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Formação docente e questão mediadora: uma proposta em discussão

Teacher’s formation and mediator question: a proposal under discussion

Resumo:

O procedimento metodológico de análise e interpretação denominado núcleos de significação (NS) foi criado com o intuito de oferecer aos pesquisadores um instrumento capaz de viabilizar o processo analítico-interpretativo, dentro dos princípios do método materialista histórico e dialético (MHD). A proposta da questão mediadora (QM) surge como elemento auxiliar no referido procedimento e é utilizada para a organização de dados produzidos em situação de grupo. Nosso objetivo é expor como a QM pode contribuir para a análise, a sistematização e a produção dos NS. Primeiramente, apresentamos a situação da pesquisa, a origem da QM e o seu arcabouço teórico-metodológico. Em seguida, expomos o movimento da QM, utilizando exemplos. Nas considerações finais, levantamos alguns questionamentos para que a comunidade acadêmica possa colaborar no aprimoramento dessa proposta. Acreditamos que a QM, como recurso analítico auxiliar, poderá ser utilizada na análise dos dados, forjados no movimento de pesquisa em grupo. Nessa direção, apontamos a relevância da QM não só como elemento auxiliador no momento de produção da análise, mas também como recurso metodológico para os próprios processos formativos, que tencionam movimentações críticas com o intuito de criar e ressaltar momentos de mobilização dos integrantes de grupos de discussão, os quais podem desenvolver e reverberar possíveis transformações da realidade de pesquisa e formação evidenciada neste artigo.

Palavras-chave:
formação docente; núcleos de significação; questão mediadora

Abstract:

The methodological procedure of analysis and interpretation called nuclei of meaning (NM) was developed to provide researchers with a facilitator for the analytic-interpretative process, under the principles of the historical and dialectic materialistic method. The proposal for the mediator question (MQ) arises as an auxiliary element in the said procedure, being used to organize data produced in the group situation. The aim is to explain how the MQ contributes to the analysis, systematization and production of the NM. Firstly, the research situation, its theoretical-methodological framework, and the MQ origins are presented. Then, there is an explanation on the movement of the MQ through the use of examples. Finally, in the closing remarks, some issues are subjected for the academic community’s appreciation, so they can collaborate with the improvement of this proposal. It is our understanding that the MQ, as an auxiliary analytical resource, can be employed in the data analysis elaborated in the group research movement. Thus, the MQ’s relevance is presented not only as an auxiliary resource in the analysis production, but also as a methodological resource for the formative processes themselves, intended to urge critical movements aimed to generate and highlight moments of mobilization of the participants in the discussion group, which could bring up the development and propagation of changes in the research and formation realities emphasized in this article.

Keywords:
teacher’s formation; nuclei of meaning; mediator question

Introdução

O procedimento metodológico de análise e intepretação denominado núcleos de significação (Aguiar; Ozella, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 222-247, 2006.; 2013; Aguiar; Soares; Machado, 2015AGUIAR W. M. J.; SOARES, J. R.; MACHADO, V. C. Núcleos de significação: uma proposta histórico-dialética de apreensão das significações. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 45, n. 155, p. 56-75, jan./mar. 2015.) foi criado com o objetivo de oferecer ao pesquisador um instrumento capaz de viabilizar o processo analítico-interpretativo de pesquisas qualitativas empíricas, baseadas no método materialista histórico dialético (MHD).

A proposta da questão mediadora (QM) surge como elemento auxiliar no referido procedimento, portanto compartilha o mesmo substrato teórico e metodológico. Nosso objetivo, neste trabalho, é expor como a QM poderá auxiliar nas análises, na sistematização e na produção dos núcleos de significação (NS), especialmente, em situação de pesquisa em grupo e como recurso metodológico para os próprios processos formativos, que tencionam movimentações críticas com o intuito de criar e evidenciar momentos de mobilização nos grupos de discussão, os quais podem desenvolver e reverberar possíveis transformações na realidade pesquisada.

Os núcleos de significação são definidos por seus autores, Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 222-247, 2006.; 2013), como um recurso teórico-metodológico de organização, análise e interpretação de dados, fundamentado na psicologia sócio-histórica, que se baseia no método MHD.

