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Aprendizagem matemática no contexto educacional ribeirinho: a análise de registros de representação semiótica em atividade de modelagem matemática

Mathematics learning in the riverine educational context: an analysis of semiotic representation registers in mathematical modeling activity

Resumo:

Apresenta análise cognitiva dos registros de representação semiótica produzidos pelos alunos investigados durante atividade de modelagem, abordando a temática do manejo sustentável do açaí - devido ao fato de a cultura desse fruto ser prática predominante na região -, com o objetivo de identificar as dificuldades na aprendizagem de função polinomial do 1º grau. Nas análises realizadas, procurou-se conhecer também a compreensão crítico-social dos alunos diante de sua realidade. A pesquisa abrangeu 24 alunos do 1º ano do ensino médio modular de uma escola pública de comunidade ribeirinha de Muaná-Marajó-Pará. Verificamos como a realidade em que o aluno está inserido influencia positivamente seu aprendizado quando é realizado um trabalho que resgata seus saberes, tornando-o mais participativo e empenhado nas atividades que lhe são propostas.

Palavras-chave:
semiótica; educação matemática; cultura; ribeirinho

Abstract:

This paper presents a cognitive analysis of semiotic representation registers, produced by the investigated students during a modeling activity. Due to the fact that the culture of açaí is a predominant practice in the region, this study addresses the sustainable management of the fruit in order to identify difficulties in the learning of the first degree polynomial function. The analyses also sought to investigate the critical-social understanding of students before their reality. The study counted on 24 students attending the 1st grade of a public modular high school located in a riverside community in the municipality of Muaná-Marajó in the state of Pará. It can be concluded that the reality in which the student is inserted influences positively their learning when it considers their previous knowledge, and enables them to be more participative and engaged in the proposed activities.

Keywords:
semiotic; mathematical education; culture; riverside

Introdução

A aprendizagem em matemática tem sido foco de diversas pesquisas em educação matemática, com grandes esforços por parte de professores e pesquisadores para o desenvolvimento de novas práticas pedagógicas que proporcionem uma melhor compreensão dos conteúdos, e, de forma mais significativa, com o objetivo de melhorar a qualidade da educação básica. Sob a égide desse contexto, nasce esta pesquisa para investigar as dificuldades de aprendizagem de função polinomial do 1º grau, a partir da análise dos registros de representação semiótica em uma atividade de modelagem matemática.

Segundo Almouloud (2007ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.), a utilização dos registros de representação semiótica se justifica por sua análise permitir conhecer o modo de pensar matemático do aluno e não apenas o conhecimento dos procedimentos próprios do conteúdo. E a escolha da modelagem matemática foi motivada por proporcionar, para essa análise, um ambiente de discussão, fazendo com que o aluno atue como agente de sua aprendizagem, oportunizando um trabalho que relacione a realidade, conhecida pelo aluno, como meio para discutir os conteúdos matemáticos envolvidos, além da conscientização de seu papel na sociedade.

Para a análise da aprendizagem matemática, utilizamos os conceitos de registro de representação semiótica propostos por Duval (2011DUVAL, R. Ver e ensinar matemática de outra forma: entrar no modo matemático de pensar: os registros de representação semiótica. São Paulo: PROEM, 2011.) e consideramos a compreensão crítico-social dos alunos diante de sua realidade, visto que a pesquisa foi realizada com alunos do 1º ano do ensino médio de uma escola da comunidade do Rio Inamarú, no município de Muaná, onde o ensino médio é desenvolvido na modalidade modular. A escola não possui energia elétrica diariamente, tem precário acesso à comunicação telefônica e o acesso à internet, de baixa qualidade, é restrito à administração.

Os protocolos com os registros dos alunos são oriundos da realização de atividade de modelagem matemática que contemplava uma prática comum entre eles: a colheita de açaí. A temática se deu porque a região tem grande produção natural do fruto e tal prática é rotineira para os membros da comunidade. Envolvemos na temática conhecimentos de manejo sustentável, por ser uma técnica pouco conhecida e não praticada por essa comunidade muanense. Acreditamos que tal técnica tem um potencial de discussão social bastante abrangente.

Registros de representação semiótica

Valemo-nos dos trabalhos de Duval (2003DUVAL, R. Registros de representação semiótica e funcionamento cognitivo da compreensão em matemática. In: MACHADO, S. D. A. (Org.). Aprendizagem em matemática: registros de representação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 11-34., 2009) a respeito de registros de representação semiótica na aprendizagem em matemática, por meio de análises cognitivas - esse tipo de abordagem permite que, inicialmente, se descreva o funcionamento cognitivo que possibilita ao aluno "compreender, efetuar e controlar ele próprio a diversidade dos processos matemáticos que lhe são propostos em situações de ensino." (Duval, 2003DUVAL, R. Registros de representação semiótica e funcionamento cognitivo da compreensão em matemática. In: MACHADO, S. D. A. (Org.). Aprendizagem em matemática: registros de representação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 11-34., p. 12). A importância das representações semióticas e a grande variedade dessas representações utilizadas em matemática caracterizam uma atividade matemática do ponto de vista cognitivo.

