. Em outros termos, possíveis sinais que se manifestam no corpo e na linguagem são compreendidos a partir de processos interacionais mais amplos.

Entende-se aqui que a “doença” tem início quando a criança começa a ser apontada na escola: “agitada”; “desatenta”; “não consegue aprender”; “tem dificuldades”; “não para quieta”; “vive no mundo da lua”; “é muito brigão” etc. Inseridos nessas interações, muitas vezes alicerçadas por discursos desqualificatórios, estudantes passam a vivenciar um processo de estigmatização, assumindo a condição imposta pelo meio social.

Como consequência, a criança é encaminhada para centros de saúde, concretizando-se, muitas vezes, o processo de medicalização (de transformação de crianças saudáveis em crianças doentes). Após confirmada na clínica o pré-diagnóstico escolar, a criança passa a se orientar em meio a etiqueta que lhe foi atribuída: “não presta atenção porque tem TDAH”; “perde as coisas porque tem TDAH”; “tem dificuldades de relacionamento por causa do TDAH”; “tem dificuldade de aprender porque tem TDAH”; “não copia do quadro porque tem TDAH” (SIGNOR, 2013SIGNOR, R. O sentido do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade para a constituição do sujeito/aprendiz. Tese. Doutorado em Linguística. Florianópolis: UFSC, 2013.). Uma vez enquadradas na condição de doentes, as crianças se tornam pacientes e, portanto, consumidoras de medicamentos (COLLARES, MOYSÉS; RIBEIRO, 2013COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras, 2013.). As autoras afirmam que “Vivemos a Era dos trantornos, tempo em que os interesses que alavancam os processos medicalizantes ampliam seus tentáculos. Vivemos a Era do biopoder, em que todos somos bioconsumidores” (COLLARES, MOYSÉS; RIBEIRO, 2013COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras, 2013., p.17). Tomando por base essas considerações, o objetivo deste trabalho é, em conformidade ao paradigma sócio-histórico, analisar as implicações subjetivas decorrentes do processo diagnóstico do TDAH.

1 Método

Partindo-se da hipótese de que a discursivização do aluno pode afetar (favorável ou desfavoravelmente) a subjetividade e, consequentemente, a aprendizagem da criança, desenvolveu-se um estudo de caso, pesquisa de campo, qualitativa, do tipo transversal, inserida em um paradigma teórico-metodológico de cunho sócio-histórico (VYGOTSKY, 2010VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.; BAKHTIN/VOLÓCHOINOV, 2006BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.307-335.). Foram selecionados dois alunos, denominados como Susi e Miguel, 10 e 12 anos de idade, estudantes (à época da geração de dados) do quinto ano e sexto ano do ensino fundamental da rede pública na região Sul do Brasil.

Os procedimentos da pesquisa envolveram: entrevistas com as mães das crianças e com as crianças, avaliação fonoaudiológica individual, observação dos alunos em sala de aula por um período de uma semana, entrevistas com professores, pesquisa documental (pareceres avaliativos da escola, agendas, cadernos, livros, pastas com atividades - atuais e pregressos), e avaliação das condições de letramento do grupo de alunos. Os dados foram registrados por meio de gravação em áudio e diário de campo.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, sob processo n. 94.405/12. Foram assinados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os participantes da pesquisa.

2 Apresentando Susi e Miguel

Susi vive com sua mãe (pedagoga aposentada, 52 anos de idade) em um condomínio de classe média de um município na região Sul do Brasil. Seu pai reside em outro estado. Na ocasião da pesquisa, a separação do casal havia ocorrido há dois anos, ou seja, quando Susi tinha 8 anos de idade.

Dos 2 aos 5 anos de idade, Susi frequentou, em período integral, uma escola de educação infantil pública. No primeiro e segundo anos do ensino fundamental, a menina estudou, também em período integral, em uma escola privada. Do terceiro ano aos dias atuais (quinto ano), estudou/a em uma escola da rede pública de ensino no período da manhã.

Susi realizou avaliação psicológica aos 5 anos de idade, pois havia queixas constantes da escola sobre o seu comportamento e, por essa razão, a criança era conduzida frequentemente ao “cantinho do pensamento”. A título de ilustração, abaixo há um excerto de um parecer pedagógico que mostra como Susi era referenciada:

É extremamente inteligente, compreende tudo o que acontece ao seu redor, assimilando as propostas e regras das brincadeiras e as regras do grupo, o que não significa que ela as cumpra. Susi mostra-se bastante resistente quando é contrariada, falamos ou pedimos algo a ela [...]

É considerada a tagarela da turma, pois fala pelos cotovelos; repete tudo o que falamos e as vezes fico surpresa, parecendo um adulto chamando atenção dos outros, dando ordens e cobrando atitudes dos colegas. […] Quando precisamos afastá-la um pouco do grupo para pensar o que fez, ela respondendo fala que não fará mais. Isto nos mostra que ela está bem consciente de seus atos e que realmente sabe o que está fazendo.

(01) [Excerto de parecer pedagógico de quando Susi tinha 2 anos e 4 meses de idade]

Nos termos da mãe, as queixas referiam-se ao fato de que: "Susi não queria fazer as atividades, não obedecia, imitava a professora, brigava com os amigos...". Aos 6 anos de idade, a criança foi encaminhada para avaliação psiquiátrica, recebeu o diagnóstico de TDAH, indicação de tratamento medicamentoso, psicopedagógico e orientação de continuidade do atendimento psicológico, que realizava desde os 5 anos.

