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A natureza intersubjetiva do significado em Bakhtin e Wittgenstein

RESUMO

Esse artigo propõe fazer uma comparação entre as filosofias da linguagem de Bakhtin e de Wittgenstein. Em particular, nos interessará a pergunta sobre como esses dois filósofos pensaram a ideia de que o significado linguístico tem necessariamente uma natureza intersubjetiva. Para isso, serão abordados o argumento wittgensteiniano contra a linguagem privada, como discutido nasInvestigações filosóficas, em particular em §258, e a tese bakhtiniana da orientação dialógica do discurso, como discutida no início do capítulo 2 d’O discurso no romance.

PALAVRAS-CHAVE:
Bakhtin; Filosofia; Wittgenstein; Intersubjetividade; Linguagem privada

ABSTRACT

This article aims at comparing the philosophies of language of Bakhtin and Wittgenstein. The main problem to be addressed is how these two authors thought the idea that linguistic meaning necessarily has an intersubjective nature. To this end, the article will address the Wittgensteinian “private language argument,” as discussed in Philosophical Investigations, particularly in §258, and the Bakhtinian thesis of the “dialogical orientation of discourse,” as discussed at the beginning of chapter 2 of Discourse in the Novel.

KEYWORDS:
Bakhtin; Philosophy; Wittgenstein; Intersubjectivity; Private language

1

Em sua clássica biografia sobre Wittgenstein, Ray Monk conta que, no verão de 1933, o filósofo – àquela altura já uma figura lendária em Cambridge – planejava abandonar seu posto na universidade e se mudar para a Rússia para lá trabalhar em uma fazenda coletiva soviética (MONK, 1990, p.347-354MONK, R. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. Vinage Books, 1990.). O plano, embora dramático, talvez mesmo intemperado, era também de grande despojamento. Não era um gesto positivo, uma afirmação (não havia ali, por exemplo, paixão política ou anseio revolucionário), mas uma renúncia que se pretendia pedestre. Trabalhar com as mãos tinha para ele tanto valor quanto fazer filosofia, mas com uma vantagem adicional, de natureza ética, de que era um trabalho simples, no sentido de despretensioso, sem a presunção contumaz da filosofia. Wittgenstein podia abandonar a filosofia, da mesma forma que ele tinha abandonado a herança anos antes simplesmente, pois ele não acedia à autoimportância que a filosofia, com tanta frequência, se atribui. Wittgenstein chega a ir para a Rússia, mas o plano falha, pois as autoridades soviéticas, desconcertadas pelo pedido improvável, estavam dispostas a aceitá-lo apenas como professor universitário, mas não para trabalhar como camponês numa fazenda coletiva. Wittgenstein volta, então, para Cambridge e passa a se ocupar do Livro Marrom, momento decisivo na transição da sua filosofia – ele é a primeira aplicação sistemática do método dos jogos de linguagem, traço característico do seu pensamento maduro.

Uma das pessoas para quem Wittgenstein pediu ajuda para se estabelecer na Rússia foi Nikolai Bakhtin. Homem de grande erudição e personalidade expansiva, professor de literatura clássica e de linguística na Universidade de Birmingham, Nikolai era um dos amigos mais próximos de Wittgenstein (RHEES, 1984, p.12-50RHEES, R. Recollections of Wittgenstein. Edited by Rush Rhees. Oxford: Oxford University Press, 1984.). O fato biográfico provavelmente mais célebre sobre ele, no entanto, é que ele era o irmão mais velho do grande filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin. A ideia de que o irmão de Mikhail, eminente pensador sobre a linguagem, pudesse ter influenciado outro grande pensador, um dos filósofos da linguagem mais importantes do século XX, pareceu fascinante a vários comentadores. Katerina Clark e Michael Holquist, autores de conhecida biografia sobre Mikhail Bakhtin, chegam a dizer, por exemplo, que as conversas de Nikolai com Wittgenstein teriam tido um papel nas transformações que a filosofia de Wittgenstein sofreu na década de 1930 e que vão culminar na realização das Investigações filosóficas (CLARK; HOLQUIST, 1984, p.20CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Harvard University Press, 1984.)1 1 “Ele era claramente um pensador extraordinário. Suas conversas com Wittgenstein foram um dos fatores que influenciaram a mudança do filósofo do positivismo lógico do Tractatus para a filosofia mais especulativa das Investigações Filosóficas” (CLARK; HOLQUIST, 1984, p.20). [Original em inglês: “He was clearly an extraordinary thinker. His conversations with Wittgenstein were one of the factors influencing the philosopher's shift from the logical positivism of the Tractatus to the more broadly speculative Philosophical Investigations”.] . Joseph Frank, no seu ensaio “The Voices of Mikhail Bakhtin”, também vai julgar fascinante a noção de que o irmão mais velho de Bakhtin pudesse ter tido uma influência decisiva sobre o pensamento de Wittgenstein (FRANK, 1990, p.19FRANK, J. Through the Russian Prism. Princeton: Princeton University Press, 1990.). Terry Eagleton vai igualmente comentar sobre a “influência profunda” que Nikolai teve sobre Wittgenstein2 2 “De acordo com todos os relatos, Nikolai Bakhtin foi um personagem extraordinário, apaixonado, cintilante e exuberante, e exerceu uma profunda influência sobre Wittgenstein” (EAGLETON, 1982, s/p). [No original em inglês: “According to all reports, Nikolai Bakhtin was an extraordinary character, passionate, flamboyant and exuberant, and exerted a deep influence on Wittgenstein”.] (EAGLETON, 1982EAGLETON, T. Wittgenstein's Friends. The New Left Review, NLR I/135, set.-out. 1982. Disponível: https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends. Acesso em: 15 mai. 2021.
https://newleftreview.org/issues/i135/ar...
, s/p), mas vai além e chega a sugerir que, por meio de Nikolai e sua relação com Mikhail, o pensamento de Wittgenstein se vinculava, ainda que indiretamente, ao de Mikhail Bakhtin, hipótese ou premissa que ele irá desenvolver em seu ensaio “Wittgenstein’s Friends”. Vale a pena citar o trecho em que ele propõe essa hipótese inicial:

Nós sabemos, no entanto, que Nikolai encontrou uma cópia do livro de Mikhail sobre Dostoiévski em Paris em 1930. Nós também sabemos que embora os irmãos nunca mais tenham se encontrado depois de 1928, eles foram extraordinariamente próximos quando crianças e mais tarde ambos afirmaram que nunca encontraram em suas vidas alguém tão importante em seu desenvolvimento. Os dois homens foram influenciados pelo mesmo contexto literário e intelectual. [...] Os dois homens iriam embarcar em carreiras que tomaram a filosofia da linguagem como base, e há algumas afinidades entre os ensaios e palestras de Nikolai e O discurso no romance de Mikhail, certamente um dos mais esplêndidos documentos da crítica literária marxista do século. Por uma curiosa peculiaridade histórica, então, pode ser que o pensamento de Ludwig Wittgenstein esteja indiretamente relacionado à corrente principal da estética marxista (EAGLETON, 1982EAGLETON, T. Wittgenstein's Friends. The New Left Review, NLR I/135, set.-out. 1982. Disponível: https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends. Acesso em: 15 mai. 2021.
https://newleftreview.org/issues/i135/ar...
, s/p)3 3 Original em inglês: “We know, however, that Nikolai came across a copy of Mikhail’s work on Dostoevsky in Paris in 1930. We also know that though the brothers never met again after 1918, they had been extraordinarily close as children and were later to contend that they had never encountered anyone else in their lives who had been so important in their development. The two men were influenced by much the same literary and intellectual context. […] Both men were to embark upon careers which took the philosophy of language as their basis, and there are some affinities between Nikolai’s essays and lectures and Mikhail’s Discourse and the Novel, surely one of the most superb documents of Marxist literary criticism of the century. By a curious historical quirk, then, it may be that the thought of Ludwig Wittgenstein is indirectly related to the mainstream of Marxist aesthetics” (EAGLETON, 1982, s/p). .

Mais recentemente, outros autores, também intrigados pelo elo entre Wittgenstein e Bakhtin, fizeram o trabalho mais específico de articular as suas filosofias da linguagem. Nessa direção, Mika Lähteenmäki, em artigo de 2004LÄHTEENMÄKI, M. Between Relativism and Absolutism: Towards an Emergentist Definition of Meaning Potential. In: Bakhtinian Perspectives on Language and Culture. New York: Palgrave Macmillan, 2004., vai mobilizar a filosofia da linguagem das Investigações Filosóficas e articulá-la à noção dialógica de significado bakhtiniana para pensar o conceito de “potencial de significado” (LÄHTEENMÄKI, 2004LÄHTEENMÄKI, M. Between Relativism and Absolutism: Towards an Emergentist Definition of Meaning Potential. In: Bakhtinian Perspectives on Language and Culture. New York: Palgrave Macmillan, 2004.). Em artigo ainda mais recente, Ken Hirschkop também vai colocar as filosofias da linguagem desses dois pensadores em paralelo e vai propor que haveria, para além de suas semelhanças num plano técnico-conceitual, uma afinidade ética de fundo, ambas filosofias estariam orientadas contra o orgulho e a presunção (HIRSCHKOP, 2019HIRSCHKOP, K. Ethics, Narration and the Linguistic Turn in Bakhtin and Wittgenstein. In: STAFUZZA, G.; DE PAULA, L. Círculo de Bakhtin: concepções em construção. Campinas: Mercado de Letras, 2019.).

Há, como se vê, toda uma tendência que aproxima as figuras e as filosofias de Wittgenstein e de Bakhtin e das mais variadas maneiras. A ideia desse artigo, contudo, vai ser tentar pensar uma questão específica, questão que, ao mesmo tempo, une e separa os pensamentos dos dois filósofos, a saber, o problema da maneira como eles pensam a natureza intersubjetiva da linguagem.

2

Bakhtin e Wittgenstein têm no centro de suas reflexões o tema linguagem. Mas mais do que isso, os dois autores compartilham uma certa inserção no debate do seu tempo, pois ambos reagiram a um tipo de abordagem da linguagem, abstratizante, e o fizeram colocando a enunciação concreta como a realidade efetiva da língua, como a unidade básica de suas investigações. Assim, da mesma forma que Bakhtin e seu Círculo (em particular Voloshinov) reagiam ao gesto de Saussure de exclusão da ‘parole’ do domínio de sua ciência objetiva quando colocaram a enunciação, a interação verbal, como o “verdadeiro centro da realidade linguística” (RENFREW, 2015 p.63RENFREW, A. Mikhail Bakhtin. London: Routledge, 2015.); o segundo Wittgenstein reagiu às abordagens de Frege e Russell, seus interlocutores mais diretos, que tratavam a língua como cálculo proposicional ou um sistema abstrato de signos, quando propôs reinserir a linguagem num complexo de práticas, quando nos convidou a pensar a língua no seu emprego real, no contexto das atividades humanas em que ela está sempre imbricada.

