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Narrativas autobiográficas de surdos ou de pessoas com deficiência visual: análise de identidades e de representações

Autobiographical narratives of deaf people or people with visual impairment: analysis of identities and representations

Resumo:

Articulado aos estudos culturais em educação, objetiva analisar os processos identitários e as representações de sujeitos surdos ou com deficiência visual, problematizando relatos escolares em narrativas autobiográficas. Assim, investigam-se oito obras que circulam no mercado editorial, percorrendo diferentes espaços e tempos, de modo a conferir um panorama sobre as experiências de in/exclusão de "sujeitos considerados diferentes" nas escolas comuns, sobretudo no ensino fundamental. No diálogo com teorizações sobre narrativas de si, identidades e representações, a análise do material empírico possibilita observar a dificuldade em acessar e garantir uma educação inclusiva a sujeitos surdos ou com deficiência visual. Narrando e resistindo a representações pejorativas, esses sujeitos tensionam processos de normalização, autoafirmam suas posições identitárias em grupos minoritários e reivindicam o direito à diferença. Uma inclusão não excludente permite a acolhida ao diferente e a "sensação de inclusão", potencializando suas possibilidades de aprendizagem.

Palavras-chave:
deficiente da visão; surdo; representação social; identidade; autobiografia

Abstract:

The article aims to analyze identity processes and representations of deaf people or people visually impaired, discussing school reports in autobiographical narratives. Thus, eight books in the editorial market, covering different spaces and times, are investigated in order to give an overview of the experiences of in/exclusion of "subjects considered different" in public schools, especially in public schools. In dialogue with theories about narratives of the self, identities and representations, the analysis of the empirical material enables to observe difficulties of accessing and guaranteeing an inclusive education to deaf or visually impaired people. These subjects tense standardization processes, self-affirm their identitary positions in minority groups and claim the right to be different, while they narrate and withstand pejorative representations. A non-exclusive inclusion allows welcoming the different and the "sense of inclusion", enhancing their opportunities of learning.

Keywords:
deaf; impaired vision; social representation; identity; autobiography

Caminhos investigativos

Estamos vivendo tempos de in/exclusão social, e os processos escolares não escapam dessa complexa rede de relações. Em tempos líquidos, de identidades móveis, de produção de uma racionalidade contemporânea neoliberal, a educação inclusiva é tomada como prática educacional necessária e imperiosa para garantir a suposta "igualdade social". Capturados por esse discurso, sujeitos com deficiência visual ou surdos,1 1 Sujeitos surdos: culturalmente entendidos como diferentes, e não como deficientes (na perspectiva de déficit, vinculado a um modelo clínico-terapêutico); em uma perspectiva socioantropológica, são aqui compreendidos como integrantes de grupo linguístico minoritário, usuários, no caso brasileiro, da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e aprendizes em experiências visuais. por exemplo, são arrebanhados para as escolas comuns,2 2 Usa-se o adjetivo "comum" para referência às instituições ou turmas regulares de alunos. como se estivessem sendo incluídos - porque são tradicionalmente excluídos -, em nome de uma proposta de educação que continua excluindo, mesmo que de outros modos.

Historicamente, os "sujeitos considerados diferentes"3 3 "Sujeito considerado diferente" é aqui utilizado para referirmo-nos a pessoas que apresentam alguma característica desviante do padrão de normalidade socialmente instituído como "tipo ideal": branco, ouvinte, sem deficiência, rico, jovem, bonito, inteligente, heterossexual, magro etc. eram acolhidos nas escolas especiais, que integraram ao sistema escolar as crianças com deficiência. Nesse caso, os estudos em inclusão escolar centraram-se em questões mais instrumentais, como os métodos e as técnicas a serem aplicados aos alunos incluídos, e em políticas públicas e formação docente para trabalhar com esses sujeitos. Assim, instituiu-se o monopólio pedagógico das escolas especiais, caracterizando-as como as melhores e mais apropriadas para a integração e o ensino formal.

Atualmente, vêm sendo trilhados os caminhos da inclusão desses alunos, preferencialmente nas escolas comuns, e da constituição de direitos sociais que diminuam as barreiras linguísticas, arquitetônicas e atitudinais. Nesse sentido, entendemos que as atuais políticas públicas, que regulamentam e implementam a inclusão escolar em nosso País, buscam instituir e promover supostas condições de igualdade para todos, em um cenário em que se assentam a benevolência, a solidariedade, a tolerância e o respeito à diversidade, e não à diferença.

Esses processos inclusivos estão ainda em curso e passam por diversas dificuldades de implementação, adaptação e construção de uma escola que, além de aceitar a matrícula, acolha as particularidades dos sujeitos considerados socialmente minoritários, assegurando-lhes uma aprendizagem significativa. O fato de estar na escola, em um mesmo espaço que os demais estudantes, não é garantia inquestionável de que a inclusão esteja efetivada. Tradicionais e recorrentes no cenário escolar, temos chamado essas situações de in/exclusão.

