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Compreensão de diálogo em um processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico* * Refere-se à síntese da pesquisa para dissertação de mestrado em Psicologia da Educação sob o título A compreensão de diálogo em uma experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico: um estudo à luz do pensamento de Martin Buber e Paulo Freire (Xavier, 2009)

The understanding of dialogue in a process of collective construction of a political pedagogical project

Resumos

Sintetiza uma pesquisa que investigou como gestores, educadores e representantes de uma comunidade da zona norte de São Paulo compreenderam diálogo a partir da experiência de construção coletiva de um projeto político-pedagógico de duas organizações educativas. Fundamentando-se em Martin Buber e Paulo Freire, realizou-se um estudo qualitativo, utilizando-se de entrevista reflexiva coletiva. Os resultados apontaram para a compreensão de diálogo como conversa, participação, silêncio, integração e construção de conhecimento. A construção coletiva do projeto político-pedagógico mostrou a vontade de dialogar e a necessidade de maior disposição para ouvir o outro, desvelando diálogo como caminho de transformação social e busca por reconhecer o valor das relações interpessoais

diálogo; Martin Buber; Paulo Freire.


This article presents a study that aimed to investigate how managers, educators and representatives of a community placed in São Paulo's north outskirts understood "dialogue" through the experience of collectively building a political pedagogical project of two educational institutions. Referring to the thought of Martin Buber and Paulo Freire, we carried out a qualitative study, using the reflexive interview conference. The results showed an understanding of dialogue as "conversation", "participation", "silence", "integration" and "knowledge building". The collective construction of the political pedagogical project demonstrated the willingness to dialogue and the need of greater effort in listening to each other, revealing dialogue as a way of social change and of acknowledgement of the value of interpersonal relationships

dialogue; Martin Buber; Paulo Freire.


Considerações iniciais

Este artigo apresenta uma pesquisa que teve por objetivo investigar como gestores, educadores e representantes de uma comunidade, situada em um bairro da zona norte de São Paulo, compreenderam diálogo, a partir da experiência vivida no processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico de um Centro de Educação Infantil (CEI) comunitário e de um Centro de Educação Complementar (CEC) onde é desenvolvido o projeto Agente Jovem1 1 O Agente Jovem desenvolvido nessa comunidade seguia o projeto proposto pela Secretaria do Estado de Assistência Social (Seas) denominado "Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano". .

Para o sentido de diálogo, a pesquisa fundamentou-se em alguns pressupostos de Martin Buber e Paulo Freire e apoiou-se na experiência de interação vivida entre educadores, gestores e representantes dessa comunidade que aprofundam a pedagogia dialógica de Paulo Freire enquanto referência para suas atividades educativas.

Martin Buber e Paulo Freire: algumas reflexões sobre o diálogo

Os dois grandes pensadores, Martin Buber e Paulo Freire, mesmo pertencendo a épocas e contextos diferentes, ambos instigados pela complexidade da vida do ser humano e pelos conflitos históricos de seu tempo, interrogaram-se sobre o pensamento e a ação humana na busca de propor, cada um, uma filosofia de diálogo como resposta aos anseios do homem em sua relação com o mundo e com o outro.

Paulo Freire, ao apresentar seu pensamento sobre a prática dialógica, faz também referência às reflexões de Martin Buber. Pode-se identificar, na citação que se segue, sua influência no pensamento freiriano:

[...] o eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado, num mero "isto". O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu - um não eu -, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. (Freire, [1967] 2005, p. 192, grifos do autor).

Paulo Freire, nessa explicação sobre os atos antidialógico e dialógico, fundamenta-se na reflexão ontológica de Martin Buber sobre a palavra, pela qual o homem se introduz na existência. O ser humano não é um ser-para-si, mas um ser-no-mundo com o outro, que se realiza na relação que o leva a proferir as duas palavras consideradas princípio de sua existência: Eu-Tu e Eu-Isso.

O Eu do homem é duplo por existir penetrado ora no encontro com o Tu, ora na relação com o Isso. A experiência Eu-Isso é o ato de transformar a realidade encontrada em objeto de conhecimento. No entanto, vive-se também entre homem e mundo e entre homem e homem um encontro estabelecido no além de si. É nesse sentido que Martin Buber ([1923] 2006BUBER, M. Eu e Tu. Tradução, introdução e notas por. Newton Aquiles Von Zuben 10. ed. São Paulo: Centauro, [1923] 2006.) apresenta a atitude Eu-Tu como atitude estabelecida na reciprocidade do Tu atuando com o Eu e do Eu atuando com o Tu.

No entanto, a atitude Eu-Isso não é considerada uma expressão negativa do homem, uma vez que é por meio dela que ele se coloca diante do mundo para conhecê-lo e explorá-lo, compreendendo e assimilando as aquisições da história humana. Mas, quando o Eu-Isso se torna um relacionamento de domínio, uma prática provinda da posse de objetos ou de realidades não objetivas reduzidas a objetos, nesse caso, torna-se fonte de destruição do ser, obstáculo à força de relação.