A noção de representação, segundo o referido autor, é essencial para se estudar os fenômenos relativos ao conhecimento, pois a mobilização de um conhecimento depende de uma atividade de representação. Em relação aos conhecimentos matemáticos e aos problemas que sua aprendizagem origina, Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27)., p. 32) expõe que

a especificidade das representações semióticas consiste em serem relativas a um sistema particular de signos, a linguagem, a escritura algébrica ou os gráficos cartesianos, e em poderem ser convertidas em representações "equivalentes" em outro sistema semiótico, mas podendo tomar significações diferentes para o sujeito que a utiliza. A noção de representação semiótica pressupõe, então, a consideração de sistemas semióticos diferentes e de uma operação cognitiva de conversão das representações de um sistema semiótico para outro.

Assim, em matemática, uma representação semiótica só é interessante à medida que pode se transformar em outra representação, e não em função do objeto que ela representa. É relevante ressaltar que a compreensão em matemática está diretamente ligada à capacidade de distinguir um objeto de sua representação, por isso a importância de se reconhecer objetos matemáticos em suas diversas representações semióticas possíveis.

Segundo Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).), existem três fenômenos que confrontam a análise do desenvolvimento do conhecimento e seus obstáculos: a diversificação dos registros de representação semiótica, a diferenciação entre representante e representado e a coordenação entre os diferentes registros.

No primeiro fenômeno, temos que a oposição feita entre linguagem e imagem é a primeira aproximação da diversificação dos registros de representação semiótica, pois a linguagem natural e as línguas simbólicas não podem ser consideradas como formadoras de um único registro, já que colocam questões de aprendizagem específicas.

O segundo fenômeno nos mostra a dificuldade de diferenciar representante de representado, pois para que isso de fato aconteça é necessário associar ao representado outras representações e integrá-las aos procedimentos do tratamento. Finalmente, no terceiro fenômeno, entendemos que o conhecimento de regras de correspondência entre dois sistemas semióticos diferentes não é suficiente para que eles possam ser mobilizados e utilizados juntos.

Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).) afirma que existem três atividades cognitivas de representação inerentes à apreensão ou à produção de uma representação necessárias para uma análise semiótica: formação, tratamento e conversão.

A formação de uma representação semiótica é recurso a um (ou a muitos) signo(s) para atualizar a atenção voltada a um objeto ou para se substituir essa atenção; assim a formação diz respeito à designação nominal de objetos, à reprodução de seu contorno percebido e à codificação de relações ou de certas propriedades de um movimento.

É importante destacar que a formação das representações semióticas deve respeitar as regras próprias ao sistema empregado. Desse modo, uma representação semiótica não deve sair do domínio definido pelas regras que constituem tal sistema, pois essas regras "permitem o reconhecimento das representações como representações num registro determinado." (Duval, 2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27)., p. 55-56). O seguimento das regras de conformidade de um sistema propicia que um sujeito dê o sentido de uma representação mesmo que ele não a tenha produzido.

O tratamento é

a transformação de uma representação obtida como dado inicial em uma representação considerada como terminal em relação a uma questão, a um problema ou a uma necessidade, os quais fornecem o critério de parada na série de transformações efetuadas. (Duval, 2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27)., p. 56-57).

O tratamento é uma transformação interna a um registro e, segundo esse autor, corresponde à expansão informacional, ocorrendo com a utilização apenas de um registro de representação.

Nessa linha de pensar, Almouloud (2007ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.) afirma que temos os tratamentos algoritmizáveis, que podem ser exemplificados como os procedimentos de operações aritméticas, na resolução de equações, gráficos cartesianos (mudanças de sistema de coordenadas, interpolação), e os tratamentos não algoritmizáveis, que são exemplificados como as figuras geométricas e a língua natural quando utilizada para expressar as formas de raciocínio (argumentação e dedução).

Nas aulas da disciplina, é possível perceber que existe uma valorização excessiva do tratamento dos conceitos matemáticos, pois os alunos são levados a um treinamento exaustivo das técnicas operacionais de todos os objetos matemáticos que lhes são dados a conhecimento. Do ponto de vista matemático, esse treinamento é válido para operar com destreza e habilidade esses conhecimentos; no entanto, do ponto de vista cognitivo, entendemos que essa valorização seja a causa de tanta confusão na distinção dos objetos matemáticos e suas representações.

Finalmente, a conversão, segundo Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27)., p. 58), é a transformação da "representação de um objeto, de uma situação ou de uma informação dada num registro em uma representação desse mesmo objeto, dessa mesma situação ou da mesma informação em outro registro". Diferente do tratamento, a conversão mobiliza mais de um registro, passando de um para outro, sendo assim uma transformação externa em relação ao registro de partida.

Almouloud (2007ALMOULOUD, S. A. Fundamentos da didática da matemática. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.) nos diz que existem dois tipos de conversão: aqueles que utilizam a língua natural e aqueles que não a utilizam. Entre os que utilizam, podemos exemplificar como a compreensão de um enunciado ou a relação entre gráficos e textos. Enquanto entre aqueles que não utilizam a língua natural, temos, como exemplo, a relação entre gráfico e equação.

Do ponto de vista matemático, a conversão seria a utilização de um registro mais prático em dada situação-problema, enquanto que, do ponto de vista cognitivo, esta é a atividade de transformação fundamental, pois conduz aos mecanismos subjacentes à compreensão. Para Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).), a conversão das representações semióticas constitui a atividade cognitiva menos espontânea e mais difícil de adquirir para a grande maioria dos alunos, pois a mudança dos registros gera obstáculos que não dependem da complexidade do campo conceitual. Esse autor afirma que uma aprendizagem centrada especificamente na mudança e na coordenação de diferentes registros de representação produz excelentes resultados na compreensão.

