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Dando voz às crianças: percepções acerca do papel da dimensão afetiva na atividade pedagógica * * O artigo refere-se a uma parte da dissertação de mestrado intitulada Representações de crianças sobre a relação afetiva com seus professores: uma contribuição para a compreensão do desejo de aprender, de Priscila Mossato Rodrigues Barbosa, apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

Giving voice to children: insights on the role of affectivity in pedagogical activity

Resumo:

Este artigo apresenta parte de um estudo, de caráter exploratório e qualitativo, que teve como objetivo investigar representações de crianças acerca da relação afetiva estabelecida com seus professores, bem como suas percepções a respeito de como essa relação implica na aprendizagem escolar. Os participantes foram 12 crianças da 4ª série do ensino fundamental oriundas de uma escola municipal de Curitiba (Paraná, Brasil), com idade média de 10 anos. O delineamento metodológico foi pautado em três instrumentos: desenhos com histórias, produzidos pelas crianças; histórias inacabadas, a serem completadas pelas crianças; entrevista semiestruturada, na qual se buscou identificar os significantes predominantes no discurso das crianças. Como resultados, cinco categorias de representações foram obtidas: (1) atenção, conversa e ajuda; (2) afeto, carinho e estima; (3) momentos divertidos e de proximidade; (4) desejo de aprender; (5) desejo de ensinar. Análises de conteúdo, bem como estudos individualizados de cada participante, permitiram observar que tais categorias se manifestam na relação entre as crianças e seus professores por meio de variados formatos, sendo que o investimento afetivo dos professores em seus alunos é percebido por estes últimos como de importância capital para o desencadeamento de processos motivacionais e cognitivos necessários à aprendizagem.

Palavras-chave:
afetividade; interação professor-aluno; aprendizagem escolar

Abstract:

This paper presents part of an exploratory and qualitative study that investigated children’s depictions of the affective relationship they established with their teachers and their perceptions of the implications of this relationship in the learning process. The participants in the study were 12 children in the fourth grade, with an average of ten years and from a local elementary school (in Curitiba, Paraná). Three tools guided the methodological outline: stories draw and conceived by the children; unfinished stories to be completed by the children; and semi-structured interviews used to identify significant elements in the children’s discourse. As a result, five categories of description arose: (1) attention, dialogue and support; (2) affectivity, kindness and esteem; (3) funny moments and togetherness; (4) desire to learn; (5) desire to teach. The analysis of the content and the observation of each participant demonstrated that these categories appear in the teacher-student relationship through various means of interaction and that students perceive the teacher’s affective investment as something of paramount importance, capable of unleashing the motivational and the cognitive processes needed in learning.

Keywords:
affectivity; teacher-student relationship; school learning

Introdução

Nos processos de aprendizagem escolar, encontra-se um tipo particular de interação: a relação do educando com o professor. Este ocupa a importante função de mediar o vínculo das novas gerações com os diversos objetos de conhecimento disponibilizados nesse espaço institucional. No presente trabalho, a criança que se situa no ambiente escolar foi colocada em foco, uma vez que nos primeiros anos de escolarização a relação pedagógica é centrada em um adulto que ensina à criança e deseja que ela aprenda. Essa dinâmica evoca a intersubjetividade e diversos afetos se manifestam - entre eles, os desejos de ensinar e de aprender que emergem (ou não) nessa interação.

Parte-se do pressuposto de que as crianças constroem representações acerca das relações afetivas que experienciam nesse tipo de situação. A escuta a respeito de tais percepções e representações construídas sobre o papel do professor nesse contexto concede à criança a possibilidade de ocupar um lugar legitimado como alguém que pode dizer algo sobre si e sobre os fenômenos que vivencia. Ao pesquisador, conforme mencionam Dias e Campos (2015DIAS, E. B.; CAMPOS, R. Sob o olhar das crianças: o processo de transição escolar da educação infantil para o ensino fundamental na contemporaneidade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos , Brasília, v. 96, n. 244, p. 635-649, 2015.), oferece-se a oportunidade de apreender a voz das crianças na singularidade de suas tessituras (Carvalho; Müller, 2010CARVALHO, A. F.; MÜLLER, F. Ética nas pesquisas com crianças: uma problematização necessária. In: MÜLLER, F. (Org.). Infância em perspectiva: política, pesquisa e instituições. São Paulo: Cortez, 2010. p. 65-84.) e o modo como vivem seu tempo nos espaços educativos.

Azevedo e Betti (2014AZEVEDO, N. C. S.; BETTI, M. Escola de tempo integral e ludicidade: os pontos de vista de alunos do 1º ano do ensino fundamental. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 95, n. 240, p. 255-275, 2014.) apontam que, ao se considerar que as crianças podem ser produtoras de conhecimento, é necessário procurar novas formas de gerar, interpretar e apresentar os dados. Além disso, enfatiza-se aqui um fator adicional que corrobora a necessidade de se buscar maneiras alternativas de geração de informações em pesquisas desse tipo: as representações construídas pelas crianças são carregadas de significação e, embora uma parte dessa significação possa ser captada por meio de diferentes formatos e codificações compartilháveis, alusões indiretas ao(s) objeto(s) representado(s) são frequentes. Por isso, a escolha dos instrumentos metodológicos deve contemplar a possibilidade da emergência de processos projetivos - os quais podem indicar elementos subjetivos de grande relevância para a compreensão da dinâmica em questão.

As considerações realizadas até aqui justificam o delineamento do presente estudo, o qual objetivou conhecer a base dos laços inter-relacionais que se estabelecem entre crianças e professores no processo pedagógico e suas possíveis repercussões no desejo de aprender. A seguir, são apresentados alguns dos fundamentos teóricos que o respaldam.