Vinculado a essa centralidade da enunciação está outra posição também compartilhada pelos dois pensadores, que é a ideia de que o sentido seria inerentemente intersubjetivo. A língua é para ambos inelutavelmente um fenômeno social. É claro que aproximá-los nesse grau de generalidade também não diz muito: há muitas maneiras de se dizer que “a língua é social”, das mais triviais às nem tanto, de sorte que o que efetivamente interessa é entender especificamente e, em cada caso, o modo como é concebido esse imbricamento entre o social e a língua, a radicalidade e o escopo desse tipo de afirmação.

Comecemos pelo caso de Wittgenstein. O melhor lugar para entender o modo particular como a linguagem está imbricada com o social na sua filosofia é provavelmente também o momento mais célebre de sua obra: o argumento da linguagem privada. O entendimento mais consolidado é que o argumento tem início em §243 das Investigações filosóficas:

243. Uma pessoa pode alentar a si mesma, dar ordem para si mesma, obedecer, repreender, castigar, formular uma pergunta e respondê-la. Poder-se-ia, portanto, imaginar também pessoas que só falassem por monólogos. Que fizessem acompanhar suas atividades com conversas consigo mesmas. – Um pesquisador que as observasse e escutasse a sua conversa, poderia conseguir traduzir a linguagem delas na nossa. (Ele estaria, assim, em posição de predizer corretamente as ações dessa gente, pois ele as ouviria também deliberar e tomar decisões.) (WIITGENSTEIN, s/d, p.158).

O tipo de dificuldade de leitura que as Investigações colocam é muito distinta daquele da prosa bakhtiniana. A dicção do texto de Wittgenstein é corriqueira, um estilo chão e concreto, de sorte que o complicado não é tanto entender o que ele está dizendo, mas entender o que ele “quer dizer” com aquilo que ele diz, descobrir qual é o “ponto”. Embora escrito numa prosa sem muitos torneios, o texto é hermético, porque muito alusivo e elíptico. Uma maneira de entender o que está em jogo aqui, que hoje seria provavelmente considerada uma leitura kripkiana (KRIPKE, 1982KRIPKE, S. Wittgenstein on Rules and Private Language. Boston: Harvard University Press, 1982.), mas que se inscreve numa linhagem mais longa que tem provavelmente início na interpretação de Rush Rhees (1954)RHEES, R. Can There Be a Private Language? In: Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volume, v. 28, pp.77-94, 1954., aluno e amigo de Wittgenstein, seria dizer que o pano de fundo não explicitado dessa discussão é justamente a tese que nos interessa investigar, sobre a natureza necessariamente social da linguagem. A observação 243 abre com um tipo de resistência a essa tese. Wittgenstein dá voz a um questionamento ingênuo: a tese da intersubjetividade do significado não seria contraditada pelo fato de que com tanta frequência nós pensamos sozinhos e falamos com nós mesmos? Isto é, a existência dos monólogos não está em tensão com a tese da natureza intersubjetiva do significado? Num lance argumentativo que não seria totalmente estranho a Bakhtin, Wittgenstein vai tentar mostrar que quando falamos sozinhos não estamos excluindo com isso a comunidade. Quando conversamos com nós mesmos estamos nos engajando em uma atividade regrada, que estabelece regularidades, de sorte que haverá critérios que nos fariam ser entendidos ou “traduzidos” por outros: uma fala não deixa de ser social porque é realizada solitariamente. O ponto de Wittgenstein vai ser, como veremos, que podemos obviamente “falar sozinhos”, podemos perfeitamente seguir uma regra desacompanhados, mas a noção mesma de regra (e de língua) é incompatível com uma certa ideia de privacidade.

A discussão propriamente sobre a linguagem privada (no sentido forte que §243 quer estabelecer), no entanto, começa apenas na segunda parte da observação 243:

243. [...] Mas seria também imaginável uma linguagem em que alguém tomasse nota, para o seu próprio uso, das suas vivências internas – seus sentimentos, humores etc. –, ou pudesse proferi-las? — Não poderíamos fazer isto, então, na nossa linguagem habitual? – Mas não é assim que quero dizer. As palavras dessa linguagem devem referir-se ao que só o falante pode saber; às suas vivências imediatas, privadas. Uma outra pessoa não pode compreender, portanto, essa linguagem (WIITGENSTEIN, s/d, p.160).