Quanto ao processo de ensino-aprendizagem da leitura e escrita, segundo a mãe de Susi, a filha teve dificuldades na alfabetização e conseguiu aprender a ler e escrever apenas no terceiro ano, pois teve, conforme seus termos, uma boa professora. Naquele ano, conta a mãe, cessaram as reclamações sobre Susi, uma vez que “tudo ela [professora] elogiava, valorizava muito a produção deles [dos alunos]”.

No que diz respeito a Miguel, é menino de 12 anos de idade. É filho adotivo e tem um irmão biológico (por parte de mãe) de 10 anos de idade, Ricardo. Os irmãos haviam sido adotados (à época do estudo) há seis anos - Miguel tinha 6 anos e Ricardo 4 anos de idade. À época da adoção, Miguel e seu irmão estavam em um abrigo para crianças há um ano, pois tinham sido retirados da mãe biológica (MB) em virtude de maus-tratos. Durante esse ano em que permaneceram no abrigo, a MB não foi visitar os filhos nem manifestou desejo em retomar a guarda deles.

Segundo a mãe adotiva (Júlia), Miguel tem lembranças dessa fase, mas ele não se refere a MB como mãe, ele diz “aquela mulher”. No relatório psicológico cedido pela mãe constava a informação de que Miguel havia, inclusive, trocado de nome após ser adotado:

O pequeno Ricardo [o irmão] demonstrou resistência no início do tratamento, mas logo vinculou-se, já o menino Miguel desde o início demonstrou interesse em falar sobre a adoção e resolver a situação, que para ele já estava definida: “Sou o Miguel, não sou mais o Fernando e meu pai e minha mãe são Júlia e José Paulo e pronto. Eu sou filho deles”.

(02) [Excerto do Relatório psicológico]

Júlia tem 42 anos e José (o pai adotivo) tem 55 anos de idade. A família reside em um condomínio de classe média no mesmo bairro em que se localiza a escola das crianças. Não foi possível obter informações sobre a época da educação infantil, pois foi o período em que Miguel estava sob a guarda da MB e depois no abrigo. O menino realizou o primeiro e segundo ano em uma escola pública municipal, tendo tido a mesma professora nesses dois anos. A partir do terceiro ano foi para o atual colégio, onde estuda no período vespertino. Miguel recebeu o diagnóstico médico de TDAH aos 7 anos de idade, um ano após ter sido adotado. Segundo Júlia, no abrigo Miguel era tido como uma criança normal, mas “logo que entrou para a escola [aos 6 anos e 9 meses] teve diagnóstico de que tinha alguma coisa”. Abaixo consta um excerto de parecer pedagógico:

Quanto à escrita, reconhece algumas letras em seu nome e alguns nomes significativos como de seus pais e seu irmão.

Gosta de relatar fatos do seu cotidiano familiar. Observa-se que tem um pouco de dificuldade de esperar a vez de falar. Interessa-se por jogos e brincadeiras. Gosta de brincar no parque.

Dificuldade para ficar sentado durante muito tempo. Distrai-se e se esquece facilmente de tarefas e compromissos.

Em sua escrita espontânea coloca letra sem valor sonoro, não identificando nenhuma sílaba. Vem demonstrando interesse e contato com as letras móveis.

Tem um pouco de dificuldade para resolver cálculos mentais bem como para reconhecer números. Procura evitar atividades que necessitam de os utilizar.

(03) [Primeiro ano - 2o. trimestre de 2007, aos sete anos de idade]

A mãe revelou que recebia constantes reclamações a respeito do filho “toda hora eles me ligavam e falavam 'o Miguel brigou na escola, o Miguel não para quieto'...”, mas que ela não via nisso um problema sério uma vez que “no primeiro ano eles são muito ativos”. Em função disso, a mãe optou por oferecer florais ao filho, mas como as queixas da escola persistiram, ela acabou por levar a criança ao neurologista. Ressalta-se que na atual escola as reclamações continuaram, pois “mesmo medicado eu [a mãe] era chamada direto também”. Miguel realiza atendimento psicológico individual e familiar e ingere medicamentos para o controle de seus sintomas.

Cabe dizer que Susi e Miguel tiveram dificuldades no processo de alfabetização sem ter qualquer necessidade específica (deficiência intelectual, transtorno do espectro do autismo, desordem neurológica, etc.) que pudesse justificar as dificuldades apresentadas. Ressalta-se que durante a avaliação fonoaudiológica individual constatou-se que as crianças, à época da pesquisa, não apresentavam dificuldades de leitura e escrita tampouco comportamento hiperativo. Percebeu-se, no entanto, que os escolares adentraram em um processo de exclusão escolar, ou seja, à época da pesquisa, tanto Susi quanto Miguel eram rotulados e excluídos pelo grupo de convivência. Ressalte-se ainda que as duas turmas (grupo de alunos) avaliadas foram retratadas como “agitadas” pelos professores.

A seguir, discute-se como o processo de patologização afeta a subjetividade da criança e pode trazer implicações para a formação da autoimagem, da socialização e da aprendizagem; prejuízos que se estendem para além da escola e comprometem toda a qualidade de vida da criança.

