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A aprendizagem da docência de futuros professores no ensino de matemática: reflexões a partir de ações desenvolvidas na escola

The learning of teaching of future teachers in the teaching of mathematics: reflections from actions developed in classroom

Resumo:

Este artigo apresenta reflexões derivadas de uma pesquisa sobre formação inicial de professores no âmbito de um projeto de extensão de matemática. Objetiva-se discutir elementos acerca do processo de aprendizagem da docência de futuros professores, estudantes dos cursos de Licenciatura em Educação Especial, Matemática e Pedagogia, a partir de uma unidade didática sobre grandezas e medidas, desenvolvida pelo projeto. Os dados empíricos que compõem este artigo e a investigação que o originou foram coletados em quinze encontros realizados durante o desenvolvimento da unidade didática, e a análise realizou-se a partir da proposta de seleção de episódios. Especificamente, a ênfase foi dada às ações realizadas pelos futuros professores na escola, no movimento de desenvolver situações de ensino relacionadas ao conceito de medir. Orientadas em pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, as considerações abarcam três aspectos: o sentido atribuído pelos futuros professores às suas ações; as necessidades que os levaram a agir; e a apropriação do conhecimento matemático durante o desenvolvimento da unidade didática.

Palavras-chave:
aprendizagem da docência; atividade orientadora de ensino; educação matemática

Abstract:

This article presents reflections derived from a research carried out the initial training of teachers in an extension about math. The aim of this work is to discuss elements of the teaching learning process of future teachers who are undergraduate students in Special Education, Mathematics and Pedagogy, from a Didactic Unit about dimensions and measures developed by the project. The empirical data that compose this article and the investigation that originated it were collected through 15 meetings held during the development of the Unit, and the analysis was based on the proposal of episode selection. Specifically, the emphasis will be given to the actions taken by the future teachers in the school, on how they develop teaching situations related to the concept of measuring. Based on assumptions of the Historical-Cultural Theory, the considerations cover three aspects: the sense future teachers attribute to their actions; The needs that led them to act; And the appropriation of mathematical knowledge during the development of the Didactic Unit.

Keywords:
teaching learning; Atividade Orientadora de Ensino; mathematics education

Apontamentos iniciais

Tendo como base os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, que fundamentam este trabalho, entende-se a matemática como um produto cultural, cujo acesso todos têm direito, e a escola como o local organizado intencionalmente para viabilizar a apropriação do legado cultural humano, como o conhecimento matemático. Nessa perspectiva, o processo formativo do professor que ensina matemática não pode desconsiderar a complexidade e o objetivo principal da atividade de ensino, ignorando fatores relacionados à educação escolar que envolvem vivências, experiências, desenvolvimento de habilidades, valores, atitudes, além da organização do ensino visando à apropriação do conhecimento científico.

Convergente com essa preocupação, a pesquisa de mestrado que originou este artigo se dedicou a investigar o movimento de aprendizagem da docência de futuros professores vinculados aos cursos de Licenciatura em Educação Especial, Matemática e Pedagogia que participaram de um projeto de extensão de matemática, onde são estudadas, planejadas, desenvolvidas e avaliadas atividades de ensino de matemática com crianças que frequentam os anos iniciais do ensino fundamental de escolas da rede pública.

Entendendo que a organização do ensino tem um papel basilar para o professor e que sua aprendizagem deve fazer parte do processo de formação inicial, as ações realizadas pelo projeto de extensão estão referenciadas teórica e metodologicamente na Atividade Orientadora de Ensino - AOE (Moura, 1996MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, v. 2, n. 12, p. 29-43, 1996., 2001MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, A. D.; CARVALHO, A. M. P. (Orgs.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001. p. 143-162.). Por sua vez, essa última está embasada na Teoria Histórico-Cultural e constitui-se como uma proposta para o trabalho do professor com uma finalidade específica: o desenvolvimento do pensamento teórico e das funções psicológicas superiores especificamente humanas.

O objetivo deste artigo é discutir elementos do processo de aprendizagem da docência de futuros professores, a partir de uma unidade didática sobre grandezas e medidas desenvolvida pelo projeto de extensão com uma turma de 3º ano do ensino fundamental. O olhar estará voltado, especialmente, para as ações realizadas pelos futuros professores na escola, no movimento de desenvolver situações de ensino relacionadas ao conceito de medir. Entende-se, neste artigo, unidade didática como Moura (1992MOURA, M. O. Construção do signo numérico em situação de ensino. 1992. 151f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992., p. 18) define: “o conjunto de atividades orientadoras de ensino, que possibilitam a construção de conceitos referentes aos conteúdos planejados”. Nesse caso, refere-se ao conjunto de situações desencadeadoras sobre o conteúdo de grandezas e medidas que foram elaboradas e desenvolvidas pelo grupo.

A fim de situar o contexto teórico mencionado, inicialmente serão explicitados alguns pressupostos que nortearam a pesquisa, quais sejam a Teoria Histórico-Cultural e a Atividade Orientadora de Ensino. Posteriormente, será apresentado o caminho metodológico do trabalho e dois episódios, extraídos das ações dos futuros professores, em que foram encontrados indícios reveladores de aprendizagem da docência. Por fim, serão traçadas algumas considerações, orientadas principalmente por três aspectos observados nos episódios: o sentido atribuído pelos futuros professores às suas ações; as necessidades que os levaram a agir; e a apropriação do conhecimento matemático durante o desenvolvimento da unidade didática.