A relação indissolúvel entre os aspectos afetivo-emocionais e a atividade cognitiva

Em três importantes referenciais presentes no paradigma interacionista de abordagem dos processos de desenvolvimento e aprendizagem caracteristicamente humanos, encontra-se grande valorização da dimensão afetiva. Sem a pretensão de expor de forma aprofundada as concepções acerca de como aspectos intelectivos e afetivo-emocionais se inter-relacionam nas teorias psicogenéticas de Henri Wallon (1879-1962), Lev Vigotski (1896-1934) e Jean Piaget (1896-1980), nem de discutir as convergências e eventuais divergências entre os referidos pensadores - pois não é o foco deste trabalho -, serão apresentados brevemente indicadores de reconhecimento sobre o fato de a afetividade desempenhar importantíssimo papel nos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Faz-se interessante, apenas, mencionar o resgate realizado por alguns autores contemporâneos, por exemplo Loos (2007LOOS, H.; SANT’ANA, R. S. Cognição, afeto e desenvolvimento humano: a emoção de viver e a razão de existir. Educar em Revista , Curitiba, n. 30, p. 165-182, 2007) e Souza (2011SOUZA, M. T. C. C. As relações entre afetividade e inteligência no desenvolvimento psicológico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 27, n. 2, p. 249-254, 2011.), acerca de como a cisão histórica entre afetividade e cognição, tratadas enquanto instâncias distintas da psique, tem sido prejudicial para a compreensão científica da natureza humana em geral. Wallon, Vigotski e Piaget são aqui citados justamente por haverem tentado, cada qual ao seu modo - e coerentemente com uma visão interacionista -, combater tal dicotomia.

Wallon indicou o papel estruturante do âmbito afetivo-emocional no começo da vida de uma criança. Para esse autor, a emoção organiza a vida psíquica inicial e antecede as primeiras construções cognitivas, sendo que posteriormente, ao longo do desenvolvimento, dá-se uma alternância de preponderância entre cognição e afetividade enquanto reguladores da atividade infantil. A pessoa é, assim, um todo completo que integra os três campos funcionais indicados pelo autor (afetivo, motor e cognitivo), representando, assim, a unidade do ser (Galvão, 2010GALVÃO, I. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Petrópolis: Vozes, 2010.; Souza, 2011SOUZA, M. T. C. C. As relações entre afetividade e inteligência no desenvolvimento psicológico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 27, n. 2, p. 249-254, 2011.).

Coerentemente com uma visão monista, defendida por Vigotski, a vida emocional está intimamente ligada a outros processos psicológicos e ao desenvolvimento da consciência de modo geral. A unidade indissolúvel composta por elementos internos e externos ao sujeito constitui o que esse autor chama de vivência - ou, segundo o próprio Vigotski, perezhivanie (1998, 2004). O termo refere-se ao modo como uma pessoa experiencia emocionalmente as interações em seu meio. Na vivência, forma-se um interjogo entre os diversos aspectos intrínsecos a um indivíduo - destes entre si e destes com os vários aspectos do meio exterior, os quais também interagem entre si -, que estão presentes, direta ou indiretamente, em cada situação experienciada pelo sujeito (Loos; Sant’Ana, 2007LOOS, H.; SANT’ANA, R. S. Cognição, afeto e desenvolvimento humano: a emoção de viver e a razão de existir. Educar em Revista , Curitiba, n. 30, p. 165-182, 2007).

A criança é parte do meio, está inserida nele e com ele forma uma unidade. Perezhivanie ou vivência representa, assim, a indivisibilidade da unidade composta por características da pessoa e da situação, enfatizando a totalidade e a unicidade do desenvolvimento psicológico infantil. Tal conceito é extremamente útil, uma vez que reúne o que cada pessoa e o que cada contexto trazem em si, elementos esses que são atualizados dialeticamente no momento específico de cada interação.

Já na abordagem de Piaget, fica evidente que todo comportamento contém, necessariamente, dois aspectos: o cognitivo e o afetivo. O primeiro refere-se a um aspecto estrutural da inteligência e o segundo a um aspecto “energético”, que engloba as emoções, os sentimentos, as tendências e a vontade, garantindo o “combustível” motivacional necessário às realizações no plano cognitivo (Souza, 2003SOUZA, M. T. C. C. O desenvolvimento afetivo segundo Piaget. In: ARANTES, V. A. (Org.). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 2003. p. 53-70.). O autor buscou superar a dicotomia entre inteligência e afetividade ao distinguir comportamentos orientados a objetos e comportamentos orientados às pessoas (Tassoni, 2008TASSONI, E. C. M. A dinâmica interativa na sala de aula: as manifestações afetivas no processo de escolarização. 296 f. 2008. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.). Para Piaget, era indiscutível o papel essencial da afetividade, pois sem ela não haveria interesses, necessidades, motivações; em consequência, as interrogações ou problemas não poderiam ser formulados e não haveria inteligência (Souza, 2011SOUZA, M. T. C. C. As relações entre afetividade e inteligência no desenvolvimento psicológico. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 27, n. 2, p. 249-254, 2011.).

A afetividade relaciona-se à sensibilidade - ao se deixar sentir o mundo, afetar-se por ele, em suas variadas possibilidades de interação. Conforme Araújo (2009ARAÚJO, M. A. L. Os sentidos da sensibilidade e sua fruição no fenômeno do educar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 2, p. 199-222, 2009., p. 201), “[...] quando tecemos a relação de coexistência e de interdependência existente entre os diversos perceptos, dos tons de suas singularidades, descortinamos a vastidão dos vãos de nosso universo sensível [...]”. Assim, para o referido autor, o educar é explicitado “como ação teórico-vivencial que implica a fruição da sensibilidade; como um rito vivo de iniciação aos saberes e sentires, aos sentidos humanos” (p. 201). Afirma-se, aqui, que é essa sensibilidade, vivenciada nas interações com o que existe ao redor - pessoas, objetos, ideias, etc. -, que modula a capacidade de se apropriar e (re)significar o mundo; isto é, o potencial e o desejo de aprender. Assim sendo, o ato de educar deve ser o de criar condições para que essa sensibilidade flua, tornando os educandos abertos e receptivos ao que se tem para compartilhar. O vínculo primeiro se dá, justamente, com a pessoa do educador, como atestam os testemunhos das crianças mostrados na seção a seguir.

Metodologia

Participantes

Participaram do presente estudo 12 crianças, com idade média de 10 anos, as quais foram selecionadas por meio de sorteio entre os alunos de duas turmas da 4ª série do ensino fundamental de uma escola pública de Curitiba/Paraná (PR). A coleta de dados se deu na própria escola, em sessões individuais realizadas em um ambiente reservado. Antes da coleta propriamente dita, houve um período de observação no ambiente escolar, de modo que as crianças pudessem se familiarizar com a presença da pesquisadora.