Diante disso, não buscamos soluções ou verdades absolutas sobre essa ou qualquer outra questão, mas pretendemos, sim, propor debates e problematizações sobre o que entendemos ser produtivo, principalmente no campo educacional. Assim, articulamos esta nossa investigação aos estudos culturais em educação, campo em que se têm abordado temáticas voltadas às minorias sociais, suas identidades e representações em processos culturais. Como forma de vida, modo de ver, explicar e compreender o mundo, a cultura compreende uma gama de artefatos culturais, entre os quais selecionamos alguns para a investigação que aqui desenvolvemos.

Nesse sentido, verificamos que existem ainda poucas pesquisas sobre os processos de inclusão escolar de pessoas com deficiência visual ou surdas que tenham como foco o ponto de vista dos sujeitos que as vivenciam. Aliás, estes raramente são convidados a participar das discussões sobre implementação de políticas de educação inclusiva, principalmente no âmbito dos sistemas de ensino, em se considerando que suas experiências, como aqui discutiremos, muito nos dizem sobre a educação que querem e a que têm direito. Ou seja, se buscamos uma educação para todos - como somos subjetivados por alguns discursos -, carecemos de mais estudos sobre as percepções desses grupos, principalmente sobre como veem a inclusão escolar e como se sentem em relação a ela.

Por isso, nesta investigação, constituímos nosso corpus de pesquisa a partir de oito autobiografias de pessoas surdas ou com deficiência visual que circulam no mercado editorial: O voo da gaivota, de Emmanuelle Laborit; A bela do silêncio, de Brenda Costa; Despertar do silêncio, de Shirley Vilhalva; A verdadeira beleza, de Vanessa Vidal; Adorável heroína, de Michael Hingson; Um outro olhar, de Luiz Gustavo Lamac Assunção e Terezinha Sette; Memórias do Brasil, de Evgen Bavcar; e Minha vida com Boris: a comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil, de Thays Martinez. Essas narrativas foram escritas em vários países, englobando diversos contextos no mundo: França, Brasil, Estados Unidos da América e Eslovênia/França.4 4 O esloveno Bavcar vive na França desde sua infância. Os fatos concernentes às temáticas que estudamos acontecem em diferentes épocas, desde os anos 1950 até a atualidade, o que permite uma ampla análise dos processos de in/exclusão escolar.

Apesar de indicarem, infelizmente, que algumas práticas pedagógicas pouco mudaram ao longo dos anos, cabe ressaltar que não estamos afirmando que essas narrativas representam todos os surdos ou todas as pessoas com deficiência visual, já que há inúmeros discursos circulando nesses grupos e o ponto de vista depende das circunstâncias de vida de cada indivíduo, mesmo que pertencente a grupo ou comunidade. Por outro lado, representam amostra consistente de recorrências discursivas encontradas em produções editoriais, aproximando-se de textos que, embora não sejam analisados aqui, circulam em narrativas veiculadas em redes sociais, blogs e trabalhos acadêmicos, por exemplo.

Portanto, por meio das narrativas autobiográficas de pessoas com deficiência visual e surdas, analisamos os processos identitários e as representações, considerando, principalmente, as experiências desses sujeitos em escolas comuns do ensino fundamental. Ainda que seja apenas um pequeno recorte possível, esperamos contribuir para investigações desenvolvidas sobre a educação básica, sobretudo no que diz respeito à in/exclusão escolar. Para isso, prosseguimos também dialogando com teorizações que embasam o nosso trabalho.

Traçando os percursos teóricos

A produção de narrativas autobiográficas tem crescido significativamente nos últimos anos, principalmente se levadas em conta as histórias de vida de "sujeitos considerados diferentes". Essas experiências narradas não apenas subjetivam leitores, possibilitando que se identifiquem com elas, como também permitem que os autores assumam o protagonismo que confere coerência à própria vida. Nelas, o sujeito mantém uma relação reflexiva consigo mesmo, resultante de atos de observar-se, decifrar-se e interpretar-se, narrar-se, julgar-se e dominar-se (Larrosa, 2002LARROSA, J. Tecnologias do eu e a educação. In: SILVA, T. T. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.).

Nessa esteira de pensamento, afirmamos que as narrativas aqui analisadas são marcadas pelo relato da experiência de si. Em sua dissertação de mestrado, Vilaronga (2010VILARONGA, I. O potencial formador do cinema e a audiodescrição: olhares cegos. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2010.) analisa as possibilidades de fruição cinematográfica de pessoas com deficiência visual mediante o recurso de audiodescrição. Para tanto, a autora discorre sobre as implicações de sua história de vida em suas pesquisas acadêmicas, como evidencia no excerto a seguir:

É isso que tenho descoberto sobre a magia de escrever a meu respeito. Às vezes toma-me a nítida sensação de estar saindo de mim, para contar a história de um personagem outro. Quando termino de escrever cada trecho, percebo o quanto de mim compõe esse singelo escrito. Emociona-me ler o que consegui extrair da minha vida. Extrair de um passado tão distante e tão presente. Como é bom poder visitar-me. Como é bom conhecer a planta do projeto futuro de mim. Projeto sujeito, a todo momento, as alterações que vão firmando o traço de minha existência. (Vilaronga, 2010VILARONGA, I. O potencial formador do cinema e a audiodescrição: olhares cegos. 2010. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, 2010., p. 13).

