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Entre a testemunha e a palavra, o dever falar: o testemunho como objeto de uma Antropologia da Enunciação

RESUMO

Este trabalho versa sobre a imbricação entre escrita e testemunho a partir da obra Retrato Calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes. Embora “evidente”, trata-se de uma relação que carrega uma particularidade: aquele que escreve o faz questionando-se sobre o papel de sua enunciação, sobre as significações que a língua inscreve sobre si mesma e sobre a violência. Pautado nos princípios da Antropologia da Enunciação, tal como Flores1 1 Que este trabalho seja um gesto de gratidão e de reconhecimento, ainda que modesto, ao Professor Valdir do Nascimento Flores, à sua obra, ao seu ensino e à sua generosidade. a propõe, o gesto analítico levado a efeito assume a linguística como um conhecimento sobre o homem em sua propriedade loquens, especificamente no instante em que se singulariza no/pelo discurso.

PALAVRAS-CHAVE:
Testemunha; Testemunho; Tortura; Antropologia da Enunciação

ABSTRACT

This work is about the imbrication between writing and testimony, based on the work Retrato calado [Silenced Portrait], by Luiz Roberto Salinas Fortes. Although “evident,” it is a relationship that carries a particularity: the person who writes does so, asking oneself questions about the role of enunciation, about the meanings that the language inscribes about itself and about violence. Based on the principles of the Anthropology of Enunciation, as Flores1 1 May this work be a gesture of gratitude and recognition, albeit modest, to Professor Valdir do Nascimento Flores, his work, his teaching and his generosity. proposes, the analytical gesture carried out assumes linguistics as knowledge about man in his loquens property, specifically at the moment in which one singularizes in/through discourse.

KEYWORDS:
Witness; Testimony; Torture; Anthropology of Enunciation

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Ainda que Retrato calado mobilize personagens dotadas de nome e dedique-se a descrever as torturas que o narrador sofreu em diferentes instituições durante a Ditadura Civil Militar de 1964, Luiz Roberto Salinas Fortes (2018)FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. não escreve uma história dessas personagens ou de seu período de cárcere. Na espessura do texto, essa é a superfície. Embora não seja dito, Retrato calado é uma experiência de linguagem. Cabe lembrar que, em sua ambiguidade, “experiência” guarda, minimamente, dupla significação: a de conhecimento que o homem elabora sobre sua relação sensível com o mundo e a de método científico que, guiado por uma hipótese, busca a categorização de um fenômeno dado a partir da sua observação em condições controladas. Assim compreendida, por um lado, a experiência presume um sujeito constrangido pelas determinações exteriores que vêm a lhe constituir e, por outro, um sujeito em um processo ativo de racionalização, produção da realidade. Temos, portanto, uma disjunção que, longe de ser afastada pela obra, é o ponto nodal a partir do qual se articula. Presume um sujeito que se subjetiva na língua ao mesmo tempo em que se dessubjetiviza (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.) para tomar à língua, e a si mesmo portanto, como objetos de uma investigação.

Nessa tarefa, ao fim de sucessivos deslizamentos entre as ordens da palavra e do sujeito, Salinas chega a algo que encerra seus esforços e dá designação à obra: “retrato calado”. No campo dos aparelhos repressivos, o termo remete a técnicas que, por meio da descrição de aspectos fenotípicos de um indivíduo, recuperam a sua aparência, retratando-a em imagem. Constitui-se como a reconstituição facial de alguém com base nas caracterizações fornecidas verbalmente por terceiros. Retrato calado, pelo avesso, ao opor os pares mínimos /k/alado e /f/alado, sugere que essa reconstituição da imagem do sujeito não se dá através do que é dito, mas por aquilo que é silenciado. Como se daria essa remontagem? Por aquilo que resta dizer, que deveria ser dito, mas não foi? Ou pelo que é impossível de formular?

Esses questionamentos levam à dispersão dos sentidos mobilizados pelo título e convocam uma segunda discussão, especificamente sobre a construção morfológica de “falar” e “calar”, que integram o nome. Uma vez que inscritos em sua forma particípia, os verbos assumem a função de qualificadores e marcam “retrato” enquanto algo já consumado. Se “calar” configura-se diferencialmente como uma negação de “falar”, seria o “retrato falado” uma construção acabada e o “retrato calado” um processo em aberto, ou ao contrário? Há anterioridade entre um e outro? Independente das constatações às quais se chegue, as interpelações postas no/pelo Retrato calado convocam duas instâncias incontornáveis, a da linguagem e a do sujeito, articuladas necessariamente pela locução, constituindo uma realidade de discurso (BENVENISTE, 2005aBENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem [1958]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I 5. ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. Revisão de Nicolau Salum. Campinas: Pontes: 2005a, p.284-293.).

A história tem reivindicado a primeira dimensão em que Retrato calado se inscreve, dando-lhe certa linearidade cronológica, ao passo que a instância discursiva ocupa um segundo nível, no qual o texto é lançado em uma dobra: quanto mais as margens do enunciado se distanciam, mais a fenda se abre, ao ponto em que é possível entrever a posição, simultaneamente, perplexa e racional de um sujeito que tenta apreender simbolicamente a tortura, o terror, a ruptura com o simbólico. É nesta “vertigem lúcida” (Chauí, 2018CHAUÍ, M. Apresentação. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018 [1988], p.7-13.) que Salinas compõe o seu testemunho, e por saber que “a dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por [matá-lo] se irrealiza, transmuda-se em simples ‘ocorrência’ equívoca, suscetível a uma infinidade de interpretações” (Fortes, 2018, p.42FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.), é que advém “a necessidade do registro rigoroso da experiência, da sua descrição, da constituição do material fenomenológico, da sua transcrição literária. Contra a ficção do Gênio Maligno oficial se impõe o minucioso relato histórico e é da boa mira deste alvo que depende o rigor do discurso” (FORTES, 2018, p.43FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