Instrumentos

Foram utilizados três instrumentos,2 1 Os instrumentos descritos foram previamente testados em um estudo-piloto aplicado a um número reduzido de sujeitos (três), os quais não participaram do estudo propriamente dito, com o objetivo de se avaliar sua eficácia. que associaram o método verbal à realização de desenhos:

1) Desenhos com histórias, adaptado do Procedimento Desenhos-Estórias com Tema (D-ET), desenvolvido por Trinca (1997TRINCA, W. Formas de investigação clínica em psicologia: procedimento de desenhos-estórias. São Paulo: Vetor, 1997. ): o sujeito faz um desenho considerando o tema proposto e verbaliza uma história; em seguida, responde ao pesquisador fornecendo esclarecimentos (“inquérito”), sendo finalmente incentivado a intitular sua produção. Cada participante do estudo confeccionou quatro desenhos envolvendo a si mesmo, sua professora e sua sala de aula e criou histórias para seus desenhos.

2) Histórias para completar: consiste em inícios de histórias em torno de uma dada temática, os quais são contados à criança para que ela imagine uma continuação. Esse instrumento foi desenvolvido tendo como base a adaptação feita por Cruz (1987CRUZ, S. H. V. A representação da escola em crianças da classe trabalhadora. 1987. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.) da técnica denominada Méthode des Histories à Completer, de autoria de Madeleine Backes Thomas. Apresentaram-se sete pequenos inícios de histórias, versando sobre o tema em estudo, que foram completados livremente pelas crianças.

3) Entrevista semiestruturada: realizada por meio de um roteiro inicial com nove perguntas básicas, sendo o papel do pesquisador incentivar os sujeitos a explicarem, o máximo possível, o que pensam sobre a função do professor em sua aprendizagem escolar.

Aspectos éticos

Esta investigação foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade à qual está vinculada, tendo sido respeitados todos os cuidados éticos previstos, incluindo a coleta do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos pais ou responsáveis pela criança integrante do estudo. A fim de garantir o anonimato dos participantes, eles são designados apenas por sua primeira inicial na descrição dos resultados.

Análise de dados

Com o objetivo de compreender relações, valores, atitudes, crenças, hábitos e representações, considerando o conjunto de fenômenos humanos gerados socialmente, é que se faz a opção pela pesquisa qualitativa (Minayo, 2011MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 25. ed. Petrópolis: Vozes , 2011. (Coleção Temas Sociais)., 2012). As estratégias qualitativas atuam com a matéria-prima das vivências e, por esse motivo, os dados foram desse modo aqui tratados. Buscou-se identificar significantes e representações que predominaram em relatos e demais produções das crianças e, assim, foram extraídas e organizadas categorias do tipo emergentes. Tal procedimento se orientou pela análise temática em três etapas, proposta por Minayo (2011MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 25. ed. Petrópolis: Vozes , 2011. (Coleção Temas Sociais).): pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Às categorias extraídas procederam-se, no material original, as análises frequenciais que resultaram em diagramas, tornando possível a visualização dos resultados do grupo como um todo. Cada categoria foi, na sequência, analisada pormenorizadamente, mostrando-se o tipo de conteúdo que emergia em cada uma delas. No presente texto, parte significativa dessa análise é apresentada, exemplificando-se com extratos de protocolo representativos de tais conteúdos. Adicionalmente, foram realizados estudos individualizados, os quais contêm uma síntese descritivo-interpretativa do percurso de cada uma das 12 crianças ao longo de toda a coleta de dados. Aqui, apenas a título de exemplo, é apresentado um dos estudos individualizados.3 2 Para acesso ao estudo completo, com toda a fundamentação teórica, demais resultados e sínteses descritivo-interpretativas, bem como discussão, ver a dissertação de Priscila Mossato Rodrigues Barbosa.

Resultados e discussão

No que diz respeito ao primeiro instrumento aplicado (Desenhos com histórias), os desenhos das crianças receberam um título, o qual foi acompanhado de pequenas histórias por elas criadas. Esse material sofreu o mesmo tipo de tratamento que os demais, de caráter verbal, provenientes dos outros instrumentos (Histórias para completar e Entrevista semiestruturada).

Inicialmente, assumiu-se uma postura mais exploratória e descritiva do que interpretativa em relação a tais dados. Em um segundo momento, contextualizado pelas histórias e em conjunto com os demais instrumentos nas análises individuais, empreendeu-se um esforço mais direto na construção de sentidos, buscando-se respeitar os limites e a parcialidade inerentes ao fato de se tratar de uma pesquisa específica, cuidando-se para não se tomar uma via de muitas interpretações que viessem a ultrapassar os objetivos do trabalho.

Nesse processo de análise dos relatos dos participantes, levou-se em consideração o que destaca Moura (2004MOURA, N. A. Escola - que lugar é este? A representação social de alunos sobre a escola no percurso do ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.): tanto nas entrevistas quanto nas conversas informais, a fala toma certa forma e sentido que são construídos no momento da interação entre o pesquisador e o pesquisado. Isso porque o sentido do que se diz é também parcialmente condicionado por fatores contextuais, pelas influências de determinado lugar e tempo. Assim sendo, está exatamente na fronteira entre o coletivo e o singular, onde o sujeito se situa. Há algo de muito singular, próprio de cada um, marcado por sua história e subjetividade, mesmo nas representações compartilhadas com os outros e a cultura.

As análises realizadas permitiram, desse modo, que fossem instituídas cinco categorias que agrupam as expressões das crianças participantes do estudo relativas às manifestações de afetividade na relação professor-aluno e sua repercussão na atividade pedagógica, as quais serão, a seguir, apresentadas.

1ª categoria: representações de atenção, conversa e ajuda

Tais representações foram as mais frequentes, podendo ser identificadas em todo o percurso da coleta de dados e por meio de todos os instrumentos. Quando os alunos foram solicitados a desenhar sua sala de aula e contar uma história e quando se pediu que desenhassem a si próprios e suas professoras em um momento que consideravam importante, apareceram falas que podem ser tomadas como representações de atenção, conversa e ajuda por parte da professora para com os alunos, por exemplo:

Depois que a gente terminou, a professora fez pra gente jogo da memória, brincamos, conversamos bastante, foi legal. (N.).

