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Brasileiros na Europa: três narrativas de sucesso à luz da Análise do Discurso Francesa

RESUMO

Considerando que as migrações não são feitas apenas de sofrimento e exclusão, pretendemos, neste trabalho, analisar e comparar, à luz da Análise do Discurso de linha francesa, três narrativas de vida de migrantes brasileiros na Europa, para buscar compreender, por meio de seus discursos, como eles obtiveram sucesso do outro lado do Atlântico. Os resultados, em linhas gerais, apontam para três aspectos comuns: a coragem de “arriscar”, a determinação de vencer os desafios e a disposição de integrar-se plenamente ao novo país.

PALAVRAS-CHAVE:
Migrantes brasileiros; Contexto europeu; Narrativas de vida; Sucesso

ABSTRACT

Considering that migrations are not made of suffering and exclusion alone, we intend, in this paper, to analyze and compare, in the light of French Discourse Analysis, three life stories of Brazilian migrants to Europe to understand, by means of their discourse, how they achieved success abroad. The results, in general, point to three common aspects: courage to take risks, determination to overcome the challenges and the willingness to integrate fully into the new country.

KEYWORDS:
Brazilian migrants; European context; Life stories; Success

Introdução: o contexto migratório

Apesar de os movimentos migratórios não serem um fato social contemporâneo, inscrevendo-se no longo tempo da maturação do território, da sociedade e da cultura dos diferentes países, é nas últimas décadas (final do século XX/ início do XXI) que a circulação de populações se intensifica e se diversifica no mundo e, particularmente, na Europa, que vem enfrentando, sobretudo a partir de 2005, um dos maiores fluxos migratórios de sua história contemporânea (BLANCHARD et al., 2016BLANCHARD, P.; DUBUCS, H.; GASTAUT, Y. Atlas des immigrations en France. Paris: Autrement, 2016.). Isso tem levado não apenas as mídias e o setor político, mas também pesquisadores como Clochard (2007)CLOCHARD, O. Les réfugiés dans le monde entre protection et illégalité. EchoGéo, v. 2, p.1-8, sep./nov. 2007. Disponível em: http://echogeo.revues.org/1696.Acesso em 30 de março, 2019.
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a postularem uma “migração de crise”, resultante de uma série de guerras e de tensões econômicas, sociais, políticas e étnicas que abalam o planeta.

De acordo com Blanchard et al. (2016BLANCHARD, P.; DUBUCS, H.; GASTAUT, Y. Atlas des immigrations en France. Paris: Autrement, 2016., p.44), um migrante1 1 Utilizaremos, neste artigo, migração (e seu correlato migrante) que, como postulam Calabrese e Veniard (2018, p.11), é um termo relativamente neutro que descreve simplesmente um processo de mobilidade. Isso nos permite também evitar a dicotomia emigrante/imigrante, já que o emigrante no país de partida é o imigrante no país de chegada. Manteremos, porém, imigrante/imigração (ou emigrante/emigração) em citações de textos que empregam tais termos. pode ser definido como um indivíduo que deixou seu país de origem por vontade própria ou não, tornando-se, portanto, um estrangeiro no país de chegada. O termo migrante recobriria, assim, de forma ampla, uma variedade de realidades que impactam as condições de vida de cada pessoa no novo país, implicando diferentes estatutos e direitos. Teríamos, assim, os refugiados, os solicitantes de asilo, os sem documentos, os clandestinos...

Outros pesquisadores, porém, preferem opor migrante a refugiado. Calabrese (2018CALABRESE, L. Diversité, entre constat et injonction. In: CALABRESE, L; VENIARD, M. (org.). Penser les mots, dire la migration. Bruxelles/Paris: Academia/L’Harmattan, 2018, p.71-79., p.153), por exemplo, explica que o termo refugiado faz parte do vocabulário jurídico e, como tal, constitui uma categorização social que dá acesso a proteção, ao contrário de migrante que não dispõe de definição jurídica. Assim, se o refugiado, do ponto de vista legal, é qualquer pessoa que muda de país buscando escapar de conflitos armados, perseguições (política, étnica, religiosa etc.) ou violação de direitos humanos (Convenção de Genebra, 1951), o migrante seria aquele que se desloca por vontade própria, mesmo que seja na tentativa de escapar da pobreza ou de buscar melhores condições de vida. Teríamos, pois, dois grandes tipos de migração: a forçada e a voluntária (BARTRAM et al., 2014BARTRAM, D.; POROS, M. V.; MONFORTE, P. Key Concepts in Migration. London: Sage, 2014.).

Nesse quadro, se privilegiarmos a dicotomia migrante vs. refugiado, mesmo que essa distinção nem sempre funcione na prática (CLOCHARD, 2007CLOCHARD, O. Les réfugiés dans le monde entre protection et illégalité. EchoGéo, v. 2, p.1-8, sep./nov. 2007. Disponível em: http://echogeo.revues.org/1696.Acesso em 30 de março, 2019.
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; BARTRAM et al., 2014BARTRAM, D.; POROS, M. V.; MONFORTE, P. Key Concepts in Migration. London: Sage, 2014.), constataremos que o fluxo migratório atual de brasileiros não se origina de perseguições políticas ou de conflitos civis, sendo, ao contrário, voluntário, embora, nem por isso, implique uma decisão simples, dadas as perdas e as rupturas para aquele que se desloca para outro país, além da inevitável adaptação a uma nova realidade (língua, cultura, códigos, normas sociais etc.).

Segundo pesquisadores que trabalham sobre a migração brasileira na Europa, as principais razões para o deslocamento seriam: 1) a motivação econômica (busca de melhores salários, por exemplo); 2) a motivação de natureza pessoal (oportunidades profissionais ou desejo de prosseguir os estudos); 3) a migração afetiva (matrimônio ou reunião familiar) (MARQUES; GÓIS, 2015MARQUES, J. C.; GÓIS, P. Processos de integração dos imigrantes brasileiros na sociedade portuguesa. In: PEIXOTO, J. et al. (org.). Vagas atlânticas: migrações entre Brasil e Portugal no início do século XXI. Lisboa: Mundos Sociais, 2015, p.109-134.; MOREIRA, 2018MOREIRA, G. M. Figures de migrants brésiliens en France: approche anthropologique et sociolinguistique. 2018. 1495 f. Thèse (Doctorat en Linguistique) – Université Paul Valéry - Montpellier III, Montpellier, 2018.). Essas motivações evidentemente se sobrepõem em alguns aspectos. Além disso, a motivação primeira pode transformar-se em outra(s) ao longo do percurso do sujeito.

Não é fácil obter dados atualizados e fidedignos sobre a presença de brasileiros na Europa. Moreira (2018MOREIRA, G. M. Figures de migrants brésiliens en France: approche anthropologique et sociolinguistique. 2018. 1495 f. Thèse (Doctorat en Linguistique) – Université Paul Valéry - Montpellier III, Montpellier, 2018., p.23) menciona que, segundo estimativas da OIM (Organização Internacional para as Migrações), o Brasil tem entre 1 e 3 milhões de emigrados no mundo. Dados obtidos pela autora junto ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, em 2010, o número de brasileiros repartidos entre 193 países do mundo era de 491.243 pessoas, sendo os principais países de emigração Estados Unidos (23,8%), Portugal (13,4%), Espanha (9,4%), Japão (7,4%), Itália (7,0%) e Inglaterra (6,2%). Embora a França não esteja incluída nessa lista prioritária, o número de brasileiros nesse país corresponderia, nesse mesmo ano (2010), a 17.700 pessoas (3,6% da população brasileira no estrangeiro) de acordo com o IBGE, enquanto o INSEE (Institut National de la Statistique et des Études Économiques) computava 43.383 brasileiros em solo francês em 2013.

Partindo desse cenário introdutório, pretendemos, neste artigo2 2 Este artigo resulta de nossa pesquisa de pós-doutorado O discurso de emigrantes brasileiros no contexto europeu, que foi realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, de agosto de 2019 a julho de 2020, com a supervisão da Professora Doutora Beth Brait. No período de outubro de 2019 a março de 2020, fizemos um estágio de Professor Visitante Sênior na Université Paris-Est Créteil - UPEC, com a supervisão do Professor Dominique Ducard. Para esse estágio, contamos com uma bolsa do Programa Institucional de Internacionalização Print/CAPES-UFMG. , examinar o discurso de brasileiros que migraram para a Europa, particularmente, para Portugal, França e Inglaterra, países escolhidos em função de suas diferenças não só linguísticas e culturais, mas também em relação às políticas migratórias. A exemplo de outros trabalhos que já desenvolvemos (LARA, 2018LARA, G. M. P. A(s) voz(es) dos vulneráveis: narrativas de vida de imigrantes e refugiados à luz da análise do discurso. In: BARONAS, R. L. et al. (org.). As ciências da linguagem e a(s) voz(es) e o(s) silenciamento(s) de vulneráveis. Campinas: Pontes, 2018, p.145-166.; 2019LARA, G. M. P. De “Ouvrons les portes” a “Em casa no Brasil”: olhares contemporâneos sobre a migração. Gláuks, Viçosa, v. 19, n. 1, jan-jun 2019, p.79-100. Disponível em: https://www.revistaglauks.ufv.br/Glauks/issue/view/24/27.Acesso em 22 de junho, 2020.
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; 2021LARA, G. M. P. Migrations contemporaines et récits de vie en France et au Brésil. In: TAUZIN-CASTELLANOS, I. (org.). De l’émigration en Amérique Latine à la crise migratoire. Bordeaux, Cairn éditions/Morlaàs, 2021, p.1-14.), é nosso objetivo dar a esses sujeitos a oportunidade de contar suas próprias histórias, de discursivizar suas experiências de vida, ampliando, pois, seus espaços de fala para além da esfera privada.