Alguns pressupostos teóricos: contribuições da Teoria Histórico-Cultural para a educação escolar

Os pressupostos basilares da Teoria Histórico-Cultural apresentam fundamentos que possibilitam a compreensão do processo de humanização pelo qual o homem passa, desde o seu nascimento até a inserção na vida adulta em um grupo social. Ele só se torna humano ao se apropriar dos elementos culturais já produzidos pelos outros indivíduos de sua espécie, o que o difere dos animais. Ainda que busque suprir suas necessidades na natureza, procede de forma coletiva, por meio de instrumentos que enriquecem sua ação, distintamente dos animais, que agem de forma direta e individual.

Essa linha teórica, fundamentada nos pressupostos de Lev Seminovich Vigotski (1986-1934) e nos sucessores que ampliaram e aprofundaram seus estudos, analisa a constituição do homem como tal por meio do desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores. Esse enfoque nos permite o entendimento de que a educação escolar e, consequentemente, o professor são fundamentais no processo de humanização. A educação escolar é caracterizada pela organização intencionalmente planejada de situações que possibilitem aos sujeitos produzirem-se como humanos, sem a necessidade de redescobrir cada instrumento ou objeto já inventado, mas no intuito de apropriar-se do conhecimento atual e buscar superá-lo. Disso decorre que o processo educativo se constitui como um acesso para o desenvolvimento psíquico e humano, especialmente ao fazer surgir comportamentos mais complexos e culturalmente elaborados.

Em vista disso, a educação escolar se concretiza como um processo privilegiado de socialização de conhecimentos historicamente sistematizados, em que o professor desempenha a mediação necessária entre o aluno e o conhecimento. Em relação a isso, Vigotski (1991VIGOTSKI, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1991. p. 103-119.) aponta que o desenvolvimento pode ser compreendido em três níveis diferentes: o nível de desenvolvimento real; o nível de desenvolvimento potencial; e a zona de desenvolvimento proximal (ZDP). O nível de desenvolvimento real refere-se àquilo que a criança já consegue realizar sozinha; é o primeiro nível de desenvolvimento das funções mentais da criança, que ali se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados; o nível de desenvolvimento potencial é aquele em que a criança consegue realizar as atividades com o auxílio de pessoas mais maduras; e a ZDP é vista como a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial. Desse modo, o nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente (aprendizado que já ocorreu), enquanto a ZDP se caracteriza pelo desenvolvimento mental prospectivamente (aprendizado que irá acontecer).

Assim a zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que já foi atingido através do desenvolvimento, como também aquilo que está em processo de maturação... o estado de desenvolvimento mental de uma criança só pode ser determinado se forem revelados os seus dois níveis: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal (Vigotski, 1991VIGOTSKI, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1991. p. 103-119., p. 58).

No âmbito do projeto de extensão, a intenção é que as situações de aprendizagem propostas para as crianças se situem na ZDP, uma vez que elas se constituem como problemas a serem desenvolvidos de forma compartilhada com os colegas (nunca individualmente) e com a mediação do professor, com o intuito de que se apropriem de novos conhecimentos.

Também como parte do processo de humanização e essência da vida em sociedade, ocorre o movimento de internalização de significados e atribuição de sentidos dos objetos pelo homem. Os significados são mais estáveis, mas não imutáveis, pois são construções mediadas pelos conhecimentos culturais comuns aos integrantes de uma mesma sociedade, que podem modificar-se no decorrer do desenvolvimento do sujeito. Já os sentidos podem modificar-se de acordo com as especificidades da vida de cada indivíduo, traduzindo a realidade e sua compreensão do mundo objetal. Desse modo, os sentidos são pessoais, dinâmicos, complexos, podendo mudar de acordo com cada contexto.

No decorrer do desenvolvimento humano, o processo de atribuição de sentidos pessoais que venham a coincidir com os significados sociais por meio da apropriação de objetos culturais exige, necessariamente, uma organização intencional que viabilize essa transmissão. Cedro (2004CEDRO, W. L. O espaço de aprendizagem e a atividade de ensino: o clube de matemática. 2004. 171f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.) afirma que a escola se configura como lugar de produção e troca de significados constitutivos para o sentido das ações de todos os indivíduos envolvidos na atividade educativa, entendendo-a como um espaço de aprendizagem. Sendo assim, o espaço do projeto também pode ser um lugar de “produção e troca de significados”, uma vez que os futuros professores aprendem sobre a docência trocando experiências por meio das ações educativas que compreendem o ato de ensinar.

Moura et al. (2010MOURA, M. O. et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Líber Livro, 2010. p. 81-111.) defendem que a educação é obra do coletivo de professores e que é na coletividade do espaço escolar que o educador se constitui, ou seja, a partir do compartilhamento das responsabilidades do cuidar e do ensinar os conhecimentos científicos. Afirmam, ainda, que “o compartilhamento assume o significado da coordenação das ações individuais em determinada situação-problema comum aos indivíduos” (Moura et al., 2010MOURA, M. O. et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Líber Livro, 2010. p. 81-111., p. 107).