Ela gosta de ajudar, ela é legal, bacana; tem dia que ela não passa tanta lição e conversa mais com a gente. (L.).

No que se refere às histórias para completar, foi proposto que, na primeira história, os alunos completassem a seguinte frase: “De vez em quando o menino pensava nas coisas da escola e na professora, ele pensava...” Nessa oportunidade, uma das crianças completou da seguinte maneira: “Ele pensava em estudar e ajudar sempre a professora” (T.).

Nesse caso, embora não esteja explícito o que exatamente seja o “ajudar sempre a professora”, há o aparecimento do significante “ajudar” incluído no que pode caracterizar as relações entre alunos e professores. Já no início de história “A professora estava feliz porque...”, em que a criança deveria completar com a ideia que lhe ocorresse, também apareceu a concepção de que a professora é alguém que fica feliz em ajudar: “... estava feliz porque ajudou seu aluno mais querido” (L.).

Em outra história, cujo começo era “Um menino chegou na escola chateado porque...”, as crianças deveriam completar a narrativa dizendo porque ele estaria chateado e, ainda, o que a professora fez diante disso. As falas demonstram que, para essas crianças, a relação entre a professora e seus alunos comporta o “agradar”, o “conversar”, o “ajudar” e o “aconselhar”. Essas atitudes podem ser consideradas de ordem afetivo-relacional, que vão além da função de simplesmente transmitir, ensinar um conteúdo: “A professora agradou ele e perguntou o que ele tinha” (V.).

Outros participantes revelaram a suposição de interesse e envolvimento por parte da professora para além do ambiente escolar, sensível às questões pessoais e familiares dos alunos: “A mãe dele está doente, diante disso a professora o deixou ir para casa cuidar da mãe dele, porque ela percebeu sua tristeza” (J.).

As seguintes falas também representam uma professora que “ajuda”, “brinca”, “conversa” e “acalma” quando seu aluno está chateado:

Ele estava chateado porque o amigo não quer mais brincar com ele; a professora ajudou-o brincando com ele. (T.)

Seu melhor amigo tinha saído da escola, diante disso a professora conversou com ele e fez com que ele se acalmasse. (F.)

Algumas crianças representaram a relação entre a atenção da professora com os alunos e a aprendizagem escolar. Isso pôde ser constatado quando elas se referiram, por exemplo, a: “O que fazia com que o menino aprendesse bem as coisas”. Expressou M.: “A professora explicava; atenção da professora com os alunos” (M.).

Ao mesmo tempo, uma das crianças supôs que “o menino que não aprendia bem as coisas” tinha uma professora que “aconselhava seus alunos bons e os ruins não”, por isso ele não aprendia. Pode-se perceber que a “atenção” e o “conselho” da professora são fatores que, para eles, determinam a aprendizagem. Para outra criança, a atitude da professora diante do menino que não aprendia bem as coisas deveria ser a de “ajudar”, “conversar”, “convencê-lo”, para que ele prestasse atenção e não se prejudicasse: “Ele não queria nada, só bagunça, festa; a professora o ajudou conversando, convencendo-o a prestar atenção para não se prejudicar” (M.).

Segundo o discurso de outro participante, a professora teria o importante papel de “falar com o pai para que este levasse o menino a uma psicóloga para ver o que estava acontecendo”. À professora é atribuída, nesse caso, a capacidade de ter um olhar diferenciado sobre a criança, que permitiu perceber algo que os pais “não sabiam”: “Falou com o pai para ele levar numa psicóloga, ver o que estava acontecendo; ele era hiperativo como eu e o pai e a mãe dele não sabiam” (G.).

Observou-se que a situação da própria criança foi claramente projetada na maneira como ele completou a frase proposta. Mais detalhes acerca da condição desse garoto serão apresentados adiante, no estudo individualizado selecionado para demonstração.

A maioria das intervenções, por parte da professora, supostas pelas crianças no caso do menino que “não aprendia bem as coisas” inclui uma maior atenção. Tal dado reforça a interpretação de que para as crianças a atenção da professora e dos pais é considerada um fator de grande relevância na aprendizagem: “Ela ensinou ele e deu atenção para ele, por isso ele aprendeu” (T.).

Já na entrevista, ao serem questionadas sobre “qual é o trabalho do professor”, as crianças relacionaram a “atenção”, o “ajudar” e o “conversar” à ideia que fazem desse trabalho: “Ajudar as crianças, passar lição ensinando, explicar e conversar” (J.).

Essas categorias estão presentes também nas respostas à questão “Como são seus professores?”: “Eles são legais, o professor [X] é bonzinho. Eles nos tratam com carinho, amor e atenção” (N.).

As respostas referentes ao fato de os alunos gostarem da professora e aos motivos que contribuíram para isso, bem como a percepção sobre a professora gostar delas ou de seus colegas, também trazem a ação de “ajudar” como essencial nas representações: “Quando alguma coisa acontece, ela vai ajudar, se importa com a gente, não deixa a gente fazer besteira” (G.).

Percepções que incluem “atenção, conversa e ajuda” novamente foram relacionadas à aprendizagem nas respostas dadas por todas as crianças quando indagadas acerca de “Que coisas a professora faz que te ajudam a aprender?”, como mostra esta aluna: “Conversa, demonstra que gosta”. (D.)

2ª categoria: representações de afeto, carinho e estima

Especialmente por meio do instrumento Desenhos com histórias, as crianças representaram fortemente “afeto”, “carinho” e “estima” em sua relação com as professoras. Um exemplo é o desenho de uma criança em que a professora vestia uma blusa com um coração estampado. As crianças enfatizaram a presença da professora, sua proximidade física, por vezes mencionando abraços entre elas e a docente:

Esse momento é importante porque eu estou ao lado da minha professora e também porque eu gosto muito dela. (T.).

Sorrindo, abraço. Não foi assim com as outras professoras; ela gosta de mim. (D.).