3 “Eu sou agitado(a)”: implicações subjetivas do processo diagnóstico

Um dos procedimentos da pesquisa de campo foi realizar observação e eventualmente propor alguma atividade em sala de aula. Todas as crianças da sala foram informadas que estariam durante uma semana com uma fonoaudióloga que iria observar como os alunos aprendem. E que algumas crianças seriam selecionadas/sorteadas para que a aprendizagem fosse avaliada de forma individual.

No período de observação na sala frequentada por Susi foi proposta uma atividade em que as crianças teriam que se autodescrever e descrever um colega: “eu sou assim...; tenho um colega que é assim...”. Foi dito aos alunos que se tratava de uma brincadeira, que os nomes teriam que ser colocados no fim da página e esta deveria ser dobrada para que não pudessem ser vistos pela pesquisadora, que tentaria descobrir a identidade das pessoas descritas.

O objetivo da “brincadeira” foi analisar possíveis representações pessoais e dos colegas. Susi assim se descreveu: “agitada, rejeitada, feliz”. Em outro dia, em situação de entrevista individual com Susi, e considerando a posição verbalizada por ela (“agitada”), em momento que julgou oportuno, a pesquisadora questionou:

Pesquisadora. Por que você acha que você é agitada? Você acha que é?

Susi. Sim... é porque todo mundo fala isso [risos]... é porque lá em casa eu não paro quieta, tô toda hora me mexendo... toda hora me mexendo... “ô mãe...” “ô mãe...” “ô mãe”... eu não paro de falar... não paro de falar... não paro de falar... não paro de falar... entendeu? Porque eu tenho muita dificuldade de prestar atenção nos outros... eu fico no mundo da lua...

Pesquisadora. Você fica no mundo da lua? Você acha, Susi? Por que você acha que fica no mundo da lua?

Susi. Assim... porque eu não presto atenção em nada... assim, até presto... só que... eu tento...

(04) [Entrevista com Susi]

No episódio é possível perceber como a palavra do outro é trazida ao discurso de Susi para se autorrepresentar: “o papel do outro, só à luz de quem é possível construir qualquer discurso a respeito de si mesmo” (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2006., p.343), algo que pode ser observado na resposta à pergunta se ela se considerava agitada: “todo mundo fala isso”.

Ainda, para “aderir” à visão do grupo é como se Susi tivesse que se justificar. Ela só ficou se remexendo na cadeira quando ouviu a pergunta sobre a agitação: “Tô toda hora me mexendo... toda hora me mexendo...”. Da mesma forma, ao se referir à sua imagem de falante (“a tagarela da turma” como era retratada nos anos iniciais), derivada da anterior (“agitada”), a menina repetiu quatro vezes “não paro de falar”, reproduzindo discursos já ditos e assinalando o fato social da formação da consciência: se todo mundo fala que eu sou, eu sou...

No entanto, no caso dela, a tensão dialógica (o que eu penso de mim na fronteira com o que os outros pensam de mim), revela o traço de singularidade da menina, que parece resistir, ao menos em parte, às vozes do entorno. Percebe-se que em muitos momentos Susi apenas reproduz um discurso alheio; é como se ela ainda não o tivesse incorporado completamente. Assim acontece quando diz que “vive no mundo da lua”; “que não presta atenção em nada”. Essa condição revela uma contradição vivenciada por Susi, uma vez que ela sabe que não vive no mundo da lua e que presta, sim, atenção: “Até presto...”. O que Susi faz é evidenciar os discursos internalizados que transitam ao redor dela e que atravessam a sua autovisão, mas estes, em certa medida, ainda não estão cristalizados; consequência da sua própria condição de sujeito reflexivo, que faz com que tenha “dificuldades” de se submeter, de se completar, de se normalizar. E é essa singularidade que marca a sua diferença. Vemos que essa arena de vozes também está presente no discurso da mãe:

Mãe. Eu acho que ela é agitada, que ela é chamada de agitada porque ela fala... É bem falante...

Pesquisadora. E ela se acha agitada?

Mãe. Se acha... Ela se acha de tanto ouvir que ela é agitada... de tanto ouvir “para...” “para Susi...” “para Susi...” porque a vida inteira foi assim... na pré-escola a professora fazia queixa dela... […] ela acabou assumindo essa postura, eu acho... [...]

Pesquisadora. Tá... essa questão da agitação vem só dela falar muito? Ou tem outras questões?

Mãe. É... é disso... e também dela ser over mesmo... ela fica insistindo em algumas coisas... “não, Susi, a gente já falou isso, Susi, a gente já resolveu isso”... aí ela volta no assunto... ela volta no assunto... ela fica insistindo... principalmente quando ela é contrariada...

(05) [Entrevista com a mãe]

Aqui vale a observação de que não se nega neste trabalho que Susi seja muito falante ou insistente, ou mesmo repetitiva, como diz a mãe, o que se discute é que essas condições sejam sinais de um estado patológico. Algumas pessoas falam mais, outras são mais caladas; algumas marcam seus posicionamentos sobre os fatos de forma mais incisiva, outras menos. Estar no “mais” ou no “menos” pode ser considerado um sintoma? Cabe ressaltar que os pais de Susi apresentaram resistência ao pré-diagnóstico escolar/patologização e depois ao diagnóstico médico/medicalização, como pode ser observado em um bilhete escrito pelo pai que constava em uma agenda escolar de Susi.