Reunindo trechos de diários pessoais, registros epistolares e relatos autobiográficos, o testemunho de Salinas remonta (a) inúmeras prisões e torturas que sofreu na década de 1970 em instituições como o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais), o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e a OBan (Operação Bandeirantes), em São Paulo. Graduado em Filosofia, Ciências e Letras pela USP (Universidade de São Paulo) e doutor em filosofia na mesma instituição, foi reconhecido por suas teses de doutoramento, Rousseau: da teoria à prática, e de livre-docência, Paradoxo do espetáculo: política e poética em Rousseau. A primeira delas foi escrita logo após sair do claustro. A “dor que continua doendo até hoje” deixou suas marcas: evidentemente traumatizado, a tortura afetou-lhe a fala. É o que comenta Marilena Chauí, integrante de sua banca de doutorado e com quem mantinha relação de amizade, ao recordar que “[a] tese fora considerada excelente, mas precisava ser arguida. Arguiu-se. Arguimos. E Salinas não conseguia ouvir-nos. Cada um de nós sabia que ele não se via naquela sala, mas noutras. Concordamos em que nos entregaria por escrito as respostas, mais tarde. O que fez” (CHAUÍ, 2018, p.10CHAUÍ, M. Apresentação. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018 [1988], p.7-13.). Outras situações são recuperadas por Chauí, como “[q]uantas vezes ouvi Salinas tropeçar na frase iniciada, tateando as palavras, perder o fio da meada e, não podendo alcançar meus ouvidos, tentar alcançar-me os olhos, lançando-me um olhar, misto de pasmo e agonia” (CHAUÍ, 2018, p.11CHAUÍ, M. Apresentação. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018 [1988], p.7-13.), ou as inúmeras vezes que “pedi que me dissesse por que, escritor de clareza incomparável, falar se lhe tornara tão penoso. Às vezes sorria apenas. Outras vezes, ria um riso tão gaguejante quanto sua fala” (CHAUÍ, 2018, p.11CHAUÍ, M. Apresentação. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018 [1988], p.7-13.).

A condição de Salinas, portanto, é a de superstes de um aparelho singular2 2 Aqui, remontamos às palavras que abrem a novela Na colônia penal, de Franz Kafka, publicada em 1919. cuja função, em última instância, é a de destruir a humanidade do sujeito ao desintegrar-lhe a fala e sequestrar-lhe o pensamento (CHAUÍ, 2018CHAUÍ, M. Apresentação. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018 [1988], p.7-13.). Para a testemunha dessa máquina prodigiosa, a quem a fala falta, resta a escrita. E é justamente por esse motivo que a pergunta “por que escrevo?” é reiteradamente mobilizada na obra, e cuja resposta oscila sobre o crivo da culpa: culpar os torturadores, denunciando-os; desculpar o narrador pelas suas delações, causa de sua vergonha, concedendo-lhe anistia.

Desponta dessas observações uma segunda acepção de “calado”: a de aquele que, mesmo tendo sobrevivido à interdição, permanece interditado, já que a “ferocidade da intervenção permanece atuando” (FORTES, 2018, p.28FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Retrato Calado é uma tentativa de reaver a palavra, atrelada à tentativa de reconciliação consigo mesmo. Ironicamente, como diz-nos Antonio Candido, no prefácio da obra, “a recompensa do longo esforço para se encontrar foi a morte” ([1988], 2018, p.18). Logo após finalizar Retrato Calado, o autor falece em 1987, aos cinquenta anos, devido a um infarto.

Dito isso, este trabalho versa sobre a relação entre escrita e testemunho, que, embora “evidente”, carrega uma particularidade: aquele que escreve o faz questionando-se sobre o papel de sua enunciação, sobre as significações que a língua inscreve sobre si mesma e sobre a violência. Tem-se, portanto, um objeto em que a metalinguagem estrutura, pelo menos, dois níveis de enunciação (Benveniste, [1966] 1989BENVENISTE, É. Semiologia da Língua [1966]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.43-67.): a) na relação da língua enquanto interpretante de si mesma e b) na relação da língua enquanto interpretante da tortura. Esta relação, colocada por Retrato Calado, alicerça a busca do sujeito de apreender a tortura como um sistema simbólico, o que, a princípio, parece falhar. A discussão trata, portanto, sobre a testemunha e o testemunho, primariamente, e, em segundo plano, sobre o testemunho e a tortura, uma vez que esta é a condição (lógica) que engendra os primeiros.

Nosso modesto exercício soma-se ao programa que busca uma práxis “mais consoante com o entendimento da linguística como um conhecimento antropológico” (Flores, 2019a, p.278FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.) que se insinua para a proposta de uma linguística do testemunho e da testemunha. Pautados em Flores (2015FLORES, V. N. O falante como etnógrafo da própria língua: uma antropologia da enunciação. Letras de Hoje, v. 50, n. 5, p.90-95, dez. 2015., 2019FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019.) e no campo de investigação que o autor funda sob a designação de Antropologia da Enunciação, cuja categoria ontológica é o falante, não denegamos o desafio que se coloca “para uma linguística que se dedica a olhar para o homo loquens – em especial nos casos em que o falante está abalado em sua condição de falante –” (FLORES, 2019a, p.278FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.), a saber, “o vínculo entre o homem e a sua enunciação numa relação de unicidade e singularidade” (FLORES, 2019a, p.278FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.), sua presença na língua. Segundo Flores (2019a)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300., fundamentado em Benveniste ([1966] 1989BENVENISTE, É. Semiologia da Língua [1966]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.43-67., [1968-1969] 2014BENVENISTE, É. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) [1968-1969]. Tradução de Daniel Costa da Silva [et al]. São Paulo: Editora Unesp, 2014.), reside, aí, a relevância do discurso testemunhal: seja como testis (terceiro), ou como superstes (testemunha), “pouco importa, é sempre como falante que o homem pode falar de sua propriedade loquens” (FLORES, 2019a, p.300FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.).

Em face do até aqui exposto, estruturamos nossa exposição em dois momentos, somados a estas considerações introdutórias e a algumas palavras de fechamento. Distinguem-se a seção 1 Entre nós e as palavras, os emparedados, em que discutimos a testemunha e o testemunho (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; Benveniste, [1969] 1983BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.) a partir da Antropologia da Enunciação (FLORES, 2018FLORES, V. N. A enunciação escrita em Benveniste: notas para uma precisão conceitual. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 34, n. 1, p.395-417, 2018., 2019FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019., 2019aFLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.) atreladas ao estudo do testemunho de Salinas; e a seção 2 E entre nós e as palavras, o nosso dever falar, na qual refletimos sobre a (tentativa de) construção de um segundo nível de enunciação pelo sujeito falante, em que busca sustentar propósitos significantes sobre a tortura.

Assim segue.

1 Entre nós e as palavras, os emparedados

O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante, abarcado pelos Problemas gerais de Linguística (FLORES, 2019FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019.), é um dos textos que fundamentam a Antropologia da Enunciação e cuja ressonância e impacto ainda não são de absoluto precisáveis. Isso devido, principalmente, à sua recente publicação, à complexidade do método que inaugura (que remonta a Humboldt, Saussure e Benveniste, mas vai além deles) e às interpelações lançadas aos princípios epistemológicos da Linguística. Nele, ao refletir sobre O escafandro e a borboleta, romance autobiográfico de Jean-Dominique Bauby (2009)BAUBY, J.-D. O escafandro e a borboleta. 2. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009., Flores se depara com um sujeito que dá testemunho de sua própria experiência na linguagem. Ao fim de sua pesquisa, o autor permite-se formular uma generalização: em casos de sujeitos afásicos, como o de Bauby, “o falante atingido por qualquer perturbação de linguagem vê-se questionado no seu mais fundamental direito, que é o de ser falante, o que se mostra na dissociação entre o semiótico e o semântico” (2019a, p.295).