Outra manifestação afetiva que surgiu, incluindo sentimentos de desagrado, foi o “ficar brabo”, por parte tanto da professora como da própria criança; o que, ao mesmo tempo, não exclui a ideia de que a professora a trate bem e goste dela: “Eu fui para diretoria e estou brabo; ela ficou braba porque eu aprontei. Ela só é braba quando eu apronto grave” (G.).

Em outro momento, ao justificar porque gosta de sua professora, o mesmo aluno relatou: “Ela elogia, fala que eu tenho capacidade e sou muito inteligente. Me trata bem. A professora gosta de mim, não gosta que eu apronto”.

A representação afetiva “saudade” foi frequente nas histórias para completar. Sobre isso se pode inferir que, em parte, tal fato se deva ao momento que esses alunos e suas professoras estavam vivenciando, em que o fim do ano letivo se aproximava. Foram comuns discursos que remeteram à separação, já que os alunos necessariamente mudariam de escola para ingressarem na 5ª série do ensino fundamental: “Saudades, esse período nessa escola acabou. Eu vou visitá-la” (V.)

Uma criança supôs que a professora “... durante as férias pensava nos seus alunos e sentia muita falta deles; ela fala muito dos alunos, do passado dela” (D.).

As qualidades afetivas atribuídas às professoras (“carinhosa”, “brinca”, “é legal”, “é mais ou menos brava”, “muito braba”, “conversa como se fosse aluno”, “ri”, “respeita”, “seu jeito”) estão claramente enlaçadas com as de cunho cognitivo (“as coisas que ela passa”, “ensina as coisas”). A frase dita por uma menina -“ela me faz ser estudiosa”- representa o efeito de tal enlace afetivo-cognitivo na relação pedagógica de forma que não se pode supor que essas instâncias sejam representadas, pelas crianças, como independentes. Segue o comentário de um participante em resposta à pergunta sobre se eles “gostam da sua professora, se gostam, por que e o que faz com que gostem”: “Sim, porque ela é carinhosa, brinca com seus alunos”. (V.)

Surgiu ainda uma grande variedade de representações com a questão: “O que o professor faz que os alunos não gostam?”. A maioria das crianças pôde dizer algo que as desagrada em sua relação com a professora, e o “brigar” também apareceu associado a uma demonstração de estima, de cuidado, como mostra o exemplo: “Ela demonstra que gosta de mim brigando, porque eu preciso para fazer a lição” (V.).

A maior parte das crianças acredita que os professores gostam de seus alunos: “Todo professor gosta de seu aluno; eu percebo isso porque minha professora é legal e muito alegre” (V.).

No entanto, algumas admitem que isso nem sempre é totalmente verdadeiro: “Nem sempre o professor gosta de criança; minha professora gosta de todos, mesmo os que ela briga mais” (D.).

O “elogiar” e o “tratar bem”, vindos da professora, também apareceram como manifestações de que ela gosta dos alunos: “Sim, eu percebo porque quando tiramos uma boa nota, ela nos elogia” (H.).

Em alguns depoimentos, há uma explícita relação entre as representações afetivas do professor com a aprendizagem dos alunos: “Se ele [o professor] não gosta do aluno, não ensina direito; se gosta, o aluno aprende por causa do afeto” (D.).

Com a proposta de investigar o afeto relacionado aos conteúdos aprendidos, levantaram-se (por meio das questões: “Do que a professora ensina, o que você mais gosta? Por que?”; “E do que você menos gosta? Por que?”) articulações entre o desempenho, as eventuais dificuldades e o gostar (ou não gostar) do conteúdo. Todas as crianças afirmaram gostar mais das disciplinas em que apresentavam mais facilidade e justificaram que não gostavam de certa disciplina por considerarem-na difícil e terem nela um desempenho ruim.

3ª categoria: representações de momentos divertidos e de proximidade

Tendo o instrumento Desenhos com histórias como estímulo, as crianças representaram, de forma predominante, momentos de convivência próxima com a professora em situações descontraídas, isto é, atividades divertidas e passeios. Demonstraram que momentos assim são muito valorizados por elas. Foi frequente que os elegessem para desenhar e descrever em suas histórias, concedendo-lhes um lugar de importância na relação professor-aluno:

Num parque passeando por acaso, gostei de encontrar [a professora], eu que vi e fui dar oi, ela ficou surpresa, estava só nós dois. (D.).

A professora ficou emocionada e nós felizes porque deu tudo certo no final e ela gostou. (H.) [referindo-se à festa-surpresa de aniversário para a professora].

Passeio Terra Viva, na piscina, e a professora estava observando e cuidando da gente. (V.)

A categoria mencionada apareceu somente por meio desse instrumento, provavelmente porque os desenhos com histórias parecem ter criado um espaço propício a tais associações que remetem a momentos extraescolares de maior liberdade e, não por acaso, de grandes oportunidades de trocas afetivas.

4ª categoria: representações do desejo de aprender

Foi mediante o instrumento Histórias para completar que as crianças evidenciaram suas mais claras representações da relação com a escola associadas ao “estudar” e, implicitamente, ao desejo de aprender. Quando sugerido que “de vez em quando o menino pensava nas coisas da escola e na professora”, parte das falas das crianças trouxe este tipo de referência: “Ele pensava sobre as tarefas que ele aprendia muito. Pensava em como ele poderia fazer para melhorar na aula” (G.).

Nesse grupo de respostas, houve manifestações do investimento no desejo de aprender e na motivação, por exemplo, “pensar em como melhorar”, “prestar atenção”, “responsabilidade”, “estudar” e “fazer as lições”. Isso é bastante sugestivo de que elas possuem forte noção de sua implicação pessoal, do engajamento necessário para sustentar o esforço cognitivo; o que remete, mais uma vez, à relação dos aspectos afetivos com os processos de aprendizagem.

É de se destacar, também, que uma criança tenha relacionado o “aprender” com o “ensinar”, pois supõe que o “menino aprendia bem as coisas” porque “estudava bastante e ensinava para as pessoas o que ele tinha aprendido” (H.).

A escola também apareceu como um espaço de relacionamento e brincadeira, o que mostra que as crianças possuem uma ideia ampla de “aprender”:

Ele pensava em jogar bola, brincar com os amigos e, quando ele pensava na escola, ele lembrava também dos probleminhas de matemática e de português. E ele pensava na escola porque ele gostava muito de estudar. (N.).