O seu comentário a respeito do desenvolvimento da Susi coincide em parte com as nossas observações diárias. Consideramos, também, que tal comportamento é comum em outras crianças da mesma faixa etária. Nosso desafio, enquanto pais, tem sido de propor atividades, atitudes e limites que trabalhem estas resistências comportamentais. Contamos com sua atenção e colaboração para um aprendizado significativo, para a formação e o desenvolvimento das potencialidades de nossa filha.

(06)[Comunicado do pai à escola em resposta a um parecer pedagógico. Susi estava com 5 anos de idade]

No entanto, após a resistência inicial, os pais acabam sendo convencidos de que o filho tem problemas (MOYSÉS; COLLARES, 2011COLLARES, C.; MOYSÉS, M. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (Org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.). A mãe de Susi foi sendo levada a acreditar que a menina é portadora de TDAH e que necessita de medicação, mas não consegue revelar indícios consistentes de que a filha tenha algum transtorno neuropsiquiátrico. Todas as revelações indicam sinais de características singulares: “fala muito”, “repete muito”, “insiste muito”. No discurso da mãe é visível como a escola foi corresponsável pela mudança de olhar: “a vida inteira foi assim... na pré-escola a professora fazia queixa dela... ela acabou assumindo essa postura”. Postura essa que Susi faz questão de ratificar, como pode ser observado abaixo:

Susi. [..] porque eu assisto novela... daí tem as músicas dos Rebeldes... mas eu também escuto com ela [a mãe] umas músicas que ela gosta tipo Zeca Pagodinho eu também gosto... eu também escuto Exalta Samba, mas eu só gosto de uma música deles... ah, duas... Daquela lua e [não entendi]... eu gosto de assistir desenho...

Pesquisadora. Qual desenho você gosta?

Susi. Eu gosto do Sítio do Picapau Amarelo... eu gosto do... eu não tô com piolho, é que eu tenho uma ferida, entendeu? [estava coçando a cabeça]... que faz coçar... eu sei que tu tá olhando...

Pesquisadora. Coça...coça... não, eu nem tava vendo que tu tava coçando a cabeça... [...]

Susi. Daí... que que eu tava falando mesmo? Viu como eu sou distraída?

(07) [Entrevista com Susi]

Quando Susi participa de suas interações ela parecer ter que comprovar seu “problema”; justificar suas ações. No excerto acima, a menina conversa com a pesquisadora sobre coisas que ela gostava de fazer no dia a dia, mas o assunto tomou outro rumo: “eu gosto do... eu não tô com piolho...”, algo comum a qualquer conversação - a mudança de tópico a partir de um outro tema trazido do contexto imediato. No entanto, ao voltar ao tema anterior, Susi pergunta sobre o que estava falando antes, e, ao se dar conta do esquecimento, retruca: “Viu como eu sou distraída?”. Ocorre que é natural que no fluxo do discurso um assunto leve a outro, que um tópico da conversa se perca e depois retorne, mas, para Susi, é visto como uma “desordem”. Essa “distração” a que a menina se refere é inerente às conversações, mas por que para ela é tomado como sinal de um desvio? Ainda, por que ela precisa assinar este fato? A quem Susi está respondendo? É possível perceber que os aspectos individuais, que foram tomados como problemas/desordem na escola, contribuíram para que a menina, ao menos em parte, assumisse esse discurso. E o normal se transformou em patológico.

Quanto a Miguel, da mesma forma que Susi, em seu discurso ecoam as vozes do entorno. O “não consigo” atravessa a sua condição de aprendiz. Vejamos:

Pesquisadora. E por que você toma? [medicação]

Miguel. Porque eu não consigo me concentrar na aula...

Pesquisadora. Por que você não consegue se concentrar na aula?

Miguel. É. Quando eu não tomo remédio.

Pesquisadora. Quando você não toma remédio. Quando você toma, você consegue?

Miguel. Às vezes. A maioria das vezes eu não consigo.

Pesquisadora. A maioria das vezes você não consegue se concentrar?

Miguel. É. A maioria.

Pesquisadora. Por que você acha isso?

Miguel. Não sei. É por que eu tenho déficit de atenção?

Pesquisadora. Você acha que tem isso?

Miguel. Minha mãe disse.

Pesquisadora. Quem mais disse isso pra você?

Miguel. A médica.

(08) [Entrevista com Miguel]

O “não consigo me concentrar na aula” é uma percepção dele ou foi internalizada no processo da escolaridade? Algo que remete ao discurso da professora da primeira/segunda série: “Continua sendo lembrado a concentrar-se mais” (cf. parecer pedagógico fornecido pela mãe). Da mesma forma que Susi, Miguel foi sendo alertado de que não conseguia se atentar e agora reproduz o discurso assimilado. Assim, é possível entender a razão pela qual, em princípio, Miguel revelou que não conseguia se atentar quando estava sem medicação, em virtude da lógica estabelecida de que o remédio seria capaz de provocar um “melhoramento” das funções atentivas. Note-se, contudo, que Miguel responde à pergunta com outra pergunta: “é por que eu tenho déficit de atenção?” A criança está confusa. Desde que entrou para a escola ficou ouvindo que tinha dificuldades para se concentrar. Foi ao médico e “descobriu” que suas dificuldades eram decorrentes de um transtorno de atenção e que, por isso, precisava tomar um remédio. Mas as vozes (eu x os outros) entram em tensão: “minha mãe disse”, “a médica disse”. Ao dizer o que os outros disseram, Miguel se nega a afirmar: “eu tenho”. Nessa teia em que os discursos se cruzam (da mãe, da médica e da professora) que Miguel busca encontrar uma “verdade” sobre si mesmo e seus sintomas.

