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Pandemia, ética e discursos

Vivemos um momento de luto, um luto invisível, numa sociedade que não se permite falar da morte, nem falar da doença, sequer falar do envelhecimento. É preciso que a gente dê uma injeção de perplexidade, então é necessário que não naturalizemos os golpes cotidianos que a democracia brasileira vai levando.

Lilia Schwarcz

Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular que se dispõe todo o existir singular de modo singular e irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória [nuditel’no obiazatel’na]. Este fato do meu não-álibi no existir [moë ne-abili v bytii], que está na base do dever concreto e singular do ato, não é algo que eu aprendo e do qual tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de um modo singular e único.

Mikhail BAKHTIN

Tempo de pandemia. Ainda. Quando propusemos este número, em meados de junho de 2020, não podíamos prever que, ao publicá-lo, em finais de 2021, ainda a estaríamos vivendo. Tem sido um período longo e difícil, mas um momento em que, mais do nunca, nossos posicionamentos éticos diante do outro e da sociedade importam. E eles se expressam nos discursos que nos constituem, constituem o outro e o mundo, expressando valores que nos identificam.

Nossas escolhas revelam a capacidade que temos de entrar em empatia com o outro em todos os momentos do existir. Nosso existir, singular e irrepetível, não nos permite um álibi na vida, no conhecimento ou na arte: somos eticamente responsáveis em nossas respostas ao outro e à realidade. Por conseguinte, neste momento pandêmico, é preciso “pensar certo”, lembrando Paulo Freire no centenário de seu nascimento (1997FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997., p.31), e posicionarmo-nos bem, acreditando nas possibilidades de mudança, particularmente no Brasil de hoje, no qual à crise sanitária se juntam outras, na política, na educação e no meio ambiente, para dizer o mínimo.

O momento é de dor e de luto, os números (de doentes, de óbitos...) aos quais os artigos aludem estão todos defasados, infelizmente. O Brasil já contabiliza quase seiscentos mil mortos quando redigimos este texto. Há, portanto, cada vez mais a necessidade da reflexão e do debate com documentos, fontes, números, dados; é preciso saber ler e compreender. É preciso que nossa grande área de Letras, Linguística e Artes seja socialmente efetiva, ao denunciar e distinguir as narrativas falsas que inundam nossas redes sociais, ao buscar a compreensão da realidade de modo responsável e, ainda que difícil, “esperançar”, como aconselhava Paulo Freire.

Viver a preocupação e a angústia diante da realidade política talvez seja o mais desafiador nesses tempos. Mas este número, com seus sete artigos e uma resenha, mostra uma forma de resistência da academia: continuamos! Continuamos a refletir sobre essa (dura) realidade, produzindo textos que apontam os modos como a compreendemos, os caminhos trilhados, as novas possibilidades, os valores por que lutamos, buscando assumir o dever concreto esperado de cada um de nós. O número representa um compromisso com a ética bakhtiniana, algo que cada um de nós reconhece e afirma de um modo singular e único.

Em merecida homenagem ao filósofo russo, o título de nosso periódico evoca Mikhail Bakhtin e o Círculo de que participou, na antiga União Soviética. Os trabalhos que nos legaram dizem muito de seu pensamento e das ideias que compartilharam, mas a publicação definitiva dessas Obras reunidas, na Rússia, só foi iniciada em 2009. Como lembra Grillo (2009)GRILLO, S. V. C. Obras reunidas de M. M. Bakhtin [Resenha]. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v. 1, n. 1, p.170-174, 1o sem. 2009, p.170. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3007/1938. Acesso em 22/09/2021.
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A recepção da obra de Bakhtin e seu Círculo tem conhecido uma história sinuosa tanto na Rússia quanto fora dela. Autoria disputada, textos incompletos, reedições, desconhecimento de boa parte de seus escritos, ausência de traduções obrigam o pesquisador a se mover em um terreno instável e a lidar com o caráter provisório dos trabalhos disponíveis.