A dialogicidade exige que o homem procure se manter em uma relação de respeito diante da liberdade do outro, ou seja, exige uma relação instituída não pela dualidade do domínio e da submissão, do oprimir e ser oprimido, mas pela capacidade de comunicabilidade que vai além de um simples ajustamento e acomodação às ideias ou circunstâncias de um mundo prescrito. Martin Buber e Paulo Freire apresentam o ser humano, existindo como projeto, enquanto devir em um mundo de possibilidades: ser de busca por humanizar e humanizar-se.

A proposta político-pedagógica freireana (Freire, [1977] 2006FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1977] 2006.) investe na luta contra o sentir-se não ser, a fim de que toda pessoa possa assumir, de modo consciente e crítico, sua responsabilidade pelo contínuo devir do mundo com o outro, em um projeto de humanização. Essa reflexão remete ao sentido que atribui Martin Buber ([1982] 2007)BUBER, M. Eu e Tu. Tradução, introdução e notas por. Newton Aquiles Von Zuben 10. ed. São Paulo: Centauro, [1923] 2006. à responsabilidade: ação de responder para e por alguém ou a algo.

Abrindo-se ao outro e ao mundo, o homem confirma sempre mais o seu vir-a-ser por deixar-se questionar e pôr a si mesmo questionamentos, na busca de mais respostas para o sentido de sua existência com o outro e com o mundo. É dialógico o comportamento dos homens, um-para-com-o-outro, antes de qualquer fala e comunicação; é reciprocidade de ação interior.

Em Educação como prática da liberdade, Paulo Freire ([1967] 1994)FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 1994. define diálogo como relação horizontal entre duas pessoas, associando-o a um conjunto de valores sem o qual não é possível sua ocorrência, pois o diálogo se concretiza em atos de amor, humildade, fé, confiança, esperança.

Martin Buber e Paulo Freire veem na compreensão da dialogicidade humana o caminho para se viver de modo mais profundo a humanidade do homem. Essa reflexão foi uma importante referência para este estudo a fim de se pensar o sentido de diálogo na situação educacional da construção coletiva do projeto político-pedagógico, em vista de refletir uma educação que considera a pessoa em todo o seu valor relacional e possibilita renovação da sociedade e de suas estruturas.

Alguns pesquisadores no âmbito educativo têm procurado responder à pergunta "o que é o diálogo?", na busca do sentido atribuído à relação do eu com o outro e à interação com o objeto do diálogo, identificando implicações de uma formação para o diálogo no âmbito educacional (Mariotti, 2001MARIOTTI, H. Diálogo: um método de reflexão conjunta e observação compartilhada da experiência. Thot, São Paulo, SP, n. 76, p. 6-22, out. 2001.; Gonçalves, 2005GONÇALVES, M. A. S. Diálogo e solidariedade: bases de uma educação para a cidadania. Presente! Revista de educação, Salvador, v. 13, n. 48, p. 39-44, mar. 2005. Disponível em: <http://www.ceap.org.br/ed_anteriores/48.htm>. Acesso em: 9 jun. 2011.
http://www.ceap.org.br/ed_anteriores/48....
; Dalbosco, 2006)DALBOSCO, C. A. Incapacidade para o diálogo e agir pedagógico. In: TREVISAN, A. L.; TOMAZETTI, E. M. (Orgs.). Cultura e alteridade: confluências. Ijuí, RS: Unijui, 2006. p. 174-190. Disponível em: <http://www.ufsm.br/gpforma/livrocultura.pdf#page=174>. Acesso em: 10 jun. 2011.
http://www.ufsm.br/gpforma/livrocultura....
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A relação entre educador e educando tem suscitado a reflexão sobre as decorrências do diálogo (estabelecido, mantido ou rompido) entre esses dois interlocutores no processo educativo (Teixeira, 2007TEIXEIRA, I. A. C. de. Da condição docente: primeiras aproximações teóricas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 99, p. 426-43, maio/ago. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302007000200007> Acesso em: 11 jun. 2011.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Lomar, 2007LOMAR, T. P. O diálogo na prática docente: uma compreensão de professoras de uma escola pública do município de São Paulo. 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.; Gircoreano, 2008GIRCOREANO, J. P. Uma caracterização do diálogo significativo na sala de aula. 2008. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.). Alargando essa trama relacional, Borsato (2008)BORSATO, C. R. Relação escola e família: uma abordagem psicodramática. 2008. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. e Silva (2008)SILVA, M. L. S. Relação escola-família: possibilidade de aproximação em situação de dificuldades de aprendizagem dos alunos. 2008. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008., entre outros, mostraram estudos sobre a relação da escola com a família de educandos, justificando o quanto os familiares se tornam necessários parceiros no processo de ensino-aprendizagem escolar.

Percebe-se, portanto, o quanto o tema do diálogo é relevante no contexto educacional e o quanto pode fundamentar a prática escolar, como a construção coletiva de um projeto político-pedagógico.

Projeto político-pedagógico e sua construção coletiva

O processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico foi a situação a que os participantes deste estudo se voltaram para interrogar, compreender e descrever sua compreensão sobre diálogo.