Nesse sentido, os sujeitos em situação minoritária, sejam eles designados como sans-voix (MAINGUENEAU, 2020MAINGUENEAU, D. Faire entendre les sans-voix. Argumentation et Analyse du Discours, n. 24, abr. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/4131.Acesso em 22 de junho, 2020.
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) ou como sans parole (DUCARD, 2015DUCARD, D. Dar a palavra: da reportagem radiofônica à ficção documental. Tradução Glaucia Proença Lara e Aline Saddi Chaves. In: LARA, G. P.; LIMBERTI, R. P. (org.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015, p.109-128.), não têm suas vozes/suas falas ouvidas na “esfera alta”. Maingueneau (2020)MAINGUENEAU, D. Faire entendre les sans-voix. Argumentation et Analyse du Discours, n. 24, abr. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/4131.Acesso em 22 de junho, 2020.
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, ao refletir sobre o sentimento de piedade para com o outro (excluído), menciona a sensação de “inaudibilidade” que muitos compartilham, situação que, a nosso ver, se aplica aos migrantes. Em suas palavras:

As representações comuns em matéria de circulação dos enunciados implicam uma diferença entre uma esfera, que poderíamos chamar de “alta” e uma esfera “baixa”. Um grande número de pessoas experimenta de fato o sentimento de “não serem ouvidas” [...] Sua fala lhes aparece como duplamente baixa: vinda de baixo, de gente sem importância, ela não é ouvida, como se eles falassem em “voz baixa”. Impõe-se, então, a necessidade do mediador que poderá torná-los [os sujeitos] audíveis, fazendo seu ponto de vista ascender à esfera alta.3 3 No original: “Les représentations communes en matière de circulation des énoncés impliquent une différence entre une sphère qu’on pourrait dire “haute” et une sphère “basse”. Un grand nombre de gens expriment en effet le sentiment de “ne pas être entendus” [...] Leur parole leur apparaît doublement basse : venue d’en bas, de gens sans importance, elle n’est pas entendue, comme s’ils parlaient “à voix basse”. S’impose alors la nécessité du médiateur qui pourra les rendre audibles, faire accéder leur point de vue à la sphère haute”. (MAINGUENEAU, 2020MAINGUENEAU, D. Faire entendre les sans-voix. Argumentation et Analyse du Discours, n. 24, abr. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/4131.Acesso em 22 de junho, 2020.
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, s/p).

Assumindo, portanto, a função de mediar4 4 Foge ao escopo deste trabalho discutir as formas que essa mediação assume, questão a que Maingueneau (2020) dedica boa parte do seu artigo. uma fala que se quer fazer ouvir na “esfera alta”, apresentaremos e analisaremos narrativas de vida – coletadas por meio de entrevistas de brasileiros que escolheram viver em solo europeu. Considerando, porém, que as mobilidades humanas não são feitas apenas de sofrimento e exclusão, selecionamos, para este trabalho, os relatos de três pessoas que desenvolveram trajetórias de sucesso do outro lado do Atlântico.

Buscaremos compreender, à luz da Análise do Discurso de linha francesa (ADF), por meio da apreensão das diferentes estratégias linguístico-discursivas mobilizadas na construção dessas vozes marginais, como esses sujeitos comuns – “gente como a gente” – obtiveram êxito (pessoal e profissional) lá fora, quando tantos outros desistem, fracassam. Isso implica buscar respostas para as seguintes perguntas: 1) como esse migrante brasileiro bem-sucedido se re(a)presenta em seu relato?; 2) como avalia sua situação atual (num novo país) em comparação com a situação anterior (no Brasil), sua relação com os nativos e a própria possibilidade de retorno (ou não) ao país de origem?; 3) que imagens ou representações (sociodiscursivas)5 5 A concepção de imagens ou representações sociodiscursivas que assumimos neste artigo inspira-se em Charaudeau (2007; 2015). Muito resumidamente, diremos que se trata de formas de “ver” e “julgar” o mundo que se manifestam por meio do discurso. – de si mesmos, dos outros, do mundo – ele nos dá a ver, afinal, em suas narrativas de vida?

Destacamos, antes de mais nada, a contribuição que os migrantes podem dar para a nova sociedade em que se inserem, o que permite desmitificar certos estereótipos que surgem, sobretudo nos momentos de crise econômica e/ou política, envolvendo questões como o alto custo social dos migrantes e os impactos negativos que eles podem trazer para o país de acolhida, como o desemprego e a criminalidade. Ora, se o migrante é considerado, muitas vezes, como um “sujeito intruso” ou como um “bode expiatório” (LE BRAS, 2014LE BRAS, H. L’invention de l’immigré. Paris: L’Aube, 2014.), ele pode também ser visto positivamente como um indivíduo produtivo e bem integrado no meio em que vive (apesar dos obstáculos e dificuldades que ele possa ter enfrentado inicialmente).

Como destaca Peixoto (2013PEIXOTO, J. Imigração, emprego e mercado de trabalho em Portugal: os dilemas do crescimento e o impacto da recessão. In: FONSECA, M. L. et al. (org.) Migrações na Europa e em Portugal. Coimbra: Almedina, 2013, p.158-184., p.170), em referência ao contexto português, todos os estudos disponíveis confirmam que os imigrantes foram responsáveis por muito do crescimento do país nas últimas duas décadas, atuando em complementaridade – e não em concorrência – com trabalhadores portugueses, ou seja, ocupando profissões nas quais existe um déficit de oferta por parte dos trabalhadores nacionais. Essa situação pode ser estendida, em linhas gerais, à França e à Inglaterra (LAACHER, 2012LAACHER, S. Ce qu’immigrer veut dire. Paris: Le Cavalier Bleue, 2012.; PORTES, 2019PORTES, J. Immigration. London: Sage, 2019.). Porém, se os migrantes se inserem majoritariamente em segmentos mais precários e vulneráveis do mercado de trabalho e estão mais sujeitos ao desemprego, não podemos perder de vista que há também aqueles que se voltam para o empreendedorismo, empregando, inclusive, mão de obra nativa. É o caso de dois de nossos entrevistados (Manuel e Pedro), como se verá na seção 2.

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Questões teórico-metodológicas

Os relatos que analisaremos na seção 2: o de James (França), o de Manuel (Inglaterra) e o de Pedro (Portugal), selecionados a partir de um conjunto maior de relatos (30 no total) que integram o corpus de nossa pesquisa (ver nota 1), foram obtidos por meio de gravação – e, posterior, transcrição6 6 6 Na transcrição, a difícil questão de como reproduzir, na modalidade escrita, a oralidade fornecida pelas gravações das entrevistas se impõe ao pesquisador. Utilizamos as normas do Laboratório ICAR da Universidade de Lyon (CALABRESE; VENIARD, 2018). Para a apresentação dos excertos neste artigo (ver seção 2), introduzimos sinais de pontuação e eliminamos elementos como pausas e hesitações, mantendo, porém, as marcas de oralidade e os “erros” de português (problemas de regência, de concordância, entre outros). Buscamos, dessa forma, a maior fidelidade possível à elocução, mesmo considerando com Barthes (apud DUCARD, 2015, p.111) que, na “armadilha da transcrição”, perde-se a “inocência” exposta na fala viva e imediata – de entrevistas, com a duração de 15 a 20 minutos, agendadas previamente em dia, horário e local de interesse do entrevistado. Além disso, de acordo com as orientações do CEP (Comitê de Ética em Pesquisa) da UFMG, os três assinaram um Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE), permitindo-nos usar suas falas em eventos e publicações, desde que fosse mantido o anonimato.

Seguimos, em linhas gerais, os procedimentos descritos por Bertaux (2005)BERTAUX, D. Le récit de vie. Paris: Armand Colin, 2005., no âmbito da etnossociologia, para uma “entrevista narrativa”, buscando, porém, adaptá-los ao quadro da ADF, que constitui nossa teoria de base. Esse tipo de entrevista, segue um roteiro prévio: uma pergunta geral, seguida de outras mais específicas, contemplando as indagações que o pesquisador se coloca sobre seu objeto de estudo. A proposição de um roteiro prévio permite que o entrevistador interfira o mínimo possível na narrativa, deixando-a fluir naturalmente, e, ao mesmo tempo, impede que o entrevistado se afaste da temática focalizada.

No caso deste trabalho, a questão geral: Conte-me como você vivia antes no Brasil e como vive atualmente no país de destino, em consonância com as indagações que propusemos na Introdução, foi desdobrada em cinco perguntas mais específicas: 1) quais foram suas motivações para migrar para a Europa e, particularmente, para o país escolhido?; 2) na sua opinião, quais foram/são os pontos positivos e negativos da mudança?; 3) como você avalia o olhar do nativo sobre o migrante, sobretudo o migrante brasileiro?; 4) como é o seu contato com brasileiros e nativos no novo país?; 5) você tem algum projeto de retorno ao Brasil? Os entrevistados poderiam abordar essas questões na ordem e da forma que quisessem e mesmo optar por não falar de algum assunto, sendo seu silêncio respeitado. Poderiam também incluir algum(ns) aspecto(s) não contemplado(s) no roteiro que julgassem relevante mencionar.

