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Acesso e democratização do ensino superior com a Lei nº 12.711/2012: o câmpus de Londrina da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

Democratization and access to higher education through the Law 12.711/12: Londrina’s campus of the Federal University of Technology of Paraná (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)

Resumo:

Este artigo analisa o ingresso de estudantes nos cursos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Londrina, no ano de 2015, com base nas mudanças implementadas pela Lei de Cotas (Lei Federal nº 12.711/2012). Essa lei tornou obrigatória a reserva de vagas para alunos egressos de escolas públicas, de baixa renda e autodeclarados pretos, pardos ou indígenas (PPI) nas instituições federais de ensino superior e técnico, constituindo-se como medida compensatória diante dos efeitos dos privilégios sociais e da desigualdade nas condições de acesso ao ensino superior. Investiga o preenchimento das vagas reservadas na instituição mencionada para identificar em que medida as ações afirmativas têm cumprido os propósitos para os quais foram pensadas. Foram coletadas as notas de entrada dos alunos em 2015, buscando suas medidas de centralidade estatística, comparando cotistas com não cotistas e os diferentes cursos entre si. Analisa, ainda, a relação entre reserva de vaga e seu preenchimento nas quatro categorias de cotistas e no grupo de não cotistas. Observa-se que o prestígio dos cursos é um fator relevante para o aumento das medianas das notas de entrada dos estudantes e também que a categoria de cotas para pessoas de baixa renda tem colocado entraves para o preenchimento de suas vagas.

Palavras-chave:
ações afirmativas; ensino superior; Lei de Cotas

Abstract:

This paper analyzes the admittance of students in Paraná’s Federal University of Technology (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) courses, Londrina’s Campus, in 2015, based on the changes introduced by the Quota Law (Federal Law 12.711/12). This law forced federal institutions of higher and technical education to set aside places for public school, low-income, and self-declared black, brown or indigenous students, which is a compensatory measure due to the effects of social privileges and inequalities in the access conditions to higher education. The procedure employed to assign spots in the aforementioned institution is investigated, in order to identify to what extent the affirmative actions have fulfilled its purpose. Students´ admittance scores were collected, seeking their statistical measures of centrality, comparing quota and non-quota students, and the different courses. Furthermore, it analyzes the relation between the spot reservation and its assignment in the four quota categories and the non-quota students group. It is also observed that a course’s prestige is relevant to raise the students´ admittance score medians and that the low-income quota category imposed obstacles to the assignment of spots.

Keywords:
affirmative actions; higher education; Quota Law

Introdução

Este artigo traz uma análise de dados relativos aos ingressantes de 2015 na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Londrina (UTFPR-LD). Objetiva iniciar uma avaliação das políticas de ações afirmativas no ensino superior e observar como se dá o ingresso desses estudantes, considerando as regras implementadas pela Lei de Cotas. A análise dos dados é contrastada com os critérios e objetivos da Lei Federal nº 12.711/2012, amplamente conhecida como Lei de Cotas, para avaliar o que prevê a política e o que tem sido o resultado prático de sua implementação com base em um caso específico.

A Lei Federal nº 12.711/2012, sancionada após quase uma década das primeiras experiências de adoção das cotas nas universidades públicas brasileiras, apresenta-se em um período de relativa consolidação das políticas de ações afirmativas para acesso às instituições de ensino superior públicas do País.

Todo o processo de debate sobre a Lei de Cotas, desde seus antecedentes até sua implementação, tem sido amplamente discutido na literatura. Muitos autores têm avaliado o impacto dessas políticas em contextos mais específicos, inclusive sobre o panorama mais geral das universidades públicas (Santos, 2012SANTOS, J. T. (Org.). Cotas nas universidades: análises dos processos de decisão. Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais, 2012. ; 2013; Bittar; Almeida, 2006BITTAR, M.; ALMEIDA, C. E. M. Mitos e controvérsias sobre a política de cotas para negros na educação superior. Educar, Curitiba, n. 28, p. 141-159, dez. 2006.; Cervi, 2013CERVI, E. U. Ações afirmativas no vestibular da UFPR entre 2005 a 2012: de política afirmativa racial a política afirmativa de gênero. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 63-88, maio/ago. 2013. ; Santos; Souza; Sasaki, 2013SANTOS, H.; SOUZA, M. G.; SASAKI, K. O subproduto social advindo das cotas raciais na educação superior do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 94, n. 237, p. 542-563, maio/ago. 2013.; Velloso; Cardoso, 2008VELLOSO, J.; CARDOSO, C. B. Evasão na educação superior: alunos cotistas e não cotistas na Universidade de Brasília In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 32., 2008, Caxambu. Anais eletrônicos... Caxambu: ANPED, 2008. 1 CD-ROM.; Silva; Pacheco, 2013SILVA, M. N. da; PACHECO, J. Q. As cotas na Universidade Estadual de Londrina: balanço e perspectivas. In: SANTOS, J. T. dos (Org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012). Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais , 2013. p. 67-103.; Pinto, 2005PINTO, P. G. H. R. Ação afirmativa, fronteiras raciais e identidades acadêmicas: uma etnografia das cotas para negros na UERJ. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA REDE DE ESTUDOS DE AÇÃO AFIRMATIVA, 1., 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, 2005. Disponível em: <Disponível em: >. Acesso em: 24 jan. 2015.).