A palavra projeto vem do latim projectus e significa lançar para frente, arremessar. "Projetar-se é relacionar-se com o futuro, é começar a fazê-lo. E só há um momento de fazer o futuro - no presente. O futuro é o que viveremos como presente, quando ele chegar. E que já está presente, no projeto que dele fazemos" (Rios, 1992RIOS, T. A. Significado e pressupostos do projeto pedagógico. In: SÃO PAULO (SP). Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE). Diretor: articulador do projeto da escola. São Paulo: FDE, 1992. p. 73-77.). Projetar a vida escolar é aceitar o desafio de construir sua intencionalidade educativa.

O projeto político-pedagógico é uma intencionalidade declarada na busca de atingir uma necessidade real da escola, por isso faz-se necessário que todos os integrantes da escola pactuem com essa intenção norteadora. Projetar é um processo que se desdobra em uma temporalidade flexível aos limites e possibilidades da comunidade escolar. Não há um modelo de projeto, cada escola constrói o seu, de acordo com seus princípios, suas metas, condições e necessidades (Veiga, 2004VEIGA, I. P. A. Projeto político-pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: VEIGA, I. P. A. (Org.). Projeto político-pedagógico da escola: uma construção possível. 17. ed. Campinas, SP: Papirus, 2004. p. 11-35.).

O projeto de uma escola se faz político por estar comprometido com a formação de cidadãos para uma sociedade, habilitando-os a exercer, de modo sempre mais crítico, o papel de participação nas decisões e leis que regem o Estado. Portanto, ao se construir um projeto político-pedagógico, deve-se buscar meios que possibilitem o envolvimento de toda a comunidade educativa nessa construção (educandos, familiares, educadores, coordenadores, diretor e vice-diretor, agentes educativos), a fim de que, enquanto sujeitos de sua história, participem ativamente nas tomadas de decisões e na sua realização. A autonomia da escola é construída somente a partir de uma gestão democrática (Gadotti, 2000GADOTTI, M. O projeto político-pedagógico da escola na perspectiva de uma educação para a cidadania. In: GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 35-39.).

A dimensão pedagógica está imbricada na dimensão política, pois é nela que a politicidade escolar se concretiza. O pedagógico não se restringe a uma função técnica e metodológica; fundamenta-se em finalidades e objetivos sociopolíticos. Toda ação pedagógica nunca é neutra, pois expressa intencionalidade de valores e opções ideológicas (Severino, 1988SEVERINO, A. J. O projeto político-pedagógico: a saída para a escola. Revista de Educação AEC, Brasília, DF, p. 85-91, abr./jun. 1998.; Cortella, 2004CORTELLA, M. S. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2004.).

Embora seja uma exigência legal (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 7 jun. 2011.
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) que toda a comunidade educativa participe na construção do projeto político-pedagógico da escola, Schmidt Neto (2007)SCHMIDT NETO, A. A. Educação e complexidade: a construção do projeto político-pedagógico. Taubaté, SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2007. adverte que não se garante tal comprometimento, em seu sentido democrático, somente com a legislação, haja vista que, para cada escola, ele é uma conquista gradual, em que se faz necessário criar condições dialógicas entre as pessoas envolvidas.

Acredita-se em uma gestão democrática da educação - que se contrapõe à ação técnica de gerenciamento empresarial, vivida pela imposição, pelo comando e controle de pessoas - por se constituir em ação político-pedagógica fundamentada na busca de estabelecer comunicação dialógica entre as pessoas, compartilhando o mesmo poder de tomada e de implementação de decisões.

Método: constituição da situação de pesquisa

Esta seção apresenta as opções metodológicas que orientaram o procedimento de investigação: breve descrição do contexto; apresentação dos participantes; procedimentos utilizados a fim de interrogar e compreender a temática em estudo.

O contexto

O grupo de gestores, educadores e representantes da comunidade que participou desta pesquisa fez parte da história de luta de um bairro da zona norte de São Paulo que nasceu no início da década de 1990 e caracterizava-se como um dos mais desprovidos dessa região. Sua história teve início por meio de uma ocupação irregular de várias famílias, a maior parte nordestina, que partilhavam as mesmas situações precárias, como a falta de água encanada, luz elétrica, segurança, além do risco de perderem o improvisado abrigo, dado que o proprietário havia recorrido à justiça para a reintegração de posse do terreno.

No ano de 1991, criou-se uma associação de moradores de bairro, a fim de buscar melhorias para a ocupação irregular, que, pouco a pouco, tornava-se uma grande comunidade. Uma das primeiras conquistas da associação de moradores do bairro foi a implantação do CEI, sob sua gestão, em 1992, em resposta à preocupação de pais e/ou familiares obrigados a deixar suas crianças sozinhas em casa para ir trabalhar.

Ainda em 1992 foi realizado o primeiro acordo judicial para a compra da terra, a qual foi efetivada após dois acordos seguintes. Por meio de várias atividades comunitárias e auxílios, com mediação da associação de moradores do bairro, as famílias dessa comunidade conseguiram a renda necessária para a compra do terreno, regularizando sua situação com a posse do terreno.