Assim, a subjetividade que os relatos põem em jogo é atestada pela admissão do "eu", pela insistência em histórias vividas e pela escolha de fatos e modos de contar postos em circulação. A lógica informativa do "isso aconteceu" fez da vida - e, consequentemente, da própria experiência - um núcleo essencial de tematização dos textos autobiográficos (Arfuch, 2010ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010.). Nessa perspectiva, percebemos, na leitura de narrativas biográficas de sujeitos com deficiência visual ou surdos, o desejo de os autores expressarem fatos marcantes, dificuldades e vitórias que podem servir de exemplo a outros. Os relatos escolares ocupam lugar significativo nas obras que analisamos, de modo que as experiências excludentes são problematizadas.

Amaral (1998AMARAL, L. A. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (Org.). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus Editorial, 1998.), que apresentava deficiência física, ao lembrar de histórias que viu acontecer ou lhe foram contadas relativas a crianças com deficiência física ou sensorial que frequentavam classes comuns do ensino regular, expõe:

Assim, alguns episódios plenos de preconceitos desfilaram pelos olhos de minha memória: o da menina cega que se viu tratada pelos coleguinhas e pela professora como se também fosse surda e deficiente mental; o do menino que sequer precisava fazer as lições de casa pois, "coitadinho", era paraplégico; o do aluno que pego "colando" não foi criticado pois, "coitadinho", usava muletas para andar; o da menina (com problemas motores na face, devido à paralisia cerebral, que tinha dificuldades de deglutição da saliva) que foi isolada num canto pois babava e podia contaminar os colegas; o do menino surdo que foi colocado bem no fundo da classe pois a professora julgou que ele falava alto para atrapalhar o andamento da aula. (Amaral, 1998AMARAL, L. A. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, J. G. (Org.). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus Editorial, 1998., p. 27).

Representar o outro como "coitadinho", "fonte de todo mal", "alguém exótico" ou "contagioso", por exemplo, tem implicações nas atitudes dos educadores, seja na escola, família ou sociedade em geral. A representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações em seu interior; usa a língua/linguagem para dizer algo significativo a outrem, na partilha de significados em uma cultura (Hall, 1997HALL, S. The work of representation. In: HALL, S. (Org.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage; Open University, 1997.). Assim, os sujeitos são produzidos pelas práticas sociais, cujos significados moldam e influenciam as condutas. Ao sermos subjetivados pelo discurso da deficiência ou da diferença cultural, por exemplo, produzimos olhares e formas de ver o outro, o que tem implicações nas práticas pedagógicas escolares.

No entanto, ao pensarmos o processo de in/exclusão, importa entender que não basta incluir ou estar incluído em algum lugar, mas perceber que mudanças culturais são necessárias, a começar pelo olhar direcionado e pelos modos de representação dos outros. Trata-se de uma luta constante nas relações estabelecidas dentro dos espaços criados para conviver, ensinar e trabalhar. Se entendermos que estar incluído é também viver a possibilidade da experiência da exclusão, não deixaremos de esmaecer nossas lutas pelos direitos, pelo respeito ao outro e a nós mesmos e pela dignidade humana (Lopes; Fabris, 2013LOPES, M. C.; FABRIS, E. H. Inclusão & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.).

Em se tratando de processos de educação inclusiva, imperativos na contemporaneidade, convém convidar Castel (2008CASTEL, R. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones? Rio de Janeiro: Vozes, 2008.) para essa discussão. Segundo ele, talvez seja profícuo promover uma educação que abdique da discriminação negativa - que diferencia marcando ou estigmatizando o sujeito, em uma condição menor de apagamento e de silenciamento econômico, étnico e cultural - e se evidencie pela discriminação positiva - que consiste em fazer mais por aqueles que têm menos, de modo que seja possível atender às especificidades de aprendizagem dos sujeitos e suas condições de participação com dignidade nas relações sociais.

Uma escola para todos, de fato, ainda pode ser concebida como utópica. E não nos parece tão simples promover uma educação de qualidade pautada em princípios de igualdade sem, para isso, considerarmos a diferença, de modo que esta não seja mascarada pelo discurso da diversidade. Como aponta Beyer (2005BEYER, H. O. Inclusão e avaliação na escola de alunos com necessidades educacionais especiais. Porto Alegre: Mediação, 2005.), há que se pensar nas diferenças entre os sujeitos que se relacionam e aprendem de diferentes maneiras.

Afirmar-se como sujeito surdo ou com deficiência visual, em um processo de identificação em grupos sociais minoritários, implica também posicionar-se ante o que não se é, ou seja, como diferente de um padrão de normalidade. Dessa forma, importa perceber a relação entre diferença e identidade, que é simbólica, ativa e mutuamente construída em atos de criação linguística, fabricados no contexto das relações sociais e culturais (Silva, 2009SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T.; HALL, S.; WOODWARD, K. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). Pela linguagem, em um processo relacional com as diferenças, posições identitárias são constituídas e subjetivam não apenas os "sujeitos considerados diferentes", como também enredam outros por meio da produção de representações.