Assim, a contribuição deste artigo é apresentar um panorama de como tem sido o ingresso de estudantes cotistas e não cotistas, em diferentes cursos de uma universidade tecnológica federal, considerando os critérios da Lei Federal nº 12.711/2012. Com o acesso aos dados da UTFPR, Câmpus Londrina, analisou-se como cada critério da lei está atuando na seleção de estudantes. Contrastando esse efeito prático com os objetivos da Lei de Cotas quando da sua formulação e implementação, pôde-se observar a dificuldade de os critérios de renda atingirem seus objetivos, assim como as diferenças que permanecem no ingresso entre cursos de maior ou menor prestígio.

Democratização do acesso ao ensino superior: ações afirmativas em foco

As ações afirmativas têm sido entendidas como medidas de caráter temporário, visando corrigir e compensar distorções históricas ou atuais que marcam desequilíbrios existentes entre grupos sociais historicamente em posições desvantajosas, além de compensar perdas provocadas pela discriminação, violência e marginalização imputadas a eles (Duarte, 2004DUARTE, C. S. Direito público subjetivo e políticas educacionais. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 113-118, abr./jun. 2004. ; Feres Júnior et al., 2013; Haas; Linhares, 2012HAAS, C. M.; LINHARES, M. Políticas públicas de ações afirmativas para ingresso na educação superior se justificam no Brasil?.Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 93, n. 235, p. 836-863, set./dez. 2012.; Munanga, 2007MUNANGA, K. Considerações sobre as políticas de ações afirmativas no ensino superior. In: PACHECO, J. Q.; SILVA, M. N. (Orgs.). O negro na universidade: o direito à inclusão. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2007. p. 7-19.). Segundo Hass e Linhares (2012)HAAS, C. M.; LINHARES, M. Políticas públicas de ações afirmativas para ingresso na educação superior se justificam no Brasil?.Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 93, n. 235, p. 836-863, set./dez. 2012., as ações afirmativas representam instrumentos de concretização da igualdade material, o que, para Silvério (2007SILVÉRIO, V. R. Ação afirmativa: uma política que faz a diferença. In: PACHECO, J. Q.; SILVA, M. N. O negro na universidade: o direito a inclusão. Brasília: Fundação Cultural Palmares , 2007. p. 21-42.), é um avanço diante das políticas universalistas que não atendem às necessidades dos grupos em situações de desvantagens de direitos e de oportunidades. Resultam, portanto, da compreensão de que a busca de igualdade concreta não se alcança com a aplicação geral das mesmas regras de direito para todos e, portanto, medidas diferenciadas são por vezes necessárias a fim de se reparar relações desiguais historicamente e socialmente estabelecidas.

As políticas de ações afirmativas nas universidades têm sido representadas como importantes instrumentos de democratização do acesso às instituições de ensino superior públicas, estaduais e federais, no Brasil, na medida em que visam diminuir os efeitos dos privilégios sociais e a grande desigualdade que têm constituído historicamente o acesso ao ensino superior no contexto brasileiro (Almeida; Ernica, 2015ALMEIDA, A. M. F.; ERNICA, M. Inclusão e segmentação social no ensino superior público no Estado de São Paulo (1990-2012). Educação e Sociedade, Campinas, v. 36, n. 130, p. 63-83, mar. 2015. ).

Essa desigualdade é refletida em vários indicadores nacionais. O Resumo Técnico dos Dados do Censo da Educação Superior de 2012 (Brasil. Inep, 2014BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da educação superior 2012: resumo técnico. Brasília: Inep, 2014.) apontou que apenas 15% da população entre 18 e 24 anos (taxa líquida) estava matriculada nesse nível de ensino. Dez anos antes, em 2002, esse valor era de 9,8%. Apesar desse avanço, o Brasil ainda apresenta o pior índice de escolarização líquida no ensino superior entre os países do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Em 2012, essa taxa era de 28,6% para a Argentina; 36,5% para o Chile; 25,9% para o Paraguai; e 22,6% para o Uruguai (Mercosul, 2012MERCADO COMUM DO SUL (Mercosul). Indicadores estadísticos del sistema educativo del Mercosur 2012. Buenos Aires: Mercosur, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://edu.mercosur.int/es-ES/estatisticas/finish/1328-indicadores-educacionais-mercosur/822-indicadores-educacionais-mercosur-2012.html >. Acesso em: 03 mar. 2016.
http://edu.mercosur.int/es-ES/estatistic...
).

Ainda, as desigualdades nesse já baixo acesso da população brasileira ao ensino superior são significativas quando se desagregam as taxas apresentadas. Nos dados apresentados pelo Censo da Educação Superior (Brasil. Inep, 2014BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da educação superior 2012: resumo técnico. Brasília: Inep, 2014.), verifica-se baixa taxa de escolarização, no ensino superior, da parcela mais pobre da população brasileira e elevado percentual concentrado entre os mais ricos. Em 2012, o 1º quintil da população com relação à renda (20% mais pobres) apresentava taxa bruta de escolarização de 6,2% no ensino superior; o 5º quintil (20% mais ricos) apresentou taxa bruta de 67,8%. A diferença é de mais de dez vezes entre as faixas selecionadas.

A desigualdade de renda também tem grande expressão entre cursos no ensino superior brasileiro. Segundo Ristoff (2014RISTOFF, D. O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação: Revista Brasileira de Avaliação da Educação Superior, Sorocaba, v. 19, n. 3, p. 723-747, nov. 2014.), em 2012, 44% dos matriculados em Medicina apresentavam renda familiar superior a dez salários mínimos. Na Odontologia, esse percentual era de 28%; no Direito era de 24%; na História era de 7%; na Pedagogia era de 5%; e na Psicologia, 16%. Na sociedade brasileira, apenas 7% das famílias apresentavam renda superior a 10 salários mínimos no mesmo ano.