Novamente, Wittgenstein simula uma conversa com um interlocutor que mais uma vez ataca a tese da natureza necessariamente social da linguagem, mas agora de um viés diferente. Aqui é introduzido o tópico da relação da língua com as sensações, que vai estruturar todo o bloco de observações que discutem a possibilidade de uma linguagem privada. O argumento do interlocutor aqui é que a ideia de uma linguagem das sensações (que se referisse às vivências interiores de um falante) colocaria um problema para a tese da intersubjetividade do significado. Problema muito maior do que o argumento anterior já refutado, pois não se trata de apontar para algo que eu posso fazer sozinho, um monólogo, mas algo muito mais radical, algo a que só eu posso ter acesso. A ideia aqui é que as sensações seriam privadas, que quando usamos, por exemplo, a palavra “vermelho”, embora possamos tranquilamente concordar no seu uso, esse vermelho que eu vejo, a referência da palavra para mim, apenas eu posso ver. Pode até haver regras públicas de aplicação da palavra (que faz com que basicamente qualifiquemos os mesmos objetos com o adjetivo “vermelho”), mas haveria um resquício de significação, a palavra “vermelho”, para mim, apontaria para algo a que só eu posso ter acesso (de sorte, diz-se, que nunca saberemos se, do ponto de vista “fenomenológico”, vemos o mesmo vermelho). É como se para cada falante o significado da palavra “vermelho” (ou da palavra “dor”, por exemplo, pois o mesmo ocorreria com as outras sensações) tivesse uma dupla face, uma pública (que faz com que concordemos no uso da palavra) e uma privada, que diria respeito justamente a esse resto, a que só o falante pode ter acesso4 4 E, como vai ser colocado em §273, é como se essa face privada fornecesse propriamente a “designação” da palavra. . E podemos, como faz o interlocutor, imaginar uma língua que tivesse apenas essa face privada. Ao fim e ao cabo, o impasse que se coloca é o seguinte: como compatibilizar a tese da intersubjetividade do significado com o fato de que certas palavras parecem se referir a sensações a que cada um de nós teria um acesso privado, a algo que parece estar, digamos, metafisicamente retirado do domínio intersubjetivo? Como coloca Kripke em seu comentário, o argumento da linguagem privada é aplicado ao caso das sensações precisamente porque à primeira vista elas seriam recalcitrantes às considerações de Wittgenstein sobre regra e linguagem, elas aparecem como um contraexemplo potencialmente disruptivo (KRIPKE, 1982, p.3KRIPKE, S. Wittgenstein on Rules and Private Language. Boston: Harvard University Press, 1982.).

O ataque de Wittgenstein contra a possibilidade de uma linguagem privada é bastante intricado, envolve uma bateria de argumentos5 5 Para o defensor da ideia de linguagem privada, o ponto é que quando eu uso a palavra “dor” (ou a palavra “vermelho” etc.) parece que eu me refiro a algo privado, algo a que cada falante tem o seu acesso particular, mas que está retirado da cena pública. Wittgenstein vai atacar essa concepção da natureza das sensações e também o tipo de imagem do funcionamento da linguagem que a produz (a ideia de que a palavra “dor” é o nome de algo, de uma certa experiência mental), mas iremos pular essa discussão para nos concentrar em outra parte do seu argumento, que diz mais a respeito do contraste com Bakhtin, que trata diretamente da inscrição social da língua. . Aqui vai nos interessar um argumento em particular, que ele apresenta em §258:

258. Imaginemos este caso. Quero manter um diário sobre a recorrência de uma certa sensação. Para isso, eu a associo com o sinal “S”, e escrevo num calendário esse sinal a cada dia que tenho a sensação. — Quero observar, primeiramente, que não se pode expressar uma definição do sinal. – Mas eu posso, é claro, dá-la para mim mesmo como um tipo de definição ostensiva! – Como? posso apontar para a sensação? – Não no sentido habitual. Mas eu profiro ou anoto o sinal, e, assim, concentro minha atenção sobre a sensação – portanto, é como se a apontasse internamente. – Mas para que essa cerimônia? pois é só isso que ela parece ser! Uma definição serve, é claro, para estabelecer o significado de um sinal. – Pois bem, isso ocorre justamente pela concentração da atenção; pois é por ela que imprimo em mim a ligação do sinal com a sensação. – “Eu a imprimo em mim” só pode, claro, querer dizer: esse processo ocasiona em mim, no futuro, a correta lembrança da ligação. Mas no nosso caso eu não tenho nenhum critério para a correção. Poder-se-ia dizer aqui: correto é o que sempre me parece correto. E isso só quer dizer que aqui não se pode falar de ‘correção’ (WIITGENSTEIN, s/d, p.164-166).