Pesquisadora. E o que você sente quando toma esse remédio?

Miguel. Melhor. E ao mesmo tempo ruim.

Pesquisadora. E ao mesmo tempo ruim como?

Miguel. Ruim, tipo que eu não gosto de tomar remédio.

Pesquisadora. Por quê?

Miguel. Porque eu me sinto diferente dos outros.

Pesquisadora. Você se sente diferente porque toma remédio. E você se acha diferente?

Miguel. Sim.

Pesquisadora. Por quê?

Miguel. Não sei. Porque ninguém toma remédio na minha sala. [...]

Pesquisadora. Que horas que você toma?

Miguel. De manhã [..] E eu tomo à noite também.

Pesquisadora. À noite?

Miguel. Risperidona.

Pesquisadora. O que você sente?

Miguel. Sono. Fico meio tonto... [..]

Pesquisadora. Por quê? [acha que é agitado]

Miguel. Porque eu tomo remédio... [...]

Pesquisadora. E o que que é agitado pra você?

Miguel. Agitado é ficar sem parar um segundo.

(09) [Entrevista com Miguel]

No excerto a condição imposta a Miguel aparece de forma acentuada. Ele diz que se sente diferente não por conta de uma condição patológica, uma agitação imanente, mas “porque ninguém toma remédio” em sua sala. É evidente no discurso que a voz que fala é da condição que lhe foi dada socialmente e não uma situação constitutiva a ele. É aquela condição, a dada, que a criança assimilou.

Ainda, Miguel diz que ao tomar o remédio se sente melhor e ao mesmo tempo ruim. Dizer que se sente melhor mostra a noção estabelecida socialmente de que remédios servem para curar/tratar/melhorar sintomas de doenças. Contudo, pelo discurso é possível apreender a contradição, pois não há menção de aspectos positivos decorrentes do uso da medicação. Tanto o discurso da criança quanto o da mãe revelaram os malefícios ocasionados: “Eu me sinto diferente dos outros”; “sono”; “meio tonto”. A mãe, por seu turno, reforça a ideia de que o filho se sente diferente; além disso, relatou que ele desenvolveu tiques por conta da medicação estimulante.

Ao mencionar que se sente ruim, o menino revela o sentimento que ser medicalizado gera. Santos (2006SANTOS, B. A gramática do tempo. São Paulo: Cortez, 2006.) diz que temos o direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza e temos o direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza. Assim, a “diferença” de Miguel o inferioriza, pois ele “necessita” de um medicamento para deixar de ser ele mesmo. A medicação é uma tentativa de promoção da igualdade, mas age no sentido de imputar um estigma ainda maior à criança, aumentando a rejeição do grupo de convívio. Ao “aceitar” as tentativas de imposição da “normalidade”, promove-se a desigualdade, uma vez que seus colegas não são medicalizados “ninguém toma remédio na minha sala”. Por fim, Miguel diz que ser agitado é “ficar sem parar nenhum segundo”. Curioso é que ele estava sentado tranquilamente há bastante tempo conversando com a pesquisadora.

Indo adiante, e ainda tentando aprofundar os efeitos da patologização sobre Miguel, a pesquisadora pergunta quais eram as pessoas que diziam que ele era agitado:

Miguel. Todo mundo.

Pesquisadora. Todo mundo?

Miguel. Todo mundo menos um...

Pesquisadora. Menos quem?

Miguel. O Fernando. [..]

Pesquisadora. Todo mundo menos o Fernando...

Miguel. Às vezes ele diz...

Pesquisadora. Por que será que às vezes ele diz?

Miguel. Porque ele vê que eu tô agitado.

Pesquisadora. O que que ele diz?

Miguel. “Ô Miguel, hoje tu tá agitado, tenta melhorar...”

Pesquisadora. E você tá agitado mesmo?

Miguel. Eu acho que sim.

(10) [Entrevista com Miguel]

É possível notar que um complicador do processo patologizante é ser discursivizado negativamente por “todo mundo”. Miguel diz que todos o consideram agitado, menos um; mas, como pode ser visto, às vezes o colega diz “ô, Miguel, hoje tu tá agitado, tenta melhorar”, o que contribui para que ele se “renda” à visão do grupo. Na realidade, a criança que vivencia a patologização carrega emoções fortes, pois tem de lidar com situações muito estressantes. É excluída das relações, é vista e tratada como um ser “anormal”, é medicada, é rotulada, é controlada, e é claro que essas interações alteram algumas de suas ações, o que acaba, por seu turno, fortalecendo a noção já enraizada de que a criança porte uma patologia. Desse modo, a criança não tem sintomas de TDAH, o que a criança apresenta são reações responsivas ativas (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.307-335.) ao meio em que vive. Cabe dizer que no contexto da criança patologizada é como se as interações se tornassem homogêneas. São poucas as pessoas que convivem com a criança e que resistem firmemente às vozes “oficiais” e “enformadas”. Collares (1994COLLARES, C. O cotidiano escolar patologizado: espaços de preconceitos e práticas cristalizadas. Tese de Livre Docência. Faculdade de Educação. Campinas, SP: UNICAMP, 1994., p.181), ao entrevistar profissionais de educação e saúde, diz que havia no discurso de cada um o reflexo do consenso ideologicamente construído. “Consenso que, imobilizante, legitima a manutenção das estruturas sociais. Um consenso alicerçado sobre preconceitos, contra todos os referenciais teóricos. Contra todas as evidências colocadas pela própria vida”.