Essa premissa, adotada no projeto, permite aos licenciandos aprenderem na docência, negociando significados com os colegas em busca da resolução de uma causa comum: a organização do ensino de conceitos matemáticos aos alunos dos anos iniciais. Lopes (2009LOPES, A. R. L. V. Aprendizagem da docência em matemática: o Clube de Matemática como espaço de formação inicial de professores. Passo Fundo: Ed. UPF, 2009., p. 36) afirma que, “embora sejam as ações de cada um dos sujeitos que concretizam a atividade, isso não acontece nas ações isoladas de cada um deles, mas na interação entre sujeitos ou entre sujeitos e objetos”. Assim, entende-se que o compartilhamento exige que as ações sejam desenvolvidas por todos, e que cada um dos sujeitos tenha não só a oportunidade, mas também o comprometimento em participar. Dessa forma, as ações não podem caracterizar-se como individuais, mas sim como coletivas.

A atividade orientadora de ensino: uma proposta teórico-metodológica para organizar o ensino de matemática

Uma proposta teórico-metodológica que preza um modo de ensinar intencionalmente organizado para o desenvolvimento, partindo de ações coletivas, é a atividade orientadora de ensino (AOE), elaborada por Moura (1996MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, v. 2, n. 12, p. 29-43, 1996., 2001MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, A. D.; CARVALHO, A. M. P. (Orgs.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001. p. 143-162.) com base nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, em especial das obras de Vigotski (1991VIGOTSKI, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar. In: VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1991. p. 103-119., 2002VIGOTSKI, L. S. Formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.) e da Teoria da Atividade de Leontiev (1903-1979). Essa proposta caracteriza-se como teórica por ter sua base fundamental estruturada na Teoria da Atividade e como metodológica por apresentar um instrumento lógico-histórico para a organização do ensino de conhecimentos científicos. Dessa forma, o objetivo principal da AOE é promover a aprendizagem conceitual por meio de um processo de humanização que vise ao desenvolvimento das funções psíquicas superiores.

Moura (1996MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, v. 2, n. 12, p. 29-43, 1996.) utiliza o termo atividade orientadora de ensino para designar uma atividade organizada intencionalmente, que é capaz de desencadear no aluno um conjunto de ações que visam à solução coletiva de uma situação-problema cujo objetivo é levar o sujeito à aprendizagem de um novo conceito. A AOE, tal como define o autor, é aquela que

se estrutura de modo a permitir que sujeitos interajam, mediados por um conteúdo negociando significados, com o objetivo de solucionar coletivamente uma situação-problema... a Atividade Orientadora de Ensino tem uma necessidade: ensinar, tem ações: define o modo ou procedimentos de como colocar os conhecimentos em jogo no espaço educativo; e elege instrumentos auxiliares de ensino: os recursos metodológicos adequados a cada objetivo e ação (livro, giz, computador, ábaco, etc.). E por fim, os processos de análise e síntese, ao longo da atividade, são momentos de avaliação para quem ensina e aprende. (Moura, 2001MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, A. D.; CARVALHO, A. M. P. (Orgs.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001. p. 143-162., p.155).

Assim, a AOE é um processo de inter-relações entre professor, aluno e objeto do conhecimento, que tem como fundamentos a intencionalidade pedagógica por meio da organização do ensino do professor, a essência de um conceito como núcleo da formação do pensamento teórico e o papel fundamental da mediação e do trabalho coletivo no desenvolvimento da atividade. Ela preserva as características teóricas da Teoria da Atividade, pois mantém seus elementos essenciais, como a necessidade de apropriação da cultura, o motivo de apropriação do conhecimento historicamente acumulado, os objetivos de aprender e ensinar e as ações e operações que viabilizem o processo. Ou seja, o educando somente estará em atividade de aprendizagem quando as necessidades e os motivos para aprender um novo conceito forem desencadeados pela atividade de ensino do professor.

Durante a organização do ensino, por intermédio de situações-problema, é importante para o professor ter claros os fatores que fazem parte do ato de ensinar. A partir disso, poderá organizar o espaço de aprendizagem, as tarefas e os instrumentos adequados para levar a criança a pensar teoricamente sobre o problema.

Ter a profissão de professor é organizar situações cujos resultados são as modificações do sujeito a quem intencionalmente visamos modificar. É claro que na sociedade as múltiplas interações são situações de ensino e aprendizagem. Basta interagirmos para que tenhamos aprendizagens. Na interação, partilhamos significados. Modificamos a realidade cognitiva dos sujeitos com quem interagimos e ao mesmo tempo estamos sofrendo alterações em nossos esquemas cognitivos no esforço de produzir sínteses que possibilitem comunicar nossas intenções (Moura, 2001MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, A. D.; CARVALHO, A. M. P. (Orgs.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001. p. 143-162., p. 144).

A organização do ensino converte-se em um elemento essencial ao proporcionar a dupla dimensão formadora, em que professor e aluno têm as suas necessidades, ensinar e aprender, respectivamente. Ao organizar suas ações, o professor estará requalificando seus conhecimentos e dando forma a sua atividade de ensino, que só terá sentido ao concretizar-se na atividade de aprendizagem do aluno.