Esse é o coração do argumento da linguagem privada e merece um comentário linha a linha. Temos um diálogo aberto entre a posição wittgensteiniana e a do seu interlocutor. O interlocutor começa tentando conceber como funcionaria a linguagem privada, tenta mostrar como se daria a associação entre o sinal “S” e uma certa sensação privada. Por exemplo, todos os dias em que o sujeito sente uma sensação específica, ele pode marcar o “S” num calendário (Note-se que, para o defensor da noção da linguagem privada, só esse sujeito poderá entender esse “S” e não por se tratar de um código que outros desconheçam, mas num sentido forte, de que só ele pode ter acesso ao significado de “S”). Wittgenstein responde pontuando que desse modo não se definiu o sinal “S”, ou seja, a associação entre a sensação e o sinal S que foi feita não é de natureza linguística. Apenas foi anotada uma letra num papel, mas isso definitivamente não transforma “S” no nome de uma sensação, não lhe confere significado. O interlocutor rebate dizendo que ele poderia dar uma definição ostensiva do sinal. Como prototipicamente a definição ostensiva é aquela em que se nomeia um objeto apontando para ele, Wittgenstein se mostra cético e pergunta: como alguém poderia apontar para uma sensação? O interlocutor responde sugerindo uma alternativa, uma espécie de “apontar mental”, em que se anota o sinal ao mesmo tempo em que se concentra a atenção na sensação particular que se quer nomear. A réplica de Wittgenstein vai ter, então, uma tonalidade satírica: “Mas para que essa cerimônia”? É como se Wittgenstein apenas apontasse o ridículo da situação toda: o que se pode lograr com tal estranho ritual? É o caso de lembrar que há no bloco de observações de §28 até §38 toda uma discussão, que parece estar pressuposta aqui, sobre a definição ostensiva, que tenta mostrar a sua complexidade, o quanto ela precisa estar preparada linguisticamente, como ela depende de técnicas de aplicação, de um contexto prévio prático e institucional etc., discussão a que a observação imediatamente anterior (§257) também já fez alusão. De modo que, nesse momento do texto, é óbvio para o leitor que essa cerimônia é vã, que ela não pode obter o que ela pretende. E o tom debochado como que ri da vacuidade da tentativa. Mas o interlocutor insiste que o gesto de “apontar mentalmente”, de concentrar a atenção num certo sentimento, produz nele a ligação do sinal “S” com a sensação, teria se produzido uma espécie de “definição ostensiva privada”. Como vai afirmar Peter Hacker, o interlocutor está tentando argumentar que esse “apontar mental” poderia funcionar como um tipo de amostra, ele seria como que uma “tabela privada”, que associaria o sinal “S” com a sensação (HACKER, 1986, p.267HACKER, P. M. S. Insight and Illusion. Oxford: Clarendon Press, 1986.)6 6 A ideia é que o defensor da linguagem privada, quando tivesse dúvida sobre se determinada sensação era ou não a mesma do dia anterior, pudesse lançar mão da sua “tabela mental” para garantir se marcaria ou não o “S” no diário. Pressuposto aqui pelo interlocutor, é claro, está a suposição de que essa “tabela privada” funciona da mesma maneira como as tabelas comuns, como uma tabela de preços num comércio qualquer, por exemplo. Adiantando o argumento, o caso é que uma “tabela privada” não pode funcionar da mesma maneira que uma tabela genuína, pois falta-lhe um critério de correção. . A réplica final do Wittgenstein é o momento decisivo de toda a argumentação. Seu cerne é a ideia de que falta a uma linguagem privada um critério de correção. Ou seja, a definição ostensiva deveria fornecer alguma normatividade para o uso correto do sinal “S”, mas aquela cerimônia interna não pode alcançar isso e, portanto, não é uma definição, não conferiu um significado para o sinal “S”. Uma “tabela mental” não pode estabelecer um padrão de correção, pois ela não é independente do sujeito que a consulta. Nenhuma regra pode ser estabelecida sem referência externa, sem o apelo a uma comunidade. Com essa suposta “tabela mental”, i.e., com essa tentativa de conectar na lembrança uma sensação com uma letra, não se conseguiu ultrapassar o fato de que “o correto será o que me parecer correto”. Não se produziu uma norma. O gesto de tentar conectar o sinal “S” com uma sensação via concentração da atenção não é de natureza linguística, tal cerimônia é vazia, “S” não pode ganhar com ela significado algum.

Dito mais claramente e resumindo o cerne do argumento: a língua é inerentemente uma atividade normativa. Se a marca no diário “S” quer ganhar algum significado, quer fazer parte de uma língua, então, deve haver alguma normatividade regulando o seu uso, ele deve poder ser usado correta ou incorretamente. Mas o problema central da noção de uma língua privada é que ela colapsa a distinção entre seguir uma regra e supor que se segue uma regra (WITTGENSTEIN, s/d, p.114, §202). A polaridade do certo/errado depende de um parâmetro independente: se o único padrão disponível é um que, em última instância, só pode estabelecer que “o certo é equivalente ao que parece certo para mim”, então não há padrão, só a falsa aparência de um. Não pode haver uma língua sem uma referência intersubjetiva.

3

Entender como se dá o elo vital entre língua e sociedade em Bakhtin vai passar, é claro, pelo que ele chama de “orientação dialógica” do discurso (BAKHTIN, 2015, p.51BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.). A ideia de ‘diálogo’ aqui não tem o sentido simplesmente de conversa na sua acepção mais usual. O dialógico seria uma metáfora para Bakhtin, ele designa algo pervasivo na linguagem, a orientação dialógica seria “um fenômeno próprio de qualquer discurso” (BAKHTIN, 2015, p.51BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.). Nessa metáfora do diálogo está sendo mobilizada, em primeiro lugar, a ideia de que nenhuma enunciação concreta, nenhum uso efetivo da língua, é solitário, i.e., “diálogo” está sendo oposto a “monólogo”. É como se a situação banal de uma conversa entre duas ou mais pessoas fosse entendida como um caso prototípico que revelaria algo geral sobre a linguagem, a saber, o caráter intersubjetivo do significado. Com efeito, mesmo um monólogo, na sua acepção comum de alguém que simplesmente fala consigo, é uma “conversa”, é dialógico no sentido técnico da filosofia de Bakhtin, pois ele inevitavelmente manifestaria o traço da intersubjetividade presente em todo discurso. Assim descrito, a semelhança com Wittgenstein é patente, mas, como veremos, o escopo dessa afirmação em Bakhtin é também bastante distinto.