Antes de prosseguir, é importante que nos ocupemos do conceito – central para nossa pesquisa – de narrativa de vida (récit de vie), que foi introduzido pelo já citado sociólogo D. Bertaux, em 1976. Para esse autor, há uma “narrativa de vida” desde que um sujeito conte a um outro (seja ele pesquisador ou não) um episódio qualquer de sua experiência de vida. O verbo “contar” (fazer o relato de) tem, nesse caso, um papel essencial: o de significar que a produção discursiva do sujeito assumiu a forma narrativa (BERTAUX, 2005BERTAUX, D. Le récit de vie. Paris: Armand Colin, 2005., p.36).

Nessa perspectiva, se aquele que faz a entrevista for um pesquisador, a narrativa de vida lhe permitirá analisar e comparar uma série de casos que implicam múltiplas percepções de uma mesma realidade, a fim de apreender suas semelhanças e diferenças. Logo, prioriza-se a dimensão social (abordagem comparativa), que implica investigar como um conjunto de pessoas que se encontram numa situação social dada lida com essa situação (BERTAUX, 2005BERTAUX, D. Le récit de vie. Paris: Armand Colin, 2005., p.21). No nosso caso, por exemplo, interessa saber como os brasileiros entrevistados lidam com a migração no contexto europeu e como explicam o seu sucesso num país que não é originalmente o seu.

Transferida para o domínio da ADF, uma narrativa de vida deve ser entendida como o relato que um sujeito faz de (parte de) sua vida e de suas relações com o mundo que o rodeia. Assim, temos um eu que, falando/escrevendo no aqui e no agora da enunciação, (re)cria, a partir de certos acontecimentos que vivenciou, um outro, aquele do e do então, dando, assim, via linguagem, um melhor contorno a suas experiências de vida (MACHADO, 2016MACHADO, I. L. Narrativa de vida: um espaço de liberação para vozes femininas? In: MACHADO, I. L.; SANTOS, J. B. C.; JESUS, S. N. (org.). Análise do discurso. Afinidades epistêmicas franco-brasileiras. Curitiba: CRV, 2016, p.12-22.; MACHADO; LESSA, 2013). Nesse sentido, assumimos com Moreira (2018MOREIRA, G. M. Figures de migrants brésiliens en France: approche anthropologique et sociolinguistique. 2018. 1495 f. Thèse (Doctorat en Linguistique) – Université Paul Valéry - Montpellier III, Montpellier, 2018., p.140) que não se trata de um mero relato discursivo que toma a forma narrativa, mas de um exercício de se dar a conhecer ao outro, o que implica, para o sujeito que (se) conta, buscar na memória lembranças e reminiscências, prevendo, porém, a possibilidade – sempre presente – de porosidades e lacunas. O resultado, portanto, é a produção de uma história complexa e heterogênea.

Inspirando-nos em Machado (2016MACHADO, I. L. Narrativa de vida: um espaço de liberação para vozes femininas? In: MACHADO, I. L.; SANTOS, J. B. C.; JESUS, S. N. (org.). Análise do discurso. Afinidades epistêmicas franco-brasileiras. Curitiba: CRV, 2016, p.12-22., p.13), consideramos que essas “pequenas histórias”, que vão tecendo a “grande história” das migrações contemporâneas, situam-se na tensão entre o vivido e o revivido pela lembrança, entre a objetividade e a subjetividade do (se) contar. Assim, se a fala de cada migrante é única e sua vivência, singular, não podemos deixar de reconhecer a vocação coletiva dessas falas que, para além das diferenças individuais, manifestam algumas ideias recorrentes que responderiam por um discurso comum.

Nesse quadro, as narrativas de vida de James, Manuel e Pedro, como já foi dito, serão examinadas à luz da ADF. Dado o seu caráter interdisciplinar, essa teoria permite um “diálogo” profícuo com as ciências sociais, domínio que Maingueneau (2020MAINGUENEAU, D. Faire entendre les sans-voix. Argumentation et Analyse du Discours, n. 24, abr. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/4131.Acesso em 22 de junho, 2020.
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, s/p) descreve como particularmente ativo no que tange a pesquisas envolvendo a oposição entre os dominantes e aqueles que classificamos, de acordo com o ponto de vista adotado, como “excluídos”, “invisíveis”, “minorias”, entre outras designações7 7 Sobre essa questão, ver, por exemplo, Lara e Limberti (2015; 2016). . O próprio conceito de narrativa de vida, como vimos, resulta desse “diálogo”.

No escopo da ADF, construiremos nosso “dispositivo individualizado de análise” (ORLANDI, 1999ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.)8 8 Lembremos que, no âmbito da ADF, não existe nenhuma metodologia pronta. Cabe a cada pesquisador, em função do seu objeto específico, de seus objetivos, de suas hipóteses de trabalho, enfim, do material que tem em mãos, construir, a partir do dispositivo teórico em que se insere, o seu próprio dispositivo de análise (ORLANDI, 1999, p.27). com base em alguns planos propostos por Maingueneau (2005, p.79-102), no âmbito de sua “semântica global”, entendida como o sistema de restrições que incide, de forma integrada, sobre os vários planos do discurso, tanto na ordem do enunciado quanto na ordem da enunciação. São eles: os temas (impostos e específicos), o vocabulário (as palavras-chave, as nominalizações, os índices de avaliação), o modo de enunciação (que remete ao éthos do locutor) e a dêixis enunciativa (mobilizada nas categorias de pessoa, tempo e espaço)9 9 Além dos planos que citamos – que constituem, para nós, os mais produtivos no exame das narrativas de vida (ver, por exemplo, LARA, 2018; 2019; 2021) – há a intertextualidade, o estatuto do enunciador e do destinatário e o modo de coesão. Cabe esclarecer que utilizaremos os quatro planos escolhidos de maneira mais abrangente do que faz o autor. Não vemos, porém, discrepâncias entre o que ele propõe e a nossa “releitura” desses planos. . Articularemos esses planos com algumas marcas da heterogeneidade enunciativa/mostrada (AUTHIER-REVUZ, 1990aAUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p.25-42, jul./dez. 1990a. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824.Acesso em 22 de junho de 2020.
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; 1990b), noção que se esteia no dialogismo bakhtiniano. Como destaca a autora:

O “dialogismo” do círculo de Bakhtin […] não tem como preocupação central o diálogo face a face, mas constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma dialogização interna do discurso. As palavras são sempre e inevitavelmente “as palavras dos outros” (AUTHIER-REVUZ, 1990aAUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p.25-42, jul./dez. 1990a. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824.Acesso em 22 de junho de 2020.
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, p.26).

Lembramos que a heterogeneidade enunciativa divide-se em dois planos distintos, mas complementares: a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada (marcada ou não marcada). Diferentemente da heterogeneidade constitutiva, “não representável e não localizável no discurso que constitui” (AUTHIER-REVUZ, 1990aAUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p.25-42, jul./dez. 1990a. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824.Acesso em 22 de junho de 2020.
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, p.32), a heterogeneidade mostrada “corresponde à presença localizável de um discurso outro no fio do discurso”, podendo ser marcada (por meio de índices linguísticos ou tipográficos unívocos: discurso relatado, negação, pressuposição etc.), ou não marcada (ironia, alusões, pastiche, entre outros fenômenos) (MAINGUENEAU, 2004MAINGUENEAU, D. Heterogeneidade mostrada/constitutiva. Tradução Sírio Possenti. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. (Éd.). Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p.261-262., p.261). Mobilizaremos, assim, as contribuições de Bakhtin e do Círculo – pela via da heterogeneidade enunciativa (principalmente, a mostrada/marcada) – para desvelar as “vozes” outras que atravessam a “voz” do ser que (se) conta e sobre os efeitos de sentido advindos dessa pluralidade de “vozes” que dialogam, polemizam, complementam-se, respondem umas às outras, na construção das narrativas de vida.

Cabe aqui um parêntese sobre a forma como estamos concebendo o sujeito “narrador” dos textos que analisaremos. Isso porque pode parecer, para certos leitores, que o fato de optarmos pela semântica global – acrescida de contribuições da heterogeneidade enunciativa – para construir nosso dispositivo de análise, levaria ao “sujeito assujeitado” dos primórdios da ADF. Nesse sentido, assumimos com Orlandi (2001ORLANDI, E. P. A linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 2001., p.189) que “não existe nem um sujeito absolutamente dono de si, nem um sujeito totalmente dominado pelo que lhe vem de fora”, ou seja, o sujeito atual da ADF – aquele que assumimos aqui – é um sujeito “em tensão” entre o mesmo e o diferente. Além disso, Possenti (2005,p.8-9), na apresentação da tradução brasileira de Genèses du discours [Gênese dos discursos], de onde foi retirada a hipótese de uma semântica global, ressalta que essa obra propõe um modo de fazer análise do discurso que, sem desprezar os fatores históricos enfatizados por Pêcheux e seu grupo, “acrescentou certos aspectos que afetam a discursividade para além da relação direta entre língua e história”.

As opiniões de Orlandi (2001)ORLANDI, E. P. A linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 2001. e de Possenti (2005)POSSENTI, S. Apresentação. In: MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. p.7-9. autorizam-nos a admitir que, se as histórias de “nossos” migrantes revelam aspectos recorrentes que remetem a um “discurso comum” – podendo, pois, ser analisadas “horizontalmente” (questão que nos interessa mais de perto neste artigo) –, elas também apresentam diferenças que responderiam pelas distintas experiências (e pela singularidade com que são abordadas em cada narrativa), o que permitiria uma análise “vertical” – a ser feita em outro momento.