A isso se acrescenta o (pouco) conhecimento sobre detalhes de suas vidas, do contexto mais próximo em que viveram os membros do Círculo, da recepção que tiveram em sua terra natal. Não cessam de surgir, contudo, aspectos que podem lançar novas luzes sobre suas carreiras intelectuais; e eles nos ajudam a compreender o contexto mais amplo e mais restrito em que escreveram, com possíveis implicações no modo como recebemos e lemos a sua obra. É este um dos motivos pelos quais se reveste de grande importância a resenha deste número, sobre o livro “Edições com dedicatórias do acervo ‘Biblioteca pessoal de M. М. Bakhtin’ Biblioteca Nacional Pushkin da República da Mordóvia: catálogo / org. N. N. Ziemkóva; ed. O. A. Páltina. Saransk, 2018. 264 p.”, redigido por Svietlana Dubrovskaia, Oleg Osovski, ambas da Universidade Pedagógica Estadual de Mordóvia Evsiéviev - MGPU / Faculdade de Línguas Estrangeiras, Departamento de Linguística e Tradução, Saransk, Rússia, instituto onde Bakhtin lecionou da década de 1930 até 1969 (cf. BRAIT; CAMPOS, 2009BRAIT, B.; CAMPOS, M. I. B. Da Rússia czarista à web. In: BRAIT (org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009, p.15-30., p.23-24). As dedicatórias dos livros e periódicos presenteados a Mikhail Bakhtin e encontrados em sua biblioteca pessoal ajudam a esclarecer tanto momentos de sua biografia quanto da recepção de seu trabalho, mostrando a construção de seu reconhecimento e de sua reputação como um cientista respeitado e inovador na academia soviética, mesmo antes da publicação da segunda edição de Problemas da poética de Dostoiévski [1963] e da publicação de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais [1965].

Os sete artigos que tratam especificamente deste período de pandemia procuram vê-la de diferentes perspectivas, a partir de objetos muito próprios. O primeiro deles, “Poesia e divulgação científica sobre e sob quarentena. A quarentena poética da Academia Brasileira de Literatura de Cordel”, analisa poemas da literatura de cordel produzidos em campanha da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. A poesia é o modo escolhido para falar da pandemia, permitindo que nos aproximemos de outras e variadas formas de compreender a quarentena que enfrentamos. Sob as lentes teórico-metodológicas da semiolinguística de Patrick Charaudeau, Kim Silva Ramos (Fiocruz, RJ) e Maria Conceição de Almeida Barbosa-Lima (UERJ; Fiocruz, RJ) mostram como os versos do cordel refletem e refratam experiências subjetivas dos cordelistas em relação a temas científicos e representações populares da ciência.

O próximo artigo, “Responsabilidade intergeracional e pandemia de covid-19”, assinado por Marcus Vinicius Borges Oliveira (Instituto de Ciências da Saúde, UFBA, Salvador) e Larissa Picinato Mazuchelli (UEMS/MS, Departamento de Letras, Campo Grande), reflete a respeito do tratamento dado a um dos grupos mais vulneráveis à covid 19 - os idosos, por meio da análise de entrevistas veiculadas na mídia. São as reflexões filosóficas de Bakhtin sobre o ato responsável, os conceitos de arquitetônica e de excedente de visão, assim como a compreensão da alteridade como constitutiva da subjetividade, que permitem aos autores tratar da importância do encontro de gerações na tomada de decisões no enfrentamento da pandemia.

No polo etário oposto, temos as reflexões encontradas no artigo “Narrativas de uma professora de bebês: a busca por réplicas das infâncias em tempos pandêmicos”, de Vanessa França Simas e Guilherme do Val Toledo Prado (ambos da FE, UNICAMP). Os autores analisam, comparam e propõem reflexões a partir do trabalho presencial anterior à pandemia e do trabalho não presencial, quando a inter-relação bebês e professoras passa a ser intermediada pelas famílias, levando a professora a reorganizar bakhtinianamente o trabalho na relação com as réplicas do outro.

O texto seguinte “Um plantão que partiu meu coração”: o trabalho de Enfermagem sob as perspectivas dialógica e ergológica em tempos de covid-19”, analisa o relato de uma enfermeira de UTI, no Facebook, e fala muito próximo a nossas emoções. Márcia Cristina Neves Voges (PUC-RS, Letras, Porto Alegre, RS), utilizando conceitos da Ergologia e da obra bakhtiniana, destaca no texto as posições axiológicas de ordem subjetiva que compartilha a enfermeira em seu relato, assim como as tensões existentes na complexidade de lidar com a morte no dia a dia dos profissionais da saúde.