Ao longo da sua trajetória, essa associação de moradores do bairro fez parcerias importantes, até mesmo com uma organização não governamental internacional, para buscar melhor qualidade de vida para os moradores, focalizando, sobretudo, as crianças e os jovens da comunidade. Foram criados vários projetos sociais, como o Agente Jovem, que surgiu no ano de 2003, em parceria com a Secretaria do Estado de Assistência Social (Seas), devido à preocupação dos moradores da comunidade com a situação dos jovens desse local, vulneráveis a violências várias.

Em 2006, constataram-se algumas dificuldades permeando o cotidiano do CEI e do Agente Jovem: falta de clareza sobre as linhas pedagógicas que norteavam suas ações, dificuldade de sistematização das propostas a serem adotadas pelo grupo e existência de práticas incoerentes entre gestores e educadores e entre os próprios educadores. Diante dessa realidade, chegou-se à compreensão da necessidade de um projeto que contivesse concepções e valores a serem assumidos por todos. Com o apoio de pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), traçou-se um cronograma para a primeira construção coletiva do projeto político-pedagógico do CEI e do Agente Jovem.

O processo de planejamento e de construção coletiva do projeto político-pedagógico teve duração de dois semestres, tendo iniciado no segundo semestre de 2007. Esse processo foi organizado em duas etapas. A primeira teve como objetivo estudar sistematicamente as partes componentes do projeto político-pedagógico, bem como sua origem e sua finalidade. A segunda referiu-se à sua construção coletiva.

Participantes

A escolha dos participantes teve como critério a participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico. Segue a apresentação de cada participante. Os nomes utilizados são fictícios.

Quadro 1
Participantes na Construção do Projeto Político-Pedagógico da Pesquisa Apresentada - 2009

Procedimentos: a questão do diálogo, como interrogar?

Instigar a busca de conhecimento sobre a própria experiência de diálogo não é somente um ato que requer exercício voltado à captação de algo externo a si, mas comporta principalmente voltar-se-para-si-mesmo ao perceber-se existindo-com-o-outro. Assim, interrogar a compreensão de diálogo exigiu proporcionar aos participantes desta pesquisa a oportunidade para que eles pudessem falar de si mesmos por meio de sua prática educacional, na interlocução com outras pessoas.

A entrevista reflexiva em grupo (Szymanski, 2002SZYMANSKI, H.; ALMEIDA, L. R.; PRANDINI, R. C. A. R. Perspectivas para a análise de entrevista. In: SZYMANSKI, H. (Org.). A entrevista reflexiva em educação: a prática reflexiva. Brasília, DF: Plano, 2002. p. 63-86.) foi o caminho escolhido para esta investigação, por constituir-se em encontros semidirigidos e sem roteiro fechado, enquanto meio facilitador na reflexão e construção da narrativa dos participantes.

Após cada entrevista coletiva, realizou-se sua transcrição para que o texto resultante pudesse ser lido, a fim de sistematizar o conteúdo de forma mais compreensiva, retirando os vícios de linguagem. Elaborou-se um texto-síntese, na busca de conhecer a compreensão dos entrevistados sobre o fenômeno interrogado.

Em um novo momento de encontro em grupo, realizou-se a devolutiva, por meio da qual se explicitou a compreensão sobre o sentido de diálogo revelado nos relatos. Nesse encontro, fez-se uma leitura grupal do texto- síntese, para que fosse verificada a fidedignidade do conteúdo ali apreendido, dando espaço para esclarecimento de alguma ideia e comentários.

Ao todo, aconteceram três entrevistas reflexivas em grupo e as respectivas devolutivas. A seguir, destaca-se um quadro panorâmico das entrevistas realizadas, apresentando as questões desencadeadoras e os participantes indicados pelos nomes fictícios.

Quadro 2
Panorama das Entrevistas Realizadas

Como foi possível observar no Quadro 2, houve uma oscilação do número de participantes, por falta de disponibilidade em participar de todas as entrevistas e devolutivas agendadas. Essa limitação, porém, não prejudicou o andamento da pesquisa.

Resultado e análise

Foi possível perceber que, desde o primeiro contato com o contexto da pesquisa, deu-se início ao processo de compreensão de diálogo, expressando-se como inquietação em torno daquilo que se pretendia compreender e do modo como se iria compreender.

A leitura das entrevistas transcritas possibilitou entender o sentido geral de diálogo para os participantes da pesquisa. Após uma nova imersão nos dados como um todo, por meio de várias releituras, foi possível entrever unidades de significado em torno do fenômeno em estudo, sem perder de vista o seu contexto (Szymanski; Almeida; Prandini, 2002SZYMANSKI, H.; ALMEIDA, L. R.; PRANDINI, R. C. A. R. Perspectivas para a análise de entrevista. In: SZYMANSKI, H. (Org.). A entrevista reflexiva em educação: a prática reflexiva. Brasília, DF: Plano, 2002. p. 63-86.). Ao agrupar, na análise, as unidades de significado, juntando conceitos semelhantes que indicaram proximidade de sentido, identificaram-se duas categorias denominadas "procurando interagir" e "o sentido de diálogo se desvelando no processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico". Incluem-se nesta subseção as considerações teóricas suscitadas pela análise dos dados.