Antes de encerrar esta seção, julgamos importante mencionar que os três entrevistados encontram-se em situação legal nos respectivos países: James, que reside em Paris-França, tem visto de trabalho; Manuel, que vive nas proximidades de Londres-Inglaterra, possui visto de residência; Pedro, que mora em Lisboa-Portugal, tem dupla nacionalidade. Outros dados sobre eles podem ser encontrados no quadro 1 a seguir:

Quadro 1:
Informações sobre os sujeitos da pesquisa.

*Mínimo de 6 (seis) meses.


2

As narrativas de vida em foco: histórias de sucesso e suas inter-relações

É preciso explicitar, num primeiro momento, o que entendemos por “sucesso” para afirmar que James, Manuel e Pedro, cada um a seu modo, podem ser tomados como migrantes bem-sucedidos. A consulta a alguns dicionários nos diz que sucesso significa, entre outras coisas, “bom êxito, resultado feliz” (Dicionário Aurélio, 1986, p.1624); “bom resultado, êxito, triunfo” (Dicionário Houaiss, 2009, p.1784). Nada melhor, porém, do que ler a avaliação que James faz do seu percurso de vida, para ter uma dimensão mais clara do que seja sucesso:

As minhas conquistas, primeiro hoje, para mim mesmo, é ter melhorado como pessoa [...] Segundo, é hoje trabalhar na minha área na maior loja de cosméticos do mundo [...] Imagina um menino de 22 anos, eu que nasci numa cidade tão pequena, a primeira torre de celular na minha cidade foi em 2011. Pra você ter uma ideia, da minha cidade leva-se 4 dias de barco pra poder chegar em Manaus. Então, é uma realidade de outro mundo. Então, chegar até aqui hoje, estar aqui, continuar aqui, porque não é só um mês da minha vida: eu tô tirando um ano já aqui da minha vida quase, entendeu? Aprendendo coisas novas. Então, isso pra mim é uma conquista muito grande.

Nesse trecho, constatamos que o menino que nasceu numa pequena cidade nos confins da Amazônia, que foi sozinho para São Paulo aos 18 anos e de lá para Paris, onde hoje trabalha, como ele mesmo diz, “na maior loja de cosméticos do mundo”, é um migrante bem-sucedido. Levando em conta seu ponto de partida e seu ponto de chegada (até hoje), não podemos deixar de ver aí um “resultado feliz”, um “êxito”, como, aliás, ele próprio reconhece. Ainda que por caminhos distintos – e guardadas as devidas proporções10 10 Não podemos perder de vista, por exemplo, que Manuel e Pedro são bem mais velhos do que James e se encontram há muito mais tempo do que ele na Europa (ver quadro 1). Nesse sentido, não pretendemos “medir” o sucesso dos três, mas apenas apontar o crescimento (pessoal e profissional) que cada um teve na sua trajetória de migrante. –, essa evolução de um ponto ao outro se repete, tanto no caso de Manuel quanto no de Pedro, o que também faz deles sujeitos bem-sucedidos.

Voltemos nossa atenção, porém, para as motivações que levaram James e os demais “narradores” a rumarem para a Europa, o que incide sobre um primeiro tema (imposto), que denominaremos TI1. Para Maingueneau (2005, p.88), os temas, integrados semanticamente a um dado discurso por meio do sistema de restrições que o rege, dividem-se em temas impostos, aqueles que são obrigatórios para que um discurso seja bem aceito, e temas específicos, os que são próprios a um dado discurso. Ora, num discurso que se proponha a falar da experiência migratória de um sujeito, não podem faltar temas que contemplem as motivações que o levaram a abandonar seu país de origem, assim como a avaliação que ele faz do próprio processo migratório (em seus aspectos positivos e negativos).

Nesse viés, consideramos que as perguntas do roteiro da entrevista funcionam como temas impostos, a partir dos quais outros temas (específicos) vão ganhando corpo ao longo dos relatos. Esclarecemos também que não vemos como trabalhar com os temas (impostos ou específicos), sem analisar paralelamente o vocabulário. Se, para Maingueneau (2005, p.83-84), “a palavra em si mesma não constitui uma unidade de análise pertinente”, destacamos, por outro lado, a relevância de se observar como, em função de seus usos, as palavras se comportam (dialogam, polemizam, complementam-se) no conjunto dos discursos.

No que tange ao TI1 (motivações para a migração), James conta que sonhava em conhecer a Noruega. Já trabalhando em São Paulo, conseguiu juntar dinheiro para conhecer o país. Foi, voltou e, como ele mesmo revela: “minha cabeça, meu mundo abriu assim, sabe? E aí eu disse: ‘Meu Deus, eu quero voltar.’ [...] ‘Europa, eu vou voltar’”. Já nesse trecho emerge um tema (específico) que, como veremos, atravessa a narrativa de James (e dos demais entrevistados): a determinação, que pode ser observada no modo como o desejo (“eu quero voltar”) é modalizado em certeza (“Europa, eu vou voltar”).

Movido por essa “fome de Europa” (motivação pessoal), o amazonense passou, então, a pesquisar como faria para entrar legalmente no continente. Conforme ele mesmo confessa, a França não era sua primeira opção. Influenciado, porém, por uma amiga que queria ir para lá, tentou primeiramente um visto de estudante, mas desistiu em função dos altos custos. Acabou conseguindo um vacance travail, um visto específico para pessoas de 18 a 31 anos que permite ficar um ano na França. Pediu demissão do trabalho em São Paulo, juntou todas as economias e, tendo obtido o tal visto, mudou-se para a França “com a cara e a coragem”, como se diz popularmente. Viveu primeiramente em Rouen, onde trabalhou num restaurante (num bistrô) e, depois, em Paris, onde conseguiu um emprego como consultor de beleza numa das maiores lojas de cosméticos da cidade. Foi onde o encontramos.

Manuel, por sua vez, confessa que “a vida no Brasil estava muito difícil” e, com isso, ele acabou se envolvendo com pirataria. Preocupada, a mãe, que já trabalhava em Londres, resolveu levá-lo para lá (migração por reunião familiar). Estudou numa escola de inglês em torno de dois meses e, depois, começou a trabalhar como ajudante de cozinha num restaurante. Foi quando conheceu sua atual esposa. Os dois foram morar juntos em outra cidade, mas ele continuou trabalhando em Londres, desta vez, como garçom. Os primeiros empregos foram com brasileiros, mas Manuel acabou preferindo trabalhar com ingleses. Como ele diz: “Não tenho nada contra brasileiros, claro, né? Mas se eu tô aqui, [o] que eu tenho que fazer é [...] quase infiltrar no jeito de vida deles, né? Você tem que imergir no jeito de vida deles aqui para aprender, sabe?”.

Como indicam os verbos infiltrar e imergir (no modo de vida inglês), a integração à nova sociedade (tema específico) é fundamental para o aprendizado (e, acrescentamos, para o sucesso). Bartram et al. (2014BARTRAM, D.; POROS, M. V.; MONFORTE, P. Key Concepts in Migration. London: Sage, 2014., p.83) definem integração como “o processo por meio do qual os imigrantes ganham filiação social e desenvolvem a habilidade de participar de instituições-chave no país de destino”11 11 No original: “The process by which immigrants gain social membership and develop the ability to participate in key institutions in the destination country”. . Hoje, como mostra o quadro 1, Manuel é empresário e, em sua firma de energias renováveis e bombas de aquecimento, emprega, inclusive, mão de obra inglesa.

Finalmente, o que levou Pedro a Portugal foi, segundo ele, a falta de oportunidades no Brasil (motivação econômica). Vindo do interior de Minas Gerais, de uma família numerosa e sem muitos recursos financeiros, ele se mudou aos 13 anos para Belo Horizonte, onde estudou por dois anos num colégio interno. A mãe veio, em seguida, com os irmãos mais novos. Conforme ele explica:

No Brasil nossa vida sempre foi muito dificultosa, né? Sempre teve muito trabalho [...] Era trabalho todos os dias, trabalho todos os dias e esperando oportunidade no final de semana, que é aquela coisa pra gente desafogar, né, um pouquinho do trabalho e esperar a segunda-feira pra voltar pro trabalho de novo. Na verdade, não tinha muito prazo pra outras coisas, né?

Chama a atenção nesse trecho a repetição da palavra trabalho, intensificada pela expressão temporal todos os dias e pelo marcador de pressuposição de novo, indicando um cotidiano duro no Brasil, voltado basicamente para a sobrevivência, sem que o sujeito tenha tempo e abertura para se dedicar a outras coisas, para “arriscar”. Em Portugal, a vida inicialmente também não foi fácil para Pedro. Diz ele: “Quando cheguei, trabalhava em hotelaria, restauração e era todo dia seis e meia da manhã; era uma coisa de ganhar tipo cinco euros a hora. Então, esses primeiros anos que eu passei pela Europa foi muito difícil”. De fato, dados levantados por Egreja e Peixoto (2015EGREJA, C.; PEIXOTO, J. Os imigrantes brasileiros e o mercado de trabalho. In: PEIXOTO, J. et al. (org.). Vagas atlânticas: migrações entre Brasil e Portugal no início do século XXI. Lisboa: Mundos Sociais, 2015, p.59-87., p.76) dão conta de que “quase um quarto dos imigrantes brasileiros para Portugal está sujeita a condições de trabalho muito precárias”, ocupando segmentos medianamente ou pouco qualificados, com baixos rendimentos e extensas jornadas por semana.