É nesse sentido que prosseguimos nas próximas seções, corroborando nossa análise mediante alguns excertos das obras. Dados os limites de extensão deste texto, escolhas são necessárias em meio a muitos outros trechos que poderiam ser discutidos.

Representações: implicações no acesso e na qualidade de educação

O poder conferido às palavras e a quem as profere é processado no circuito cultural, em que práticas discursivas constituem posições identitárias e representações. Ao considerar a narrativa da experiência de si em publicações autobiográficas, verifica-se a recorrência de relatos que tematizam as dificuldades pelas quais passaram os autores com deficiência visual ou surdos. Em território de negociações culturais, sujeitos partícipes de grupos minoritários lutam pela imposição de outros significados sociais, resistindo a processos de exclusão social.

Um desses caminhos é a luta pela escolarização e inclusão de "sujeitos considerados diferentes" em escolas comuns, sobretudo no ensino básico. A recusa ao diferente é evidente, relacionada à produção de uma anormalidade que impede o acesso à escola e à educação formal. A barreira inicial aparece no ato da matrícula, visto que o aluno "anormal" é representado como incapaz, um pária, uma surpresa inesperada; alguém que requer muito mais investimento, tempo e atenção e que dá trabalho. As recusas são quase sempre indiretas, ainda que o motivo fique claro para quem sofre com essa exclusão, conforme podemos perceber no excerto abaixo:

Perdi minha visão em janeiro. No ano anterior minha mãe já havia feito minha matrícula em uma escola. Por ironia do destino, em um colégio de orientação religiosa. Quando a minha mãe foi conversar com as freiras, elas sequer tiveram coragem de discutir a questão, de assumir sua falta de preparo. Optaram pela solução fácil. "Desculpe o lapso. A funcionária responsável perdeu a reserva da vaga de sua filha e matriculou outro aluno no lugar".

Essa foi a primeira de tantas outras batalhas que se seguiriam na busca de uma escola para mim. Em todos os lugares a história se repetia. Só variavam as desculpas: "não tem como", "não temos vagas", "não é possível". Não, não e não.

Minha mãe passou muito tempo procurando daqui e dali. Eu me lembro que as vezes eu ia com ela nessa romaria pelas escolas. Não ficava presente nas conversas e, geralmente, eu ficava brincando no pátio ou no parquinho. Eu achava o máximo, mas, quase sempre, na volta para casa, ela me contava que eu não poderia estudar ali. Eu ficava muito triste, mas nunca perdi a esperança. (Martinez, 2011MARTINEZ, T. Minha vida com Boris: a comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil. São Paulo: Globo, 2011., p. 15).

Muito tempo passou e os relatos semelhantes a este continuam se proliferando entre as pessoas com deficiência. Desde 2001, conforme determinado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), todas as escolas comuns estão obrigadas a aceitar a matrícula de sujeitos com deficiência. Diante da recusa de instituições de ensino, são inúmeros os casos de famílias que recorrem à justiça para garantir esse direito. O argumento usado normalmente é que as escolas não estão preparadas para lidar com as especificidades desses alunos.

Essa não aceitação dos discentes com deficiência nas escolas comuns tem causas diversas: o desconhecimento em como lidar com esses alunos, o alegado incremento de custos diante de suas necessidades, o despreparo dos profissionais e, principalmente, o incômodo causado pela presença do diferente em ambientes em que a normalidade esteve inquestionável durante tanto tempo. As diretrizes contemporâneas apontam que a inclusão das minorias sociais pode ser um caminho sem volta, ainda que traga consigo alguns conflitos e fissuras.

A Lei nº 13.146/2015, em seu art. 28, preceitua que todas as instituições de ensino devem garantir o acesso e a permanência de alunos com deficiência, ou seja, tanto na categoria administrativa pública quanto na privada, as escolas têm obrigação legal de prover todas as condições para a aprendizagem e a socialização dos alunos com deficiência. Em seu art. 31, determina que não podem ser cobrados quaisquer valores adicionais desses discentes para sua matrícula nas escolas comuns, prática que vinha sendo utilizada por diversas instituições.

Ainda assim, existem os movimentos de resistência a essas novas possibilidades de acesso das pessoas com deficiência às escolas comuns, e há diversos argumentos contrários a essa inclusão - como o alto custo. Podemos citar, ainda, o Projeto de Decreto Legislativo nº 2.846/2010, que susta a obrigatoriedade de as escolas comuns aceitarem as matrículas de pessoas com deficiência. É interessante notar que o mesmo Legislativo que aprova o Estatuto da Pessoa com Deficiência dá continuidade à tramitação de projetos que atuam em sentido contrário.