Além da renda, essa distorção é também percebida quando considerados critérios étnico-raciais, refletida na baixa participação relativa de pretos, pardos e índios nesse nível de ensino. Segundo o mesmo Resumo Técnico (Brasil. Inep, 2014BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da educação superior 2012: resumo técnico. Brasília: Inep, 2014.), a maior taxa bruta de escolarização (população de uma cor e raça matriculada em relação ao total da população brasileira entre 18 a 24 anos) está entre a população amarela (60%), seguida da branca (próxima de 40%), pardos (ligeiramente acima de 20%), pretos (20%) e indígenas (próximo de 15%).

Novamente, analisando dados por curso, as diferenças de desigualdade étnico-racial são expressivas. Na Medicina, em 2012, 74% dos matriculados eram brancos; na Odontologia 75%; no Direito 65%; na Psicologia 66%; e na História 50% eram brancos. O único curso que apresentava um percentual de brancos matriculados equivalente ao percentual de brancos na sociedade brasileira, em geral, era o de História. Essa análise de Ristoff (2014RISTOFF, D. O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação: Revista Brasileira de Avaliação da Educação Superior, Sorocaba, v. 19, n. 3, p. 723-747, nov. 2014.) traz dados importantes para este trabalho, pois mostra como existe uma grande desigualdade entre diferentes cursos do ensino superior brasileiro. Segundo o autor, os cursos de baixa demanda tendem a se aproximar dos indicadores de renda e étnico-raciais da sociedade em geral; já os cursos de grande demanda distorcem e acentuam as desigualdades já existentes na sociedade em geral. Conforme se verá adiante, na análise dos dados da UTFPR-LD, existe, de fato, diferença nas condições de entrada nos cursos de maior e menor prestígio. Essa diferença se expressa nas notas de entrada dos estudantes, que se mostram significativamente mais altas para os cursos de maior prestígio.

Conforme argumenta Diniz (2001DINIZ, M. Os donos do saber: profissões e monopólios do saber. Rio de Janeiro: Revan, 2001.), as profissões de maior prestígio recrutam estudantes com maior capital cultural, o que pode ser observado no alto desempenho dos candidatos aos respectivos cursos nos exames de seleção vestibular. Segundo a autora, em 1993, de um grupo de 32 carreiras, a Engenharia era a terceira colocada em relação ao desempenho de seus candidatos no vestibular.

O prestígio dos cursos de graduação também comporta um componente histórico, relativo à formação do ensino superior brasileiro e às profissões às quais estão ligados. As habilitações de Engenharia, Medicina e Direito, no Brasil, são, desde o século 19, aquelas de maior prestígio no seu sistema de ensino superior. A importância dessas três áreas de formação foi caracterizada por Coelho (1999COELHO, Edmundo C. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro: 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.) como as profissões imperiais, aquelas que conferiam maior status aos portadores de seus respectivos diplomas, oportunizando acesso a âmbitos exclusivos da vida social e simbolizando seu pertencimento às elites.

Esses argumentos são relevantes para entender a situação de um câmpus que detém quatro cursos de engenharia, um curso tecnológico e uma licenciatura, como se pode ler adiante.

Ação e mobilização pela política de cotas nas universidades

A mobilização do movimento social negro, nos anos 1990, preconizou a discussão em torno das cotas como importante meio de enfrentamento e reversão da desigualdade racial e do modo como ela se configura na sociedade brasileira (Santos; Souza; Sasaki, 2013SANTOS, J. T. (Org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012). Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais , 2013. ). No entanto, esse debate tem sido ressignificado na configuração das ações afirmativas nas universidades brasileiras de modo a beneficiar diferentes segmentos sociais e apresentar-se em diferentes formatos.

Desde as primeiras instituições a adotarem o sistema de cotas nos seus processos de seleção, como o caso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em nível estadual, e da Universidade de Brasília (UnB), em nível federal, o número de universidades públicas a estabelecer políticas de ações afirmativas tem se expandido consideravelmente. Em levantamento feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), no ano de 2011, período anterior à aprovação da Lei Federal nº 12.711/2012, 70 das 98 universidades públicas federais e estaduais adotavam ações afirmativas no processo de seleção de estudantes em seus cursos de graduação (Feres Júnior et al., 2011).

Nesse contexto, a Lei Federal nº 12.711/2012 é sancionada em um período de relativa abrangência do debate acerca das cotas na sociedade brasileira, haja vista o grande número de instituições que já adotavam medidas de ações afirmativas nos seus processos de seleção. Assim, o impacto imediato da lei foi o de instituir obrigatoriedade das cotas pelas instituições de ensino superior federais que ainda não adotavam nenhuma medida de ação afirmativa nos seus processos seletivos e, ainda, uniformizar e padronizar essa política no conjunto das instituições federais. Mesmo aquelas que já adotavam uma política de cotas foram impactadas pela necessidade de adequá-la à referida lei.

Com a aprovação da Lei nº 12.711, no ano de 2012, tornou-se obrigatória a reserva de vagas para alunos de escolas públicas, de baixa renda e autodeclarados pretos, pardos ou indígenas (PPI) nas instituições federais de ensino superior e técnico. Algumas universidades que já possuíam algum tipo de ação afirmativa tiveram que começar a se adequar à nova lei, o que provocou mudanças já nos processos seletivos para 2013. Segundo Santos (2013SANTOS, J. T. (Org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012). Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais , 2013. ), a lei contribuiu para um aumento significativo de vagas para alunos de escola pública e não brancos e, com isso, um aumento significativo de pretos e pardos de escolas públicas nas universidades federais.