Na conclusão do capítulo, aspeada, é mobilizada a expressão “linguística do testemunho e da testemunha” (FLORES, 2019a, p.299FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.). Mesmo que mantida a distância, Flores lhe dá o estatuto de “via de abordagem das ‘formas patológicas’” (2019a, p.299) e parece reivindicá-la como designação de uma “configuração teórica que prop[õe] para a linguística” (2019a, p.279). Em sua visão, “uma linguística como conhecimento antropológico não olha para a ‘patologia’, mas para os termos da presença do homem na língua. Isso implica considerar o aspecto relacional – o ‘eu’ e o ‘outro’ – da enunciação” (FLORES, 2019a, p.300FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.). Ao fazê-lo, não denega a necessidade de apreender o sujeito em seu quadro teórico-metodológico e lhe reconhece o status diferencial, que é a propriedade loquens. Embora há pouco anunciada, a linguística do testemunho e da testemunha se desenvolve no Brasil a partir de diferentes teorias, como a própria Antropologia da Enunciação, as quais convergem em um eixo comum: a filosofia da linguagem, de Giorgio Agamben – que pressupõe a sua interpretação dos Problemas de Linguística Geral, de Émile Benveniste, e da filosofia da história, de Walter Benjamin.

Dentre as obras de Agamben que fundamentam a discussão está O que resta de Auschwitz – o arquivo e o testemunho, em cujas páginas o filósofo italiano analisa produções memoriais de sobreviventes do holocausto, especialmente as de Primo Levi, a quem considera “um tipo perfeito de testemunha” (2008, p.26). Levi fala ininterruptamente sobre sua experiência em Auschwitz e é reconhecido pela sua vasta produção literária sobre o tema. Isso não é suficiente para que se reconheça como um escritor, mas como um químico (sua profissão antes de ser preso); “torna-se um escritor exclusivamente para testemunhar” (AGAMBEN, 2008, p.26AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.). Embora seja uma “testemunha perfeita” aos olhos de Agamben, Levi não se considera uma testemunha autêntica. Em suas palavras, “[n]ós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo” (LEVI, 1997, p.47-48LEVI, P. Conversazioni e interviste. Torino: Einaudi, 1997. apud AGAMBEN, 2008, p.42-43AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.). Levi aponta para algo diferencial de sua condição de testemunha, ser sobrevivente.

Com base nesses registros, Agamben retoma os vocábulos em latim testis (terceiro), superstes (sobrevivente) e auctor (autor) como designações para as diferentes características da testemunha (FLORES, 2019aFLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.). Testis, a primeira palavra, “de que deriva nosso termo testemunha, significa etimologicamente aquele que se põe como terceiro (*terstis) em um processo ou em um litígio entre dois contendores” (AGAMBEN, 2008, p.27AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; grifos do autor), ao passo que a segunda, superstes, “indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho” (AGAMBEN, 2008, p.27AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; grifos do autor).

Como assinala Flores (2019a)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300., esses termos são, também, objeto de estudo de Benveniste ([1969] 1983)BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983. no Vocabulário das instituições indo-europeias, especificamente no sétimo capítulo, “Religião e superstição”, de seu segundo volume, Economia, o parentesco e a sociedade. As análises comparativas do linguista confirmam os apontamentos etimológicos feitos para Agamben. Segundo o autor, guardado o sentido de “super que não é própria nem somente ‘por cima de’, senão também ‘mais além’” (BENVENISTE, [1969] 1983, p.404BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; tradução nossa; grifos do autor)3 3 Em espanhol: “super que no es propia ni solamente ‘por cima de’, sino también ‘más allá’”. , superstes é aquele “que pode passar por ‘testemunha’ por haver assistido a uma coisa realizada” (BENVENISTE, [1969] 1983, p.405BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; tradução nossa)4 4 Em espanhol: “aquél que puede pasar por ‘testigo’ por haber asistido a una cosa realizada”. , isto é, que se manteve “‘mais além, subsistiu mais além’ [...] de um acontecimento que aniquilou o resto” (BENVENISTE, [1969] 1983, p.404BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; tradução nossa)5 5 Em espanhol: “mantenerse más allá, subsistir más allá, de hecho, más allá de un acontecimiento que ha aniquilado el resto”. .

Desse modo, superstes distingue-se de testis ao ser considerada a sua etimologia, em que

[...] testis é aquele que assiste como “terceiro” (*terstis) a um assunto em que há dois personagens interessados, e esta concepção remonta ao período indo-europeu comum. Um texto sânscrito enuncia: “todas as vezes que duas pessoas estejam em presença, Mitra está ali como terceira”; assim, o deus Mitra é por natureza a testemunha. Mas superstes descreve à testemunha bem como àquele que subsiste mais além, testemunha ao mesmo tempo que supervivente, bem como “aquele que está sobre a coisa”, que está presente nela (BENVENISTE, [1969] 1983, p.404BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; tradução nossa; grifos do autor) 6 6 Em espanhol: “[...] testis es aquel que asiste como “tercero” (*terstis) a un asunto en que hay dos personajes interesados, y esta concepción se remonta al período indoeuropeo común. Un texto sánscrito enuncia: “todas las veces que dos personas estén en presencia, Mitra está ahí como tercera”; así, el dios Mitra es por la naturaleza el “testigo”. Pero superstes describe al “testigo”, bien como aquel que subsiste más allá, testigo al mismo tiempo que superviviente, bien como “aquel que está sobre la cosa”, que está presente en ella”. .

A partir do vocabulário exposto, Agamben assume a evidência de que Levi é um superstes. Ele relata a história como alguém que a experienciou e sobreviveu apesar dela. Ou, em outras palavras, como observa Flores (2019a, p.281)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300., “Levi, então, é uma testemunha no sentido restrito de superstes, aquele que viveu algo e tenta relatá-lo, nunca se colocando na posição de testis, de testemunha no sentido de terceiro”. Para Flores (2019a, p.281)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300., também é evidente que Bauby é um superstes, visto que seu testemunho se desenvolve a partir da perspectiva de quem vê de dentro. Bauby, por outro lado, distingue-se de Levi porque narra aquilo que vive no presente, ao passo que Levi rememora a experiência passada, dando às suas narrativas configurações temporais distintas. “[N]ão se pode ignorar que a forma de engajamento no ato de narrar é o que os diferencia: a posteriori em relação à cena, em um; contemporaneamente em relação à cena, em outro” (FLORES, 2019a, p.282FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.).