Vertuan (2007VERTUAN, R. E. Um olhar sobre a modelagem matemática à luz da teoria dos registros de representação semiótica. 2007. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) - Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007) descreve que a conversão pode ser congruente quando a representação, após a conversão, deixa clara a representação existente antes dessa operação; da mesma forma, uma conversão não congruente é aquela em que não existe tal clareza, ou seja, o registro de chegada em nada lembra o de partida.

Na análise presente neste trabalho, daremos prioridade à conversão entre o registro em língua natural e o registro aritmético, buscando verificar o nível de compreensão dos alunos, no que diz respeito à interpretação dos enunciados das questões relacionados a um texto informativo previamente trabalhado. Procuramos observar as dificuldades relativas à formação, ao tratamento e à conversão dos registros, bem como a distância entre o que o aluno representa e seu discurso falado, por meio das manifestações durante a socialização da atividade.

É importante lembrar que Duval (2003DUVAL, R. Registros de representação semiótica e funcionamento cognitivo da compreensão em matemática. In: MACHADO, S. D. A. (Org.). Aprendizagem em matemática: registros de representação semiótica. Campinas: Papirus, 2003. p. 11-34.) afirma que um sucesso matemático não corresponde a um sucesso cognitivo, dessa forma, a análise dos registros dos alunos não será avaliada separadamente, nossas considerações serão feitas a partir do avanço na mobilização de diferentes representações do objeto matemático estudado. As intervenções realizadas, questão a questão, avaliarão os registros quanto ao tratamento correspondente.

Assim, pretendemos com esta pesquisa efetivar uma mudança em nossa prática na sala de aula, por entendermos que, ao observar cada etapa necessária à construção do conhecimento matemático pelo aluno, temos a oportunidade de diagnosticar qual a maior dificuldade enfrentada por ele e com isso realizar as intervenções essenciais para sua compreensão.

Instrumentos metodológicos

Lócus da pesquisa

Esta pesquisa foi realizada na comunidade ribeirinha do Rio Inamarú, localizada no município de Muaná, na região do Marajó. A comunidade possui uma escola municipal cuja responsabilidade é atender à educação infantil e ao ensino fundamental, além de abrigar o ensino médio, na modalidade modular, oferecido pela secretaria de estado de educação (Seduc), por meio de convênio com a prefeitura. Nessa modalidade, as disciplinas são trabalhadas de maneira intensiva em 50 dias letivos.

Por se encontrar na zona rural, a escola tem características peculiares, como tratamento primário de esgoto (fossas) e fornecimento de água por doação de um comerciante da região que possui poço artesiano. Quanto à estrutura física da escola, ressaltamos que não dispõe de laboratório de informática, sala de vídeo, sala de leitura e biblioteca.

Ainda que a escola tivesse aparelho de DVD e televisão, salientamos que a energia elétrica fornecida por geradores a diesel torna altíssimas as despesas com manutenção dessa fonte; por isso, esses equipamentos são utilizados apenas em ocasiões de extrema importância e restritos à área administrativa, dificultando o emprego de metodologias que necessitem de tais aparatos.

Esta pesquisa é um recorte de outra desenvolvida para a obtenção do título de mestre em educação, e a escolha pela comunidade se deu pelo fato de uma das pesquisadoras encontrar-se como professora de matemática e física dos alunos do ensino médio modular na referida escola.

Sujeitos da pesquisa

A investigação se desenvolveu com os 24 alunos que faziam parte do 1º ano do ensino médio em 2014, os quais tinham em média 17 anos e estudaram todo o ensino fundamental em escolas públicas do município. Com o auxílio de um questionário sociocultural, constatamos que os alunos pertencem a famílias compostas por quatro membros, em média, que todos apresentam a mãe como sua responsável feminina e a maioria apresenta o pai como responsável masculino.

A respeito da localização de suas moradias em relação à escola, identificamos que 33,3% dos alunos moram em locais muito afastados, sendo dependentes do transporte escolar para sua frequência às aulas. O questionário nos revelou que 71,5% dos alunos não realizam nenhum tipo de curso extracurricular, enquanto 16% fazem curso de informática e 12,5% fazem curso de teologia. Também foi possível verificar que 59% dos alunos dessa turma trabalham regular ou esporadicamente.

Para averiguar a respeito dos estudos em matemática dos alunos, perguntamos se consideravam ter dificuldades para a aprendizagem em matemática, 75% afirmaram sentir dificuldades com a disciplina, mesmo sempre prestando atenção às aulas. Ainda assim, 66,6% disseram ter suas notas em matemática sempre acima da média.

Ao serem questionados sobre o hábito de estudar matemática fora da escola, 66,7% afirmaram que costumam estudar alguns dias, geralmente nos fins de semana, e 58,3% informaram ser ajudados por seus colegas a estudar os conteúdos trabalhados em sala. Chamou-nos a atenção o fato de nenhum aluno ser auxiliado pelos seus responsáveis. Acreditamos que isso seja reflexo do nível de instrução, porque verificamos que apenas 5% entre os responsáveis masculinos e 8,7% entre os femininos possuem o ensino médio completo.