A instituição analisada neste artigo insere-se nesse quadro, e interessa-nos analisar a implementação da lei na democratização do acesso a essa instituição de ensino superior (IES).

A Lei Federal nº 12.711/2012 e ações afirmativas na UTFPR

A Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) aderiu, pela primeira vez, à política de ação afirmativa nos processos seletivos para ingresso aos cursos de graduação da instituição em 2008, quando passa a reservar 50% das vagas ofertadas nos cursos de graduação a alunos que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas.

A política de ação afirmativa adotada foi estabelecida em um período de adesão da UTFPR ao programa governamental de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). O programa, instituído no ano de 2007, previu a destinação de verbas para as universidades federais condicionadas a um projeto de expansão apresentado por elas, atendendo alguns requisitos estabelecidos a priori pelo governo federal. Para aderirem ao programa, as universidades, entre vários aspectos, deveriam apresentar proposta de ampliação de políticas de inclusão e de assistência estudantil com vistas a maior democratização do acesso e permanência a estudantes, contemplando aqueles que apresentassem condições socioeconômicas desfavoráveis (Brasil. MEC, 2007BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto (MEC). Reuni: reestruturação e expansão das universidades federais: diretrizes gerais. Brasília, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/diretrizesreuni.pdf >. Acesso em 17 jun. 2013.
http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/p...
). A universidade analisada neste trabalho acompanhou a tendência de outras universidades públicas que já implantavam e/ou discutiam a adoção de ações afirmativas nos seus contextos e insere a reserva de cotas para alunos egressos das escolas públicas nos seus processos seletivos concomitantemente ao projeto de reestruturação no contexto do Reuni.

Essa medida vigorou até o ano de 2012 e foi modificada com base na publicação da Lei Federal nº 12.711/2012, que reconfigurou a política de ação afirmativa na instituição. Essa lei instituiu a obrigatoriedade da reserva de, no mínimo, 50% das vagas ofertadas por instituições federais de educação de nível superior a estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas no acesso aos cursos de graduação. A referida lei estabeleceu ainda que, do montante das vagas reservadas, no mínimo 50% devem ser destinadas prioritariamente a estudantes oriundos de famílias com renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio e estabeleceu, também, uma porcentagem mínima das vagas destinadas a estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, seguindo a proporção de pretos, pardos e indígenas na região onde a instituição de ensino superior está localizada, tendo como parâmetro os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (ver Figura 1).

Apesar de o documento legal estabelecer um prazo de quatro anos para o cumprimento integral das medidas estabelecidas na lei, a IES atendeu de imediato o disposto no documento legal e reconfigurou a reserva de vagas nos processos seletivos para ingresso a partir do ano de 2013. Assim, as vagas que anteriormente eram reservadas exclusivamente a alunos egressos da rede pública passaram a ser divididas em categorias, contemplando estudantes oriundos de famílias com renda per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio e também alunos que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas.

Na Figura 1, ilustramos o sistema de reserva de vagas utilizado na instituição desde o cumprimento da Lei de Cotas. A porcentagem de reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas segue a proporção de 28,264%, equivalente à soma do percentual de pretos, pardos e indígenas no estado do Paraná, onde a universidade está situada, de acordo com o último Censo Demográfico (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese dos Indicadores de 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em <Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao.html > Acesso em: 21 jul. 2014.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas-nov...
). A Figura 1 exemplifica a distribuição de vagas com base na quantidade ofertada semestralmente (44) pela maioria dos cursos de graduação da Universidade.

Figura 1
Distribuição de Vagas nos Cursos de Graduação da Instituição Analisada

O preenchimento dessas vagas ocorre com base no processo de seleção via Sistema de Seleção Unificada (Sisu), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), que utiliza como critério de seleção a nota dos candidatos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Nesse processo, os alunos que fizeram o referido exame concorrem com as suas respectivas notas às vagas ofertadas pelas universidades conveniadas a esse sistema de seleção. No caso da UTFPR, os candidatos, ao se inscreverem no Sisu, devem optar por uma das seguintes modalidades: ampla concorrência ou cotista. Optando pela modalidade cotista, o candidato deve, ainda, escolher uma das quatro categorias:

  • Categoria 1: cotista oriundo de família com renda bruta per capita, comprovada, igual ou inferior a um salário mínimo e meio e que não se declarou preto, pardo ou indígena.

  • Categoria 2: cotista oriundo de família com renda bruta per capita, comprovada, igual ou inferior a um salário mínimo e meio e autodeclarado preto, pardo ou indígena.

  • Categoria 3: cotista independentemente de renda (sem necessidade de comprovação) e que não se declarou preto, pardo ou indígena.

  • Categoria 4: cotista independentemente de renda (sem necessidade de comprovação) e autodeclarado preto, pardo ou indígena.

Essa configuração orienta os processos seletivos para o ingresso ao ensino superior dos treze câmpus que compõem a Instituição. Adiante, focaremos no acompanhamento da configuração dessa lei nas condições de acesso dos estudantes aos cursos de graduação ofertados pelo Câmpus Londrina da UTFPR.