Nesse ponto, Retrato calado constitui uma complexidade singular. Sobre ela há mais questões a se fazer do que, necessariamente, afirmativas a serem feitas. Composta em três seções, a narrativa não segue uma cronologia linear. No primeiro capítulo, “Cena primitiva”, Salinas remonta às suas duas primeiras prisões realizadas em 1974, na OBan/DeIC e no DOPS, respectivamente, cada uma pelo período de dez dias. No segundo capítulo, “Suores noturnos”, recupera trechos de diários datados em 1959, 1960 e 1965. No capítulo derradeiro, “Repetição”, refere-se a outras duas prisões que sofreu na OBAN no ano de 1978, dessa vez, pelo período de dois dias cada. No interstício desta seção, soma-se uma carta escrita em 1977, remetida a um amigo desde Paris. Os relatos foram compilados a posteriori, provavelmente em meados da década de 80, isso o autor explicita. Haveria duas dimensões de “passado”, dado o jogo temporal entre o antes (1959, 1960, 1965, 1977) e o depois (1974, 1978) do advento do pior? Tem-se um testemunho que se se projeta retrospectivamente e prospectivamente sobre a memória?

Salinas fornece indícios de que Retrato calado é pressagiado desde o cárcere e sua produção sofre constantes interrupções. Na presença do Coronel Dalmo, o próprio militar “[p]rofetiza, já no final do interrogatório: quando sair daqui, você vai escrever um livro!” (FORTES, 2018, p.44FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Em ocasião anterior, após uma sessão de tortura, em sua frente, “o capitão metranca na cinta, caneta na mão. Anotando tudo e, de vez em quando, me advertindo para que eu não omitisse nada. Começava, assim, diante da autoridade, o processo de produção dos primeiros capítulos das minhas confissões, logo interrompido, porém, por outro militar” (FORTES, 2018, p.35FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Situação similar se repete quando diz que, “[d]e posse de caneta e papel, meu ímpeto é contar tudo. Velho reflexo de intelectual imbecil? Pois é, começo a escrever minha autobiografia. Como vê o senhor, a mania já vinha desde então” (FORTES, 2018, p.53FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Dos excertos mobilizados, apreendemos dois Retratos: uma primeira produção, relatada nas instituições militares, cujo registro material não existe e que é constantemente interrompida; e uma segunda obra, escrita em liberdade, cuja existência era antecipada pelos próprios torturadores.

Para além do tempo e do espaço em que se inscrevem e da sua existência material, ou não, há relações intersubjetivas que demarcam uma clivagem entre as duas obras. Uma é estabelecida pela relação interlocutiva entre Salinas e seus torturadores através da mediação da própria tortura, levando a um “aprimorado esquema de comunicação” (FORTES, 2018, p.56FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.): é o “ciclo pergunta-choque-grito-resposta ao qual em breve se acrescenta o novo elo” (FORTES, 2018, p.56FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Outra é dada pela relação entre Salinas e seus possíveis leitores, em que seu testemunho é visto como algo capaz de dar existência factual ao que foi vivido, para “não deixar que tudo se perca, se evapore” (FORTES, 2018, p.94FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). A esta soma-se a relação entre Salinas e a sua projeção na narrativa, em que busca “dar a mim mesmo, conceber-me em benefício próprio, uma ‘anistia ampla, geral e irrestrita’, já que ninguém me concede” (FORTES, 2018, p.93FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

Reafirmou-se o que dissemos na introdução do presente estudo: as interpelações postas no Retrato calado convocam duas instâncias incontornáveis, a da linguagem e a do sujeito, articuladas necessariamente pela locução, constituindo uma realidade de discurso. Esses apontamentos fazem-nos retornar ao par “retrato /f/alado” e “retrato /k/alado”, sobre os quais, agora, podemos dispender uma análise mais pontual. Retrato calado assume a ordem de uma obra dupla em cujo verso se apresenta o “retrato /k/alado”, estabelecido no batimento entre Salinas e si mesmo e entre Salinas e o seu possível leitor; em seu anverso figura o “retrato /f/alado”, fala perdida, engendrada pelo curto-circuito da violência. O raro desta relação é que as faces garantem, entre si, seus efeitos de sustentação. “Retrato /f/alado” assume “retrato /k/alado” como objeto de seu testemunho ao tomá-lo como condição lógica de sua existência; o “retrato /k/alado” retira o “retrato /f/alado” do campo daquilo que “oficialmente nunca existiu” (FORTES, 2018, p.94FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.) ao lhe contornar semanticamente.

2 E entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Com base no que dissemos até aqui, não podemos considerar Salinas uma testemunha perfeita, aos modos do que propõe Agamben. Pouco fala de sua experiência. Em verdade, publicamente, nada falou. Sua Chercher en gémissant é publicada postumamente; em vida, Salinas fitou a górgona, voltou para contar, mas voltou mudo; e assim permaneceu até a morte. Sobre ser uma testemunha autêntica, ele mesmo titubeia sobre a ideia. É o que se dá a ler nas passagens em que, conjecturando sobre a recepção de seus escritos, prevê que

[o]s inimigos nos olharão com desprezo: coitado, dirão, até hoje ainda falando de tudo isso. E os traços da aventura menor já foram talvez até apagados dos arquivos, borrados dos anais e certamente suplantados por milhares de outras histórias mais excitantes que se repetem diuturnamente e eu aqui insistindo sobre tão insignificantes eventos, querendo me fazer de importante, buscando talvez a compaixão das donzelas, enfurecido por distinguir-me na exibição das minhas chagas, dedo em não riste, não riam, por favor, pois a dor é séria (FORTES, 2018, p.119FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

A essa hesitação do sujeito frente à legitimidade de seu testemunho, Antonio Candido (2018)CANDIDO, A. Prefácio [1988]. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p.14-18. dá a designação de dignidade angustiada. Em todas as cenas interlocutivas que a obra estabelece, marcadamente, dignidade e sofrimento são referentes. A exemplo, mobilizamos a expressão “seu guarda, olha a descarga...” (FORTES, 2018, p.36FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.), refrão constantemente repetido por Salinas e pelos demais detentos com quem compartilha cela na OBan em sua primeira prisão, em 1970. Ao ser falada, o Policial Militar de plantão aciona a descarga, localizada no muro do corredor e do lado de fora do cárcere. Sobre essa situação “cotidiana”, a testemunha comenta ironicamente “[p]erder a liberdade é também ser privado de qualquer controle sobre os odores próprios e alheios, dos companheiros, amontoados nos aromáticos aposentos” (FORTES, 2018, p.36FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Não raro o guarda demorava, não ouvia ou estava em conversa fiada com seus comparsas. Experiência que Salinas vivencia como “[i]nfantilização impiedosa e indesejável intimidade, quase cumplicidade entre vítima e algoz, empenhados na mesma tarefa de reprodução cotidiana da celestial mecânica. Promiscuidade infamante, elemento a mais no processo de trituração: como resistir?” (2018, p.36).