Metodologia

Foi proposta aos alunos investigados uma atividade de modelagem matemática que buscava relacionar aspectos de seu cotidiano com o conteúdo função polinomial do 1º grau. A comunidade pesquisada tem como atividades econômicas predominantes: colheita de açaí, pesca de camarão, atividade madeireira e olaria. O período em que a atividade seria desenvolvida coincidiu com a safra do açaí, por isso optou-se que este fosse o tema da modelagem.

A construção da atividade seguiu os aspectos propostos por Barbosa (2001BARBOSA, J. C. Modelagem na educação matemática: contribuições para o debate teórico. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, 24., 2001, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 2001. 1 CD-ROM.), o qual sugere três casos para o desenvolvimento da modelagem. De acordo com o autor, no caso 1 o professor apresenta a descrição de uma situação-problema, com as informações necessárias à sua resolução e o problema formulado, assim cabe ao aluno apenas o processo de solução. No caso 2, é apresentado pelo professor um problema advindo de outra realidade, sendo papel do aluno a coleta das informações necessárias para a resolução da questão proposta. Já no caso 3, temas não matemáticos são o ponto de partida para que os alunos busquem informações, formulem e resolvam o problema. O autor nos deixa claro que, em todos os casos, a participação do professor é de fundamental importância, o que muda em cada caso é sua maior presença na organização das atividades.

É importante citar que a passagem para o ensino médio nessa comunidade pode causar dificuldades de aprendizagem para esses alunos, isso porque eles saem da modalidade regular para a modular, em que o ensino tem um caráter intensivo ao qual não estão acostumados. Diante disso, selecionamos a atividade pertencente ao caso 1 evidenciado por Barbosa (2001BARBOSA, J. C. Modelagem na educação matemática: contribuições para o debate teórico. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPEd, 24., 2001, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 2001. 1 CD-ROM.), pois o tema, a situação-problema, os dados qualitativos e quantitativos são fornecidos pelo professor.

A atividade era composta de um texto explicativo sobre os custos e rendimentos da produção de açaí por meio de manejo da área e 12 questões referentes ao texto. O processo foi desenvolvido em duas etapas. Na primeira, os alunos deveriam debater dentro do seu grupo qual a melhor maneira de solucionar a questão proposta, enquanto na segunda cada grupo apresentaria sua solução. Em seguida, a classe deveria analisar cada uma para que fosse escolhida aquela que resolvia corretamente a questão.

Como planejado, durante esta etapa algumas intervenções foram necessárias, porque em certas questões os grupos não apresentaram uma resposta que as solucionasse. A intervenção foi feita por meio de novos questionamentos que proporcionassem aos alunos a identificação de dados, métodos e sequências necessárias para a solução.

As questões foram apresentadas aos alunos uma a uma, sendo resolvidas pelos grupos com posterior socialização das respostas dadas. Após o trabalho em grupo, os alunos fizeram duas atividades individuais que tratavam ainda da temática do açaí relacionada ao conteúdo de função.

Iniciamos dividindo os alunos em cinco grupos de quatro componentes, já que alguns haviam faltado. No primeiro momento, foi discutido, indiretamente, com os alunos o vocabulário que seria utilizado, por meio de textos explicativos sobre as etapas necessárias para o manejo do açaí. No segundo momento, os alunos foram orientados sobre como seria desenvolvida a atividade e a importância de que eles apresentassem todos os registros de seu desenvolvimento.

É importante salientar que nossa análise não está pautada na viabilidade da atividade proposta, mas nos registros utilizados pelos alunos para responder às questões, bem como na manifestação destes no momento da socialização de seus registros. Essa análise se baseará na teoria dos Registros de Representação Semiótica de Duval (2011DUVAL, R. Ver e ensinar matemática de outra forma: entrar no modo matemático de pensar: os registros de representação semiótica. São Paulo: PROEM, 2011.). A seguir, apresentamos a descrição de alguns dados obtidos a partir dessas etapas.

Critérios de análise

Duval (2011DUVAL, R. Ver e ensinar matemática de outra forma: entrar no modo matemático de pensar: os registros de representação semiótica. São Paulo: PROEM, 2011.) afirma que o importante nas representações semióticas é a potencialidade intrínseca de serem facilmente transformadas em outras representações semióticas. Assim, para que seja possível compreender o que uma representação semiótica representa e como ela representa é necessário uma segunda representação associada à primeira por uma variação que podemos produzir de maneira sistemática.

O objetivo da atividade é analisar os registros utilizados pelos alunos na resolução de questões matemáticas. O conteúdo do texto apresentado se relaciona com a realidade do aluno, a fim de que haja certa familiaridade nos questionamentos e que estes se aproximem do desejo de conhecimento prático do discente. Os registros analisados são provenientes da conversão de informações apontadas no texto para a linguagem matemática; além da conversão, será analisado o tratamento próprio de cada registro para verificarmos se há algum desvio que dificulte a aprendizagem. A verificação será realizada a partir da comparação entre o registro do aluno e um registro didático padrão que adotaremos em cada questão. Esse registro didático padrão diz respeito à solução que normalmente seria utilizada pelo professor durante a aula expositiva.