Paralelamente, porém, Pedro teve a chance de trabalhar com cultura (brasileira). Começou a dar aulas de dança e a promover uma noite de forró por semana até que, conforme conta, “vi que o forró, a parte cultural tava me puxando mais e [...] quase dois anos depois que eu tava em Portugal, eu só comecei a me dedicar à música, à dança, à promoção cultural”. Hoje, ele vive de cultura já há 9 anos. Tem um espaço onde ensina e divulga música e dança brasileiras e a partir do qual promove grandes festivais que atraem gente do mundo inteiro (e não apenas da Europa). Em síntese, como ele próprio faz questão de dizer: “Olha, o nosso mercado acabou que a gente criou; não existia”, ou seja, Pedro apostou na novidade. Já o fato de ele e outros migrantes brasileiros rumarem para Portugal se explica, segundo Pedro, pela “proximidade” com o Brasil (sobretudo, pela língua comum), pelo custo de vida mais baixo (quando se compara Portugal com os demais países da Europa) e pelos momentos difíceis por que o Brasil está passando, o que, na sua opinião, tem incentivado o deslocamento da “galera da cultura de todos os setores” para a Europa.

Um tema específico, abordado por Manuel e, sobretudo, por Pedro (mas silenciado por James), são as dificuldades e a falta de oportunidades que caracterizam a vida do (futuro) migrante ainda no Brasil. Como vimos, o termo difícil/dificultosa aparece no relato de ambos, tornando-se uma espécie de palavra-chave – um ponto de cristalização semântica, diria Maingueneau (2005)MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. – na parte de suas vidas passadas no país natal.

Porém, considerando que o percurso do migrante implica três momentos básicos: a partida, a chegada (e a adaptação) ao novo país e o (possível) retorno ao país natal, veremos que o índice de avaliação difícil também se aplica aos momentos iniciais do migrante no país de acolhida. Assim, todos os três trabalharam em empregos menos qualificados quando chegaram em solo europeu, o que aponta para o tema (específico) da exploração da mão de obra estrangeira, ainda que apenas Pedro faça menção direta a isso quando conta que ganhava cinco euros por hora de trabalho pesado.

Além disso, James e Manuel tiveram que aprender uma língua que não dominavam: respectivamente, o francês e o inglês. Nesse ponto, os já citados temas (específicos) da integração e da determinação do sujeito para vencer os obstáculos que surgem no seu caminho se articulam – e talvez essa seja uma das principais razões para explicar o sucesso do migrante. Vejamos como Manuel narra seu aprendizado do inglês:

Ah, a língua, o inglês, falar inglês foi o mais difícil pra aprender. [...] no meu tempo livre, eu pegava o jornal, o jornal de graça do metrô e que acha em qualquer lugar em Londres, né, levava pra casa e eu copiava o jornal. Não fazia ideia nenhuma do que significava, como é que falava, mas eu copiava. Então, depois de um tempo, quando tudo começou a fazer um pouco mais de sentido, eu já fui comunicando mais rápido, sabe, porque [...] eu já tinha visto a palavra, sabia como escrevia.

A tenacidade de Manuel, copiando coisas que não entendia, é comparável à determinação e à disposição de James tanto para aprender o francês quanto para conseguir um emprego na sua área de atuação (consultoria de cosméticos). O amazonense admite que sua maior dificuldade – somada aos problemas financeiros iniciais – foi aprender a se expressar na língua dos outros. Para tanto, passou muito tempo repetindo as mesmas coisas, frases que aprendeu no restaurante onde trabalhou em Rouen. Ilustrando, ele diz: “Por exemplo, Est-ce que vous voulez commencer par un apéritif? Ou le menu avec la carte des vins? [...] Então, isso foi uma coisa que fiquei treinando por dias”. Mas o mais instigante foi a forma como ele lidou com uma primeira recusa de emprego numa loja de cosméticos em Rouen (da mesma rede, aliás, que aquela em que ingressou, posteriormente, em Paris):

E aí eu fui recusado [...] só que não desisti. Eu acabei desenhando, nesse mesmo dia que eles me recusaram, assim: Bienvenue chez X [nome da loja] e aí eu fiz umas bandeirinhas, coloquei minha assinatura de contrato e eu botei na minha frente (risos). Todo santo dia eu olhava pr’aquilo. Todo santo dia eu olhava pr’aquilo. E aí minha amiga, tem uma amiga minha que também tava com o mesmo visto que o meu, ela me mandou uma vaga por WhatsApp [...] E era pra Paris, não era pra Rouen.

Passemos para o segundo tema imposto (TI2): os aspectos positivos e negativos da migração, o que inevitavelmente leva a comparações entre o Brasil e o novo país, com destaque, no plano do vocabulário, para os índices de avaliação. Alguns desses aspectos já foram contemplados no TI1, o que mostra que os temas delineados no roteiro não são estanques, mas “dialogam” uns com os outros ao longo dos relatos.

Assim, para James, a maior vantagem de sua mudança para a França foi a qualidade de vida. Se o Brasil é caracterizado positivamente como “uma potência muito grande”, falta-lhe, porém, uma (infra)estrutura e uma educação melhores, tais como aquelas que existem na França e na Europa, em geral. Já a maior desvantagem, como conta, é que o simples fato de ser migrante implica para o sujeito enfrentar muitas barreiras. O vocábulo barreiras, remetendo às dificuldades vivenciadas pelo migrante em seu processo de integração a um novo país, sobretudo nos momentos iniciais, implica, para James, não ter os mesmos direitos que os nativos (por exemplo, direito à sécurité social) e ser excluído quando não se fala “a língua deles”.

Quanto aos franceses, destaca o fato de eles serem, no geral, mais rígidos que os brasileiros e de nunca estarem contentes, o que os leva a reclamar o tempo inteiro. Diz, porém, que eles costumam ser educados e que tratar bem o outro, no caso, o prestador de serviço, independe da nacionalidade: já presenciou situações em que os próprios brasileiros se comportam de forma grosseira com seus conterrâneos: “Ah, é brasileiro. Agora você vai me servir”.

Um tema (específico) que emerge no seu relato é o poder aquisitivo do migrante brasileiro na França: “Aqui você ganha o equivalente, mas você consegue aproveitar mais o seu salário [...] Então, assim, hoje eu consigo ter coisas, ter marcas que no Brasil eram extremamente caras e aqui já são populares, são mais baratas” e complementa: “Com o nosso salário, a gente consegue comprar, né? O fato da mobilidade, você consegue viajar”. Conta que foi passar o Natal na Ucrânia e que pagou barato, comparativamente ao que se paga para viajar no Brasil. Em suma, na visão de James, há na Europa maior acesso a bens e serviços.

Já Manuel considera os ingleses tolerantes, desde que o migrante procure adaptar-se às novas condições de vida (língua, normas sociais etc.). Dos três ele é o que mais insiste no tema da integração, sendo inclusive bastante categórico quando toca no assunto, como se pode observar em: “Eu acredito que, se você vem pra cá, você tem que aprender a língua do país [...] Você não quer falar inglês? Não vem pra cá. Não quer aprender como se vive aqui? Não vem pra cá, vá pra outro lugar”. Chama a atenção o uso da modalidade deôntica (indicando obrigatoriedade) na construção ter que... e nos imperativos, bem como o uso genérico de você, no sentido de qualquer pessoa na mesma situação. Em relação ao Brasil, diz que é um país bonito, mas “atrapalhado”, subdesenvolvido.

Pedro, como vimos em TI1, aborda a questão das oportunidades que, na sua opinião, são maiores em Portugal, o que lhe permite “fazer o que gosta” (e viver disso), apesar de admitir que o aumento da especulação mobiliária em Lisboa (onde vive) fez, paralelamente, subir o custo de vida. Destaca também o fato de o trabalho como promotor cultural permitir-lhe conviver com grandes artistas (músicos, cantores), sobretudo brasileiros, que vão se apresentar em terras portuguesas. Quando fala, porém, do Brasil, utiliza vocábulos marcados por uma axiologia negativa, citando problemas como a violência, a falta de abertura (política) e a precariedade do transporte público. Entre os três entrevistados, Pedro é o único que aborda questões relacionadas à (falta de) segurança no Brasil e que admite sentir saudades de “certas coisas que só teria no Brasil”, ou seja, “coisas simples da vida mesmo; por exemplo, tá no interior, poder comer o que planta, poder tá próximo da família também”. Trata-se, pois, de temas específicos sobre os quais James e Manuel silenciam.

O próximo tema imposto: o olhar do nativo sobre o migrante, sobretudo brasileiro (TI3), acaba direcionando o discurso para o tema do preconceito e da discriminação. Esse tema está de tal forma imbricado em TI3 que talvez não se possa falar propriamente em tema específico. De qualquer forma, comparando as narrativas, observamos que, em linhas gerais, os portugueses são os mais explicitamente xenófobos, enquanto os franceses e os ingleses são mais sutis (pelo menos, no que se refere aos brasileiros). Vejamos como Pedro, Manuel e James (nessa ordem) abordam tal questão:

No início, quando eu cheguei, quando eu trabalhava em hotelaria e restauração, casos de xenofobia e racismo eram constantes principalmente pelo fato de [eu] trabalhar com pessoas mais velhas, né? Então, a gente trabalhava no hotel com retornados de guerra, caras que foram pra guerra, os velhos, então, galera totalmente lesada [...] essa cena do “volta pra tua terra” talvez seja umas das frases mais emblemáticas da bandeira do racismo [...] Então, essa é uma frase bem comum em Portugal, em geral, principalmente com o brasileiro. A gente ouviu muito esse “volta pra tua terra”.