A análise adiante aprofundará a discussão da democratização do acesso a essa Instituição. Para tanto, analisamos o processo de preenchimento das vagas reservadas pelo sistema de cotas nos cursos superiores no Câmpus Londrina da UTFPR a fim de identificar os grupos sociais mais beneficiados por essa política. Analisamos também a nota de entrada de estudantes cotistas e não cotistas de todos os cursos do câmpus para avaliar a inclusão de estudantes e suas chances de entrada caso não existissem as cotas.

No período de análise dos dados, o câmpus ofertava vagas para seis cursos de graduação, sendo quatro engenharias: Ambiental, de Materiais, Mecânica e de Produção; uma licenciatura: Química; uma tecnologia: Tecnologia em Alimentos. Apresentamos, a seguir, uma análise descritiva inicial da configuração da lei nesse contexto.

O Ingresso de estudantes na UTFPR-LD com base na implementação da Lei de Cotas

Para este estudo, foram utilizados dados dos estudantes matriculados nos cursos de graduação da UTFPR-LD no primeiro semestre de 2015, selecionados por meio do processo seletivo conhecido como Sisu. Também constitui como base de dados a nota de desempenho no Enem dos candidatos aprovados e efetivamente matriculados no período. Os dados foram obtidos por meio do sistema acadêmico da instituição.

O questionamento inicial que orientou a análise foi a necessidade de identificar se as vagas reservadas às cotas estavam sendo efetivamente preenchidas pelo Sisu. Tendo em vista os propósitos maiores para os quais as ações afirmativas são pensadas, na sua relação com a diminuição de desigualdades sociais e discrepâncias nas oportunidades de acesso ao ensino superior, investigar a dinâmica do preenchimento das vagas apresentou-se necessário a fim de acompanhar essa política no contexto da Instituição.

Para tanto, utilizamos como referência o quantitativo das vagas reservadas e preenchidas em cada uma das categorias no processo seletivo analisado. A tabela a seguir mostra, por curso, o número de vagas reservadas e ocupadas para cada grupo de estudantes - não cotistas, cotistas categoria 1, cotistas categoria 2, cotistas categoria 3 e cotistas categoria 4. Conforme apresentado anteriormente (Figura 1), os candidatos que concorrem às modalidades de cotas 1, 2, 3 e 4 são todos oriundos da rede pública e concorrem em uma das categorias: categoria 1 - candidatos de baixa renda; categoria 2 - candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas de baixa renda; categoria 3 - candidatos de escola pública em geral; categoria 4 - candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, sem restrição de renda.

Tabela 1:
Relação entre Vagas Reservadas e Ocupação nos Cursos da UTFPR-LD no Primeiro Semestre de 2015

Observa-se que, no primeiro semestre de 2015, 252 das 260 vagas ofertadas pela UTFPR-LD foram preenchidas, o que corresponde a uma ocupação de 96% do total. O curso de Tecnologia de Alimentos é o único em que a totalidade das vagas não foi preenchida. Analisando as categorias de concorrências separadamente, observa-se que 129 das 130 vagas destinadas à concorrência universal foram preenchidas, o que corresponde a uma ocupação de 99,2%. Nessa categoria, somente Licenciatura em Química não ocupou a totalidade das vagas. Em relação às vagas reservadas para egressos da escola pública, 123 das 130 reservadas foram preenchidas, o que equivale a uma ocupação de 94,6% do total das vagas reservadas.

Com a análise da ocupação por categorias de cotistas, observa-se que as categorias 1 e 2, que exigem a comprovação de baixa renda (receita familiar per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio), obtiveram menor percentual de preenchimento em todos os cursos. Apenas 60% das vagas destinadas à categoria 1 foram preenchidas e somente 52% das vagas destinadas à categoria 2 foram ocupadas. Os candidatos que concorrem por essas categorias necessitam apresentar, no ato da matrícula, além de outros documentos solicitados, documentação indicadora de renda familiar bruta per capita igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Aparentemente, aspectos relacionados à renda têm sido obstáculos à ocupação das vagas entre esses cotistas.

Nas categorias 3 e 4, de vagas destinadas a candidatos provenientes da escola pública sem a necessidade de comprovação de baixa renda, observa-se um maior preenchimento. A categoria 4 (autodeclarados pretos, pardos ou indígenas) teve ocupação próxima ao número de vagas reservadas (21 vagas ocupadas das 23 reservadas), e a categoria 3 (sem necessidade de declarar cor) teve ocupação maior do que o número de vagas inicialmente reservadas. No total da categoria 3, foram 65 vagas ocupadas para 42 reservadas. Essa é a única categoria em que entram mais candidatos do que a reserva prévia.

Com base nesses resultados, identifica-se que a política de cotas tem alterado a ocupação das vagas do Câmpus Londrina da UTFPR. No entanto, analisando essa ocupação em cada uma das categorias individualmente, identificamos que nem todos os grupos sociais contemplados pela política de cotas têm se beneficiado dela igualmente. Nesse sentido, os alunos de escola pública sem restrição de renda e não declarados pretos, pardos ou indígenas (categoria 3) têm sido os principais beneficiados, ocupando um número maior de vagas que aquele destinado a eles. Especificamente, eles ocupam 155% das vagas reservadas (65 ocupadas das 42 reservadas).

Esse fenômeno é explicado pelo processo de transferência de vagas previsto no edital de seleção, que permite a migração de vagas entre categorias na ocasião de vagas remanescentes em uma dada categoria. Mesmo que a categoria 3 seja a última na relação de prioridades entre as categorias de cotistas a ocuparem as vagas remanescentes, segundo o critério da política de cotas, ela atingiu 155% das vagas para seus candidatos.