Ainda que seja garantido o direito de acesso e de permanência - já que carecemos de pesquisas mais sólidas quanto à conclusão dos níveis de ensino - a pessoas com deficiência em escola comum, isso não significa que todos os problemas estejam resolvidos. Pelo contrário, é possível verificar que a permanência desse aluno é comprometida por uma educação escolar inacessível, como podemos perceber nos excertos a seguir:

Minha admissão pelas freiras do Colégio Santa Isabel não convenceu meus pais. A bem da verdade, eles ficaram extremamente preocupados, sentiram certo desprezo por parte da direção. É como se estivesse, a diretora, sendo obrigada a me matricular, sob pressão. [...] Fui recebida pela professora sem muitos problemas. Após o primeiro mês de aula, a "mestra" chamou minha mãe e falou que eu era uma criança muito complicada. [...] Três meses depois a professora novamente chamou minha mãe. [...] Ratificava a reclamação: eu era muito danada, desatenta, teimosa... (Vidal, 2009VIDAL, V. A verdadeira beleza: uma história de superação. Fortaleza: [s.n.], 2009., p. 33-34).

Passado quase um ano minha mãe já havia desistido. [...] A diretora contou que era a primeira vez que ela deparava com uma situação como aquela. Precisaria de um tempo para pesquisar recursos e métodos que viabilizassem meu aprendizado: "vamos dar um jeito nisso". [...] Eu estava consciente das dificuldades que teria pela frente. A maior delas era a escassez de material para pessoas com deficiência visual. Eu precisaria complementar meus estudos, fazer aulas particulares para suprir matérias que exigiriam mais de mim - como geometria, geografia e outras disciplinas nas quais gráficos são fundamentais. Até existiam instituições que ofereciam esses serviços sem custos, mas a demora chegava a ultrapassar um ano de espera por um único livro. Para conseguir transcrições a tempo de estudar para o vestibular, eu precisaria encomendá-las a profissionais especializados, isto é, um custo extra. (Martinez, 2011MARTINEZ, T. Minha vida com Boris: a comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil. São Paulo: Globo, 2011., p. 16-19).

Como é possível observar por meio dos excertos, diante da demora de instituições para a produção de materiais acessíveis, cabe à aluna e à sua família investir em aulas particulares e transcrições de especialistas, que implicam custos extras. Ante o desprezo e o despreparo dos educadores, os familiares assumem papel fundamental no ensino. Nas narrativas de surdos, percebemos que o "sujeito considerado diferente" é culpado por sua diferença e consequentes dificuldades, de modo que as famílias contratam professores particulares para o acompanhamento das aulas, sessões de fonoaudiologia e outras atividades indicadas como importantes aos alunos, mas que não são oferecidas pelas escolas - ou melhor, pelo poder público, que se omite de suas responsabilidades. Além disso, devido a essas jornadas complementares ao turno regular de aula, resta pouco tempo para os sujeitos vivenciarem as posições de crianças e de jovens.

Cabe aqui acrescentar e esclarecer que não propomos a inclusão de sujeitos surdos em escolas comuns, pois acreditamos na importância de se respeitar a diferença linguística/cultural que lhes é peculiar. Nesse sentido, as lutas das comunidades surdas têm se movimentado pela implementação de escolas bilíngues, em que a Libras é utilizada como língua de instrução e aprende-se o português, como segunda língua, na modalidade escrita. Essa proposta educacional é entendida como a mais adequada aos surdos, até porque, conforme evidenciamos em nossas análises, as escolas comuns, em sua maioria, não estão preparadas com educadores fluentes em Libras, conhecedores da cultura e pedagogia surda; assim, mais excluem do que incluem esses alunos. O excerto a seguir apresentado traduz essa exclusão e o desejo da discente de estar em uma escola de surdos.

Sempre preferi sentar no meio da sala para ver a professora por inteiro e pedia para ela não andar muito na sala. Se eu sentasse na primeira carteira as coisas ficavam mais difíceis, pois sempre em vez de ver a professora por inteiro só via a barriga dela e onde era confuso de se fazer entender o que ela estava falando ou ensinando. Nem sempre o que os ouvintes acham que é bom para os surdos realmente é, sentar na primeira carteira dificulta mais do que ajuda quando referimos à questão auditiva com perda severa e profunda. [...]

Nessa fase dentro de minha pessoa eu tinha um desejo de estar numa escola onde as pessoas fossem surdas iguais a mim, pois sentia que não havia comunicação entre mim e os meus colegas, pois a maioria era ouvinte e não sabia comunicar comigo, sentia-me isolada. (Vilhalva, 2004VILHALVA, S. O despertar do silêncio. Florianópolis: Arara Azul, 2004. , p. 23).

Em nossas análises, evidenciamos que os sujeitos surdos ou com deficiência visual são, de modo pejorativo, representados como complicados, desatentos, danados, teimosos, personagens malucos, doentes, causadores de medo, bobos, estrangeiros, deficientes... Assim, são produzidos adjetivos caracterizadores de hostilização, ridicularização, inferioridade, tolice, dependência, ironia, incapacidade, benevolência... Esse "modo de olhar" para os "sujeitos considerados diferentes" tem implicações nos processos educacionais, como evidenciamos a seguir:

Minha mãe trabalhava comigo em outras tarefas e, como a maior parte do meu aprendizado acontecia em casa, eu costumava ficar entediado na escola. Os professores não conseguiam me envolver nas atividades porque eu não podia ler os materiais impressos ou enxergar os diagramas das imagens. Não havia livros para mim e eu era geralmente deixado de lado. [...]