Procurando interagir

Essa primeira grande categoria evidencia o que os gestores, educadores e representantes da comunidade que participaram deste estudo, de modo geral, indicaram ser o fenômeno do diálogo vivenciado por eles: aquilo que se instaura no momento em que as pessoas estão juntas, interagindo, independentemente do motivo ou de que modo acontece. A compreensão da prática dialógica emergiu, portanto, como sinônimo de interação humana e esteve direcionada aos atos de conversa, silêncio, participação, integração e construção de conhecimento.

Conversa

A linguagem, enquanto mediação da interação humana, foi delimitada à conversa vivida pela fala e escuta, gerando entendimento: "é uma via de mão dupla, um fala, outro escuta, aí cabe uma reflexão, cabe um entendimento. É uma articulação da linguagem" (Marília).

O grupo compreendeu que conversa seria uma ação voltada a alguém, em que, para ser dialógica ("algo que dê certo"), todos os interlocutores envolvidos na comunicação têm oportunidade de falar: "você tem que falar e o outro escutar, assim sucessivamente para que dê certo; se um fala e o outro fica quieto, aí já não teve diálogo, pois o outro precisa argumentar" (Roberta).

Essa definição, apresentada pelos participantes da pesquisa, mostrou uma significação comumente atribuída ao diálogo: conversa, meio de comunicação estabelecido pela linguagem. De fato, recorrendo ao dicionário, entre outros significados para o termo diálogo, encontra-se: "fala em que há a interação entre dois ou mais indivíduos; colóquio, conversa" (Houaiss, 2007HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. de; FRANCO, F. M. M. de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.).

Tanto a discussão quanto o debate foram definidos enquanto ato de conversar, atribuindo-se a significação ora de exposição de opiniões e do próprio entendimento sobre o que é falado, ora de falas que expressam divergências de ideias, na busca de um consenso: "acho legal também quando o grupo se reúne para debater, e aí de repente: 'ah, não é dessa forma, é desse jeito', cada um tem sua visão e vai chegando num consenso comum" (Ângela).

A crítica emergiu como ação presente na conversa, mencionada seja como expressão de algo negativo de uma pessoa a outra, seja como possibilidade de conquistar novos adeptos a certa ideia. Buscar saber ouvir o outro é uma atitude dialógica que foi considerada significativa pelos entrevistados.

Há outro fato também para considerar a respeito do diálogo: é a questão do ouvir. Existem algumas resistências. Eu, por exemplo, penso sempre que as pessoas estão entendendo as questões, acabava não ouvindo certas pessoas e preciso ouvi-las mais. [...] É nessa experiência do diálogo que você vê onde estão as dificuldades para trabalhar com elas. Ouvir é uma tarefa difícil. Encontrar tempo para ouvir não é fácil. (Henrique).

Os participantes explicitaram, com a ideia de conversa, um primeiro movimento em direção ao outro, em busca de dialogar. De fato, o fenômeno do diálogo, segundo o referencial estudado, configura-se em uma condição existencial que vai além daquela de estar junto com alguém a fim de fazer algo, de uma conversa mediada pela fala e pela escuta.

Martin Buber ([1982] 2007)BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. Tradução: Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, [1982] 2007. indica que as pessoas permanecem voltadas-uma-para-a-outra a partir do momento em que vivem uma experiência concreta de reciprocidade e, assim, se tornam abertas para perceber a presença do outro enquanto diferente de si. Na opção dialógica, os homens permanecem interligados, ainda que distantes entre si.

Paulo Freire ([1967] 2005, p. 93)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 2005. diz que dialogar é ter intensa fé nos homens, sendo a fé uma postura que antecede ao ato de estar diante de alguém e que impulsiona o desejo de estabelecer interação: "A fé nos homens é um dado a priori ao diálogo. Por isso, existe antes mesmo de que ele se instale".

Silêncio

O silêncio como experiência presente no encontro inter-humano foi percebido enquanto ato de ficar calado. Entendeu-se a omissão da fala como fala reprimida e a dificuldade em expor no coletivo aquilo que se pensava atribuiu-se a fatores emocionais.

Existem fatores que impedem as pessoas se expressarem. As pessoas não se expressam, elas vivem muito o silêncio, falam muito nos bastidores, não conseguem expor isso num ambiente mais adequado, num ambiente crítico, para se encaminhar, se ouvir, se discutir. [...]. Às vezes chega a se expressar, mas não naquilo que realmente gostaria de falar, de expor. [...]. (Henrique).

Houve um relato de experiência em que uma pessoa disse não conseguir identificar nenhum exemplo de situação dialógica vivenciada durante sua participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico. Nesse grupo, sentia-se inibida em dizer aquilo que pensava ou acreditava.

Sobre a experiência atribuída ao silêncio, é possível identificar, em uma postura dialógica, a necessidade de se atentar para que as pessoas encontrem possibilidades de se pronunciarem livremente. Indo além do fato de falar ou não, a dialogicidade possibilita perceber o valor da presença de cada pessoa na relação, a fim de que, no encontro entre pessoas, haja diminuição do sentimento de inibição ou de coação, segundo terminologia usada por Martin Buber ([1926] 2004)BUBER, M. Sull'educativo. In: BUBER, M. Il principio dialogico e altri saggi. Edizione italiana a cura de Andrea Poma. 4. ed. Milano: San Paolo Edizioni, [1926] 2004. p.162-182. .