Vygotsky (1984VYGOTSKY, L. A formação social da mente. Tradução José Cipolla Neto et al. São Paulo: Martins Fontes, 1984.) entende o comportamento voluntário como “ação” imbricada aos processos mentais e afetivos. O comportamento é resultado da interação do sujeito com o meio; interação essa que provoca intenções, motivações, gostos, desgostos, etc. Entender que a cognição se constitui na interação é compreender que os processos psíquicos se organizam e se reorganizam na vigência da intersubjetividade. É na relação com e por meio do olhar do outro que a criança se torna centrada ou não, agitada ou não, atenta ou não (SIGNOR; SANTANA, 2016SIGNOR, R; SANTANA, A. TDAH e medicalização: implicações neurolinguísticas e educacionais. São Paulo: Plexus, 2016.).

Acrescente-se que a interação social é moldada segundo as concepções do locutor em relação ao seu destinatário, conforme Bakhtin (2003). Quando se diz algo, assegura Sobral (2007, p.24; grifo do autor), “o sujeito sempre diz de uma dada maneira dirigindo-se a alguém, e o ser desse alguém interfere na própria maneira de dizer, na escolha dos próprios itens lexicais”. Ser tida como “agitada” e “desatenta” pode favorecer uma antecipação do outro que pode se utilizar de expressões (“presta atenção”; “não fica agitado”; “você tá agitado?”; “se acalma”) que podem propiciar o surgimento dos sinais que se desejam inibir na criança. Bezerra (2008BEZERRA, P. Prefácio. Uma obra à prova do tempo. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. v-xxii. , p.XXII) afirma que “o diálogo não é um meio, mas um fim, pois não se pode representar o homem interior senão pela representação de sua comunicação com outros homens. Somente na comunicação, na interação do homem com o homem, revela-se 'o homem no homem', seja para si mesmo, seja para os outros”. Se é na interação que o sujeito se revela, é natural que a condição imposta socialmente (“agitado”) traga abalos à subjetividade da criança, “sinais” e muitos conflitos. Note-se que no excerto em resposta à pergunta “e você tá agitado mesmo?”, ele responde: eu acho que sim. Ele modaliza. É como se confirmasse e, ao mesmo tempo, negasse a patologia que lhe foi imputada.

Assim, o ser “agitado” pode significar duas situações: 1) algumas vezes a criança extravasa suas emoções, ou seja, responde às interações de forma não desejada por ter sido afetada por elas; e 2) ações corriqueiras são analisadas de forma enviesada, pois os olhares do entorno social também sofreram com o processo de patologização. Talvez o colega não dissesse para outra criança que tivesse tido a mesma ação de Miguel “tu tá agitado, tenta melhorar”. O problema é a criança patologizada receber do outro, de forma constante, impressões estigmatizantes, pois isso pode atingi-la sobremaneira e gerar o extravasamento das emoções. É um processo em cadeia que tende a reiterar o diagnóstico.

Pela despatologização e desmedicalização da infância

Embora as histórias retratadas sejam decorrentes de um estudo de caso, é preciso que se atente para o fato de que apontam para uma realidade maior, o que significa que parte expressiva das vivências representadas aqui abarcam uma dimensão coletiva. Dentre essas vivências, estão as relacionadas às ações, práticas e discursos pedagógicos que se instauram em torno dos alunos considerados “resistentes” ao que a escola propõe. Ocorre que as ações infantis, quando não compreendidas, podem desencadear um processo de discursivização desfavorável ao bom desenvolvimento do aluno. Dessa forma, por um mecanismo de internalização de discursos estigmatizantes, são geradas implicações para a subjetividade, aprendizagem e socialização dos alunos submetidos a esse processo.

No que se refere à socialização, algumas medidas pedagógicas - como o afastamento constante do grupo em sala de aula - tendem a restringir o estabelecimento de relações afetivas desses alunos excluídos com os colegas, contribuindo para que aqueles comecem a ter dificuldades de criar e manter vínculos amigáveis. Os alunos considerados “problema” e seus colegas vivenciam a exclusão. E nesse processo de internalização de uma determinada condição, todos aprendem que os “resistentes” são “desviantes” e que, por isso, não podem ser acolhidos. A esse respeito, Vygotsky (2010VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) explica que se na criança foram criadas formas antissociais de comportamento, a regra para a reversão do problema é justamente o contrário daquela aplicada aos infratores das leis na sociedade, onde a medida é a exclusão do meio social. “Ali, é ínfima a preocupação com a personalidade do próprio infrator, e tudo se volta para neutralizá-lo e proteger o meio de sua influência” (VYGOTSKY, 2010VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p.311). Na escola, a regra é distinta, a regra é o contato social mais estreito. Desse ponto de vista, a exclusão social não é decorrente de um sintoma do TDAH, como apregoam os pesquisadores organicistas, mas decorre, sobremaneira, por questões delegadas às ações estabelecidas na escola.