Para que fosse possível quantificar o desenvolvimento das soluções apresentadas pelos alunos, elegemos alguns descritores para averiguar se os grupos conseguiam realizar a conversão entre registros de representação semiótica. São eles:

  1. identificou os dados a serem utilizados: verificamos se os alunos conseguiam identificar os dados pertinentes, mesmo que não houvesse indicações explícitas no comando da questão;

  2. utilizou representações auxiliares: diz respeito às informações numéricas presentes nos enunciado e/ou texto de apoio e fases sucessivas de resolução;

  3. executou o tratamento corretamente: conferimos se as transformações dos registros estão corretas, como cálculos ou afirmações;

  4. apresentou resposta em linguagem natural escrita: identificamos se o aluno se expressa por meio de explicações em linguagem natural escrita;

  5. executou conversão: verificamos se o aluno consegue transformar um dado registro em outro diferente

Os descritores apresentados foram eleitos com base em características citadas em Duval (2011DUVAL, R. Ver e ensinar matemática de outra forma: entrar no modo matemático de pensar: os registros de representação semiótica. São Paulo: PROEM, 2011.) para a análise de registros de representação semiótica. A análise qualitativa se deu a partir das manifestações dos alunos no momento da socialização dos registros e da intervenção realizada pela professora/pesquisadora no mesmo instante.

Análise dos registros

Iniciamos a atividade com a leitura e identificação das ações necessárias para as boas práticas do manejo florestal e as etapas para o manejo do açaí. As informações foram adquiridas em cartilha disponível no sítio eletrônico do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Com essa leitura, pretendíamos que os alunos se familiarizassem com os termos que seriam utilizados no texto de apoio da atividade de modelagem que seria desenvolvida.

Consideramos que essa familiarização era importante, pois ainda que os alunos estivessem habituados com a prática da colheita do açaí, alguns termos que seriam trabalhados são diferentes daqueles usados em seu cotidiano. Os alunos demonstraram interesse nas informações lidas e apontaram o fato de que algumas ações de boas práticas não são realizadas na região, principalmente no que diz respeito à segurança e à higiene.

Após o primeiro contato com o processo de manejo florestal e a familiarização com os termos, foi entregue aos grupos o texto sobre os custos e rendimentos do manejo do açaí, fundamental para a resolução das questões propostas que encaminhariam para o ensino de função afim. Depois da leitura inicial do texto de apoio, os alunos demonstraram certa confusão com as informações nele abordadas; entretanto, como desejávamos avaliar a compreensão das informações para a solução das questões, não realizamos nenhuma intervenção nesse momento. Em seguida, foi entregue aos alunos a primeira questão, e estes foram orientados sobre como deveriam proceder para sua solução.

A primeira questão tinha o comando: Questão 1: Quantas touceiras podem existir em 1 tarefa?, com o objetivo de fazer com que o aluno, partindo do conhecimento de relação entre duas grandezas, fixasse seu conhecimento de proporção, o qual seria ponto de partida para as noções iniciais de função. A solução das proporções era a primeira conversão necessária a fazer. O aluno deveria partir do registro em língua natural para um registro matemático, assim mostraria sua compreensão coordenando as informações presentes no texto, daí a importância da designação de um registro didático padrão para análise dos registros apresentados pelos grupos.

Em nossa análise, notamos que nenhum dos grupos conseguiu chegar à conversão dos registros e atribuímos a isso o fato de que todos os grupos identificaram apenas parcialmente os dados que seriam necessários para solucionar a questão, deixando de fora informações indispensáveis para a conversão.

Todos os grupos apresentaram representações auxiliares que dizem respeito a alguns valores numéricos referentes à questão. É importante salientar que todos os grupos executaram o tratamento do registro corretamente, ou seja, os cálculos apresentados pelos grupos estavam corretos, ainda que não correspondessem à resposta pretendida. Destacamos dos registros os seguintes dados que sobressaíram na resolução (Tabela 1):

Tabela 1:
Procedimentos utilizados pelo aluno

Observamos que todos os grupos destacaram em seu registro a relação entre hectare e tarefa corretamente. Os grupos que utilizaram a quantidade de plantas que compunha um terreno não se atentaram para o fato da relação de inclusão entre plantas adultas, estipes em produção e cachos, que há nos açaizeiros, pois nem toda estipe em produção é proveniente de uma planta adulta, além de que a quantidade de cachos apresentada faz parte de todas as plantas que se encontram no terreno.

A desatenção apontada nesse caso reflete alguns obstáculos advindos de conhecimentos anteriores, como conjuntos - por exemplo, saber identificar inclusão, união e intersecção entre conjuntos são pontos abordados em aulas, com metodologias mais tradicionais, com características que nem sempre dizem respeito a uma realidade conhecida pelo aluno. O caso apresentado instiga reflexões matemáticas implícitas e que podem passar despercebidas pelos alunos como conteúdo matemático.

No momento da socialização, os alunos expuseram suas respostas na lousa, simultaneamente, em seguida foram indagados sobre o que representava cada item em seus registros. Durante a discussão, notamos que 80% dos grupos tentaram estabelecer uma transformação da unidade hectare e afirmaram que 1 hectare valia 1.000, mas não sabiam explicar o significado dessa afirmação. Atentamos aqui que os alunos procuram demonstrar conhecimentos prévios de mudanças de unidade, no entanto não saberem justificar sua resposta revela a instabilidade desses conhecimentos em seus cognitivos e ainda a mecanização de conceitos, pois demonstra que eles lembram valores, mas esquecem os procedimentos.