Proporcionar um ambiente educativo onde as pessoas se sintam livres e confiantes para dizerem aquilo em que acreditam, seus valores, é uma experiência que acontece em um processo gradual, priorizando uma postura respeitosa e compreensiva perante o outro. Nesse sentido, Martin Buber ([1982] 2007)BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. Tradução: Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, [1982] 2007. diz que é preciso escutar também as palavras que passam através do silêncio, em uma postura voltada a viver com o outro uma relação na ausência de reserva.

Participação

O sentido de participação esteve relacionado ao encontro de ideias diferentes. Disseram ser necessário que as pessoas, na participação, defendessem as próprias convicções. A relação entre participação e divulgação da proposta de construção coletiva justificou-se como busca por mais pessoas que pudessem propor novas opiniões e possibilitar projeções futuras, a fim de se integrarem ao grupo.

Foi identificada participação de forma direta, vivida de modo ativo, indo além de uma postura de neutralidade, e de forma indireta, característica de quem escolheu estar presente nas discussões como ouvinte, para aprender com a experiência dos outros por meio dos relatos fornecidos.

A escolha em participar foi qualificada como expressão de confiança na transformação desse contexto social: "e a minha visão sobre tudo, sobre o diálogo, eu costumo dizer, que minha estadia nesse enredo todo é participar das mudanças" (Cristina).

Uma participação dialógica é possível, segundo Paulo Freire ([1967] 2005)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 2005., somente no encontro entre pessoas que pactuam com o desejo de pronunciar o mundo, ou seja, que buscam adquirir sempre mais consciência de si e do mundo, querendo transformá-lo, ressignificá-lo. Por isso, a participação não se limita a uma experiência de negociação ou mediação de conflitos na busca de priorizar a visão de um ou da maioria no encontro entre ideias diferentes, nem mesmo somente à disponibilidade da escuta. No entanto, ela possibilita que todos os envolvidos na interlocução encontrem espaço para expressar suas convicções, valores, podendo, assim, sentir confiança e transmitir confiança (Freire, [1967] 2005FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 2005.). A dialogicidade é favorecida quando se buscam caminhos de complementaridade entre visões diferentes e não a escolha de uma visão em detrimento de outras.

Integração

Os participantes identificaram a ocorrência de maior ligação entre as pessoas e uma nova disposição ao trabalho coletivo, relatando ter percebido uma equipe mais integrada. Constataram maior aproximação entre pessoas, equipes de trabalho e organizações educativas na construção de um objetivo comum, além de explicitar sentimento de satisfação pelas mudanças positivas nas relações. Vejamos:

Houve, assim, uma abertura a mais ao diálogo. As pessoas estão conversando e estão participando. O trabalho ficou bem mais gostoso e mais interessante. Antes, tinha uma coisa meio fechada assim: CEI, CEI, associação, associação. Embora sempre o trabalho fosse junto, mas não entre os funcionários: não tinha uma ligação. (Luiz).

O projeto [político pedagógico] proporcionou que todos os "projetos" pudessem estar dialogando mais. Antes, cada um ficava no seu espaço e era mais reservado. Hoje já não é assim, todos estão conversando e todos estão montando algo para que todos possam estar juntos. (Marília).

Na participação da vida coletiva, sistematizada em instituições, as relações estão organizadas por normas, estruturas e finalidades, componentes necessários para que tudo aconteça. Diante do que foi relatado pelos participantes da pesquisa sobre experiência de integração, desvelou-se que no entremeio da vida cotidiana institucional houve uma busca não somente de cumprir tarefas, mas também de solidariedade em um trabalho integrado com outros e com o todo. Martin Buber (1987) anuncia uma educação que tem como projeto fundamental a formação de uma nova sociedade, construída no alicerce da solidariedade e reciprocidade.

Construção de conhecimento

Perceber a interação humana como construção de conhecimento foi uma experiência que esteve relacionada ao resgate que fizeram da história da comunidade. Pôde-se perceber o conceito de conhecimento relacionado aos de construção e de descoberta, o que possibilitou apreender o sentido histórico que vivenciaram nessa comunidade: "Eu acho que foi o momento que a gente conheceu a vida, a comunidade e trocou ideias, conversou o que sabia" (Luisa).

Para alguns, isso teve significação de um conteúdo a ser transmitido para outras pessoas:

O diálogo aqui para mim é um aprendizado interessante. Sou novo na instituição, muitas vezes no diálogo vivido nesse grupo do PPP2 2 PPP refere-se a projeto político-pedagógico. você acaba colhendo o histórico da instituição. [...] É inclusive um material de estudo para eu estar passando para os jovens. (Rogério).

Houve quem indicasse o diálogo no sentido de formação, voltado a facilitar uma melhor compreensão do mundo, das coisas e das pessoas: "Acredito que o diálogo seja compreensão de mundo, porque, se você tem um bom diálogo, você compreende melhor o mundo, as coisas, as pessoas" (Luisa).