Passados quatro anos desta primeira situação, e, agora, preso pela terceira vez, “[n]a pequena cela ao lado, ao lado deste novo domicílio que te impuseram, de novo, naquela pequena cela ao lado, que não é possível ver daqui, mas só imaginar, alguém não para de cantar...” (FORTES, 2018, p.87FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). A cantilena que ecoa pelos corredores assemelha-se a misterioso ritual.

Lamento-guincho. Dissonâncias raras que se extraem, mistério do profundo abismo. Dentre as frases melódicas que se repetem com a monotonia da máquina rangendo nas suas articulações, algumas palavras, de repente, distinguem-se nitidamente. De que boca primitiva partirão os arcaicos ruídos graves que se esforçam, como indecisos na imitação de alguma cantiga que se esconde, difícil de copiar, em um canto da memória enclausurada? [...] O realejo continua, disparado [...]. — Olê, muié rendera... Lá lá, lá, rá, ra, ra, ra... grum, grum. Olê, olê, olá... (FORTES, 2018, p.88FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.; grifos nossos).

As observações feitas pelo autor levam-no à constatação de que “[e]ntre a rotina e a resistência, [um]a lenta metamorfose se processa” (FORTES, 2018, p.39FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). A voz, captada pela repetição, remete a uma boca primitiva em cujas articulações ecoam os rangidos monótonos de uma máquina. A configuração linguística dos comentários de Salinas “cria[m] um segundo nível de enunciação, em que se torna possível sustentar propósitos significantes sobre a significância” (BENVENISTE, 1989, p.66BENVENISTE, É. O aparelho formal da enunciação [1970]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.81-90.), cuja materialidade é, em primeira instância, a voz, e, secundariamente, a escrita. Benveniste (1989BENVENISTE, É. O aparelho formal da enunciação [1970]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.81-90., 2014BENVENISTE, É. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) [1968-1969]. Tradução de Daniel Costa da Silva [et al]. São Paulo: Editora Unesp, 2014.) designa essa propriedade da língua, de retornar sobre si mesma, como metalinguagem, tributária de outra, mais ampla, de caráter semiológico, que é a de interpretância: a propriedade de retornar sobre outros sistemas, constituindo-se como interpretante da sociedade (BENVENISTE, 1989BENVENISTE, É. O aparelho formal da enunciação [1970]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.81-90.; ROSÁRIO, 2018ROSÁRIO, H. M. Émile Benveniste e a dupla significância da língua: a distinção semiótico/semântico. Desenredo: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 14, n. 3, p.444-456, set./dez. 2018.). Flores (2015, p.91)FLORES, V. N. O falante como etnógrafo da própria língua: uma antropologia da enunciação. Letras de Hoje, v. 50, n. 5, p.90-95, dez. 2015., referindo-se à metalinguagem em Benveniste, propõe que, ao contornar semanticamente a materialidade da língua, o sujeito (re)produz um saber sobre a economia de seu uso, cuja função é quase etnográfica (em sentido antropológico). O testemunho de Salinas, assim, lança ao mesmo tempo, um gesto etnográfico e autoetnográfico, em que o sujeito reconstrói a sua experiência e a experiência do outro na linguagem, e, portanto, na cultura, atribuindo-lhes significação. Salinas descreve essas experiências como uma infantilização que, dentre outros vetores, age como produtora de infâmia, levando o sujeito a uma paulatina trituração. Daí, talvez, o título do primeiro capítulo: cena primitiva, cujo qualificador reaparece na citação acima destacada para caracterizar a “boca”; significante que, metonimicamente, encerra o órgão pelo qual se produz a voz.

Agamben chega a uma conclusão bastante próxima. A partir das narrativas de Levi, o filósofo (2008) identifica ao menos dois sujeitos engendrados pelo processo testemunhal. O primeiro deles é o superstes, aquele que sobreviveu apesar da experiência, dela pode falar, mas não tem nada de relevante a dizer; o segundo é aquele que, nos termos de Levi, fitou a górgona, chegou ao mais fundo, e que, portanto, tem muito a falar, mas nada pode dizer porque sucumbiu. Frente a essa disjunção, Agamben (2008, p.124AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; grifos do autor) questiona-se: “qual dos dois dá testemunho? Quem é o sujeito do testemunho?”. Ao que responde:

Poder-se-ia dizer, à primeira vista, que seja o homem – o sobrevivente – que dá testemunho do não-homem, do muçulmano. Se, porém, o sobrevivente testemunha pelo muçulmano – no sentido técnico de “por conta de” ou “por delegação” [...], então, de algum modo, segundo o princípio jurídico pelo qual os atos do delegado são imputados ao delegante, é muçulmano que dá testemunho. Contudo, isso significa que quem de fato dá testemunho no homem é o não-homem, ou seja, que o homem não é senão o mandatário do não-homem, aquele que lhe empresta a voz. Ou então, que não existe titular do testemunho; que falar, dar testemunho significa entrar em um movimento vertiginoso, em que algo vai a pique, se dessubjetiviza integralmente e emudece, e algo se subjetiviza e fala sem ter – propriamente – nada a falar (AGAMBEN, 2008, p.124AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; itálicos do autor; grifos nossos).

O testemunho, para Agamben (2008)AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., constitui-se como uma ordem na qual aquele que é destituído de fala leva o sobrevivente a falar, sendo este marcado por uma falta constitutiva, que é a impossibilidade de falar no lugar daquele que contemplou os olhos do monstrum. Consoante a esse impossível de dizer(-se), “o mudo e o falante, o não-homem e o homem ingressam – no testemunho – em uma zona de indistinção na qual é impossível estabelecer a posição de sujeito, identificar a ‘substância sonhada’ do eu e, com ela, a verdadeira testemunha” (AGAMBEN, 2008, p.124AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.). Em Retrato calado, o movimento vertiginoso ao qual se refere Agamben tem base material, principalmente, no modo como o sujeito se inscreve em discurso a partir da categoria de pessoa. Não raro, Salinas toma-se como ele, referência objetiva (BENVENISTE, 2005BENVENISTE, É. A natureza dos pronomes [1956]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. Revisão de Nicolau Salum. Campinas: Pontes: 2005, p.277-283.), e, alternadamente, se enuncia como locutor, eu, subjetivando-se como eu no exercício da linguagem. É o que podemos observar, representativamente, na citação a seguir:

Nu, completamente nu. Obrigam o paciente a sentar no chão. Amarram-me as mãos, que protegem com uma cobertura de pano, uma contra a outra. Forçam-no a manter os joelhos unidos, dobrados contra o peito e envolvidos pelos braços amarrados. No vão entre os braços e o joelho enfiam uma barra de ferro e penduram-na – penduram-me – em dois cavaletes. Rápidos, eficientes, bem treinados (FORTES, 2018, p.23FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.; grifos nossos).