Contudo, a quantidade de conhecimentos produzidos em toda a história da humanidade é imensa, e continua aumentando, o que inviabiliza um processo de ensino que possa propiciar o contato do estudante com todas as informações. O que Moura et al. (2010MOURA, M. O. et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Líber Livro, 2010. p. 81-111.) apontam como solução é ensinar ao aluno um modo de ação generalizado para acesso, utilização e criação do conhecimento.

Além dos elementos teóricos relativos à Teoria da Atividade, a AOE, no seu aspecto metodológico, envolve três momentos: a síntese histórica do conceito; a situação desencadeadora de aprendizagem; e a síntese da solução coletiva. A síntese histórica do conceito diz respeito à organização lógico-histórica do conhecimento desenvolvido pela humanidade, o que exige estudo por parte do professor. Ao investigar e apropriar-se de novos conhecimentos que lhe permitam organizar o ensino, o professor encontra-se em um processo de aprendizagem contínua, em que evolui e se percebe como um ser em permanente formação.

O segundo momento na AOE refere-se à situação desencadeadora de aprendizagem, planejada pelo professor, que se concretiza na apresentação de um problema desencadeador de aprendizagem nas crianças, que as mobilizará a interagir entre si e chegar a uma solução. Esse movimento de mobilização tem o objetivo de oportunizar a apropriação do conhecimento científico pelos alunos, de forma a contemplar a gênese do conceito. A partir da necessidade de encontrar a solução para o problema proposto, os educandos irão em busca de ferramentas intelectuais para resolvê-lo, de forma coerente com o movimento histórico que levou ao seu desenvolvimento. Nesse contexto, a situação desencadeadora de aprendizagem pode ser materializada por meio de diferentes estratégias metodológicas, como as situações emergentes do cotidiano, o jogo e a história virtual do conceito1 1 Uma história virtual constitui-se de situações-problema colocadas por personagens de histórias infantis, de lendas, ou da própria história da matemática como desencadeadoras do pensamento da criança, de maneira a envolvê-la na construção da solução do problema, que faz parte do contexto da história, suscitando nela uma necessidade real, mesmo sendo uma situação imaginária. A história é denominada virtual por não estar diretamente relacionada à realidade, embora ela represente uma situação problema real vivenciada pela humanidade. ([xref ref-type="bibr" rid="r4"]Lopes; Vaz, 2014[/xref]) (Moura; Moura, 1998MOURA, M. O.; MOURA, A. R. Escola: um espaço cultural: matemática na educação infantil: conhecer, (re)criar um modo de lidar com as dimensões do mundo. São Paulo: Diadema/Secel, 1998.).

O terceiro momento da AOE é a síntese da solução coletiva, em que as crianças, coletivamente, encontram a solução “matematicamente correta”, ou seja, impregnada do conceito, para o problema proposto. Nesse momento, o educador deve orientar as crianças para que suas respostas coincidam com aquelas que a humanidade, ao longo da história, instituiu como corretas; entretanto, o professor não deve apenas solicitar a resposta adequada, mas também acompanhar as crianças até que todos apresentem uma conclusão precisa. A solução será construída a partir das interações mediadas pelos conhecimentos compartilhados no espaço de aprendizagem.

A perspectiva da coletividade por meio do compartilhamento é um dos elementos essenciais da AOE. Sobre atividade coletiva, Rubtsov (1996RUBTSOV, V. V. A atividade de aprendizado e os problemas referentes à formação do pensamento teórico dos escolares. In: GARNIER, C.; BEDNARZ, N.; ULANOVSKAYA, I. Após Vygotsky e Piaget: perspectivas social e construtivista: escolas russa e ocidental. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 129-137.) salienta que a aprendizagem deve ser compreendida como fruto da interiorização das situações vividas em atividades coletivas. Cabe ainda destacar que, após seu desenvolvimento, a AOE exige também um momento de avaliação, para verificar se as ações desenvolvidas permitiram a apropriação do conceito ensinado.

Partindo da perspectiva da AOE planejada e desenvolvida a partir dos pressupostos teóricos da Teoria da Atividade, acredita-se, assim como Moura (1996MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, v. 2, n. 12, p. 29-43, 1996., 2001MOURA, M. O. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, A. D.; CARVALHO, A. M. P. (Orgs.). Ensinar a ensinar: didática para a escola fundamental e média. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001. p. 143-162.), que ela conduz ao desenvolvimento psíquico dos indivíduos que a realizam, especialmente ao desenvolvimento cognitivo. O autor, além de ressaltar que ela se constitui como fonte de pesquisa e fundamento para o ensino, enfatiza principalmente o seu papel de instrumento - para o professor, no processo de ensino dos conceitos; e para o aluno, na apropriação de conhecimentos - no trabalho educativo que não se configura como um processo tradicional de transmissão mecânica de conhecimentos, mas como um processo de humanização.