Em cada encontro coletivo para a construção do projeto político-pedagógico, os participantes trocaram intencionalidades e sentidos sobre o mundo; buscaram aprofundar o próprio conhecimento; encontraram ou não confirmações e novas concepções. Esse foi um processo de situação cognoscitiva (Freire, [1977] 2006), em que os participantes experimentaram intercomunicação e produziram novo conhecimento de mundo, enquanto buscavam rever e reconstruir a proposta de educação do CEI e do Agente Jovem.

O mundo humano é objeto de conhecimento humano e, enquanto mundo cultural, torna-se mediador de comunicação entre homens. Os homens dialogam entre si mediatizados pelo mundo, diz Paulo Freire ([1967] 2005FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 2005.). Desse modo, pôde-se perceber na experiência dos entrevistados, assim como se vê em Martin Buber ([1982] 2007BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. Tradução: Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, [1982] 2007.), que o fundamento do processo de humanização do homem não está somente na sua relação enquanto sujeito cognoscente com o objeto cognoscitivo, mas na intercomunicabilidade.

A constituição desse bairro foi um processo "atravessado" por sacrifícios e luta, até que a comunidade obtivesse o terreno. Recordar determinados fatos foi, para algumas pessoas, o mesmo que reconstruir a própria história de vida, uma situação de partilha, com fortes emoções, que provocou uma nova percepção da própria história e do vínculo com as outras pessoas.

As indagações e inquietações que os encontros suscitaram fizeram com que as pessoas se defrontassem com sua condição de inacabamento. Houve momentos, como foi indicado, em que elas perceberam-se movidas pelo mesmo desejo de aprendizado. Nessa postura de abertura diante de uma novidade, foi possível apreender o sentido de liberdade enquanto possibilidade de decisão e escolhas no acolhimento de perceber-se como sujeito de uma história muito significativa, marcada de gestos de solidariedade (Freire, [1967] 1994FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 1994. ).

O sentido de diálogo desvelado no processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico

Nessa segunda categoria, identifica-se o sentido de diálogo desvelado enquanto parte do processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico pelos gestores, educadores e representantes da comunidade que participaram desta pesquisa.

A proposta de construir coletivamente o próprio projeto político-pedagógico foi identificada como "vontade de dialogar", demonstrando interesse e disponibilidade das pessoas em participar dessa construção: "O próprio esforço pra fazer com que esse projeto não seja um projeto escrito por uma pessoa [...] já é uma demonstração da vontade de dialogar" (Henrique).

Essa proposta, que foi a primeira desse grupo, foi conceituada como teoria norteadora do trabalho educativo, como explicita Andrea: "disse a ela o que seria essa proposta de construção do projeto político-pedagógico, um grupo que se encontra com a finalidade de refletir na proposta, uma teoria que irá nortear todo trabalho da instituição".

O grupo percebeu essa experiência como um desafio, dizendo ser mais fácil viver uma prática coletiva relativa à realização de atividades em conjunto do que pensar coletivamente, que representou, para eles, o exercício de pensar, em grupo, a intencionalidade educativa das organizações educativas: "você pode até ter uma prática coletiva, mas o pensar coletivo é uma experiência concreta. Então, o esforço de sair da prática, ou seja, de pensar coletivamente, é um caminho, um bom exercício" (Henrique).

Foi possível apreender a compreensão de diálogo, no âmbito da experiência relatada de construção coletiva do próprio projeto político-pedagógico, como prática educativa não somente voltada ao exercício de tarefas tecnicamente burocráticas, mas também a um processo de abertura à coparticipação entre seus atores (Gadotti, 2000GADOTTI, M. O projeto político-pedagógico da escola na perspectiva de uma educação para a cidadania. In: GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 35-39.). Quando essa experiência, em alguns momentos, foi assumida rumo a uma gestão participativa, fez-se ambiente formativo, exigindo comprometimento de todos no ato de refletir a relação dialética homem-mundo em processo de vir-a-ser. Em outros momentos, houve também impulso de querer, como fruto imediato, o texto final, arriscando-se, assim, a dar sentido secundário à experiência comunitária na vivência solidária de cogestão.

A participação nessa construção fez com que os envolvidos percebessem que não se tratava de proposta de construir um documento, uma vez que indicaram a importância de que não fosse algo somente para "ficar no papel".

Os participantes relataram que a construção coletiva os levou a perceber a necessidade de maior disposição em ouvir o outro, sem que esta seja uma atitude fácil, por exigir tempo: "tem que haver abertura e disponibilidade, às vezes há abertura e não disponibilidade, a pessoa tem outras prioridades que não seja sentar e conversar sobre as decisões a serem tomadas. Então há uma contribuição aí também, muito grande" (Henrique).

Identificaram dificuldade de relacionamento nas tramas de relações vividas no cotidiano escolar e necessidade de buscar como trabalhar com essas dificuldades. Desse modo, a fala dialógica foi identificada como sincera e sem temor. Outro aspecto foi a explicitação de maior responsabilidade com o objetivo comum, aprendendo a lidar com o poder.