Benveniste (2005, p.288)BENVENISTE, É. A natureza dos pronomes [1956]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. Revisão de Nicolau Salum. Campinas: Pontes: 2005, p.277-283. assinala que “é portanto verdade ao pé-da-letra que o fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Se quisermos refletir bem sobre isso, veremos que não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele mesmo sobre si mesmo”. Salinas, por sua vez, propõe-nos um deslocamento: o fundamento da subjetividade está no exercício da língua, e isso é atestado pelo testemunho que o sujeito elabora sobre si – não há dúvidas; pela mesma via, é desse testemunho que o sujeito dá indícios de sua dessubjetivação, de sua infantilização. Sob essa perspectiva, tomando emprestada a metáfora bakhtiniana, o testemunho assemelha-se a um Jano Bifronte. Ele nos dá a olhar em duas direções opostas, e relacionalmente necessárias, que são a da subjetivação que emerge de uma dessubjetivação e, por via de retorno, de uma dessubjetivação que engendra uma subjetividade. Traduzindo-nos nas palavras de Agamben (2008, p.124AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; grifos do autor), o “sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma dessubjetivação”.

Está elaborada a tese seminal do filósofo sobre a testemunha e o testemunho: “os homens são homens enquanto dão testemunho do não-homem” (AGAMBEN, 2008, p.125AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.). Pela sua negativa irredutível, o não-homem é não-homem porque os homens dele testemunham. A obra dupla, “retrato /k/alado” e “retrato /f/alado”, articula a conciliação entre o homem e o não-homem, ao mesmo tempo em que “[o] que [o] sufoca agora, [...] faz[-lhe] perder o silêncio e reencontrar a escrita” (FORTES, 2018, p.118FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Está aí o que difere Salinas de Bauby e de Levi. O que resta no testemunho de Levi é o muçulmano (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.), que o constitui e dá autenticidade ao que é dito. O que resta do testemunho de Bauby é a ausência de uma posição de fala, que ele mesmo inaugura (FLORES, 2019aFLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.). O que resta do testemunho de Salinas é a perda de si mesmo, marcada no/pelo emudecimento da voz, recuperada pela escrita. Daí nosso estranhamento inicial ao depararmo-nos com o testemunho de um sujeito que diz sobre a escrita como algo que lhe constitui em paralelo à experiência da tortura que lhe destitui a fala. É isto um homem?7 7 Alusão ao título da obra magna de Primo Levi, É isto um homem? As “voltas da manivela [do aparelho de eletrocussão trazem-no agora para a] nova condição de pendurado” (FORTES, 2018, p.35FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.)?

Retomemos, por fim, o terceiro vocábulo latino que Agamben toma para designar as características da testemunha. Auctor. Etimologicamente, o filósofo busca a significação jurídica do termo, referindo-o à intervenção de um tutor que confere autoridade a alguém impossibilitado de realizar um ato legalmente válido. Nesse sentido, Agamben pode relacionar testis, superstes e auctor:

os três termos que em latim expressam a ideia do testemunho adquirem, cada um deles, a sua fisionomia própria. Se testis indica a testemunha enquanto intervém como um terceiro na disputa entre dois sujeitos, e superstes é quem viveu até o fundo uma experiência, sobreviveu à mesma e pode, portanto, referi-la aos outros, auctor indica a testemunha enquanto o seu testemunho pressupõe sempre algo – fato, coisa ou palavra – que lhe preexiste, e cuja realidade e força devem ser convalidadas ou certificadas (AGAMBEN, 2008, p.150AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.; grifos do autor, apud FLORES, 2019a, p.284FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.).

É a partir dessa diferenciação que Agamben (2008, p.150AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., apud FLORES, 2019aFLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.) pode concluir que testemunhar implica um ato de autor e pressupõe uma dualidade essencial, na qual estabelecem uma relação necessária e assumem um valor de caráter insuficiente ou de incapacidade. A leitura de Flores (2019a, p.284FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.; grifos do autor) sobre a tese do filósofo é a de que “se o ato de auctor completa o do incapaz, pode-se também considerar que essa incapacidade (representada pelo ‘muçulmano’) preexiste ao ato de auctor, logo, o integra, dando sentido ao ato de um auctor testemunha”.

Agamben (2008)AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. vê nos relatos de Levi um testemunho que, paradoxalmente, articula a impossibilidade de tudo dizer, por não ser o sobrevivente a testemunha autêntica, à possibilidade de ele dizer algo sobre a sua experiência. A experiência de Bauby, por sua vez, diz-nos Flores (2019a, p.285)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300., “não pode ser referida a um ‘muçulmano’”, o que levaria a entrever O escafandro e a borboleta como uma narrativa despossuída de auctor. Discordando dessa leitura, o linguista retorna ao Vocabulário das instituições indo-europeias e recupera alguns termos do segundo volume da obra, especificamente o capítulo sexto, “O censor e as auctoritas”, do livro dois, O direito, em que Benveniste explora os sentidos de termos relativos às instituições políticas e religiosas. É o caso de censor, autoridade romana cujas funções eram fundamentalmente normativas, e de auctor, nome de agente de augeo, “aumentar, acrescentar” (BENVENISTE, 1983BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.). Sobre auctor, especificamente, diz Benveniste (1983, p.327BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; grifos do autor)8 8 Tradução nossa. Em espanhol: “se califica de auctor en todos los dominios, a aquel que ‘promueve’, que toma una iniciativa, que es el primero en producir alguna actividad, aquel que funda, aquel que garantiza y, finalmente, al ‘autor’. La noción de auctor se diversifica en muchas acepciones particulares, pero se une claramente al sentido primero de augeo, ‘hacer salir, promover’. Por ahí el abstracto auctoritas abarca su valor pleno: es el acto de producción, o la calidad que reviste el alto magistrado, o la validez de un testimonio o el poder de iniciativa, etc., cada vez en relación con una de las funciones semánticas de auctor”. :

[s]e qualifica de auctor, em todos os domínios, a aquele que “promove”, que toma a iniciativa, que é o primeiro em produzir alguma atividade, aquele que funda, aquele que garante e, finalmente, ao “autor”. A noção de auctor se diversifica em muitas acepções particulares, mas se une claramente ao sentido primeiro de augeo, “fazer sair, promover”. Por aí o abstrato auctoritas abrange seu valor pleno: é o ato de produção, ou a qualidade que reveste o alto magistrado, ou a validade de um testemunho ou o poder de iniciativa, etc., cada vez em relação com uma das funções semânticas de auctor.