Os caminhos metodológicos percorridos

Este trabalho faz parte de uma pesquisa de mestrado em Educação que teve o problema da pesquisa sistematizado na questão: “De que forma ocorre a formação de futuros professores em um contexto específico de organização do ensino de medidas para os anos iniciais do ensino fundamental?”. Os dados empíricos que compõem este artigo e a investigação como um todo foram coletados em 15 encontros realizados durante o planejamento, o encaminhamento e o desenvolvimento de uma unidade didática sobre o conteúdo matemático “grandezas e medidas” em uma turma de 3º ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública estadual do Rio Grande do Sul, a partir das ações do projeto de extensão sobre matemática.

As atividades elaboradas nesse projeto sempre têm como foco a apropriação do conhecimento matemático pelos alunos da educação básica, mas no seu processo de planejamento e desenvolvimento também oportunizam a aprendizagem da docência e dos conceitos matemáticos pelos professores e futuros professores envolvidos. Desse modo, o projeto tem como objetivo principal constituir um espaço de compartilhamento de experiências e interação entre estudantes de diferentes cursos e desses com os professores que já atuam no espaço escolar, assim como um local para discussão sobre as dificuldades encontradas por professores dos anos iniciais do ensino fundamental em relação ao ensino de matemática.

Os instrumentos para coleta de dados foram: diário de campo, gravação em áudio e vídeo e registros fotográficos de todos os momentos. Os encontros tiveram a participação da pesquisadora, dos sujeitos (sete licenciandos dos cursos de Matemática, Pedagogia e Educação Especial), da professora orientadora e de colaboradores (estudantes de pós-graduação em Educação).

Com o intuito de organizar, apresentar e analisar os dados e as informações obtidas, optou-se pelo conceito de episódios proposto por Moura (2000MOURA, M. O. O educador matemático na coletividade de formação: uma experiência com a escola pública. 2000. 131f. Tese (Livre Docência em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000., p. 60): “os episódios são reveladores sobre a natureza e qualidade das ações”. Dessa forma, eles “poderão ser frases escritas ou faladas, gestos e ações que constituem cenas que podem revelar interdependência entre os elementos de uma ação formadora” (Moura, 2000MOURA, M. O. O educador matemático na coletividade de formação: uma experiência com a escola pública. 2000. 131f. Tese (Livre Docência em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000., p. 276).

Com o foco voltado para o processo formativo dos futuros professores, mediante a sistematização e a análise dos episódios, tentou-se compreender o movimento de aprendizagem da docência dos acadêmicos a partir de indicativos de que houve uma mudança na qualidade das suas ações. A unidade didática como um todo envolveu estudos, planejamentos, desenvolvimento das ações na escola e avaliação. Na impossibilidade de destacar aqui todas as temáticas que surgiram em todos os momentos da coleta dos dados, serão apresentados episódios referentes ao desenvolvimento da unidade didática na escola, com as crianças.

Os dois episódios selecionados apresentam particularidades, mas o olhar da análise presente esteve orientado por três objetivos específicos: investigar o sentido que os futuros professores atribuem às suas ações de organização do ensino; identificar as necessidades que levam os licenciandos a desenvolver suas ações de ensino no projeto; e verificar de que forma se apropriam dos conteúdos matemáticos no estudo, no planejamento e no desenvolvimento de uma unidade didática.

A partir de situações desencadeadoras de aprendizagem, organizadas com base nos princípios da AOE, as crianças foram mobilizadas a resolver problemas coletivamente, de forma semelhante ao processo de construção do conceito de medir, que envolveu, historicamente, três etapas: a necessidade de medir; a necessidade de padronizar unidades de medida; e o conhecimento e a forma de utilização das unidades de medida padrão usuais. Os episódios elencados neste artigo referem-se a momentos de encaminhamento das ações em uma escola pública parceira do projeto, vivenciados pelos licenciandos e pelos alunos do ensino fundamental, que indicam aspectos mobilizadores do movimento de aprendizagem docente.

Tecendo considerações sobre aprendizagem da docência: as ações desenvolvidas na escola

Ressalta-se que a pesquisa que originou este artigo passou pelo Comitê de Ética e Pesquisa da universidade a qual está vinculada, atendendo aos critérios de princípios éticos. O sigilo foi garantido com a escolha de nomes fictícios pelos futuros professores. Nesse contexto, a partir de elementos norteadores da proposta da AOE, as situações de ensino foram realizadas com as crianças organizadas em grupos, cada um deles orientado por dois ou três licenciandos, trabalhando coletivamente, de modo que, embora os episódios retratados possam trazer falas de apenas alguns grupos, de um modo geral, podemos dizer que representam um movimento de aprendizagem comum a todos os participantes.

Episódio 1 - O movimento compartilhado de aprender a ensinar

No primeiro dia em que os futuros professores foram para a escola, a turma de alunos dos anos iniciais foi dividida em três grupos para trabalharem a partir da leitura de um problema apresentado e encaminhado por um personagem caracterizado como “Múmia”. Em síntese, o problema solicitava auxílio da turma para realizar a plantação de uma horta para a personagem Rainha Cleópatra alimentar alguns súditos de seu reino. Como orientação para organização das crianças, a rainha enviou réplicas de dois canteiros, um com plantas saudáveis bem distribuídas e outro com plantas amontoadas e estragadas, de modo que a turma deveria observá-los e descobrir uma estratégia para realizar a plantação de um terceiro canteiro, onde as plantas deveriam ter condições de crescer saudáveis.