Pensava que a escola era um lugar divertido porque lá ele aprendia coisas e também lá ele tinha seus amigos. (F.).

Ao mesmo tempo que reconheceram que estudar é importante, as representações das crianças evidenciaram que descansar e brincar também são. Um exemplo disso apareceu na fala: “O menino pensava na escola porque gostava de estudar. Mas também quando não pensava era porque queria ficar em casa brincando” (V.).

Observou-se que na presente categoria o desejo de aprender apareceu representado nas falas das crianças, principalmente por apontamentos relacionados ao “gostar de estudar”, “estudar bastante”, “aprender e ensinar” etc., e também que a aprendizagem foi frequentemente associada a fatores relacionais.

5ª categoria: representações do desejo de ensinar

Concepções sobre o que deixaria a professora feliz e o que ela poderia desejar, exploradas nas histórias para completar, foram frequentemente associadas à produção de seus alunos, sendo uma das principais representações de produção a “tarefa” ou “lição”, como também a “nota boa”:

A professora desejava que todos os alunos fossem bons, o que mais queria do seu aluno era que ele fosse muito esperto e que fizesse a lição. (D.)

Estava feliz porque todos os alunos tiraram nota boa e a professora foi muito elogiada pelas outras pessoas. (H.)

As representações seguintes evidenciam a suposição de que a professora alimenta seu desejo de ensinar e investe em seus alunos, preocupando-se, inclusive, com os aspectos emocionais dos discentes, sua vida fora da escola e o futuro deles. Essa posição pode ser interpretada como afetiva, de maneira mais ampliada, já que está para além de que seu aluno atinja objetivos pedagógicos imediatos. Mostra um desejo sustentado por sua inserção como sujeito, com referência simbólica na cultura e no contexto social, posicionando-se e exercendo sua condição de alguém que pode se harmonizar interacionalmente:

Desejava que todos aprendessem, tivessem atenção dos pais e fossem felizes. (T.).

A professora desejava que eles aprendessem, que eles trabalhassem, fizessem faculdade e se formassem pra ela ter orgulho. (J.).

Ela tinha um desejo de que seus alunos aprendessem, que eles tivessem um futuro bom, para não passar necessidade. (F.)

Ela desejava bons alunos, educação era o que ela mais queria dos seus alunos. (H.).

A professora estava feliz porque o tio do menino parou de se drogar. (N.).

Apareceram referências à ideia de que a professora fica feliz por estar com seus alunos e “dando aula porque gosta”: “Ela estava feliz porque estava com os alunos e dando aula, ela gostava” (L.).

Há ainda o comentário de que a professora sente falta dos estudos, ou seja, revelando a concepção de que a professora que ensina também estuda:

A professora sentia falta dos estudos. (N.).

O trabalho do professor é muito legal porque o que eles aprendem, ensinam para nós. (H.).

Ressalta-se que as crianças, espontaneamente, associaram a atividade do professor, o seu ensinar, com o estudo, com seu próprio desenvolvimento contínuo.

Em várias questões da entrevista, as crianças também manifestaram representações de que o trabalho do professor envolve o “importar-se” com seus alunos:

O trabalho do professor é ensinar os alunos, para eles terem um bom futuro. (V.).

Com carinho, ela pega no pé, quer que estude, vê o comportamento de cada um. (H.).

Conforme foi possível constatar, a maioria das crianças da presente amostra representou um professor que investe (“se esforça pela gente”) e se importa com os alunos; ou seja, que trabalha impelido por seu verdadeiro desejo de ensinar e de que seus pupilos se desenvolvam.

Estudos individualizados

Conforme anteriormente mencionado, os estudos individualizados contêm uma síntese descritivo-interpretativa do percurso de cada uma das 12 crianças ao longo de toda a coleta de dados. Aqui, somente como ilustração, é apresentado um deles.

G. (10 anos e 7 meses)

Quando G. foi sorteado para participar da pesquisa, mostrou-se, inicialmente, reticente. Ao mesmo tempo, sua professora pareceu satisfeita por ter sido justamente ele o selecionado naquele momento.

Primeiramente, foi solicitado que G. fizesse um desenho que representasse sua sala de aula. Estavam à sua disposição lápis de cor, lápis preto, borracha e folhas de papel A4. O menino estava bastante silencioso enquanto executava a atividade, preocupado em usar a régua e “fazer tudo retinho”. Ao ser convidado a falar sobre seu desenho, não deu um título a ele, nem mesmo o associou a uma história. Apenas criticou a produção, dizendo que não tinha “ficado bom”; segundo ele, faltavam os pés das carteiras e das cadeiras.

Figura 1
Primeira Representação da Sala de Aula, Feita por G

Como é possível observar, seu desenho não possui detalhes, apenas traços geométricos que representam os móveis e o espaço físico da sala de aula. Após o término dessa primeira tarefa, a pesquisadora propôs que fizesse outro desenho: agora um em que ele estivesse com sua professora, em um momento que considerasse importante, ao que ele respondeu: “Pode ser”. Nesse segundo momento, mostrou-se um pouco mais comunicativo. Comentou sobre o que estava desenhando. Reclamou da dificuldade em desenhar as pernas sob a mesa, apagou-as e redesenhou várias vezes. Intitulou seu desenho como “O ‘fulano’ tirou F”. Ele explicou à pesquisadora que o “fulano” era um colega seu e que F é a pior nota que alguém pode tirar. O desenho mostra a professora sentada em sua mesa e G. em pé à sua frente, olhando a prova do colega. Interessantemente, na continuação surgiu um novo título: “O dia em que eu tirei F”. Na história, G. relatou uma situação em que seu pai ficou “uma fera” com sua nota F; mas a professora, esperançosa de que ele desta vez se saísse melhor, deu outra folha de prova e ele então, após refazer, tirou B. Observa-se que, já nessa primeira sessão, apareceram diversos aspectos de caráter afetivo: inicialmente, quando G. disse que quem tirou F foi seu colega, para, no momento seguinte, dizer que foi ele próprio. Depois, em relação ao pai que “ficou uma fera” e que: “é brabo quando erro nas lições”. A professora surgiu como a pessoa que tinha “esperança” de que ele acertasse, ou seja, que apostou em seu aluno e o ajudou, dando-lhe uma segunda chance para refazer a prova. E assim, finalmente, conseguiu melhorar seu desempenho e se sentir bem.