Essa presença do “outro” constitutiva de todo significado, esse imbricamento medular do social com a língua, recebe, em O discurso no romance de Bakhtin, o nome de “dialogicidade interna”. Ele vai fazer nesse ensaio uma caracterização dupla do fenômeno. Invertendo a ordem de exposição de Bakhtin, podemos dizer que a primeira dessas faces é o seu direcionamento ao ouvinte (BAKHTIN, 2015, p.52-53BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.). Pensando novamente na metáfora do diálogo, assim como uma conversa, no seu sentido usual, só pode ser assim considerada se as partes minimamente levarem em consideração o que a outra diz. Bakhtin vai generalizar esse traço e dizer que, em verdade, todo discurso é caracterizado por um endereçamento para o ouvinte: “todo discurso está voltado para uma resposta e não pode evitar a influência profunda do discurso responsivo antecipável” (BAKHTIN, 2015, p.52BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.). Esse endereçamento para o ouvinte (presente ou suposto) seria algo interno no sentido constitutivo de qualquer enunciado, todo discurso se constrói já orientado para o futuro (para “o ainda não dito”), ele nasce sempre na expectativa da resposta de um outro, todo dizer incorpora na sua própria constituição essa alteridade antecipada.

A segunda face dessa dialogicidade interna tem justamente a orientação temporal inversa: o enunciado está voltado não só para o futuro, como também para o passado, todo discurso forma-se no “clima do já dito” (BAKHTIN, 2015, p.52BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.). Com efeito, seria possível dizer que a responsividade do discurso tem uma dupla orientação temporal: um enunciado qualquer é uma resposta antecipada, ele se vincula ao futuro, “ao ainda não dito”, mas é também uma resposta a uma série de discursos prévios, ele nasce no seio do “já dito” e se posiciona em relação a ele. Um enunciado não é nunca primigênio, originário, ele só pode surgir se inscrevendo numa rede discursiva que lhe antecede:

Ora, todo discurso concreto (enunciado) encontra o objeto para o qual se volta sempre, por assim dizer, já difamado, contestado, avaliado, envolvido ou por uma fumaça que o obscurece ou, ao contrário, pela luz de discursos alheios já externados a seu respeito. Ele está envolvido e penetrado por opiniões comuns, pontos de vista, avaliações alheias, acentos (BAKHTIN, 2015, p.48BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.).

O discurso se faz, assim, em um jogo com uma multiplicidade de vozes sociais de temporalidades diversas, de modo que na constituição de cada enunciado haverá sempre uma tensão interna com outros enunciados, esteja ela à vista ou não. O discurso não é, portanto, fechado em si mesmo: ele se constitui internamente se voltando para fora. Todo enunciado se insere numa enorme teia de outros enunciados e só pode ser entendido tendo-a como pano de fundo, ele se situa no entroncamento de inumeráveis vozes sociais, que realizam uma espécie de “diálogo social” amplo, de sorte que o campo do discurso será, para Bakhtin, inseparável do domínio da ideologia:

O enunciado vivo, que surgiu de modo consciente num determinado momento histórico em um meio social determinado, não pode deixar de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envolvas pela consciência socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. É disto que ele surge, desse diálogo, como sua continuidade, como uma réplica e não como se com ele se relacionasse à parte (BAKHTIN, 2015, p.49BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.).

A essa altura, as diferenças das concepções de Bakhtin e Wittgenstein já devem ter começado a ficar salientes. De fato, se a afirmação genérica “todo significado é social” teria o assentimento de ambos, a maneira como eles concordam com ela, contudo, é bastante distinta. De uma perspectiva bakhtiniana, dizer que qualquer enunciado é irremediavelmente social é fazer referência ao fato de que ele se insere numa rede tensa de outros enunciados, que cada enunciado participa de um diálogo social infindável. Na filosofia de Wittgenstein, o escopo é completamente outro, em sua defesa da natureza social da língua não há referência a esse amplo domínio do ideológico; antes, trata-se de afirmar que falar uma língua é uma atividade que vai envolver um tipo de habilidade prática inerentemente normativa, o que, por sua vez, vai inelutavelmente depender de um apelo intersubjetivo.

Uma maneira de pensar essa diferença é que se em Bakhtin a ênfase está na valoração7 7 Vale fazer referência ao trabalho de Faraco, que articula toda uma interpretação que coloca a axiologia como o núcleo do pensamento bakhtiniano, que seria para ele “o grande fundamento do projeto filosófico de Bakhtin” (FARACO, 2017, p.48). , na ideia de que qualquer enunciado expressa uma atitude valorativa e só pode fazê-lo se posicionando em relação a um vasto e tenso tecido social de valores; no caso de Wittgenstein, a ênfase está nas noções de normatividade e de regra, no fato de que falar uma língua é uma atividade normativa que depende da polaridade do certo/errado, polaridade que só pode ser constituída intersubjetivamente.