Dos diversos acontecimentos desse dia, será relatado um episódio que retrata a solução encontrada por um desses grupos, formado por quatro meninos que realizaram a situação de ensino com a mediação de três licenciandos, sujeitos da pesquisa: Branca, Regina e Pedro. Na situação, as crianças estavam tentando reorganizar as plantas para encontrar uma forma de plantar as novas mudinhas para que elas crescessem saudáveis.

Quadro 1
Episódio 1

Após o episódio aqui descrito, as crianças escolheram as novas mudinhas e plantaram-nas no terceiro canteiro de acordo com as medições que realizaram, com a distância que consideraram adequada para o crescimento e o desenvolvimento saudável. As falas do episódio 1 podem conduzir a reflexões sobre dois aspectos: o papel do compartilhamento durante o encaminhamento da situação desencadeadora e a atuação do professor na ZDP.

Observamos, na condução das ações, a mediação dos futuros professores ao orientarem as crianças perante os instrumentos que foram utilizados para as medições. Após os primeiros diálogos, as crianças entraram em consenso que seria necessário medir os canteiros, mas o problema consistia em como medir.

As crianças faziam tentativas, mas não conseguiam chegar a uma solução para o problema, o que levou Pedro, Branca e Regina a fazerem várias intervenções, buscando encaminhar o problema da forma mais clara para as crianças. Eles procuravam alternativas para atender à proposta inicial, utilizando os conceitos e os termos matemáticos estudados nos encontros anteriores de estudo que tiveram na universidade, sendo que um subsidiou o outro em momentos de insegurança e dúvidas sobre a melhor abordagem.

Nessas intervenções, os três futuros professores buscavam a melhor proposta para as crianças, um complementando a fala do outro, no intuito de efetivar as ações de acordo com os nossos princípios e aportes teóricos. Sobre o trabalho coletivo, acreditamos, assim como Moura et al. (2010MOURA, M. O. et al. A atividade orientadora de ensino como unidade entre ensino e aprendizagem. In: MOURA, M. O. (Org.). A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Líber Livro, 2010. p. 81-111., p. 88), que “a atividade realizada em comum, coletiva, ancora o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, ao configurar-se no espaço entre a atividade interpsíquica e a atividade intrapsíquica do sujeito”, ou seja, contribui para o desenvolvimento de toda potencialidade do sujeito como ser humano, a partir das suas funções psíquicas superiores. Além disso, ao aprender a trabalhar coletivamente na escola, compartilhando ideias e experiências, assim como acontece na universidade nos encontros e estudos do grupo, constitui-se um movimento de aprendizagem da docência, uma aprendizagem colaborativa acerca do trabalho do professor.

O segundo aspecto que destacamos refere-se à atuação dos licenciandos em um momento essencial para o encaminhamento da unidade didática. Branca, Regina e Pedro realizaram mediações atuando na ZDP das crianças, oportunizando-lhes encontrar a solução para o problema: “[...] a zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que foi atingido através do desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de maturação” (Vigotski, 2002VIGOTSKI, L. S. Formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p.98).

Ao atuar nesse momento, os futuros professores tiveram a oportunidade de intervir, questionar as crianças, interagir por meio do diálogo, visando à apropriação de conhecimentos pelos alunos. Nesse contexto, objetivando a aprendizagem das crianças, ao identificar quais são as melhores estratégias e reorganizar o ensino quando necessário, os futuros professores também se encontram em um movimento de aprendizagem.

Percebe-se que, na interação entre os sujeitos, é sempre possível que um deles assuma o papel de mediador e promova o desenvolvimento do outro, o que ratifica a ideia de que a apropriação de conhecimentos acontece do plano social para o individual.

Episódio 2 - Os conceitos matemáticos envolvidos: a padronização da medida dos lenços

O episódio anterior apresenta um fragmento do primeiro dia de ações na escola, voltadas à necessidade de medir. Em um segundo dia foi desenvolvida uma situação de ensino referente à necessidade de padronizar uma unidade de medida para a turma toda.

A partir de um enredo em que a rainha Cleópatra foi até a sala da turma solicitar a ajuda das crianças para resolver um problema do seu reino, as crianças escolheram uma tira de papel como instrumento para medir uma nova unidade de medida padrão - o medidor - escolhido por votação pela turma. Ao abordar a padronização de medidas com as crianças, os futuros professores apresentaram mais facilidade e segurança nas suas ações, pois já tinham realizado trabalhos semelhantes no projeto em que o contexto era o mesmo e, além disso, sentiram-se amparados pela organização realizada na universidade.

Esse episódio foi extraído do último dia de ações na escola: o grupo organizou uma história virtual sobre uma personagem gaúcha que realizou viagens por todo o mundo. A viajante, representada por Beatriz, a professora regente, narra suas viagens pelo mundo para as crianças e, com a ajuda de Sabrina, apresenta os lenços que comprou em cada local por onde passou.

Quadro 2
Episódio 2

Após esse momento, as licenciandas fizeram algumas comparações com o auxílio das crianças, que mostravam suas tiras de papel e estabeleciam diferenças entre os seus tamanhos. Também foram lançadas algumas questões: Qual é a melhor forma de medir este pedaço? Quantos centímetros possui um metro? Que parte cinquenta centímetros representa do metro?