Diante dos sentidos reconstruídos pelo Vocabulário, Flores (2019a)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300. tem substrato para afirmar que Bauby se trata de um auctor: a testemunha promove uma posição de fala que não o precedia. “A isso se acresce um aspecto primordial: o testemunho de Bauby não diz respeito a uma coletividade; ao contrário disso, ele encontra lugar na solidão de uma experiência que é sua e de mais ninguém” (FLORES, 2019a, p.286FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.).

E sobre o testemunho de Salinas, há um auctor? A primeira questão a ser observada é a de que Retrato Calado possui uma impossibilidade constitutiva, mas ela, também, não é relativa a um muçulmano, como nos relatos de Levi. Poderíamos remeter uma massa cinzenta à obra, sem dúvidas, como os inúmeros desaparecidos e assassinados durante a Ditadura Empresarial-Militar, mas é um elemento textualmente marginal.

Distintamente de Bauby, Salinas não “inaugura”, não promove um lugar de fala singular. Por outro lado, assim como Levi, seu testemunho diz respeito a uma coletividade (todos aqueles entendidos como subversivos ao sistema político ditatorial), e nisso diferem de Bauby em sua solidão. É um auctor? Deixemos que Salinas diga:

[o] delegado rege as operações como o chefe de orquestra. Se não aprecia devidamente o conteúdo dúbio de uma aflita resposta e, irritado, eleva um pouco mais a voz, os executantes, dispostos à sua volta e sensíveis às menores oscilações da voz convertida em batuta, põem em ação seus vigorosos instrumentos. O tom um pouco mais elevado reclama sonora bofetada como se se tratasse de uma consequência silogística. É fácil imaginar o que acontece quando o homem se zanga, como ocorreria, verdade seja dita, poucas vezes no meu caso, quando o regente se exalta, quando fica mesmo bravo pra valer e encolerizado exprime seus sentimentos com um melodioso “seu filho da puta”. Por exemplo (FORTES, 2018, p.50FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

Nesta citação, assim como em outras que já trouxemos, a testemunha refere-se às sessões de tortura pelas quais passou como uma “máquina”, um “processo” e, desta vez, como uma “orquestra”. Entre as três metáforas, é comum um efeito de coletividade, ou, melhor, de “despersonalização”: a “orquestra” não é efeito da “batuta” do delegado, mas um todo harmônico articulado por “vigorosos instrumentos”. Diferente de uma orquestra comum, cujo objetivo é produzir melodia, a orquestra descrita por Salinas tem a função de provocar respostas. “Mas o abismo, na realidade, é imenso entre a literatura e o choque, entre o argumento e a porrada; e o que responder à porrada, como contra-argumentar à descarga [elétrica] se não pelo grito ou pela rajada de fezes?” (FORTES, 2018, p.29FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

Na vertigem do testemunho, o sujeito busca apreender o “argumento” da eletrocussão, da porrada, da bofetada. Parece-nos que este é o projeto que alinhava toda a sua obra: sustentar propósitos significantes sobre a tortura. Para isso, se bem entendemos Benveniste (1989)BENVENISTE, É. O aparelho formal da enunciação [1970]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 5. ed. Campinas: Pontes: 1989, p.81-90., a tortura deveria ser um sistema simbólico, fosse ele semiótico (a ser reconhecido) ou semântico (a ser compreendido), para que a língua pudesse interpretá-lo. Salinas, mesmo, parece chegar a um delineamento, cuja base está no “ciclo pergunta-choque-grito-resposta ao qual em breve se acrescenta o novo elo” (FORTES, 2018, p.56FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). A única razão da tortura é fazer falar, mesmo que para isso seja necessário triturar o sujeito até que só reste uma boca primitiva, infantilizada, e por isso mais sujeita à auctoritas (autoridade).

Como vimos no Vocabulário, auctoritas é o abstrato do nome de agente auctor que, por sua vez, não deriva do sentido atestado de augeo, “tornar maior algo que já existe” (BENVENISTE, 1983, p.327BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.; grifos do autor)9 9 Tradução nossa. Em espanhol: “Para nosotros, ‘aumentar’ equivale a ‘incrementar, hacer mayor algo que ya existe’”. , mas de outro, mais antigo, de “ato criador que faz surgir algo de um meio fértil e que é privilégio dos deuses ou das grandes forças naturais, não dos homens” (BENVENISTE, 1983, p.327BENVENISTE, É. Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. I. Economía, parentesco, sociedad. II. Poder, derecho, religión [1969]. Tradução de Mauro Armiño. Revisão e notas de Jaime Siles. Madrid: Taurus, 1983.)10 10 Tradução nossa. Em espanhol: “acto creador que hace surgir algo de un medio nutricio y que es privilegio de los dioses o de las fuerzas naturales, no de los hombres”. . Desse sentido primeiro de augeo é que derivam auctor e auctoritas. De acordo com Benveniste, a palavra dita com auctoritas acarreta uma mudança no mundo, cria algo, faz existir. O auctor, assim, só engendra uma posição de fala se revestido de autoridade.

Salinas não é auctor, mas é revestido de autoridade. Expliquemos: Agamben (2008)AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. sustenta que o testemunho é um ato de autoria que inaugura uma unidade-diferença entre o homem e o não-homem; Flores (2019a)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300. entende que o testemunho é engendrado pela inauguração de uma posição de fala. Concordamos com ambos, de certo modo, mas Retrato calado demanda uma reformulação do problema: uma autoridade, uma coisa externa, “promove” o indivíduo vivo em sujeito ao colocar-lhe a obrigação de falar. Por anterioridade lógica, a coisa precede o sujeito e, por isso, o sujeito não inaugura uma posição, ocupa aquela que a coisa faz existir. Daí a inquietação de Salinas: “a coincidência repetida me roubou a palavra, comeu a fala, cortou a língua? E agora, convoca os meus dedos-remos, minha caneta âncora, minha visão de espanto para navegarem no Mar das Coincidências” (FORTES, 2018, p.118FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.). Paradoxalmente, a experiência que lhe destitui a voz é a mesma que lhe insta a escrever.

4 Little Is Left to Tell: o testemunho e o que resta (dizer)

Ao encerramento deste texto, é tempo de retomar os títulos de suas seções. O leitor já percebeu, por certo, que se trata dos versos de Mario Cesariny, precursor do movimento surrealista português, que em Pena capital (1957) nos dá boas-vindas a Elsinore. Conforme Cuadrado (2002)CUADRADO, P. Mario Cesariny: You Are Welcome to Elsinore. In: SILVESTRE, O. M.; SERRA, P. Século de ouro: Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002, p.280-285., tem-se uma alusão ao ato II, cena II do Hamlet de Shakespeare, em que o protagonista recebe os amigos Rosencrantz e Guildenstern em seu castelo com a saudação You Are Welcome to Elsinore. Convocados pelo Rei devido à “loucura” do príncipe, estariam eles destinados ao papel de carrascos, mas, por fim, acabam por ser as vítimas, sem que de nada tivessem ciência. Não nos surpreende que “[a] referida obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da ‘prisão’ do Portugal salazarista” (CUADRADO, 2002, p.282CUADRADO, P. Mario Cesariny: You Are Welcome to Elsinore. In: SILVESTRE, O. M.; SERRA, P. Século de ouro: Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002, p.280-285.).