Figura 2
Primeira Representação Feita por G. de um Momento Importante com sua Professora

A segunda sessão também foi dedicada à atividade de desenho. Solicitou-se que G. fizesse dois novos desenhos com os mesmos temas propostos anteriormente: um de sua sala de aula e outro dele e de sua professora em um momento que considerasse importante. A intenção foi a de propiciar um espaço de encadeamento de significantes entre os desenhos realizados em dois momentos consecutivos. O título de seu terceiro desenho foi “Minha sala” e, assim como da primeira vez em que desenhou sua sala de aula, não quis contar uma história sobre o desenho, apenas o intitulou. Todavia, em comparação ao primeiro desenho, este foi muito mais rico em detalhes: havia armários, um número maior de carteiras, e desta vez com os pés, conforme se pode observar na Figura 3.

Figura 3
Segunda Representação da Sala de Aula, Feita por G.

Seu quarto desenho, no qual ele está com a professora em um momento importante, recebeu o título: “Quando eu aprontei no recreio”. A história construída por G. é carregada de representações de carinho e estima endereçados à professora. Ele foi para a diretoria e se dizia “brabo”; a professora também estava zangada, mas, segundo o garoto: “ela só é braba quando eu apronto grave”. De acordo com ele, a professora frequentemente o elogia, ressaltando suas capacidades e dizendo que é muito inteligente: “me trata bem, a professora gosta de mim, só não gosta que eu apronto”.

Figura 4
Segunda Representação Feita por G. de um Momento Importante com sua Professora

Percebeu-se que na história contada por G. são relatadas coisas que realmente aconteceram. Em seu desenho, ao seu lado e da professora há um soco-inglês. A professora já havia confidenciado suas preocupações com comportamentos como esse da parte de G., pois ele já levou para a escola um soco-inglês, canivetes etc. Do que se escutou sobre a história escolar do menino, pode-se inferir a importância de sua relação com a atual professora. Ele sempre foi considerado um aluno “problemático” e violento. Recentemente, foi diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Sua professora se envolveu em projetos pedagógicos dirigidos a crianças com diagnóstico de TDAH durante todo o ano. O trabalho com G. é considerado pela própria professora, pela equipe pedagógica e pelos demais colegas de docência um exemplo de sucesso. Esse aluno tinha muitas defasagens na aprendizagem, desinteresse, faltava muito às aulas, nunca fazia as tarefas, nem mesmo ficava na sala de aula nos anos anteriores. Durante o ano letivo em questão, teve um grande progresso em seus processos de aprendizagem, em suas atitudes e comportamentos, bem como na forma de se relacionar com outras crianças. Tudo indica que esse progresso se deve ao fato de que esta professora pôde se relacionar com G. de uma maneira muito especial.

Isso aparece refletido também em suas respostas aos instrumentos de pesquisa. Um olhar para suas produções traz, nas histórias para completar, por exemplo, que “o menino pensava em como ele podia fazer para melhorar na aula”, o que parece ter se tornado uma questão para G. Durante algumas observações em classe, feitas pela pesquisadora previamente ao início formal da coleta de dados, a professora comentou sobre seus progressos, em tom de incentivo. Outras vezes essa temática veio à tona ao longo do percurso com os instrumentos de pesquisa, quando, por exemplo, “a professora desejava que o aluno melhorasse” e “estava feliz porque ele tirou um A”. O “menino que não aprendia bem as coisas” era “hiperativo” como ele. “O pai e a mãe não sabiam” e foi a professora quem falou com o pai para levá-lo a uma psicóloga e “ver o que estava acontecendo”. Já o “menino que aprendia bem as coisas” “era inteligente”, atributo com que ele gosta de ser elogiado. Talvez isso o autorize, simbolicamente, a empreender esforços para ser um aluno “melhor”. Foram visíveis representações do desejo de aprender, do desejo de ensinar, da percepção de investimento em seu aluno e de preocupação por parte da professora quanto ao discente - não só no sentido estrito da aprendizagem dos conteúdos escolares, mas de modo mais amplo. Ela “perguntou por que ele estava triste, ele não quis falar. Ela ligou para a mãe perguntando, ficou preocupada”. Ainda, quando G. explicou que o trabalho do professor é “ensinar os alunos e fazer ele entender que não pode se meter em encrenca”. Representações de atenção, conversa e ajuda apareceram significativamente em seu discurso:

Ela me ajudou, conversou com meus pais e dava dicas para acertar a lição.

Eles [os professores] sabem explicar, conversam ao invés de brigar, quando estamos fazendo coisa errada.

É notável como no percurso da pesquisa as produções e representações de G. emergiram claramente tocadas por suas experiências pessoais. Supõe-se, também, que sua relação com a atual professora tem sido determinante em seus processos relacionais e de aprendizagem.

Considerações finais

Foi possível demonstrar que as crianças são capazes, sim, de construir representações sobre a relação estabelecida com seus professores, as quais possuem caráter fortemente afetivo. Observou-se, também, que tais representações são espontaneamente causadas pelos próprios processos de aprendizagem, o que leva a supor que, na concepção das crianças, não existe uma distinção assim tão nítida entre os processos afetivo-emocionais e os cognitivos quanto a ciência psicológica, a educacional e a filosofia do conhecimento em geral vêm, há muito, reforçando.

Nessa direção, corrobora-se aqui a afirmação de Azevedo e Betti (2014AZEVEDO, N. C. S.; BETTI, M. Escola de tempo integral e ludicidade: os pontos de vista de alunos do 1º ano do ensino fundamental. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 95, n. 240, p. 255-275, 2014.) que as crianças podem ser também produtoras de conhecimento. No presente caso, o que fica evidente é que as crianças participantes do estudo parecem possuir uma noção muito mais clara da inter-relação entre os âmbitos afetivo-emocional, cognitivo e sociointeracional que os adultos - professores e mesmo pesquisadores -, que tendem a pulverizar o ser humano em facetas que pouco interagem entre si. Talvez esse conhecimento tácito seja, na prática, justamente o que retroalimenta os profissionais que apreciam o trabalho com crianças e que os faz superar os enormes desafios, mantendo-se firmes na crença de que é possível conciliar o ato de amar com o de educar.