Mapeado o preenchimento das vagas e seu reflexo no ingresso aos cursos de graduação do Câmpus Londrina da UTFPR, analisamos, também, o desempenho no Enem dos candidatos que ocuparam as vagas do câmpus. Para analisar melhor a implementação das cotas nesses diferentes cursos, fez-se análise estatística descritiva do desempenho no Enem dos candidatos aprovados e matriculados no processo de seleção 2015.1. Considerando esses dados, buscou-se verificar as medidas estatísticas de centralidade, como médias, medianas, desvio e coeficientes de variabilidade. Os resultados dessa análise encontram-se na Tabela 2.

Tabela 2
- Medidas de Estatísticas Descritivas do Desempenho no Enem dos Ingressantes no Primeiro Semestre de 2015

Como se observa, as análises estão divididas por cursos e por ingressantes pelas categorias universal e cotista. Os resultados revelaram certa homogeneidade no desempenho dos cursos de Engenharias, mas apontaram diferença entre cotistas e não cotistas para esses cursos. Conforme Tabela 2, observa-se que, em todos os cursos de Engenharia (Ambiental, de Materiais, Mecânica e de Produção), a nota mínima obtida pelos alunos não cotistas foi sempre maior do que a média ou a mediana dos cotistas. Isso significa que a nota dos alunos não cotistas classificados em último lugar é superior à metade da nota dos alunos cotistas; ou seja, na ausência de um sistema de cotas, pelo menos metade dos alunos cotistas não ingressariam nos respectivos cursos.

Entretanto, os cursos de Licenciatura em Química e Tecnologia em Alimentos apresentaram essa tendência ao inverso. No caso de Tecnologia em Alimentos (TA) e Licenciatura em Química (LQ), observa-se uma homogeneidade inclusive entre cotistas e não cotistas, o que destoa dos dados coletados para as Engenharias. Nesses cursos, a média e a mediana das notas no Enem dos candidatos cotistas foi superior à nota mínima dos ingressantes pela ampla concorrência, sinalizando que pelo menos a metade desses alunos ingressaria independentemente da política de cotas. Desse modo, esses resultados sinalizam para o fato de que o sistema de reserva de vagas afetou os cursos de engenharia e os de licenciatura e tecnologia de modo diferente.

A aplicação de um gráfico box-plot para as medianas das notas dos ingressantes, conforme mostra a Tabela 3, evidencia melhor a comparação entre as categorias de cotistas e ampla concorrência de todos os cursos.

Gráfico 1
Box-plot com as Medianas das Notas de Cotistas e Não Cotistas dos Cursos das Engenharias no Primeiro Semestre de 2015

No Gráfico 1, estão exibidas as diferenças entre cotistas e não cotistas para todos os cursos de Engenharias. As maiores diferenças entre os dois grupos estão nos cursos de Engenharia Ambiental e de Engenharia de Materiais. Percebe-se, também, que a maior variação de notas encontra-se entre os ingressantes cotistas da Engenharia Ambiental e da Engenharia de Materiais. Com base na Tabela 1, observa-se que o coeficiente de variação entre cotistas da Engenharia Ambiental é de 9,66%, e entre cotistas da Engenharia de Materiais, 11,20%. A menor dispersão de notas está entre os não cotistas de Engenharia Ambiental (coeficiente de variação de 2,5%).

Gráfico 2
Box-plot das Medianas das Notas do Enem de Cotistas e Não Cotistas dos Cursos de Tecnologia em Alimentos e Licenciatura em Química, no Primeiro Semestre de 2015

A aplicação do gráfico box-plot para os dados de TA e LQ (Gráfico 2) evidencia a homogeneidade das notas entre cotistas e não cotistas. Isso sugere que, nessas circunstâncias, mesmo sem reserva de vagas, praticamente 75% dos atuais cotistas desses cursos ingressariam na universidade. Suas notas não destoam significativamente para justificar, nesses casos, a reserva de vagas.

Entre os cursos de maior prestígio, no caso, as Engenharias, as diferenças são expressivas. Já entre os ingressantes de um curso tecnológico e de uma licenciatura, não surgem grandes diferenças entre cotistas e não cotistas. Esse dado é importante para pensar desenhos, consequências e implicações possíveis de uma política de cotas dentro de um sistema de ensino superior como o brasileiro.

Continuando a exploração dos dados, avaliaram-se as notas dos alunos cotistas de todos os cursos da UTFPR-LD. Com base nessa avaliação, percebe-se uma diferença entre as medianas das notas dos cursos de Engenharias e de TA e LQ. As medianas desses últimos são significativamente mais baixas que as dos ingressantes em qualquer das Engenharias. Essa diferença era esperada como hipótese dos autores, com base no fato de TA e LQ serem cursos noturnos e, possivelmente, atraírem alunos com menor disponibilidade de tempo para os estudos. Entretanto, conforme se vê no gráfico box-plot a seguir, o curso de Engenharia de Produção, também noturno, contrariou a hipótese, o que reforça o argumento de que a diferença entre os ingressantes das engenharias e de TA e LQ está na tradição e no prestígio em que aquelas estão envolvidas na sociedade brasileira. A diferença de turno dos cursos não explica essas diferenças.

Gráfico 3
Box-plot com a Mediana das Notas dos Cotistas de todos os Cursos da UTFPR-LD no Primeiro Semestre de 2015

A seguir, se apresenta o Gráfico 4, box-plot das medianas das notas de alunos não cotistas de todos os cursos. Percebe-se que os dados são mais homogêneos, estando as medianas dos cursos de Engenharias muito próximas umas das outras, assim como próximas estão as medianas de TA e LQ entre si. Nesse caso, a diferença entre as Engenharias e os dois últimos cursos é ainda maior.