Um dia, durante a aula, a professora pediu para que eu fizesse um desenho. Eu fiquei sentado com uma folha de papel em branco enquanto as outras crianças me ajudavam. [...] Por fim, um garoto se irritou comigo, pegou a minha folha de papel e a amassou, jogou-a na minha frente e disse:

- Pare de nos chatear!

Eu entendi a mensagem. Aquela foi a primeira vez que a minha condição de ser cego provocou algum tipo de hostilidade. (Hingson, 2012HINGSON, M. Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros, 2012., p. 69).

Muitas vezes meus colegas não me aceitavam porque tinham receio que a surdez pegasse como uma doença contagiosa, eles tinham medo de falar comigo, achando que eu não iria entender... (Vilhalva, 2004VILHALVA, S. O despertar do silêncio. Florianópolis: Arara Azul, 2004. , p. 22)

Sempre fui atenciosa com os meus colegas para que eles não rissem de mim, porém riam por eu não falar direito, achavam engraçado meu jeito de falar que nem estrangeira no país. Muitos me perguntavam de que país eu era. Lembro que eles sempre diziam para mim:

- Para que eu falar com você se você não entende nada? [...]

- Não sei para que ela estuda se é surda, coitadinha da professora vai perder tempo. (Vilhalva, 2004VILHALVA, S. O despertar do silêncio. Florianópolis: Arara Azul, 2004. , p. 36).

Algumas crianças tinham medo de mim. Outras, ao contrário, fascinadas com meus saltos, pulos, berros, reações intempestivas e desproporcionais, procuravam minha companhia, como se eu fosse um personagem meio maluco de um desenho animado. [...] Contudo, eu continuava a frequentar a escola. Coagida e obrigada. [...]. Um avião que passava no céu, um colega que bancava o bobo, uma amiga que exibia um desenho engraçado e a Brenda, por sua vez, virava o palhaço da turma. (Costa, 2008COSTA, B. Bela do silêncio. São Paulo: Martins Fontes, 2008. , p. 35-59).

Aceitar a matrícula de um "sujeito considerado diferente", ainda mais em tempos de democratização dos acessos, requer que se consiga, de fato, atender às diferenças, possibilitando uma educação de qualidade. Isso demanda olhar para as singularidades, oportunizar a acessibilidade de materiais, favorecendo a interação social e a aprendizagem.

Processos identitários nas narrativas escolares

No mosaico de possibilidades de quem devemos - ou desejamos - ser, construímos inúmeras narrativas sobre nós mesmos. Talvez aí esteja a ligação mais profunda entre identidades e narrativas: a necessidade que temos de criar, de expor aquilo que intencionamos que os outros vejam que somos. Uma das tensões principais que existem nos processos de identidade é a tentativa de estabelecer uma ligação com o outro sem se tornar igual a ele. Por isso mesmo não se trata de narrativas que navegam em águas calmas.

Conforme Kearney (2012KEARNEY, R. Narrativa. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, maio/ago. 2012.), por mais que aconteçam transformações nos modos de comunicação entre as pessoas e que vivamos na "era da informação", provavelmente haverá espaço para que os sujeitos possam contar as histórias de suas vidas e para que sejamos sujeitos às e das narrativas que atuam nos processos de identidade. Sendo assim, a construção identitária dos sujeitos não ocorre apenas "de dentro para fora", mas também é constituída pelos modos como são vistos pelos outros. Dessa forma, a escola tem papel muito importante no que tange à construção das identidades de alunos surdos ou com deficiência visual.

Atualmente, as políticas públicas de inclusão direcionam os alunos com necessidades especiais para as escolas comuns, sendo o ensino fundamental a principal porta de entrada destes ao sistema educacional. Nesse espaço, como já mencionamos, são comuns as representações de incapacidade, de inferioridade e da constante tentativa de normalização.5 5 Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade específica como parâmetro, atribuindo-lhe características positivas possíveis; em relação a esta, outras identidades são avaliadas e hierarquizadas, sendo avaliadas de forma negativa. "O normal é o primeiro e a norma se deduz dele, ou se fixa e cumpre seu papel operativo a partir do estudo das normalidades" (Foucault, 2008, p. 83). Desde que o projeto da modernidade começou a ser levado a cabo, os currículos escolares - e outros tantos - têm como objetivo borrar ou até apagar certas diferenças. Exemplo disso podemos verificar no excerto que segue:

Elas queriam me fazer semelhante às crianças ouvintes. Impediam-me de me exprimir por meio de sinais, obrigavam-me a falar. Com elas, tinha o sentimento de que era preciso esconder que se é surdo, imitar os outros como pequenos robôs, mesmo quando não compreendia a metade daquilo que era dito em classe. Mas na IVT, com as crianças e adultos surdos, sentia-me melhor. (Laborit, 1994LABORIT, E. O voo da gaivota. São Paulo: Best Seller, 1994., p. 59-60).