Para entender melhor essa diferença vale a pena fazer um comentário sobre uma das mais conhecidas imagens de Bakhtin, que ele usa para explicar a dialogicidade interna do discurso:

Se imaginarmos a intenção, isto é, a orientação de uma palavra em forma de raio voltada para o objeto, então o jogo vivo e singular de cores e luz que tal palavra constrói nas facetas da imagem deve-se à refração raio-palavra não no próprio objeto (como o jogo de imagem-tropo no discurso poético em sentido restrito, na palavra isolada), mas à sua refração no ambiente de palavras, avaliações e acentos alheios pelo qual passa o raio em direção ao objeto: o clima social da palavra que cerca o objeto obriga as facetas de sua imagem a entrarem no jogo (BAKHTIN, 2015, p.49-50BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.).

Bakhtin usa uma metáfora para veicular a sua posição filosófica. A luz é, como se sabe, tradicionalmente uma metáfora para o conhecimento. O que está em questão aqui é a maneira como a filosofia bakhtiniana pensa o problema filosófico secular da relação entre linguagem e realidade. O cerne da imagem tem um raio de luz que se dirige a um objeto sendo refratado pelo ambiente. Toda a ênfase de Bakhtin está nessa noção de refração. O discurso é um raio de luz que só pode se orientar para o real atravessando esse meio heterogêneo, de múltiplas vozes e valores, e sendo por ele refratado. Dessa imagem podemos retirar pelo menos dois pontos. Um ponto epistemológico, de que para Bakhtin toda tentativa de conhecer o mundo envolverá refração e que, portanto, os modos de se direcionar ao mundo serão tão numerosos quantas forem as refrações. Trata-se, nesse sentido, de uma posição anti-absolutivista, que não seria estranha ao perspectivismo wittgensteiniano. E, também, um ponto linguístico, que nos interessa mais diretamente, pois sintetiza numa imagem a nossa discussão, de que todo enunciado sofre uma mediação social, é socialmente refratado. Nessa imagem de Bakhtin, a intersubjetividade da linguagem reside na refração, nessa atmosfera de vozes e valores e nos efeitos que ela tem sobre a trajetória da luz.

Se quisermos usar a mesma imagem bakhtiniana para pensar Wittgenstein, a ênfase dele seria outra, não estaria mais na refração. Bakhtin quer enfatizar as relações de tensão entre os enunciados, o inevitável imbricamento do meu discurso em discursos outros. Wittgenstein, como já notamos, não está interessado no domínio do ideológico. Sem negar a existência do tipo de mediação social investigada por Bakhtin, a filosofia de Wittgenstein está investigando uma outra instância de interconexão entre social e língua. É como se a intersubjetividade que interessa a ele residisse na própria luz e não na sua trajetória refratada. Mesmo que fosse possível imaginar um discurso que não fosse atravessado por outros discursos, mesmo que imaginássemos uma circunstância em que o meio tivesse um índice de refração zero, ainda assim, para Wittgenstein, qualquer significado dependeria de um apelo intersubjetivo. O Adão mítico poderia até encontrar um mundo ainda não valorado, como especulou Bakhtin, mas para Wittgenstein, sem a presença de Eva, ele não poderia dizer coisa alguma sobre ele8 8 Bakhtin, é claro, não acreditava na possibilidade de uma linguagem adâmica e seu ponto com tal imagem era distinguir a linguagem do domínio do mito da linguagem no mundo histórico. No entanto, sem pretender fazer um comentário técnico sobre essa passagem em particular, esse exemplo, me parece, pode servir para tornar saliente o modo diferenciado como linguagem e social se imbricam nas filosofias de Bakhtin e de Wittgenstein. .