A partir dessas questões e das respostas das crianças, foram apresentados o metro e suas subdivisões em centímetros, com uma fita métrica e outros instrumentos de medida. Além disso, utilizando a fita, mediram a altura de cada uma das crianças e registraram os resultados em um quadro coletivo.

Em relação a esse episódio, enfatizam-se as contribuições para a formação dos futuros professores e destacam-se dois aspectos em especial: o uso dos conhecimentos matemáticos advindos do estudo e o uso de instrumentos pedagógicos e de apoio.

O objetivo nesse dia era manifestar, através de situações desencadeadoras, a necessidade de conhecer e utilizar os padrões de medida usuais. A partir da história apresentada, as crianças voltaram-se para o problema de a personagem pedir a medida de lenços em palmos, e não em metros, pois o metro é conhecido e utilizado em todo o mundo. Além disso, em um segundo momento, ao medir as alturas das crianças, elas tiveram a oportunidade de conhecer e utilizar os símbolos da nossa unidade-padrão para medidas de comprimento. Essas informações são definidas pelo Sistema Internacional de Unidades e devem ser utilizadas ao medir qualquer grandeza.

Durante toda a manhã que os futuros professores passaram na escola, especialmente no questionamento final, observou-se a apropriação e a utilização dos conceitos matemáticos estudados anteriormente, quando da organização da unidade didática. Beatriz e Sabrina mobilizaram conhecimentos matemáticos oriundos de estudo prévio, a partir da necessidade de conduzir as discussões com as crianças, visando à aprendizagem delas. Esse movimento se constituiu como aprendizagem da docência, uma vez que o objeto da mobilização do conhecimento matemático se voltava ao ensino.

A partir disso, também é possível levantar algumas considerações em relação ao uso de instrumentos pedagógicos e de apoio no desenvolvimento das ações. Nas palavras de Moretti,

[...] na escolha de instrumentos pedagógicos adequados à atividade de ensino na qual se encontra, o professor pode recorrer a situações-problema, a jogos, a histórias-virtuais e ainda eleger - de acordo com as condições objetivas de realização das ações educativas - instrumentos de apoio como, por exemplo, a lousa, o livro didático, o computador, o retroprojetor ou ainda o projetor multimídia. (Moretti, 2007MORETTI, V. D. Professores de matemática em atividade de ensino: uma perspectiva histórico-cultural para a formação docente. 2007. 207 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p 121)

Em cada um dos dias na escola, a situação desencadeadora envolveu diferentes instrumentos e recursos pedagógicos, como representação teatral, carta, slides com projeção multimídia, assim como distintos materiais de apoio, como quadro negro, papel pardo, recursos para realizar medições, materiais recicláveis etc. As escolhas desses instrumentos atenderam às condições objetivas do momento, inclusive condições climáticas, pois, depois do primeiro dia, o frio impediu a realização de atividades ao ar livre. Além disso, buscaram atender da forma mais adequada aos objetivos iniciais do planejamento.

Assim como o conhecimento matemático é necessário para desenvolver atividades de ensino, partindo dos pressupostos teóricos, é importante conhecer e saber utilizar diversos instrumentos pedagógicos. Refletir sobre a melhor proposta e o melhor encaminhamento pedagógico para o aluno também é aprender a ser professor.

O movimento de aprender a ser professor: considerações sobre o estudo

No intuito de contemplar o objetivo inicial de discutir elementos acerca do movimento de aprendizagem da docência dos futuros professores envolvidos na pesquisa, neste momento serão feitas algumas considerações acerca de três aspectos: o sentido atribuído pelos acadêmicos às suas ações na escola; as necessidades que levaram os acadêmicos a agir; e a apropriação dos conteúdos matemáticos utilizados durante o desenvolvimento da unidade didática.

Em relação ao primeiro aspecto, olhar será direcionado para a atribuição de novos sentidos ao trabalho coletivo desenvolvido pelos futuros professores. Assim como estudar e planejar compartilhando conhecimentos e experiências não é tão fácil, mas promove o desenvolvimento dos sujeitos, desenvolver as suas ações enquanto docente, em uma dupla ou grupo de trabalho com as crianças também não é um movimento simples. Entretanto, durante os dias passados na escola, as duplas ou grupos que trabalhavam conjuntamente auxiliando as crianças fortaleceram uma relação de confiança e segurança no colega, obtendo subsídios para conduzir as ações. Eles reorganizaram suas ações a partir da interação com os colegas e atribuíram novos sentidos ao movimento de aprender a ser professor em um grupo que trabalha coletivamente. Houve também uma relação com os motivos que dirigiram as ações dos licenciandos durante a unidade didática, como coloca Moretti (2007MORETTI, V. D. Professores de matemática em atividade de ensino: uma perspectiva histórico-cultural para a formação docente. 2007. 207 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 120):

Ao produzir novos motivos no decorrer da própria atividade, o professor também passa a atribuir novos sentidos a ela, o que inclui novos sentidos às suas ações, aos instrumentos que escolhe e ao processo de trabalho coletivo que criou condições para as mudanças percebidas.