Aos 13 anos, era contra o sistema, contra a maneira pela qual os ouvintes governam nossa sociedade de surdos. Tinha a sensação de ser manipulada, queriam apagar a minha identidade de surda. Na escola, era como se dissessem: "é preciso que a sua surdez não seja vista, é preciso que você escute com o seu aparelho, que fale como quem escuta". (Laborit, 1994LABORIT, E. O voo da gaivota. São Paulo: Best Seller, 1994., p. 89).

É nesse cenário escolar que começam a existir algumas "batalhas identitárias" e tentativas de normalização dos alunos com deficiência visual e surdos, como bem representa o excerto anterior. Há uma necessidade premente de normalizar, tanto quanto for possível, a diferença do sujeito (Laborit, 1994LABORIT, E. O voo da gaivota. São Paulo: Best Seller, 1994.), entretanto, não tem uma atitude de simples aceitação desse quadro. Mesmo com a língua de sinais brasileira tendo reconhecimento legal, ainda que os surdos lutem há muito por seus direitos como minorias linguísticas, é comum encontrarmos escolas que desejam oralizá-los, o que pode significar uma tentativa de apagamento de suas identidades.

Se a escola é o local que incendeia as tensões identitárias, torna-se também o local em que cada um se afirma e reivindica suas identidades - ainda que estas sejam sempre movediças e fugidias. Assim, podemos ver claramente a identidade como reivindicação do direito de ser diferente. Aliás, cada vez mais, a cultura - entendida como distintos modos de vida - tem ampliado seu poder de atuação, inclusive na escola; esta, além de operar como um aparelho de Estado, tornou-se também uma arena de lutas por identidades, em que se reivindica o direito à diferença.

Com o aumento do contingente de alunos com deficiência visual e surdos no ambiente escolar, é possível que estes recebam mais visibilidade e tenham um espaço de construção de laços identitários dentro do grupo. Nesse sentido:

[...] é mais aceitável que aqueles "encarcerados" em sua diferença (por exemplo, a cor da pele) tenham a sua reivindicação legitimada contra as maculações ou rejeições dessa diferença.

Outra característica do imperativo performativo da identificação é que ele não vem de cima (Estado, corporações, associações filantrópicas), mas também de grupos que fazem um trabalho de defesa em prol das pessoas relegadas às minorias. (Yúdice, 2006YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006., p. 76).

Embora sejam "colocados" em escolas comuns com o objetivo de normalização, sujeitos surdos ou com deficiência visual intensificam o convívio entre pessoas que partilham identidades em comum. Isso, de algum modo, auxilia na socialização e na aglutinação desses indivíduos em torno de suas diferenças e da luta por seus direitos. Este é um fator de significativa importância, conforme podemos verificar no excerto a seguir:

É refletindo sobre essas questões que retornam a minha memória as palavras de um amigo cego que quando criança me dizia outrora: "sabe, minha situação seria insustentável se não fosse você e tantos outros semelhantes a mim". [...] Meu amigo sabia que não estamos sós; a primeira prova era minha presença como interlocutor, depois a presença dos outros colegas de classe e a existência de muitos outros que se sabiam cegos, de acordo com as estimativas e as classificações das estatísticas. (Bavcar, 2003BAVCAR, E. Memórias do Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., p. 135).

Essa sensação de pertencimento ainda é raridade nas instituições escolares, mesmo em tempos de inclusão. Talvez por isso, quando esses sujeitos encontram alguém "como eles", sentem-se mais pertencentes ao contexto em que estão inseridos. O que os relatos dos narradores com deficiência visual e surdos apresentam é a recorrente sensação de não lugar, de deslocamento e desconforto diante de um ambiente e de culturas que não estão preparadas para lidar com suas diferenças. Nesse sentido, importa reinventar a escola como instituição que cria igualdade de oportunidades a diferentes sujeitos. Assim, "a escola e o professor proporcionam um benefício - algo que se torna um 'bem público' e, consequentemente, coloca a todos numa posição inicial igual e fornece a todos a oportunidade de começar" (Masschelein; Simons, 2013MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução: Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 71).

Percebemos apenas uma "inclusão instrumental", tendo em vista que, quando ocorre, esta disponibiliza equipamentos de acessibilidade para as escolas e formação para os professores e gestores, elementos que visam a suprir as condições de atendimento à limitação do aluno. Porém, que inclusão é essa que se detém mais na limitação do que na possibilidade dos sujeitos?

Quando algumas iniciativas consideradas até simples são tomadas, esse quadro pode ser modificado de alguma forma. Não existem ações que solucionem todos os casos, dada a particularidade de cada aluno, mas há caminhos que podem ser percorridos para facilitar a identificação e a sensação de pertencimento dos alunos às escolas. No caso do excerto a seguir, Hingson (2012HINGSON, M. Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros, 2012.) relata uma situação ocorrida com ele, quando uma professora cega foi contratada para lecionar braile a ele e a outros colegas.