Gráfico 4
Box-plot com as Medianas das Notas dos Não Cotistas de todos os Cursos da UTFPR-LD no Primeiro Semestre de 2015

Notas maiores ou menores estão provavelmente ligadas ao prestígio dos cursos entre ingressantes. Entretanto, esse prestígio não se reflete na relação candidato/vaga de cada curso. A mediana das notas mais altas está com a Engenharia Mecânica, conforme se observa no Gráfico 4. Todavia, o curso mais concorrido é o de Engenharia de Produção, cuja mediana das notas está abaixo de Engenharia Mecânica e de Materiais. Do mesmo modo, o curso de Tecnologia em Alimentos tem concorrência equivalente à das Engenharias Ambiental e Mecânica, no entanto, sua mediana está bem abaixo à das Engenharias, conforme se observa.

Esse processo pode ser explicado pelo próprio funcionamento do Sisu, que permite aos interessados terem uma projeção da nota de corte de ingressos aos cursos, possibilitando-lhes adotar escolhas mais estratégicas. Ao longo do período de inscrição, os candidatos podem escolher até duas opções de cursos e definir a modalidade de concorrência. Essas escolhas podem ser alteradas ao longo do período de inscrição, sendo válida a última opção registrada no sistema até o encerramento do prazo. À medida que os concorrentes fazem suas opções, o sistema atualiza a nota de corte e o nível de concorrência para todos os cursos. Assim, os alunos podem projetar suas chances de ingresso nos diversos cursos pretendidos e alterar as opções de curso e modalidade de cotas, contrastando sua nota no Enem com a dos demais interessados nas vagas.

Assim, identifica-se que os cursos de Engenharias, mesmo aqueles com baixa relação candidato/vaga, concentram os alunos com maior desempenho no Enem, enquanto os cursos de licenciatura e tecnologia concentram os alunos com menor desempenho no Enem.

Conforme discutido anteriormente, o prestígio de um curso se dá em função da profissão para a qual ele habilita. O campo das Engenharias é historicamente valorizado na sociedade brasileira, compondo os primeiros e mais tradicionais cursos superiores criados no Brasil, no século 19 (Coelho, 1999COELHO, Edmundo C. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro: 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.). Esse prestígio se reflete no recrutamento de estudantes com maior capital cultural, aqueles com maior desempenho nas provas de entrada para os cursos (Diniz, 2001DINIZ, M. Os donos do saber: profissões e monopólios do saber. Rio de Janeiro: Revan, 2001.).

Outro ponto importante investigado foram as divergências de notas entre as quatro categorias de cotistas (Co1, Co2, Co3 e Co4), que entraram nos seis cursos da UTFPR do Câmpus de Londrina. Considerando as diferenças de perfil de cada categoria e a importância histórica e social de cada uma delas, esperava-se encontrar discrepâncias significativas nas notas de entrada desses estudantes, justificando sua separação pelo sistema de cotas e apontando para possíveis avanços na representação de cada categoria no interior da universidade pública brasileira. A análise das notas de entrada, entretanto, revelou que as categorias de cotistas dos vários cursos estudados não apresentaram diferenças estatísticas significativas, como pode ser visto na tabela e no gráfico a seguir.

Tabela 3:
Desempenho das Categorias de Cotistas nos seis Cursos da UTFPR-LD - Enem 2015

Os resultados da Tabela 3 reúnem todos os cursos em cada categoria de cotistas, comparando-as entre si. Observa-se homogeneidade das categorias de cotistas, com médias e medianas muito próximas e uma variabilidade que pode ser considerada baixa.

Quando se desagregam os dados dos cotistas das Engenharias e dos cursos de LQ e TA, observa-se uma homogeneidade dos dados em cada grupo. Considerando os resultados anteriores, agrupamos as notas dos ingressantes nas Engenharias e as notas dos ingressantes em TA e LQ, separando os dois grupos por categoria de cotas apenas. Novamente, a diferença que existe é entre os cursos de Engenharias e os cursos de LQ e TA. O segundo grupo apresenta notas de entrada significativamente menores que o primeiro, mas, no interior dos próprios grupos, as notas são homogêneas. Observa-se que, entre estudantes de escola pública que ingressam na UTFPR-LD, de baixa renda ou não, e de diferentes perfis étnico-raciais, há uma homogeneidade muito grande em relação às médias e medianas de suas notas. A diferença nas notas de entrada só existe em relação ao que já se tinha constatado, ou seja, entre Engenharias de um lado e LQ e TA do outro.

Gráfico 5
Box-plot com a Mediana das Notas de Ingressantes nas Engenharias (Eng) e em LQ e TA (LT) Seccionados pelas Categorias de Cotistas

Curioso é retomar as análises sobre a homogeneidade das notas entre as diferentes categorias de cotistas com a discrepância de ocupação de vagas entre elas. Ocorre que, mesmo um maior número de cotistas da categoria 3 ingressando no total, isso não eleva suas notas em relação às outras categorias. Mais que isso, esses dados indicam que, entre esse número restrito de ingressantes das outras categorias, o perfil deles é muito semelhante ao dos que ingressam pela categoria 3. Esse dado marca uma diferença entre a Instituição analisada e outras instituições de ensino superior federais. Campos, Feres Júnior e Daflon (2013DAFLON, V. T.; FERES JUNIOR, J.; CAMPOS, L. A. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico.Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, p. 302-327, abr. 2013.), ao analisarem a nota de ingresso dos candidatos que conseguiram uma vaga em universidades e institutos federais por meio do Sisu no primeiro semestre de 2014, identificaram que as diferenças de notas entre as modalidades de cotas cresciam à medida que as variáveis de renda e raça eram consideradas.