Nesses relatos emergiu, portanto, uma postura inquieta na procura de condições melhores para a comunidade educativa, nas tentativas e escolhas para fomentar vínculos solidários de uns com os outros - conduta que tendeu a criar novas possibilidades de convivência e de prática educacional. Nesse sentido, é possível caminhar rumo a uma atuação comunitária de intencionalidade nas práticas educativas (Severino, 1998SEVERINO, A. J. O projeto político-pedagógico: a saída para a escola. Revista de Educação AEC, Brasília, DF, p. 85-91, abr./jun. 1998.) se as pessoas, na convivência cotidiana em seu contexto educativo, estiverem voltadas a viver não somente um relacionamento em função de uma tarefa, o que seria para Martin Buber (1987BUBER, M. Sobre comunidade. Tradução: Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Perspectiva, 1987.) coletividade e não comunidade.

Os participantes, reunidos em grupo para a construção coletiva do projeto político-pedagógico, tentaram, enquanto realizavam uma proposição em comum, viver um envolvimento em processo de abertura um à presença do outro, buscando acolher as diferenças e as dificuldades que emergiram. Desse modo, foi possível perceber que procuravam vivenciar, em pequena proporção no grupo, mudanças de relacionamento e transformação que almejavam para o bairro, para a sociedade (Rios, 1992RIOS, T. A. Significado e pressupostos do projeto pedagógico. In: SÃO PAULO (SP). Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE). Diretor: articulador do projeto da escola. São Paulo: FDE, 1992. p. 73-77.; Severino, 1998SEVERINO, A. J. O projeto político-pedagógico: a saída para a escola. Revista de Educação AEC, Brasília, DF, p. 85-91, abr./jun. 1998.).

Para que essa experiência de dialogicidade perdure, isto é, sempre fomente mais atos solidários na atuação educativa, Paulo Freire ([1967] 2005) indica a importância de estabelecer atitudes de testemunho entre as pessoas, manifestando-as mutuamente. Martin Buber ([1982] 2007)BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. Tradução: Marta Ekstein de Souza Queiroz e Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, [1982] 2007. também indica a coerência pessoal entre aquilo que se fala e aquilo que se faz, para que haja confiança recíproca e possibilidade de novos relacionamentos.

Considerações finais

O percurso de aprofundamento deste estudo sobre a compreensão de diálogo, em um processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, revelou uma experiência de convivência significativa entre as pessoas da comunidade aqui referida, uma procura por reconhecer o valor das relações interpessoais.

Foi possível considerar, perante o conhecimento que emergiu da compreensão dos participantes sobre diálogo, que a experiência de interação humana constituiu-se por atitudes que representaram o ir e vir de uma busca dialógica, ou seja, a tensão entre ser dialógico ou não. Os participantes identificaram atitudes tanto de acolhida como de exclusão; de pronunciamento como de omissão; de escuta como de aversão; de expressividade como de inibição; de estranheza como de aproximação, integração, conhecimento.

Dessa forma, mostraram que a dialogicidade humana é um processo de amadurecimento relacional sempre em construção, com progressos e retrocessos, incluindo dificuldades em estabelecer uma atitude dialógica ou nela permanecer.

Nessa direção, este estudo mostrou a apreensão de diálogo para além de uma técnica ou ferramenta de interação, identificando possibilidades de novas relações no grupo de educadores entrevistados. A análise dos dados apontou diálogo como interação por meio de conversa, silêncio, participação, integração e construção de conhecimento, possibilitando entrever uma busca para além do cumprimento de tarefas, intencionada aos atos solidários, à disposição para o trabalho coletivo, à acolhida do outro como alguém diferente de si.

Compreender diálogo para além de uma técnica ou ferramenta de interação não nega, porém, a possibilidade de se pensar em maneiras ou estratégias para favorecer o diálogo, assumindo princípios considerados necessários para sua vivência, como priorizar a escuta do outro, buscar participação e maior integração, acolher as diferenças. Paulo Freire ([1967] 1994)FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1967] 1994. acrescentaria: ter amor ao mundo, fé no homem, esperança, humildade.

Investigar como gestores, educadores e representantes de uma comunidade compreenderam diálogo, a partir da experiência vivida no processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico, levou a perceber essa construção como um espaço de trabalho coletivo, no qual a disposição das pessoas ao encontro com o outro transformou esse momento de articulação entre teoria e prática em uma rica experiência de crescimento intelectual, ético e humano, enquanto luta por uma educação democrática para formar cidadãos para uma sociedade mais humana.

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  • *
    Refere-se à síntese da pesquisa para dissertação de mestrado em Psicologia da Educação sob o título A compreensão de diálogo em uma experiência de construção coletiva do projeto político-pedagógico: um estudo à luz do pensamento de Martin Buber e Paulo Freire (Xavier, 2009)
  • 1
    O Agente Jovem desenvolvido nessa comunidade seguia o projeto proposto pela Secretaria do Estado de Assistência Social (Seas) denominado "Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano".
  • 2
    PPP refere-se a projeto político-pedagógico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2014
  • Revisado
    18 Nov 2014
  • Aceito
    25 Nov 2014
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