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    “Ele era claramente um pensador extraordinário. Suas conversas com Wittgenstein foram um dos fatores que influenciaram a mudança do filósofo do positivismo lógico do Tractatus para a filosofia mais especulativa das Investigações Filosóficas” (CLARK; HOLQUIST, 1984, p.20CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Harvard University Press, 1984.). [Original em inglês: “He was clearly an extraordinary thinker. His conversations with Wittgenstein were one of the factors influencing the philosopher's shift from the logical positivism of the Tractatus to the more broadly speculative Philosophical Investigations”.]
  • 2
    “De acordo com todos os relatos, Nikolai Bakhtin foi um personagem extraordinário, apaixonado, cintilante e exuberante, e exerceu uma profunda influência sobre Wittgenstein” (EAGLETON, 1982EAGLETON, T. Wittgenstein's Friends. The New Left Review, NLR I/135, set.-out. 1982. Disponível: https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends. Acesso em: 15 mai. 2021.
    https://newleftreview.org/issues/i135/ar...
    , s/p). [No original em inglês: “According to all reports, Nikolai Bakhtin was an extraordinary character, passionate, flamboyant and exuberant, and exerted a deep influence on Wittgenstein”.]
  • 3
    Original em inglês: “We know, however, that Nikolai came across a copy of Mikhail’s work on Dostoevsky in Paris in 1930. We also know that though the brothers never met again after 1918, they had been extraordinarily close as children and were later to contend that they had never encountered anyone else in their lives who had been so important in their development. The two men were influenced by much the same literary and intellectual context. […] Both men were to embark upon careers which took the philosophy of language as their basis, and there are some affinities between Nikolai’s essays and lectures and Mikhail’s Discourse and the Novel, surely one of the most superb documents of Marxist literary criticism of the century. By a curious historical quirk, then, it may be that the thought of Ludwig Wittgenstein is indirectly related to the mainstream of Marxist aesthetics” (EAGLETON, 1982EAGLETON, T. Wittgenstein's Friends. The New Left Review, NLR I/135, set.-out. 1982. Disponível: https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends. Acesso em: 15 mai. 2021.
    https://newleftreview.org/issues/i135/ar...
    , s/p).
  • 4
    E, como vai ser colocado em §273, é como se essa face privada fornecesse propriamente a “designação” da palavra.
  • 5
    Para o defensor da ideia de linguagem privada, o ponto é que quando eu uso a palavra “dor” (ou a palavra “vermelho” etc.) parece que eu me refiro a algo privado, algo a que cada falante tem o seu acesso particular, mas que está retirado da cena pública. Wittgenstein vai atacar essa concepção da natureza das sensações e também o tipo de imagem do funcionamento da linguagem que a produz (a ideia de que a palavra “dor” é o nome de algo, de uma certa experiência mental), mas iremos pular essa discussão para nos concentrar em outra parte do seu argumento, que diz mais a respeito do contraste com Bakhtin, que trata diretamente da inscrição social da língua.
  • 6
    A ideia é que o defensor da linguagem privada, quando tivesse dúvida sobre se determinada sensação era ou não a mesma do dia anterior, pudesse lançar mão da sua “tabela mental” para garantir se marcaria ou não o “S” no diário. Pressuposto aqui pelo interlocutor, é claro, está a suposição de que essa “tabela privada” funciona da mesma maneira como as tabelas comuns, como uma tabela de preços num comércio qualquer, por exemplo. Adiantando o argumento, o caso é que uma “tabela privada” não pode funcionar da mesma maneira que uma tabela genuína, pois falta-lhe um critério de correção.
  • 7
    Vale fazer referência ao trabalho de Faraco, que articula toda uma interpretação que coloca a axiologia como o núcleo do pensamento bakhtiniano, que seria para ele “o grande fundamento do projeto filosófico de Bakhtin” (FARACO, 2017, p.48FARACO, C. A. Bakhtin e filosofia. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 2, pp.45-56, mai./ago. 2017.).
  • 8
    Bakhtin, é claro, não acreditava na possibilidade de uma linguagem adâmica e seu ponto com tal imagem era distinguir a linguagem do domínio do mito da linguagem no mundo histórico. No entanto, sem pretender fazer um comentário técnico sobre essa passagem em particular, esse exemplo, me parece, pode servir para tornar saliente o modo diferenciado como linguagem e social se imbricam nas filosofias de Bakhtin e de Wittgenstein.

Agradecimentos

Agradeço ao professor Carlos Alberto Faraco, sem o qual esse texto não existiria. Agradeço também a Martina Alencar pelas discussões e pela leitura. Agradeço também a Isabel Ferreira pela tradução. Por fim, agradeço aos pareceristas pelos comentários.

Parecer I

http://orcid.org/0000-0001-7453-1734 Renata Coelho Marchezan Universidade Estadual de São Paulo – UNESP Araraquara São Paulo Brasil renata_marchezan@uol.com.br Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil.

O artigo chega a indicar que seu objetivo é estabelecer uma comparação entre as filosofias da linguagem de Bakhtin e de Wittgenstein, mas não enfrenta a visão distinta de linguagem que os dois pensadores têm, nem as respectivas linhagens filosóficas. No entanto, delimita, logo, seu objetivo, restringindo-o a problematizar “a natureza intersubjetiva do significado linguístico” nos dois domínios. Nesse caminho, por mais que ainda possa se sentir falta das reflexões mencionadas, o texto apresentado mostra-se consistente, além de saboroso. A aproximação/confronto entre os dois pensadores que expõe contribui para a problematização do lugar filosófico de Bakhtin. E em razão disso recomendamos, sem dúvida, sua publicação. Fazemos apenas uma sugestão de alteração nas últimas linhas do artigo, que recuperam, com um certo humor, a menção que Bakhtin faz à palavra adâmica. Como se sabe, Bakhtin usa a imagem para distinguir a linguagem no domínio do mito da linguagem no mundo histórico, da qual se ocupa. A maneira como o artigo aproveita as palavras de Bakhtin para confrontá-lo com Wittgenstein, embora dê um remate atraente ao texto, com certeza, distorce a reflexão!

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
  • CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin Harvard University Press, 1984.
  • EAGLETON, T. Wittgenstein's Friends. The New Left Review, NLR I/135, set.-out. 1982. Disponível: https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends Acesso em: 15 mai. 2021.
    » https://newleftreview.org/issues/i135/articles/terry-eagleton-wittgenstein-s-friends
  • FARACO, C. A. Bakhtin e filosofia. Bakhtiniana Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 2, pp.45-56, mai./ago. 2017.
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  • MONK, R. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. Vinage Books, 1990.
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  • RHEES, R. Can There Be a Private Language? In: Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volume, v. 28, pp.77-94, 1954.
  • RHEES, R. Recollections of Wittgenstein Edited by Rush Rhees. Oxford: Oxford University Press, 1984.
  • WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas/Philosophische Untersuchungen Ed. Bilíngue Alemão/Português. Apresentação, tradução e notas de João José R. L. de Almeida. Campinas: Wittgenstein Translations, s/d.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2021
  • Aceito
    15 Mar 2022
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