De fato, embora algumas enquetes feitas com portugueses apontem para uma imagem positiva dos brasileiros, vistos como “simpáticos e de trato fácil” (MARQUES; GÓIS, 2015MARQUES, J. C.; GÓIS, P. Processos de integração dos imigrantes brasileiros na sociedade portuguesa. In: PEIXOTO, J. et al. (org.). Vagas atlânticas: migrações entre Brasil e Portugal no início do século XXI. Lisboa: Mundos Sociais, 2015, p.109-134., p.117), pesquisas recentes nas redes sociais têm demonstrado posturas bastante preconceituosas e discriminatórias em relação a eles – e, portanto, não apenas entre pessoas mais velhas, como aponta Pedro. Valle-Nunes (2020VALLE-NUNES, L. H. As redes sociais e a construção dos antagonismos: a imigração brasileira em Portugal representada em comentários do facebook. Matraga, v. 27, n. 49, p.100-116, jan./abr. 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/44154/33376.Acesso em 17 de julho, 2020.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p.107), por exemplo, examinando comentários públicos de páginas de jornais portugueses no Facebook, lista alguns índices de avaliação bastante depreciativos com que os internautas caracterizaram os migrantes brasileiros: velhacos, ilegais, parasitas, infiltrados, impostores, criminosos, idiotas, corruptos, não civilizados, delinquentes, arrogantes, mentirosos, ignorantes, estúpidos, podres, entre outros. Ou seja, parece-nos que os brasileiros são bem aceitos, desde que não “ameacem” os portugueses, o que ocorre, por exemplo, na disputa por postos de trabalho ou por vagas em universidades.

Já Manuel, embora afirme, como vimos, que os ingleses, no geral, são tolerantes, admite, por outro lado, que eles têm preconceito e que não é em relação a uma (ou mais) nacionalidade(s) específica(s). Ele resume seu ponto de vista: “Ou você é inglês, ou não é”, o que remete à dicotomia nós (nativos) vs. eles (não nativos/estrangeiros), frequentemente citada em contextos migratórios. Lembra que, num de seus empregos como vendedor, quando a visita era agendada e indicavam o seu nome, alguns clientes ingleses perguntavam: “Ah, o Manuel é de onde?” O gerente da empresa, que era muito experiente, respondia: “Ele é daqui, mas acho que os pais dele são do Brasil”. Mas o cliente insistia: “Não pode mandar um inglês, não?”, numa clara atitude discriminatória. Hoje, como empresário bem integrado ao estilo de vida inglês (provavelmente, uma das razões do seu sucesso), ele próprio confessa que assume essa postura:

Por exemplo, na minha empresa agora da maneira que a gente marca consulta com os clientes na casa deles, primeiramente o pessoal de venda não tem imigrante. A gente não pega. Pode falar que é uma discriminação nossa, mas é um negócio, né? Então, eu evito esse problema [...] Outra coisa: quando a gente marca a consulta [...] no primeiro estágio, é marcada sempre com um nome fictício. [...] A gente sempre dá um nome inglês. Então, a gente tem o mesmo nome sempre. Era Craig Johnson; agora mudou para Bruce Mellow. Tem que ser nome branco (aspas), sabe?

James, finalmente, considera que quem sofre mais preconceito na França são os africanos e os árabes. Afirma que nunca foi discriminado por ser um migrante brasileiro: “A gente não é tão mal visto quanto outros, né, de outros países. [...] Eles não têm nossa nacionalidade como uma nacionalidade que empesta, sabe, o país deles”. Na opinião de James, isso se deve ao fato de os franceses estarem mais “familiarizados” com os brasileiros: “Quando a gente fala que é brasileiro, eles tentam falar uma palavra ou outra [...] Brasil, Neymar, obrigado!”. Chama a atenção o uso do vocábulo familiarizado, que, no cotexto, “polemiza” com empestar, indicando a proximidade (aceitação) e o distanciamento (recusa, estranhamento) entre a cultura francesa e as demais.

Quanto ao TI4, relativo ao contato dos entrevistados com brasileiros e nativos em solo europeu, Pedro, que se casou com uma portuguesa, limita-se a dizer que seu contato maior é com estrangeiros: 90% de seus alunos são portugueses e nativos de outros países como a Alemanha e a França, sendo seu contato com brasileiros mínimo. Isso parece indicar a chave do seu sucesso como migrante e como empresário, embora ele mesmo não o afirme.

Observarmos, por outro lado, na fala de James e, mais claramente, na de Manuel, a ideia segundo a qual “mergulhar” na cultura do outro implica, de certa forma, investir no relacionamento com nativos e estrangeiros. Mais do que isso: implica falar o inglês ou o francês, inclusive, com os próprios brasileiros (ou com os portugueses). James, por exemplo, divide apartamento com outro brasileiro que, como explica, tem as mesmas ambições que ele (James). Então, eles só se falam em francês; não usam o português: “A gente realmente quer ter em vista que cê tá na França é pra falar francês”. As ditas ambições (de plena integração à cultura francesa) dos dois amigos opõem-se, segundo James, ao “conformismo” dos brasileiros que só se comunicam entre si em português e, portanto, não avançam na língua (nem – acrescentamos – na adaptação ao estilo de vida francês, o que parece ser essencial para o sucesso).

Manuel, por sua vez, diz que atualmente seu contato com brasileiros se limita a relações familiares: “É mais uma escolha que eu faço, sabe?”. E complementa: “Tô sempre envolvido com ingleses ou britânicos ou imigrantes de outros lugares. Então, a língua comum tem que ser o inglês”. Mesmo sendo casado com uma portuguesa, admite que em casa eles também só falam inglês, inclusive com os filhos, ficando o português restrito ao contato com as respectivas famílias e com um ou outro amigo que aparece e não domina o inglês. Esse “envolvimento” com a língua estrangeira se revela na dificuldade que Manuel apresenta, em alguns momentos da sua entrevista, para se expressar na língua materna, levando-o seja a utilizar vocábulos ou frases inteiras em inglês (code switching), seja a solicitar a ajuda da entrevistadora, como se pode constatar em: “Ah, pra mim, eu tô, como é que fala settled? Ah, estabelecido aqui. Quando a gente sai de férias, falava: ‘Let’s go home, home is in England’”.

Essa última fala de Manuel já nos conduz ao último tema imposto (TI5): as motivações para um possível retorno ao Brasil. Ora, se como afirmam Blanchard et al. (2016BLANCHARD, P.; DUBUCS, H.; GASTAUT, Y. Atlas des immigrations en France. Paris: Autrement, 2016., p.64), o retorno ao país natal, seja ele periódico ou definitivo, é uma perspectiva sempre presente na vida do migrante, vejamos como os três entrevistados lidam com essa questão.

James, que está há menos de um ano em Paris, afirma que voltará oportunamente ao Brasil para visitar a família e para lançar a marca (de cosmético) que pretende criar, mas não pensa num retorno definitivo, uma vez que não quer abrir mão da qualidade de vida que conquistou na Europa. Pedro também descarta a possibilidade de um retorno definitivo em função do panorama atual do Brasil, que, segundo ele, é desanimador, sobretudo para quem quer viver de cultura. Conta que ficou seus primeiros seis anos de Europa sem pisar no Brasil, mas, sobretudo depois que a filha nasceu, tem ido com certa frequência (duas vezes por ano) para rever a família e, como ele mesmo metaforiza, para “voltar a beber da água” das origens. Reconhece que o trabalho que faz com a cultura brasileira é “bem mais valioso” no exterior, mas diz que gostaria de desenvolver um projeto para tirar as crianças da rua, sobretudo na sua cidade natal, servindo, pois, como modelo, como exemplo para elas:

Eu queria fazer algo pra dar oportunidade pra criançada [...] porque onde eu cresci, a gente não tinha nada, não tinha nada pra onde olhar. Tinha a banda de música da cidade, aquela coisinha assim e tal, mas nunca algo que puxou pelas crianças, tirou a criançada da rua pra falar “Olha fulano de tal aqui, saiu daqui e conseguiu dar certo, conseguiu fazer alguma coisa”. A gente não tinha espelho, nem ninguém tinha se dado bem.

Fazendo coro com James e Pedro, mas sendo bem mais categórico do que eles, Manuel diz que não tem nenhum interesse em retornar ao Brasil, nem esporadicamente. Depois de passar 16 anos em Londres, ainda não voltou ao país natal. Reafirmando seu

“pertencimento” à Inglaterra, como vimos em “Let’s go home, home is in England”, conta que a única coisa que lhe faz falta é o clima, mas conclui: “não tenho saudade”. No mais, julga que está bem estabelecido e que tem acesso a tudo de que precisa para viver bem. Em suma: ao caracterizar o projeto de retorno ao Brasil, mesmo para visitas esporádicas, como algo fora de questão, é como se Manuel se recusasse a resgatar um passado que quer esquecer.