Analisando os dados do Câmpus Londrina isoladamente, percebe-se que o desempenho dos cotistas não segue essa tendência mostrada por Campos, Feres Júnior e Daflon (2013DAFLON, V. T.; FERES JUNIOR, J.; CAMPOS, L. A. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico.Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, p. 302-327, abr. 2013.). Apesar dessa diferença não se mostrar substancial no desempenho no Enem dos candidatos, na Instituição analisada, essa tendência se mostra na porcentagem de ocupação das vagas. De modo geral, identifica-se que, à medida que as variáveis renda e raça são consideradas, diminui-se a efetivação da ocupação das vagas conquistadas por esses candidatos.

Provavelmente, muitos estudantes desses perfis nem chegam a se matricular por falta de condições materiais, ou mesmo nem realizam as provas do Enem por considerarem a possibilidade de entrada na universidade pública muito distante de seu horizonte cultural. Isso explicaria, também, a baixa percentagem de ocupação das vagas reservadas para estudantes de baixa renda. Dadas as dificuldades materiais de se ingressar em uma universidade (e manter-se nela), além das dificuldades de comprovação da renda para as categorias 1 e 2, somente aqueles que se convencem da possibilidade de ingressarem em uma universidade pública e conseguem os meios para superação dos eventuais entraves a esse acesso conseguem efetivamente concretizá-lo.

Considerações finais

Conforme abordado no início deste trabalho, as ações afirmativas estão inseridas no quadro das políticas de democratização do ensino superior, apresentando-se como instrumento de intervenção diante da grande desigualdade de acesso da população brasileira a esse nível de ensino. Os dados do Inep (Brasil. Inep, 2014BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da educação superior 2012: resumo técnico. Brasília: Inep, 2014.) apontam que essa desigualdade é refletida na baixa taxa bruta de escolarização no ensino superior da parcela mais pobre da população brasileira (6,2%), contrastando-se com a elevada taxa bruta entre os mais ricos (67,8%). Além da renda, essa distorção é também percebida quando considerados critérios étnico/raciais, refletida na baixa participação relativa de pretos, pardos e índios na escolarização em nível superior. Nesse contexto, a Lei de Cotas apresenta-se como instrumento potencial de alteração dessa realidade. Ela estabelece a reserva de vagas prioritárias a candidatos oriundos de famílias de baixa renda, associando, ainda, os critérios de renda e raça/cor com vistas a compensar as condições desiguais desse acesso.

Ao analisar o ingresso de estudantes em uma universidade federal por meio da Lei de Cotas, identificou-se uma distorção nas condições de acesso ao ensino superior da população de baixa renda. As categorias 1 e 2 apresentam a menor taxa de ocupação das vagas no período analisado. Não é possível afirmar que essa distorção esteja associada aos critérios de raça/cor, já que a categoria 4, para alunos pretos, pardos e indígenas sem distinção de renda, preenche quase a totalidade de suas vagas.

Nesse sentido, os resultados apontam para a necessidade de investigar as condições, tanto entre os que ocupam as vagas reservadas quanto em relação àqueles que, mesmo tendo sido aprovados no processo de seleção, não chegam a concretizar a sua matrícula no curso pleiteado.

Em contraste com o não preenchimento das vagas destinadas a alunos com renda familiar inferior a um salário mínimo e meio, os dados revelaram que os candidatos à categoria 3 (provenientes de escola pública, sem necessidade de comprovação de baixa renda ou declaração de cor) têm sido os principais beneficiados pelas cotas, uma vez que o número de ingressantes dessa modalidade representa 155% do número de vagas reservadas a ela.

Considerando a homogeneidade das notas entre todas as categorias de cotistas, propõe-se investigar se os critérios e as exigências de ingresso para estudantes de baixa renda não estão simplesmente excluindo esses estratos sociais da universidade. Observa-se que, apesar de aprovados, esses alunos não se matriculam. Se, pelas notas, eles conseguem competir em condições de igualdade com as outras categorias de cotistas, talvez a definição de exigências específicas para as categorias de baixa renda esteja apenas excluindo esse grupo da universidade, cumprindo o exato reverso do que propõe a política.

Além disso, a análise dos dados revela que o maior dilema na disputa de vagas entre cotistas e não cotistas está nos cursos de maior prestígio social, no caso, as Engenharias. Nesses, as condições de acesso dos alunos cotistas foram ampliadas pela Lei de Cotas, já que uma grande parcela desses alunos não ingressaria nos cursos pleiteados, não fosse a reserva de vagas adotada. Já para os cursos de licenciatura e tecnologia, a política de cotas teve pouco ou quase nenhum impacto na configuração do preenchimento de vagas. Segundo os dados analisados, os estudantes cotistas teriam chances de ingressar nos cursos em questão independentemente da política de cotas.

A exploração e as análises de dados aqui realizadas são importantes para conhecer as desigualdades que marcam o ensino superior brasileiro. Os resultados nos colocam diante de novos desafios na efetivação de uma política de democratização/inclusão desse nível de ensino.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2017
  • Aceito
    10 Jul 2017
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