Os 60% que utilizaram os dados de plantas adultas, estipes e galhos afirmaram que esses valores deveriam ser somados e, em seguida, divididos pelo tamanho do terreno, raciocínio aceitável não fosse a distinção dos elementos que deveriam ser divididos no terreno. Chegaram ao valor de 300 touceiras 40% dos grupos, mas não conseguiram explicar os cálculos que os levaram a esse valor. Esse fato nos chamou muita atenção, pois indica procedimentos sem significado para esses alunos, sendo importante para eles apenas a apresentação de um valor numérico para satisfazer a questão.

A apresentação de diferentes procedimentos entre os grupos foi muito produtiva para estabelecer um registro padrão; ter grupos que optaram semelhantemente pela transformação de unidades e grupos que identificaram que as plantas deveriam ser divididas pelo terreno nos deu a oportunidade de realizar a intervenção utilizando os próprios registros expostos.

Nossa intervenção começou verificando se os alunos haviam compreendido o que estava sendo pedido na questão. Perguntamos o que era uma touceira e um discente afirmou que era uma tarefa, imediatamente outra aluna o corrigiu e disse que era o conjunto de três estipes. Em seguida, perguntamos o que era uma tarefa, um terceiro aluno afirmou que era apenas um estipe, mas a que havia corrigido anteriormente manifestou-se novamente afirmando que tarefa era uma parte de um hectare. Após o esclarecimento do que estava sendo solicitado na questão, realizamos algumas discussões.

Primeiramente foi discutida a relação entre hectare e tarefa. Os alunos releram o trecho do texto que anunciava essa relação e um discente afirmou que o número 1.000 que haviam escrito representava metros; então, chamamos a atenção de que o texto não tratava de metros, mas de hectare e tarefa, e a relação deveria ser feita apenas entre essas unidades. Diante da afirmação do aluno, percebemos que a abordagem somente de unidades usadas rotineiramente faz com que as transformações sejam procedimentos mecânicos e não aprendidos, para que possam ser utilizados para qualquer tipo de unidades. Entender a transformação entre diferentes unidades como uma proporção era um ponto indispensável para a solução da questão.

A respeito das plantas, foi questionado se aquelas que não fossem adultas também produziriam açaí, e os alunos afirmaram que não eram apenas plantas adultas que produziam o fruto. Alguns disseram que deveria ser utilizada a quantidade de galhos e, novamente, foram questionados se todas as árvores tinham a mesma quantidade de galhos, ao que afirmaram que não. Finalmente, os alunos notaram que deveriam utilizar a quantidade de estipes em produção para encontrar a solução da questão.

Com isso, iniciamos o estabelecimento de um procedimento para encontrar um valor numérico. Compreendida a utilização dos estipes em produção, solicitamos aos alunos que identificassem a quantidade informada no texto para aquela área, todos encontraram o valor 900. Em seguida, pedimos que indicassem quantos estipes estariam presentes em cada touceira, e todos identificaram o valor três, o qual já tinha sido informado por uma aluna anteriormente. Por fim, questionamos quantas touceiras poderiam ser formadas com a quantidade de estipes presentes no terreno: imediatamente, alguns alunos mencionaram que deveriam dividir 900 por 3 para encontrar quantas touceiras poderiam ser formadas, sendo 300 o valor encontrado. Feito isso, foi perguntado se o valor encontrado já era a resposta esperada, um grupo de alunas se manifestou afirmando que não, pois correspondia a um hectare e não a uma tarefa.

Aproveitando o que as alunas haviam dito, analisamos a que parte de hectare correspondia uma tarefa, como já haviam verificado anteriormente não houve dificuldade de entender que corresponderia a 0,3. Alguns alunos se manifestaram dizendo que deveriam então dividir 300 por 0,3 para encontrar a quantidade de touceiras em uma tarefa. Os alunos então realizaram essa divisão e, quando encontraram o resultado, verificaram que esse não era o procedimento correto, pois resultou num valor maior do que aquele para hectare. Nesse momento, os alunos ficaram confusos e afirmaram não saber o que deveria ser feito.

Sugerimos então a eles que realizassem uma regra de três, procedimento de que se recordaram apenas quando iniciamos o registro na lousa. Com isso, encontramos o valor desejado. Finalizada a questão, alguns alunos se manifestaram dizendo que era uma questão muito difícil, já que houve procedimentos que não estavam corretos, mas ao revisarem todas as etapas realizadas para alcançar a solução e compararem com o que tinham feito inicialmente alguns mudaram de ideia.

Os alunos participantes da pesquisa são habituados à cultura do açaí, sendo a safra um período complicado na comunidade escolar devido à evasão para o trabalho na colheita. O extrativismo na região é feito em plantas nativas, sendo a colheita em larga escala realizada apenas durante a safra. Com isso, o texto apresentou a esses alunos uma ideia diferente de cultivo, pois a técnica do manejo permite colher frutos maduros em diferentes períodos do ano.

Logo com a primeira questão, percebemos que a atividade foi bem recebida pelos alunos, a única queixa foi em relação a alguns valores presentes no texto, que, segundo eles, estavam baixos demais para a realidade conhecida. Após a socialização, mediante a intervenção realizada, todos os grupos conseguiram chegar à conversão pretendida, apresentando os registros utilizados pela professora/pesquisadora durante a discussão.