Explorados os temas e o vocabulário, sigamos para o terceiro plano da semântica global de Maingueneau (2005)MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. mobilizado neste artigo: trata-se do modo de enunciação. Para o autor, todo discurso está associado a uma “maneira de dizer” específica (recuperada por meio de índices como o “tom”, a escolha das palavras e dos argumentos etc.) que remete a uma “maneira de ser”. Assim, o discurso tem uma “voz” fictícia, que funciona como garantia de um “caráter” e de uma “corporalidade” vinculados àquele que enuncia – e não, evidentemente, ao locutor “de carne e osso” – (MAINGUENEAU, 2005, p.94-97). Em trabalhos posteriores, Maingueneau (2006MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Organização Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. Curitiba: Criar, 2006.; 2008MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. Tradução Luciana Salgado. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto. 2008, p.11-29., entre outros) associará o modo de enunciação à noção aristotélica de éthos, definida, grosso modo, como a imagem de si que o orador constrói no/pelo discurso.

Como se pode ver nos trechos já citados, predomina nos três relatos um tom assertivo que remete a um éthos confiante e determinado. Mesmo nos momentos mais difíceis que cada “narrador” vivenciou, sobretudo no seu período de adaptação ao novo país, não é possível observar um tom de lamento, de tristeza ou de nostalgia que apontaria para um éthos fragilizado, como constatamos em trabalhos anteriores sobre o discurso de migrantes e refugiados (ver LARA, 2018LARA, G. M. P. A(s) voz(es) dos vulneráveis: narrativas de vida de imigrantes e refugiados à luz da análise do discurso. In: BARONAS, R. L. et al. (org.). As ciências da linguagem e a(s) voz(es) e o(s) silenciamento(s) de vulneráveis. Campinas: Pontes, 2018, p.145-166.; 2019LARA, G. M. P. De “Ouvrons les portes” a “Em casa no Brasil”: olhares contemporâneos sobre a migração. Gláuks, Viçosa, v. 19, n. 1, jan-jun 2019, p.79-100. Disponível em: https://www.revistaglauks.ufv.br/Glauks/issue/view/24/27.Acesso em 22 de junho, 2020.
https://www.revistaglauks.ufv.br/Glauks/...
; 2021LARA, G. M. P. Migrations contemporaines et récits de vie en France et au Brésil. In: TAUZIN-CASTELLANOS, I. (org.). De l’émigration en Amérique Latine à la crise migratoire. Bordeaux, Cairn éditions/Morlaàs, 2021, p.1-14.). Se ocorre, às vezes, um tom de crítica e/ou de indignação, isso não é suficiente para abalar a assertividade geral do relato, o que aponta, discursivamente, para sujeitos dispostos e resilientes (caráter e corporalidade). A narração de um episódio em que James atende uma cliente francesa pode ilustrar esse tom de crítica e indignação que, às vezes, perpassa o relato:

Eu mesmo uma vez intimidei uma cliente porque ela tava o tempo inteiro reclamando e eu atendendo, e ela bufando na minha cara. Eu falei: “Não, senhora, é o seguinte: se você não tem tempo, você está com pressa, não tem paciência, você pode vir em outro momento, mas fazer o que você está fazendo pra mim que estou aqui dando para você um serviço, isso não é justo”. [...] Sem julgamentos, mas não justifica a pessoa tratar mal a outra pessoa só porque eu tô ali atendendo você.

A escolha do verbo bufar e a repetição de expressões similares (não ter tempo, estar com pressa, não ter paciência) contribuem para acentuar a grosseria da cliente e justificar o tom crítico e indignado que James assume. Chama a atenção, além disso, a presença de um recurso que aparece nas três narrativas, mas que é mais recorrente na de James: trata-se do discurso direto, que, como já sinalizamos (ver seção 1) é um fenômeno que integra a heterogeneidade mostrada marcada (AUTHIER-REVUZ, 1990aAUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução Celene Cruz e João Wanderley Geraldi. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, p.25-42, jul./dez. 1990a. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636824.Acesso em 22 de junho de 2020.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
; 1990b).

Na releitura que faz da proposta de Authier-Revuz, Maingueneau (1991MAINGUENEAU, D. L’Analyse du discours: introduction aux lectures de l’archive. Paris: Hachette, 1991., p.134) destaca que o discurso direto é uma espécie de teatralização de uma enunciação anterior e, dessa forma, ao restabelecer a própria situação de comunicação, “autentifica” os enunciados relatados, criando um efeito de sentido de realidade. Nas narrativas analisadas, o discurso direto serve, basicamente, para simular um diálogo com o outro (como se vê no trecho anteriormente citado), mas pode também assumir o formato de um “diálogo” consigo mesmo, o que é um recurso bastante explorado por James, sobretudo para explicar as decisões que tomou, como se vê em: “Então, falei: ‘Bom, eu vou passar um ano. O visto me cobra muito mais barato que todos os requisitos’”. Ou ainda: “Então, eu digo, eu disse pra mim: ‘Bom, eu tenho possibilidade’.” Chama a atenção, nesse caso, o uso dos verbos dicendi tradicionais falar e dizer, ao invés, por exemplo, de pensar. Logo, por meio do discurso direto, na simulação de diálogos com o outro (frequentemente, um nativo) ou consigo mesmo, o sujeito cria um efeito de sentido de verdade, dando a impressão de que preservou a integridade e a autenticidade do que foi dito.

Além do discurso direto, outro fenômeno ligado à heterogeneidade mostrada marcada que pode ser observado particularmente na fala de Pedro é o metadiscurso do locutor (ou seja, as glosas com as quais o locutor acompanha o que diz). Trata-se, nesse caso, do uso recorrente de “digamos”. Para Authier-Revuz (1990b)AUTHIER-REVUZ, J. La non-coïncidence interlocutive et ses reflets méta-énonciatifs. In: BERRENDONER, A.; PARRET, H. (Éd.). L’interaction communicative. Berne/Frankfurt/ N.Y. Paris, 1990b, p.173-193., esse tipo de glosa funciona como uma injunção que instaura explicitamente uma enunciação conjunta, com tonalidade de desculpa, para que aqueles que “codizem” se contentem com um termo não muito satisfatório. Vejamos dois exemplos: 1) “Portugal talvez seja o mais próximo, digamos, né, essa porta, né, da Europa.”; 2) “...o forró cresceu, a cultura cresceu, né? E hoje em Lisboa a gente tem um, digamos, um time de luxo de música, né, de música popular brasileira”.

Nos dois casos, Pedro busca instaurar uma enunciação conjunta com a entrevistadora, sinalizando, ao mesmo tempo, que os termos que utiliza – porta da Europa (em referência a Portugal) e time de luxo de música (para o grupo ao qual pertence) talvez não sejam os mais apropriados. Nessa mesma direção – a de criar uma certa empatia com a interlocutora e implicá-la no discurso – constatamos, nos três relatos, a presença maciça de palavras com função fática, tais como sabe, , entendeu.

Quanto ao último plano de análise, lembramos que o termo dêixis, em linguística, refere-se a palavras como “eu”, “aqui”, “agora” (portanto, marcadores de pessoa, espaço e tempo), que só podem ser compreendidas a partir da situação de comunicação em que se inserem. Do ponto de vista discursivo, diremos que, em função do seu sistema de restrições semânticas, cada discurso constrói uma dada dêixis enunciativa espaciotemporal (e – acrescentamos – pessoal) para autorizar e legitimar sua enunciação (MAINGUENEAU, 2005, p.93). As narrativas de vida de James, Manuel e Pedro, como, aliás, as narrativas migratórias, em geral, constroem-se, grosso modo, em duas grandes etapas que se opõem: um aqui-agora no país estrangeiro e um lá-então no país natal. Para nossos três entrevistados, como vimos especialmente na abordagem do TI5, o aqui-agora é considerado mais vantajoso do que o lá-então, o que os leva a excluir a possibilidade de um retorno definitivo ao país de origem.

Em relação à categoria de pessoa, como se pode esperar pela própria natureza do gênero “narrativa de vida”, o emprego da 1ª. pessoa do singular predomina largamente nos três relatos. Mas há também o uso de nós (substituído reiteradamente por a gente, dada a informalidade do discurso), que assume, com maior frequência, valor exclusivo, como em “E aí foi quando a gente viajou: eu para Amsterdã e ela foi direto pra Suíça”, em que a gente significa eu (James) + ela (a amiga); ou tem um valor misto: “No Brasil, a gente perde muito tempo dentro de transporte”, em que a gente implica eu (Pedro) + você + ele(s), ou seja, todos os brasileiros. A utilização do nós inclusivo (eu + você, interlocutora) é bem mais raro, ocorrendo no já citado caso de “digamos”.

você aparece basicamente em três situações: nas simulações de diálogo com o outro (como vimos na fala de James para a cliente francesa: “Não, senhora, é o seguinte: se você não tem tempo, você está com pressa, não tem paciência, você pode vir em outro momento...”); com valor genérico, significando qualquer um na mesma situação, como na seguinte fala de Manuel: “Não tem nada mais frustrante quando, por exemplo, cê [você] tá num ônibus, num metrô ou vendo televisão e não faz ideia nenhuma do que tá acontecendo”; e nos momentos em que o entrevistado se dirige à entrevistadora por meio de recursos fáticos, como sabe, entendeu, olha. Porém, como foi dito, o que predomina nas narrativas é um eu que (se) conta ao outro, seguido de um nós/a gente (sobretudo, exclusivo).