Ainda com relação às ações pedagógicas, é preciso que se problematizem as tendências ditas “antissociais”. A escola, ao detectar um comportamento considerado antissocial, por exemplo, uma criança que exerce sua liderança com autoritarismo brigando e dando ordens até mesmo para as educadoras (discurso escolar sobre Susi), ou que tem dificuldade de esperar a vez de falar (sobre Miguel), pode, por meio do diálogo, ensiná-la a negociar seus desejos, a compartilhar opiniões, a ouvir o outro, e é somente na relação social mediada que as crianças ganham oportunidades de aprender essas regras interacionais. Só que, apontando os erros dos alunos, excluindo-os da relação com o grupo de convívio, encaminhando-os para profissionais de saúde, entre outras intervenções, em busca da “normalização”, a escola transforma uma característica individual em delito. Com isso, traz à consciência do aluno atitudes que poderiam ser inibidas, fazendo, assim, com que a criança internalize comportamentos não desejáveis.

Nessa direção vale retornar ao excerto (03) de quando Miguel estava no primeiro ano. É visível o quanto a avaliação da professora é a própria sentença do TDAH: “dificuldade de esperar a vez para falar” (IMPULSIVO); “dificuldade para ficar sentado” (HIPERATIVO); “distrai-se e se esquece facilmente de tarefas” (DESATENTO). Tais considerações, aliadas à queixa de conflitos com os colegas, foram responsáveis por um encaminhamento para um consultório médico e indicação de medicamento controlado.

No caso de Miguel há ainda uma importante consideração a ser realizada. Esse menino, do nascimento aos cinco anos, foi vítima de maus-tratos pela mãe biológica. Era esperado, naturalmente, que essa criança tivesse suas questões emocionais. Havia sido adotado há alguns meses, ainda estava se adaptando a seus novos pais e à sua nova vida. Ele chegou a trocar de nome, como já dito, ou seja, ainda estava se constituindo no Miguel, pois até então ele era Fernando; é como se estivesse nascendo de novo, e ao mesmo tempo tinha de conviver com as lembranças passadas.

Camargo (2004CAMARGO, D. As emoções e a escola. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004.) diz que a emoção entra em relação com as funções cognitivas e se expressa por meio delas. “Funções como linguagem, memória, percepção e atenção estão carregadas de emoções, mesmo que, às vezes, veladas e de difícil reconhecimento” (CAMARGO, 2004CAMARGO, D. As emoções e a escola. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004., p.112). A autora caminha na direção de Vygotsky (2004VYGOTSKY, L. Teoría de las emociones: estudio histórico-psicológico. Madrid: Akal Universitaria, 2004.), para quem as dimensões afetiva e cognitiva do funcionamento da psique humana estão imbricadas. Desse modo, a criança vai internalizando em meio a suas relações “significados afetivos e morais que vão construindo sua configuração psíquica e sua identidade” (CAMARGO, 2004CAMARGO, D. As emoções e a escola. Curitiba: Travessa dos Editores, 2004., p.112). Em princípio, assinala Camargo, as emoções dominam o comportamento, mas com a aquisição da linguagem há uma modificação desse processo e se estabelece uma complexa relação entre a emoção e as funções mentais superiores. No entanto, sob determinadas condições, a emoção pode desencadear um processo cujo resultado seja um retorno a comportamentos que já foram superados. Ou a emoção, por estar altamente vinculada às funções cognitivas, pode alterar o funcionamento natural dessas funções.

É certo que o destino de Miguel poderia ter sido diferente se em vez de a professora apontar que, por exemplo, “ele tinha dificuldades em esperar a vez de falar”, tivesse conduzido a situação no sentido de - por meio da mediação - ir fazendo com que ele percebesse, gradativamente, que há o momento de falar e que há o momento de ouvir. Ainda, o destino do menino poderia ter sido outro se houvesse o entendimento, por parte da professora, de que a “distração” e a “inquietação” das crianças podem ser superadas mediante atividades pedagógicas significativas.

No excerto há também uma alusão a respeito da aprendizagem, de que o aluno “coloca letra sem valor sonoro”; “não forma sílaba”; “tem dificuldade de reconhecer números”, e, como esperado, mais uma condição é atribuída à criança: a de portadora de dificuldades para aprender. Miguel estava ainda no segundo trimestre do primeiro ano, por que sinalizar de forma tão precoce o que ainda não conseguia fazer? A escola, ao contrário, poderia, em seus pareceres avaliativos, mostrar o que a criança consegue e não valorizar o que ainda desconhece. Por exemplo, em vez de dizer “coloca letra sem valor sonoro”, substituir por “reconhece e utiliza várias letras do alfabeto, especialmente as letras de seu nome, fato inerente ao processo de alfabetização”. Relatar o que o aluno consegue e reconhecer cada pequena conquista sua pode ser uma atitude relevante ao seu aprendizado na escola, pois faz com que internalize suas capacidades e conquistas. Além disso, contribuiria para criar vínculos afetivos entre professor e aluno.