Dando prosseguimento à atividade, foi entregue aos grupos a segunda questão, cujo comando era: Questão 2: O terreno de minha casa mede 5 tarefas, então quantas touceiras farão parte do terreno?. O objetivo dessa questão era evidenciar a relação entre grandezas para promover futura generalização. Como na primeira questão foi calculado o número de touceiras por tarefa (90), esperávamos que ainda pela ideia de regra de três os alunos estabeleceriam uma proporção.

Constatamos que 80% dos grupos identificaram os dados pertinentes para a solução, enquanto 20% identificaram apenas parcialmente tais dados. Quanto à conversão, verificamos que 60% dos grupos conseguiram efetuá-la, 20% fizeram parcialmente e 20% não conseguiram realizar.

Dentre os grupos que não conseguiram chegar à conversão, a partir do conhecimento prévio, encontramos no registro do Grupo 4 diversos cálculos, dos quais um correspondia à solução da questão, entretanto este não foi utilizado como resposta final, o que nos leva a identificar a não compreensão do comando da questão e o significado da resposta da questão anterior.

Consideramos que o Grupo 1 apresentou uma conversão parcial, pois apontou o valor numérico correto, o procedimento utilizado foi a noção de proporção, no entanto em seus cálculos não usou o dado apropriado para a proporção.

Durante a socialização, os grupos que conseguiram alcançar a resposta correta explicaram seu procedimento para aqueles que não conseguiram, e estes deveriam escolher um novo registro que respondesse à questão. Após a socialização, houve poucas mudanças nos registros. O Grupo 1 não apresentou um novo registro que corrigisse o equívoco do primeiro registro; entendemos que tal comportamento mostra a importância dada ao valor numérico pelos discentes. Pozo e Crespo (2009POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. A aprendizagem e o ensino de ciências: do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. Porto Alegre: Artmed, 2009.) afirmam que os alunos se limitam a encontrar um valor numérico, aplicando cegamente um algoritmo, sem compreender o que estão fazendo.

Propomos uma terceira questão na tentativa de iniciar uma generalização e fixar a compreensão e o início de aprendizagem a partir de proporções. A questão tinha o seguinte comando: Questão 3: Os terrenos de meus vizinhos não têm a mesma medida que o meu, se eu quiser saber a quantidade de touceiras existente nesses terrenos o que preciso fazer?. Entendemos que, nesse momento, os alunos deveriam fazer cálculos semelhantes àqueles realizados na questão anterior com valores diferentes, assim diferentes pares seriam encontrados, o que os levaria a uma generalização da relação entre a área e a quantidade de touceiras e, futuramente, a uma manipulação algébrica da proporção para estabelecer a primeira função a se trabalhar.

Ao analisar os registros apresentados pelos grupos, notamos que 40% continuaram não identificando totalmente os dados necessários e que todos os grupos utilizaram representações auxiliares e executaram os tratamentos corretamente. O grau de dificuldade dessa questão é o mesmo da anterior, devendo ser desenvolvida com mais desenvoltura, pelo fato de os possíveis erros já terem sido corrigidos anteriormente.

Quanto à conversão, verificamos que o Grupo 4 não a apresentou entre os registros solicitados nessa questão. Observamos em seus registros cálculos diversos envolvendo os valores numéricos presentes na questão, em seguida notamos a execução correta do procedimento de conversão da questão, mas os alunos apresentam a soma dos valores encontrados como resposta, invalidando a resposta final. O Grupo 1 persistiu utilizando o valor incorreto para proporção em alguns itens da questão, a intervenção foi superficial nesse momento, pois os próprios alunos identificaram os equívocos cometidos.

Com a análise das questões aqui expostas, percebemos que as discussões, oportunizadas pela atividade de modelagem, são e foram bastante proveitosas tanto para o conhecimento matemático quanto para o desenvolvimento do aspecto sociocrático dos alunos, o que afirmamos devido à intensa participação deles nas discussões e nas tentativas de soluções das questões propostas. Entendemos que a aceitação da atividade está baseada na relação presente entre o contexto social e o conteúdo matemático trabalhado.

Concordamos com Roseira (2010ROSEIRA, N. A. Educação matemática e valores: das concepções dos professores à construção da autonomia. Brasília, DF: Liber Livro, 2010.) que o processo educativo afirma sua vertente social e sua incomensurável riqueza na formação integral do aluno, quando consideramos o acervo biográfico dele e as contribuições advindas do contexto em que está inserido, por isso, ainda que tenhamos obtido alguns índices de insucesso do ponto de vista matemático, tivemos muito sucesso do ponto de vista crítico-social.

Com a realização da atividade exibida em nossa investigação, consideramos ter avançado um passo para a construção da autonomia dos alunos, porque a voz desses sujeitos não foi calada, eles puderam se arriscar dando suas opiniões, discutindo o que era viável ou não no processo de resolução da problemática.

Considerações

O trabalho procurou compreender as características de aprendizagem dos alunos, quando envolvidos em uma atividade de modelagem, a partir de seus registros de representação semiótica e suas posturas durante o seu desenvolvimento. Freire (1989FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989.) afirma que a leitura de mundo precede a leitura da palavra e que linguagem e realidade se prendem dinamicamente, de acordo com isso estabelecemos uma atividade que buscasse envolver a realidade conhecida pelo aluno - a colheita de açaí. Nossa intenção ao propor essa relação era promover o pensamento crítico do discente quanto a sua realidade e quanto ao conteúdo matemático que viria a ser trabalhado.