Elsinore, tomado por Cesariny como estetização de uma Portugal alçada à ordem de masmorra pelo totalitarismo, marca em discurso uma clivagem fundamental, uma hiância entre nós e as palavras. Esse espaço, em que algo ainda não é, mas pode vir a ser, é ocupado pelos “emparedados”, emudecidos, “que guardam o seu segredo e a sua posição”, e “as crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício”, a quem resta um “dever falar”. Mesmo que em realidades muito distintas, Cesariny e Salinas, como ninguém, percebem e apreendem a cisão entre o homem e a palavra. Justificada a razão de termos caracterizado Retrato calado, ao mesmo tempo, como testemunho e como experiência de linguagem. Nas palavras de Agamben (2005, p.13AGAMBEN, G. Experimentum Linguae. In: AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.; grifos do autor), quem “realiza o experimentum linguae [é aquele] que [...] [se] arrisca [...] em uma dimensão perfeitamente vazia [...] na qual não encontra diante de si senão a pura exterioridade da língua, aquela ‘étalement du langage dans son étre brut’ de que fala Foucault”.

No que se refere ao gesto que empreendemos, concordamos com Flores (2019a, p.300)FLORES, V. N. O escafandro e a borboleta: ou o testemunho da fala que falta ao falante. In: FLORES, V. N. Problemas gerais de linguística. Petrópolis: Vozes, 2019a. p.273-300.: “uma linguística como conhecimento antropológico não olha para a ‘patologia’ [o trauma], mas para os termos da presença do homem na língua”. Frente ao exercício de relacionar a testemunha, o testemunho e a experiência na produção da subjetividade, chegamos à consideração de que o sujeito é o processo de produção de uma posição enunciativa, e não uma categoria fechada. Ou, nas palavras de Agamben (2008, p.116)AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., “o eu é o que se produz como resto no duplo movimento – ativo e passivo – da autoafeição. Por esse motivo, a subjetividade tem, constitutivamente, a forma de uma subjetivação e de uma dessubjetivação”.

A lógica que estrutura Retrato calado aponta para uma nova leitura da tese agambeniana de que sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma dessubjetivação: Levi constitui-se como sujeito ao dar testemunho da dessubjetivação do muçulmano; Salinas constitui-se como sujeito ao dar testemunho de sua própria dessubjetivação. Essa ideia lembra-nos do prefácio da obra, em que Candido (2018)CANDIDO, A. Prefácio [1988]. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p.14-18. aponta para um processo de reconciliação de Salinas com o passado. Parece-nos justamente o avesso. Salinas procura garantir, por meio da repetição/recuperação da memória na escrita, os documentos da própria presença a uma experiência que, manifestamente, lhe escapa.

[E]les quase tinham conseguido me quebrar, restando-me agora, como único recurso, como último antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever, o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta. É aqui, neste exato momento, que se trava a luta (FORTES, 2018, p.116FORTES, L. R. S. Retrato calado [1988]. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.).

Longe de uma reconciliação, o testemunho de Salinas traduz uma incontornável não coincidência consigo mesmo. Estão, aí, as bases de um exorcismo da escrita que se renova a cada instante.

  • 1
    Que este trabalho seja um gesto de gratidão e de reconhecimento, ainda que modesto, ao Professor Valdir do Nascimento Flores, à sua obra, ao seu ensino e à sua generosidade.
  • 2
    Aqui, remontamos às palavras que abrem a novela Na colônia penal, de Franz Kafka, publicada em 1919.
  • 3
    Em espanhol: “super que no es propia ni solamente ‘por cima de’, sino también ‘más allá’”.
  • 4
    Em espanhol: “aquél que puede pasar por ‘testigo’ por haber asistido a una cosa realizada”.
  • 5
    Em espanhol: “mantenerse más allá, subsistir más allá, de hecho, más allá de un acontecimiento que ha aniquilado el resto”.
  • 6
    Em espanhol: “[...] testis es aquel que asiste como “tercero” (*terstis) a un asunto en que hay dos personajes interesados, y esta concepción se remonta al período indoeuropeo común. Un texto sánscrito enuncia: “todas las veces que dos personas estén en presencia, Mitra está ahí como tercera”; así, el dios Mitra es por la naturaleza el “testigo”. Pero superstes describe al “testigo”, bien como aquel que subsiste más allá, testigo al mismo tiempo que superviviente, bien como “aquel que está sobre la cosa”, que está presente en ella”.
  • 7
    Alusão ao título da obra magna de Primo Levi, É isto um homem?
  • 8
    Tradução nossa. Em espanhol: “se califica de auctor en todos los dominios, a aquel que ‘promueve’, que toma una iniciativa, que es el primero en producir alguna actividad, aquel que funda, aquel que garantiza y, finalmente, al ‘autor’. La noción de auctor se diversifica en muchas acepciones particulares, pero se une claramente al sentido primero de augeo, ‘hacer salir, promover’. Por ahí el abstracto auctoritas abarca su valor pleno: es el acto de producción, o la calidad que reviste el alto magistrado, o la validez de un testimonio o el poder de iniciativa, etc., cada vez en relación con una de las funciones semánticas de auctor”.
  • 9
    Tradução nossa. Em espanhol: “Para nosotros, ‘aumentar’ equivale a ‘incrementar, hacer mayor algo que ya existe’”.
  • 10
    Tradução nossa. Em espanhol: “acto creador que hace surgir algo de un medio nutricio y que es privilegio de los dioses o de las fuerzas naturales, no de los hombres”.

REFERÊNCIAS

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  • AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
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  • BENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem [1958]. In: BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I 5. ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. Revisão de Nicolau Salum. Campinas: Pontes: 2005a, p.284-293.
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  • BENVENISTE, É. Últimas aulas no Collège de France (1968 e 1969) [1968-1969]. Tradução de Daniel Costa da Silva [et al]. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
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  • CANDIDO, A. Prefácio [1988]. In: FORTES, L. R. S. Retrato calado Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p.14-18.
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  • CUADRADO, P. Mario Cesariny: You Are Welcome to Elsinore. In: SILVESTRE, O. M.; SERRA, P. Século de ouro: Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002, p.280-285.
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  • ROSÁRIO, H. M. Émile Benveniste e a dupla significância da língua: a distinção semiótico/semântico. Desenredo: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 14, n. 3, p.444-456, set./dez. 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2021
  • Aceito
    13 Mar 2022
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