Susi, por sua vez, mostrou resistência à imposição de regras no espaço escolar, revelando um traço da sua singularidade. Em ambos os casos, foi possível explicar a construção social do TDAH, ou seja, que os “sinais” apresentados, longe de representarem indícios de um quadro patológico, ocorreram em virtude de um processo de patologização. Compreende-se, segundo esse ponto de vista, que ser discursivizada como agitada, hiperativa, desatenta, entre outras classificações, pode afetar a autoimagem da criança e gerar sintomas. O problema se complica quando os rótulos desenvolvidos na escola são corroborados pelos profissionais de saúde.

O diagnóstico de TDAH, por exemplo, provoca o seguinte questionamento: em que adulto se transformará a criança que hoje é silenciada pela sigla? (UNTOIGLICH, 2013UNTOIGLICH, G. Usos biopolíticos do suposto Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: que lugar para o sofrimento psíquico na infância? In: COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.) Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos. São Paulo: Mercado de Letras, 2013. p.119-132. , p.130). Segundo a autora, a criança não passaria a esperar mais nada de si mesma e sua subjetividade estaria fixada no diagnóstico. Não se trata de relativizar os problemas da infância, mas buscar compreender a complexidade de fatores envolvidos quando há a manifestação de comportamentos considerados “desviantes”, sem a necessidade de um rótulo incapacitante.

É preciso, então, que se socializem conhecimentos (nos cursos de formação e formação continuada do docente) relacionados à questão da diversidade no espaço da escola, e que se construa, nesse entendimento, o sentido de inclusão necessário à promoção de qualquer melhoria no campo da educação. A Educação Inclusiva, como explica Rodrigues (2006RODRIGUES, D. Dez ideias (mal)feitas sobre a educação inclusiva. In: RODRIGUES, D. (org.). Inclusão e educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus: 2006. p.299-318, , p.13), “constitui a promoção da formulação da educação em novas bases que rejeitem a exclusão e promovam uma educação diversa e de qualidade para todos os alunos”. Há a necessidade, ainda, de se trabalhar durante a formação docente a noção de linguagem como atividade constitutiva (FRANCHI, 2011FRANCHI, C. Linguagem - atividade constitutiva. In: FRANCHI, C.; FIORIN, J.; ILARI, R. (orgs.). Linguagem atividade constitutiva: teoria e poesia. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p.33-74. , p.38), incitando diálogos para que o professor reflita sobre o sentido de suas palavras, de seu olhar, de suas ações nos alunos. E o quanto palavras, olhares e ações positivas repercutem de forma favorável à formação plena do estudante. E no quanto palavras, olhares e ações negativas promovem estados de sofrimento e de resistência ao que é proposto pela escola, em decorrência da responsividade inerente aos sujeitos.

Assim, por meio do empoderamento do profissional de educação, poderemos nos libertar de processos medicalizantes e construir uma escola que atenda a todos os seus alunos. Nesse modelo de escola, não haveria mais espaço para os “desatentos”, os “disléxicos”, os “deficientes”, os “agitados”. Haveria apenas os “aprendizes”, sem outros títulos a não ser este.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2006.
  • BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.307-335.
  • BARKLEY, R. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: manual para diagnóstico e tratamento. Tradutor: Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2006.
  • BEZERRA, P. Prefácio. Uma obra à prova do tempo. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski 4. ed. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. v-xxii.
  • CAMARGO, D. As emoções e a escola Curitiba: Travessa dos Editores, 2004.
  • COLLARES, C. O cotidiano escolar patologizado: espaços de preconceitos e práticas cristalizadas. Tese de Livre Docência Faculdade de Educação. Campinas, SP: UNICAMP, 1994.
  • COLLARES, C.; MOYSÉS, M. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (Org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
  • COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.). Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos São Paulo: Mercado de Letras, 2013.
  • FRANCHI, C. Linguagem - atividade constitutiva. In: FRANCHI, C.; FIORIN, J.; ILARI, R. (orgs.). Linguagem atividade constitutiva: teoria e poesia. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p.33-74.
  • GERALDI, W. Educação sem enxada e sem ritalina: alfabeto, alfabetização e higienização. In: COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.) Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos São Paulo: Mercado de Letras, 2013. p.311-322.
  • RODRIGUES, D. Dez ideias (mal)feitas sobre a educação inclusiva. In: RODRIGUES, D. (org.). Inclusão e educação: doze olhares sobre a educação inclusiva. São Paulo: Summus: 2006. p.299-318,
  • SANTOS, B. A gramática do tempo São Paulo: Cortez, 2006.
  • SIGNOR, R. O sentido do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade para a constituição do sujeito/aprendiz. Tese Doutorado em Linguística. Florianópolis: UFSC, 2013.
  • SIGNOR, R; SANTANA, A. TDAH e medicalização: implicações neurolinguísticas e educacionais. São Paulo: Plexus, 2016.
  • UNTOIGLICH, G. Usos biopolíticos do suposto Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: que lugar para o sofrimento psíquico na infância? In: COLLARES, C.; MOYSÉS, M.; RIBEIRO, M. (Org.) Novas capturas, antigos diagnósticos na Era dos transtornos São Paulo: Mercado de Letras, 2013. p.119-132.
  • VYGOTSKY, L. A formação social da mente Tradução José Cipolla Neto et al São Paulo: Martins Fontes, 1984.
  • VYGOTSKY, L. Teoría de las emociones: estudio histórico-psicológico. Madrid: Akal Universitaria, 2004.
  • VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2018
  • Aceito
    11 Fev 2020
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com