Feita a incursão pelos quatro planos da semântica global de Maingueneau (2005)MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. – temas, vocabulário, modo de enunciação e dêixis enunciativa – acrescidos de outras categorias, como é o caso do discurso direto e do metadiscurso do locutor (heterogeneidade mostrada marcada), resta-nos caminhar para os comentários finais, buscando responder à nossa principal indagação: como explicar, por meio do discurso de James, Manuel e Pedro, o sucesso desses três brasileiros na Europa?

Conclusão

Seguindo o roteiro da entrevista narrativa e adotando uma abordagem comparativa (dimensão horizontal, como já foi explicado), procuramos mostrar, ao longo da análise, como os migrantes se apresentam/se representam em seus relatos (éthos); que imagens constroem do país de partida (Brasil), do país de chegada (França ou Inglaterra ou Portugal) e de suas interações com nativos e com os próprios brasileiros na nova sociedade; e, finalmente, como avaliam a possibilidade de um retorno ao país natal.

Observadas as diferenças entre os três “narradores” e as especificidades dos países para os quais migraram, podemos apreender, a partir dos pontos que aproximam seus relatos, um discurso comum que busca explicar como eles lidaram (lidam ainda) com a situação migratória, conseguindo cada um a seu modo e dentro de suas possibilidades, se dar bem do outro lado do Atlântico. Esse discurso comum, ora dito explicitamente, ora recuperado nas entrelinhas de suas “falas”, esteia-se em três características que, na ótica de James, Manuel e Pedro, são fundamentais para um migrante: 1) a coragem de “arriscar”, de ir em busca de novos horizontes e oportunidades; 2) a determinação de não esmorecer diante dos obstáculos; 3) a disposição de integrar-se plenamente ao país de acolhida, “mergulhando” na nova cultura (língua, estilo de vida) e mantendo boas relações com os nativos. São esses aspectos, afinal, que eles mobilizam e exploram (discursivamente) para justificar essa aparente “receita de sucesso”.

Sem entrar no mérito da proposta, diremos apenas que o mais importante para nós, em consonância com o objetivo que apontamos na Introdução, foi a oportunidade de fazer ouvir essas “vozes marginais” que se cruzam com outras tantas vozes de migrantes (ou não migrantes) no decorrer do tempo mais/menos longo da história da humanidade. O sujeito, portanto, situa o seu discurso em relação aos discursos do outro. Outro que envolve não apenas seu(s) interlocutor(es), mas também outros discursos já constituídos que emergem na sua fala como uma espécie de recorte das representações de um tempo histórico e de um espaço social. O discurso do sujeito se tece, assim, dialogicamente, num jogo de vozes complementares, concorrentes, contraditórias, na “interação viva e tensa” de que nos fala Bakhtin (2015)BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I. A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Bocharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015, p.19-241. [1930-1936])..

  • 1
    Utilizaremos, neste artigo, migração (e seu correlato migrante) que, como postulam Calabrese e Veniard (2018CALABRESE, L.; VENIARD, M. (org). Penser les mots, dire la migration. Bruxelles/Paris: Academia/L’Harmattan, 2018., p.11), é um termo relativamente neutro que descreve simplesmente um processo de mobilidade. Isso nos permite também evitar a dicotomia emigrante/imigrante, já que o emigrante no país de partida é o imigrante no país de chegada. Manteremos, porém, imigrante/imigração (ou emigrante/emigração) em citações de textos que empregam tais termos.
  • 2
    Este artigo resulta de nossa pesquisa de pós-doutorado O discurso de emigrantes brasileiros no contexto europeu, que foi realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, de agosto de 2019 a julho de 2020, com a supervisão da Professora Doutora Beth Brait. No período de outubro de 2019 a março de 2020, fizemos um estágio de Professor Visitante Sênior na Université Paris-Est Créteil - UPEC, com a supervisão do Professor Dominique Ducard. Para esse estágio, contamos com uma bolsa do Programa Institucional de Internacionalização Print/CAPES-UFMG.
  • 3
    No original: “Les représentations communes en matière de circulation des énoncés impliquent une différence entre une sphère qu’on pourrait dire “haute” et une sphère “basse”. Un grand nombre de gens expriment en effet le sentiment de “ne pas être entendus” [...] Leur parole leur apparaît doublement basse : venue d’en bas, de gens sans importance, elle n’est pas entendue, comme s’ils parlaient “à voix basse”. S’impose alors la nécessité du médiateur qui pourra les rendre audibles, faire accéder leur point de vue à la sphère haute”.
  • 4
    Foge ao escopo deste trabalho discutir as formas que essa mediação assume, questão a que Maingueneau (2020)MAINGUENEAU, D. Faire entendre les sans-voix. Argumentation et Analyse du Discours, n. 24, abr. 2020. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/4131.Acesso em 22 de junho, 2020.
    http://journals.openedition.org/aad/4131...
    dedica boa parte do seu artigo.
  • 5
    A concepção de imagens ou representações sociodiscursivas que assumimos neste artigo inspira-se em Charaudeau (2007CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c’est bien. Les imaginaires, c’est mieux. In: BOYER, H. (org.). Stéréotypage, stéréotypes : fonctionnements ordinaires et mises en scène. Paris: L’Harmattan, 2007.; 2015CHARAUDEAU, P. Os imaginários de verdade do discurso político. In: CHARAUDEAU, P. Discurso político. Tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2015, p.185-245.). Muito resumidamente, diremos que se trata de formas de “ver” e “julgar” o mundo que se manifestam por meio do discurso.
  • 6
    6 Na transcrição, a difícil questão de como reproduzir, na modalidade escrita, a oralidade fornecida pelas gravações das entrevistas se impõe ao pesquisador. Utilizamos as normas do Laboratório ICAR da Universidade de Lyon (CALABRESE; VENIARD, 2018CALABRESE, L.; VENIARD, M. (org). Penser les mots, dire la migration. Bruxelles/Paris: Academia/L’Harmattan, 2018.). Para a apresentação dos excertos neste artigo (ver seção 2), introduzimos sinais de pontuação e eliminamos elementos como pausas e hesitações, mantendo, porém, as marcas de oralidade e os “erros” de português (problemas de regência, de concordância, entre outros). Buscamos, dessa forma, a maior fidelidade possível à elocução, mesmo considerando com Barthes (apud DUCARD, 2015DUCARD, D. Dar a palavra: da reportagem radiofônica à ficção documental. Tradução Glaucia Proença Lara e Aline Saddi Chaves. In: LARA, G. P.; LIMBERTI, R. P. (org.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015, p.109-128., p.111) que, na “armadilha da transcrição”, perde-se a “inocência” exposta na fala viva e imediata
  • 7
    Sobre essa questão, ver, por exemplo, Lara e Limberti (2015LARA, G. P.; LIMBERTI, R. P. (org.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015.; 2016LARA, G. M. P.; LIMBERTI, R. C. P. (org.). Representações do outro: discurso, (des)igualdade e exclusão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.).
  • 8
    Lembremos que, no âmbito da ADF, não existe nenhuma metodologia pronta. Cabe a cada pesquisador, em função do seu objeto específico, de seus objetivos, de suas hipóteses de trabalho, enfim, do material que tem em mãos, construir, a partir do dispositivo teórico em que se insere, o seu próprio dispositivo de análise (ORLANDI, 1999ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 1999., p.27).
  • 9
    Além dos planos que citamos – que constituem, para nós, os mais produtivos no exame das narrativas de vida (ver, por exemplo, LARA, 2018LARA, G. M. P. A(s) voz(es) dos vulneráveis: narrativas de vida de imigrantes e refugiados à luz da análise do discurso. In: BARONAS, R. L. et al. (org.). As ciências da linguagem e a(s) voz(es) e o(s) silenciamento(s) de vulneráveis. Campinas: Pontes, 2018, p.145-166.; 2019LARA, G. M. P. De “Ouvrons les portes” a “Em casa no Brasil”: olhares contemporâneos sobre a migração. Gláuks, Viçosa, v. 19, n. 1, jan-jun 2019, p.79-100. Disponível em: https://www.revistaglauks.ufv.br/Glauks/issue/view/24/27.Acesso em 22 de junho, 2020.
    https://www.revistaglauks.ufv.br/Glauks/...
    ; 2021LARA, G. M. P. Migrations contemporaines et récits de vie en France et au Brésil. In: TAUZIN-CASTELLANOS, I. (org.). De l’émigration en Amérique Latine à la crise migratoire. Bordeaux, Cairn éditions/Morlaàs, 2021, p.1-14.) – há a intertextualidade, o estatuto do enunciador e do destinatário e o modo de coesão. Cabe esclarecer que utilizaremos os quatro planos escolhidos de maneira mais abrangente do que faz o autor. Não vemos, porém, discrepâncias entre o que ele propõe e a nossa “releitura” desses planos.
  • 10
    Não podemos perder de vista, por exemplo, que Manuel e Pedro são bem mais velhos do que James e se encontram há muito mais tempo do que ele na Europa (ver quadro 1). Nesse sentido, não pretendemos “medir” o sucesso dos três, mas apenas apontar o crescimento (pessoal e profissional) que cada um teve na sua trajetória de migrante.
  • 11
    No original: “The process by which immigrants gain social membership and develop the ability to participate in key institutions in the destination country”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2021
  • Aceito
    12 Jun 2021
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