Tendo em vista que o homem se desenvolve a partir do contato e da relação com o outro, na sua inserção na vida social, seu desenvolvimento e seu aprendizado enquanto professor também acontecem ao serem concretizados em um grupo, especialmente um grupo que possui objetivos comuns a todos.

Em relação às necessidades que levaram os licenciados a agir, segundo Moura (2004MOURA, M. O. Pesquisa colaborativa: um foco na ação formadora. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. São Paulo: Ed. UNESP, 2004. p. 257-284., p. 272):

as atividades a serem desenvolvidas em sala de aula devem ter por princípio a necessidade da organização da aprendizagem de modo a colocar em interações os conhecimentos de todos os sujeitos que tomam parte das ações desencadeadas intencionalmente pelo educador.

Nesse contexto, as necessidades que mobilizaram os futuros professores a desenvolverem suas ações estavam voltadas às formas de realizar o melhor trabalho e possibilitar momentos de apropriação de conhecimentos e aprendizagens pelas crianças. Tais indícios levam a crer que, na perspectiva de Leontiev (1978LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Moraes, 1978. ), os motivos que os levavam a agir, no espaço que estavam atuando, coincidia com o objeto da atividade de ensino, ou seja, a aprendizagem do aluno.

Sobre o último aspecto, a apropriação dos conteúdos matemáticos utilizados no desenvolvimento da unidade didática, é possível observar, no segundo episódio, que as falas de Beatriz e Sabrina apresentam indicativos de que houve apropriações de conceitos matemáticos durante os estudos no grupo. Ao questionar as crianças, elas conduzem as questões a fim de concretizarem os conceitos envolvidos. Além disso, os licenciandos utilizam de forma correta os termos e definições matemáticas ao longo dos outros dias, o que, por hora, não é o foco deste trabalho, mas é um elemento essencial no ensino de matemática.

Ainda vale destacar que, para além dos termos e das definições matemáticas, de uma forma geral, os licenciandos conseguiram conduzir a proposta inicial, utilizando seus conhecimentos teóricos e metodológicos e auxiliar as crianças na solução das situações desencadeadoras apresentadas. Além disso, destacaram, em vários momentos, a importância de as ações serem desenvolvidas ancoradas nos pressupostos da AOE, tendo em vista suas contribuições para a formação de todos os envolvidos, futuros professores e alunos da escola. Tais fatos constituem indícios de que, para esses futuros professores, ficou clara a ideia de que “adquirir capacidade para lidar com informações, colocando-as de forma acessível para que outros sujeitos, potencialmente interessados, aprendam, é na verdade a aprendizagem do professor”. (Moura, 1996MOURA, M. O. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, v. 2, n. 12, p. 29-43, 1996., p. 33).

Beatriz aponta também uma parceria considerada extremamente positiva durante a unidade didática: “Foi importante... interessante ter uma professora de história com a gente, porque a questão da ferrovia, e muitas outras coisas ela contribuiu” (13º encontro).

A professora em questão era a regente da turma, que faz parte do projeto de matemática e estabeleceu uma ótima parceria durante o trabalho com grandezas e medidas. Além de ter formação em Curso Normal e atuar nos anos iniciais do ensino fundamental, ela também possui o curso de Licenciatura em História e atua como professora dessa disciplina. A professora interagiu e participou das ações dos licenciandos e contribuiu de forma significativa, principalmente ao trazer curiosidades e conhecimentos históricos acerca do Egito, da Cleópatra, da história do município de Santa Maria e das outras cidades e países que foram citados no último encontro. Os futuros professores apreciaram essa contribuição, em especial, nos momentos em que as crianças demonstravam muita curiosidade e questionavam sobre os conhecimentos históricos. Essa constatação comprova a importância para a formação inicial do desenvolvimento de ações que permitam a interação dos futuros docentes com professores em exercício.

A parceria vivenciada entre os licenciandos, os professores da universidade e os professores da escola de educação básica foi fundamental para a compreensão de elementos que permeiam o trabalho docente. Destaca-se, assim, que a compreensão da complexidade do trabalho docente no processo formativo de professores, seja inicial ou em serviço, pode fortalecer o professor no grupo em que está inserido, viabilizando o enfrentamento coletivo de condições objetivas e subjetivas que interferem na aprendizagem escolar. Aprender a ser professor, ancorado nos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, não consiste em aprender apenas o conteúdo a ser ensinado ou a melhor estratégia para propor um exercício; vai muito além: objetiva que o professor organize a melhor forma de aproximar as crianças do conhecimento, de despertar neles a necessidade de se apropriar dele, promovendo, assim, o desenvolvimento do pensamento teórico.

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  • 1
    Uma história virtual constitui-se de situações-problema colocadas por personagens de histórias infantis, de lendas, ou da própria história da matemática como desencadeadoras do pensamento da criança, de maneira a envolvê-la na construção da solução do problema, que faz parte do contexto da história, suscitando nela uma necessidade real, mesmo sendo uma situação imaginária. A história é denominada virtual por não estar diretamente relacionada à realidade, embora ela represente uma situação problema real vivenciada pela humanidade. ([xref ref-type="bibr" rid="r4"]Lopes; Vaz, 2014[/xref])

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2017
  • Revisado
    02 Fev 2018
  • Aceito
    06 Abr 2018
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