Na atividade proposta, em todo momento o aluno era solicitado à interpretação de um texto auxiliar. Entendemos que tal interpretação estava impregnada de sua leitura de mundo, pois o conhecimento de diferentes técnicas de cultivo e colheita certamente se confronta com a técnica a que estão tradicionalmente habituados.

Ao iniciarmos as discussões relativas à atividade, percebemos a leitura de mundo dos alunos, mesmo que estas fossem silenciosas, notamos risadas e gracejos no primeiro contato deles com as imagens presentes no texto de apresentação, porque os quadrinhos representavam as atitudes rotineiras desses alunos e não demorou para que eles se identificassem com o assunto. Notamos as primeiras manifestações do pensamento crítico quando os discentes identificaram no material alguns termos que não eram utilizados por eles.

Como evidenciado anteriormente, os alunos admitiram não executar parte das ações de boas práticas para tarefas de colheita, principalmente as que dizem respeito à higiene e à segurança. De acordo com afirmações realizadas por alguns deles, a colheita do açaí é feita com o auxílio de peconhas e terçados, gerando grande risco de queda e cortes em qualquer descuido. Em relação à higiene, declararam práticas bem rudimentares na despolpa do fruto: apenas deixam de molho em água quente por alguns minutos e em seguida levam às maquinas para despolpa. Com essa conversa, fica fácil observar a relação entre o texto e o contexto presentes na situação, a questão de higiene e segurança é tópico de constante discussão nos projetos realizados pela escola.

Freire (1989FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989.) propõe que as situações a serem abordadas com os alunos devam vir carregadas da significação de sua experiência existencial e não da experiência do educador e voltem a eles inseridas nas codificações, que são representações da realidade. Buscamos realizar essa dinâmica em nossa atividade com a abordagem do tema proposto e permitindo que os alunos buscassem soluções a partir de seu conhecimento prévio, sem intervenção inicial do professor, para que percebessem que seus raciocínios diários fazem parte de objetos matemáticos institucionalizados.

Nossas expectativas em relação à associação das práticas dos discentes com os conteúdos matemáticos foram alcançadas logo com a primeira questão proposta, pois durante a socialização os alunos deixaram claro que conhecem os fundamentos matemáticos necessários para trabalhar na problemática.

Duval (2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).) afirma que uma aprendizagem centrada sobre a conversão de representações e efetuada fora de toda tarefa de tratamento parece, então, necessária ao início de todo ensino que dá acesso a um novo domínio ou a uma nova rede conceitual. Em consonância com o que cita o autor, privilegiamos nas questões analisadas o sentido "expressão em língua natural → representação não discursiva", que diz respeito à compreensão e interpretação do texto de apoio e à transformação para o registro aritmético.

O sentido de conversão trabalhado nas questões se revela muito complexo, pois, segundo o autor, a compreensão de um enunciado implica considerar a organização sintática e representação do que é expresso, sendo necessário lançar mão de representações intermediárias, o que faz com que esse tipo de conversão seja uma composição de duas conversões sucessivas (Duval, 2009DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).).

Ainda que haja uma complexidade maior no sentido de conversão escolhida para análise, é de grande importância que esse trabalho seja feito, isso porque em toda sua vida escolar o aluno se depara com a língua escrita como meio de comunicação e estabelecimento de sua aprendizagem, então procuramos identificar a utilização de representações intermediárias nas soluções apresentadas pelos alunos, pois estas nos revelariam o grau de compreensão dos enunciados das questões.

Dessa maneira, observamos que 100% dos grupos utilizaram esse tipo de representação na primeira questão proposta. Nas questões seguintes - as quais utilizavam as respostas encontradas em sua precedente - notamos que, em média, 30% dos grupos deixaram de usar as representações auxiliares, demonstrando certa autonomia na tentativa de solucionar os questionamentos.

Por fim, em nossa pesquisa, pudemos verificar como a realidade em que o aluno está inserido influencia positivamente seu aprendizado quando é realizado um trabalho que resgata seus saberes. Os discentes demonstraram conhecimento dos tratamentos de registros da matemática institucionalizada; entretanto, à primeira vista, deixaram transparecer dificuldades quando estes lhes são apresentados de maneira diferente da prática expositiva, mas que podem ser revertidas quando se coloca o aluno como agente de sua aprendizagem

Referências bibliográficas

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  • DUVAL, R. Semiósis e pensamento humano: registros semióticos e aprendizagens intelectuais. São Paulo: Livraria da Física, 2009. (Contextos da Ciência, 27).
  • DUVAL, R. Ver e ensinar matemática de outra forma: entrar no modo matemático de pensar: os registros de representação semiótica. São Paulo: PROEM, 2011.
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  • POZO, J. I.; CRESPO, M. A. G. A aprendizagem e o ensino de ciências: do conhecimento cotidiano ao conhecimento científico. Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • ROSEIRA, N. A. Educação matemática e valores: das concepções dos professores à construção da autonomia. Brasília, DF: Liber Livro, 2010.
  • VERTUAN, R. E. Um olhar sobre a modelagem matemática à luz da teoria dos registros de representação semiótica. 2007. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Educação Matemática) - Centro de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2015
  • Revisado
    08 Set 2015
  • Aceito
    25 Abr 2016
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