São aspectos de nossa política nacional polarizada que sobressaem no artigo “#FiqueEmCasa: responsividade ativa na propaganda política institucional frente à pandemia da Covid-19”. Paula Tatiana Silva-Antunes, Gabriela Maria de Oliveira-Codinhoto e Aline Suelen Santos, todas da Universidade Federal do Acre - UFAC, Centro de Educação, Letras e Artes, Rio Branco, Acre, Brasil, utilizam-se de postulados do Círculo de Bakhtin e da Gramática Discursivo-Funcional para analisar propaganda do governo do Estado de São Paulo que responde à campanha do governo federal, ambas se constituindo como base de políticas públicas que orientam as atitudes da população no cenário pandêmico.

Na Rússia, como em todo o mundo, também ocorreu a transição do ensino presencial para o ensino remoto. Três pesquisadoras da Universidade de Finanças do Governo da Federação Russa, Moscou, Irina Klimova, Nina Kozlovtseva, Natalia Tolstova, assinam o texto “A cultura da distância na aprendizagem de língua estrangeira: como evitar o distanciamento social?” Questionando a distância social entre o professor e o aluno, o artigo descreve possíveis maneira de contrabalançar o problema na aprendizagem de língua estrangeira.

Enfim, é com um artigo eminentemente teórico, produzido pelo linguista francês Dominique Maingueneau (Sorbonne Université, Faculté des Lettre, Paris) que encerramos o número. No texto “A análise do discurso diante da crise do coronavírus: algumas reflexões”, partindo da constatação de que os estudos do discurso são um campo de pesquisa inscrito na história, e de que seus pesquisadores devem estar atentos às transformações do mundo, Maingueneau levanta algumas noções para tratar analiticamente deste momento pandêmico, mostrando algumas possibilidades de análise e ainda como as enunciações se querem terapêuticas para responder à crise sanitária. Ao final, levanta algumas questões próprias do momento:

não é só a vida das pessoas que está em causa, mas também os valores fundamentais, como o testemunham os debates que ocorrem: devemos preferir a economia à saúde? Podemos privar os moribundos da presença de sua família? É democrático vigiar a população? Podemos proibir os cultos religiosos? etc.

O momento atual tem nos mostrado, ainda, como os discursos revelam as vulnerabilidades, desigualdades e fragilidades das minorias sociais, étnicas, de gênero... Quem são os mais atingidos pela covid 19? Quem são aqueles que não conseguem praticar o distanciamento social? Quem são os mais afetados pelas fake news? Reflexões pandêmicas...; ou que ganham novos contornos na pandemia...

Como podem ver os leitores, trata-se de um número de reflexões profundas, tanto do ponto de vista teórico quanto em termos dos diferentes discursos analisados e das diversas instituições e autores que congrega: dez pesquisadores brasileiros de sete diferentes universidades (UFAcre, Fiocruz, UERJ, Unicamp, PUCRS, UFBA, UEMS) e cinco pesquisadores estrangeiros de três universidades (Sorbonne Paris, Universidade de Finanças do Governo da Federação Russa, Moscou, Universidade Pedagógica Estadual de Mordóvia, Saransk). Convidamos todos - leitores, autores e colaboradores - a incluir em suas pesquisas esse conjunto que, mais uma vez, dá ao periódico Bakhtiniana a oportunidade de participar ativamente da vida brasileira e internacional. As submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiu chegar a este resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos da linguagem. Nesse sentido, agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) - 2021, Solicitação 18937.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
  • BRAIT, B.; CAMPOS, M. I. B. Da Rússia czarista à web. In: BRAIT (org.). Bakhtin e o Círculo São Paulo: Contexto, 2009, p.15-30.
  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
  • GRILLO, S. V. C. Obras reunidas de M. M. Bakhtin [Resenha]. Bakhtiniana Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, v. 1, n. 1, p.170-174, 1o sem. 2009, p.170. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3007/1938 Acesso em 22/09/2021.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3007/1938
  • SCHWARCZ, L. Entrevista Lilia Schwarcz destrincha o Brasil racista e desigual e alerta: “é necessário que não naturalizemos os golpes cotidianos”. Educação, Edição 278, 09-09-2121. Disponível em https://revistaeducacao.com.br/2021/09/09/lilia-schwarcz-brasil-racista/ Acesso em 22/09/2021.
    » https://revistaeducacao.com.br/2021/09/09/lilia-schwarcz-brasil-racista/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Oct/Dec 2021
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