Observa-se que os extratos de protocolo apresentados ilustram, de maneira bastante nítida, a referida fluidez nas percepções das crianças, bem como transparecem uma associação espontânea e mesmo uma dependência entre os vários tipos de processos dos quais precisam o desenvolvimento humano. É o caso da afirmativa marcante de uma das crianças pesquisadas: “Se ele [o professor] não gosta do aluno, não ensina direito; se gosta, o aluno aprende por causa do afeto” (D.). Ela é particularmente representativa da importância da qualidade da interação professor-aluno, pois combina todos os principais construtos elencados no presente estudo: atenção, ajuda, estima, desejo de aprender, desejo de ensinar.

Wallon é um dos teóricos citados na fundamentação desta pesquisa e que deveria ser mais bem compreendido e difundido no campo da educação e da psicologia do desenvolvimento. Isso porque, conforme apontam Ferreira e Acioly-Régnier (2010FERREIRA, A. L.; ACIOLY-RÉGNIER, N. M. Contribuições de Henri Wallon à relação cognição e afetividade na educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 36, p. 21-38, 2010.), Wallon buscou englobar em um movimento dialético a afetividade, a cognição e os níveis biológicos e socioculturais, trazendo contribuições importantíssimas para os processos de ensino-aprendizagem. Além disso, valorizava a relação professor-aluno e a escola como grandes oportunidades no processo de desenvolvimento da “pessoa completa”.

As categorias obtidas na análise dos dados funcionam, ainda, como indicadores da vivência das crianças e dos professores nesse tipo de contexto interacional - no sentido apontado por Vigotski (1998VIGOTSKI, L. S. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes, 1998., 2004), outro autor citado na introdução deste trabalho. Uma vez que se permite emergir elementos de cunho afetivo de caráter moderador na atividade intelectual, desempenha-se um papel funcional altamente relevante na temática aqui estudada. Como afirmava esse autor, a ação em qualquer meio depende do impacto afetivo do meio e da experiência no sujeito. Por esses caminhos, os quais passam por e reúnem o desenvolvimento afetivo, motor, biológico e cognitivo, é que cresce verdadeiramente uma pessoa (Vigotski, 2004). E mais uma vez, salientamos aqui, é uma pena que o sentido monista do desenvolvimento defendido por Vigotski seja, na concepção de métodos pedagógicos e políticas educacionais, tão negligenciado.

Em termos metodológicos, mas ainda na mesma direção, o conceito de vivência merece ser destacado como um dos termos estruturantes da investigação qualitativa, de acordo com Minayo (2012MINAYO, M. C. S. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626, 2012.), uma vez que permite a apropriação da riqueza de informações do campo estudado. As categorias emergentes (obtidas por meio da análise do material de campo) acabam por se tornar construtos de segunda ordem, pois nelas deve predominar a busca da lógica dos atores (no caso, dos participantes da pesquisa), e não a vivência em si - que ocorre no âmbito da história coletiva e é contextualizada pela cultura do grupo em que ela se insere -, tampouco somente a descrição de suas falas.

No que se refere à etapa dos estudos individualizados, priorizou-se a aplicabilidade de dois dos termos estruturantes propostos por Minayo (2012MINAYO, M. C. S. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626, 2012.) na execução de uma pesquisa de cunho qualitativo: compreender e interpretar. Assim sendo, o estudo individualizado descrito no presente trabalho apresenta grande potencial compreensivo e interpretativo, visto que traz claríssimos indicadores de que os fenômenos que compõem a dimensão afetiva são componentes essenciais da atividade pedagógica. Funcionam, desse modo, como mola propulsora de avanços no desenvolvimento que se almeja oportunizar aos educandos.

Ao longo de todo o estudo, o fato de a aprendizagem ter sido significativamente associada pelas crianças a fatores relacionais, por meio de representações de momentos agradáveis de interação, atenção e cuidado, bem como a noção demonstrada por elas de sua implicação pessoal e do engajamento necessário para sustentar o esforço cognitivo, corrobora a importância do âmbito afetivo-emocional, até mesmo como “combustível” essencial às realizações no plano cognitivo, como entendia Piaget em suas teorizações.

Acredita-se que o presente trabalho tenha oferecido a oportunidade para se repensar o lugar que o professor e a escola ocupam na vida das crianças, uma vez que revaloriza o professor e o reconhecimento de sua influência na motivação escolar dos alunos e em seu desejo de aprender. No que se refere a tais implicações pedagógicas, outras questões surgem e podem vir a se tornar problemas de pesquisa em trabalhos futuros. Por exemplo, que representações os adolescentes constroem sobre a relação com seus professores? Como a escola, estruturada da forma que tem sido, interfere nessas relações - com a vivência de saberes e contatos tão fragmentados a partir de certo ponto da vida escolar? Uma vez que o papel do professor vem sendo aceleradamente redimensionado (para não dizer desvalorizado), com a supervalorização dos métodos de ensino, das técnicas e do arsenal tecnológico para “motivar” (artificialmente) os alunos, consegue ainda o professor suportar o real investimento afetivo dos alunos e desejar ensinar? Até quando?!

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  • *
    O artigo refere-se a uma parte da dissertação de mestrado intitulada Representações de crianças sobre a relação afetiva com seus professores: uma contribuição para a compreensão do desejo de aprender, de Priscila Mossato Rodrigues Barbosa, apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
  • 1
    Os instrumentos descritos foram previamente testados em um estudo-piloto aplicado a um número reduzido de sujeitos (três), os quais não participaram do estudo propriamente dito, com o objetivo de se avaliar sua eficácia.
  • 2
    Para acesso ao estudo completo, com toda a fundamentação teórica, demais resultados e sínteses descritivo-interpretativas, bem como discussão, ver a dissertação de Priscila Mossato Rodrigues Barbosa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2016
  • Revisado
    02 Nov 2016
  • Aceito
    30 Nov 2016
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