Finalmente, no verão entre a terceira e a quarta série, a escola contratou uma professora de apoio para oferecer a mim e a outras crianças cegas da região treinamento em braile. Seu nome era Cora Hershberger e ela me ajudou a reaprender braile. Meu desenvolvimento foi rápido e não demorou muito até que eu começasse a ler sozinho - em outras palavras, a porta para os livros e para o aprendizado estava aberta. Minha curiosidade e minha imaginação se ampliaram, e eu me apaixonei pelos livros quando pude explorar o mundo por meio dos pontos nas páginas. (Hingson, 2012HINGSON, M. Adorável heroína. São Paulo: Universo dos Livros, 2012., p. 70-71).

O que fica evidente nesse e nos demais relatos é que os processos de identificação têm diversos usos e possibilidades nos processos escolares. As identidades podem servir como reivindicação de direito à diferença e como autoafirmação das características de determinado grupo. Mais do que isso, não podemos negar que exista inclusão - em conformidade aos atuais parâmetros das políticas públicas - nas escolas. Contudo, nem sempre as diretrizes educacionais estão em consonância com as sensações dos alunos.

Por isso, acreditamos que seja preciso fazer uma diferenciação entre a inclusão e a sensação de inclusão. Isso porque, além de disponibilizar recursos e técnicas e possibilitar a comunicação em Libras, talvez seja primordial oferecer acolhimento, a fim de que os sujeitos se percebam incluídos. O debate sobre as identificações - ou a falta delas - no caso dos alunos surdos ou com deficiência visual, sob o ponto de vista daqueles que vivenciam a condição de diferença, é importante para demonstrar que sentir-se acolhido e incluído é fundamental para que a inclusão se efetive e não fique confinada aos dados estatísticos. Ou seja, a "sensação de inclusão" também deve ser um objetivo a ser alcançado no contexto escolar.

Amarrações finais: diferenças e possibilidades na escola

Promover a inclusão como hoje a conhecemos talvez não seja o suficiente, é necessário refletir sobre como fazer com que as políticas de inclusão e as ações delas advindas proporcionem ao alunado o sentimento de pertença e de identidade em relação à escola. Importa que os sujeitos surdos ou com deficiência visual convivam e aprendam com outros que partilham a mesma cultura, inclusive em escolas bilíngues de surdos.

Entendemos que a inclusão escolar engloba acesso e garantia de permanência na escola; acolhimento às necessidades e esforço coletivo na equiparação de oportunidades de desenvolvimento e de aprendizagem. Significa não apenas respeitar, tolerar e aceitar o outro em meio a um discurso do que é politicamente correto, mas perceber que as diferenças são múltiplas e que, por isso, requerem dos educadores a sensibilidade no olhar, a ética nas relações e a competência no ensino.

Em vez de se pensar nos sujeitos surdos e com deficiência visual como pessoas com limitações e problemas que devem ser solucionados, pode ser mais profícuo ir além do entendimento de inclusão como disponibilização de recursos e técnicas de adaptações específicas ou de tradução linguística. Quiçá optar pelo caminho de perceber a diferença como potência de compartilhamento de novas possibilidades, que auxilie nos processos de acolhimento - e não de aceitação e tolerância - desses alunos tidos como diferentes, para que seja ampliada a sensação de inclusão.

Ademais, é preciso perseguir o objetivo mais difícil: que a inclusão não aconteça apenas "por decreto", e sim com dedicação, estudo e abertura na relação com o diferente, pensando no que o aluno tem como potencial e não naquilo que se crê que lhe falte. Talvez este seja um dos nossos maiores desafios como educadores e como membros de uma sociedade que admira a diversidade, mas fica reticente diante da diferença.

Referências bibliográficas

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  • YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
  • 1
    Sujeitos surdos: culturalmente entendidos como diferentes, e não como deficientes (na perspectiva de déficit, vinculado a um modelo clínico-terapêutico); em uma perspectiva socioantropológica, são aqui compreendidos como integrantes de grupo linguístico minoritário, usuários, no caso brasileiro, da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e aprendizes em experiências visuais.
  • 2
    Usa-se o adjetivo "comum" para referência às instituições ou turmas regulares de alunos.
  • 3
    "Sujeito considerado diferente" é aqui utilizado para referirmo-nos a pessoas que apresentam alguma característica desviante do padrão de normalidade socialmente instituído como "tipo ideal": branco, ouvinte, sem deficiência, rico, jovem, bonito, inteligente, heterossexual, magro etc.
  • 4
    O esloveno Bavcar vive na França desde sua infância.
  • 5
    Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade específica como parâmetro, atribuindo-lhe características positivas possíveis; em relação a esta, outras identidades são avaliadas e hierarquizadas, sendo avaliadas de forma negativa. "O normal é o primeiro e a norma se deduz dele, ou se fixa e cumpre seu papel operativo a partir do estudo das normalidades" (Foucault, 2008, p. 83).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2015
  • Aceito
    16 Dez 2015
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