Com base nisso, ao utilizar esse procedimento em investigações, esperamos que os pesquisadores possam ir além da aparência do fenômeno, possam considerar a relação parte-todo, mantendo a noção de totalidade, e tentar apreender o fenômeno em seu movimento contraditório, inerente à realidade (entendida como dialética e assentada na materialidade histórica, social e cultural) que constitui a sociedade humana.

A necessidade de um procedimento específico para análise no campo de pesquisa da psicologia educacional e de outras áreas, segundo a abordagem teórico-metodológica de Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 222-247, 2006.; 2013AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 94, n. 236, p. 299-322, jan./abr. 2013.), justifica-se, pois os elementos determinantes das formas de significação da realidade não estão ao alcance imediato do pesquisador. Afinal, “[...] toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas [...]” (Marx, 2008MARX, K. O capital: crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant´Anna. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008., p. 1080).

Por isso, ao criarem o procedimento metodológico de análise e interpretação NS, os referidos autores não tinham a intenção de construir um procedimento qualquer de investigação, mas um recurso que auxiliasse o pesquisador no processo de organização e análise das significações produzidas pelos sujeitos de pesquisa, diante da realidade histórica obscura. Para isso, sugeriram uma estrutura organizativa: leituras sistemáticas do material transcrito, identificação de pré-indicadores, articulação de pré-indicadores em indicadores, articulação de indicadores para organização dos NS e interpretação intra e internúcleos.

Esse procedimento não pretende obrigar o pesquisador a cumprir rigidamente, de maneira mecânica e linear, os momentos apresentados. Para que isso não ocorra, a apropriação dos pressupostos do método MHD é essencial. Tendo o pesquisador domínio desses pressupostos, podem surgir, no movimento analítico, novos modos de organizar e analisar os dados, como constataremos adiante.

Cabe ressaltar que o surgimento de novos modos de organizar e analisar os dados dependerá da realidade estudada: com um sujeito, com grupos ou com diferentes informações produzidas em entrevistas, em grupos de discussão etc. A ideia é que os momentos de análise e interpretação, sugeridos na produção dos NS, mantenham seu movimento em espiral, de forma sempre transitória, com múltiplas elaborações compreendidas como sínteses provisórias.

Nessa perspectiva de elaboração de sínteses provisórias, os pesquisadores, com os dados produzidos, devem ter em mente que a unidade de análise é a palavra com significado. Sabemos que não se trata de qualquer palavra, e sim daquela que contém a totalidade do sujeito e é constituída por essa totalidade (Vygotsky, 2009VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2009.). A palavra com significado encontra-se no empírico, no concreto real e no caótico e se constitui como ponto de partida para a compreensão do fenômeno que se pretende estudar.

As leituras sistemáticas do material verbalizado (entrevistas, sessões reflexivas, reuniões e outros), primeira etapa do recurso teórico-metodológico apresentado, são primordiais para que o pesquisador conheça de modo mais aprofundado a realidade que está estudando e, assim, possa situá-la na instância histórica local, social, cultural, política e ideológica. Nesse momento, sugerimos avançar para a etapa seguinte do procedimento NS: o levantamento dos pré-indicadores.

No levantamento dos pré-indicadores, o pesquisador parte do empírico, do que é instantaneamente visível, do todo ainda caótico, expresso na fala do sujeito. Esse é o momento em que se deve observar e analisar aspectos singulares da fala, como a frequência, a ênfase e a reiteração de determinadas palavras e expressões, sua carga emocional e suas insinuações, para entender o sujeito, mas não isolado das determinações históricas, sociais e culturais que o constituem. O que se quer compreender é um sujeito singular, social e histórico, e, desse jeito, justifica-se apreendê-lo sob o ponto de vista sócio-histórico: um sujeito que contém o mundo social e o expressa por meio de sua subjetividade.

Os aspectos visíveis levantados nos pré-indicadores, ou seja, na fala do sujeito, embora revelem apenas o lado aparente do fenômeno estudado, indicam, em primeira instância, construções individuais e sociais, entendidas como teses iniciais desse sujeito sócio-histórico, que podem ser superadas durante o processo de análise. Nessa etapa, os pré-indicadores podem ser destacados de diferentes maneiras: negritados, sublinhados, coloridos ou de acordo com a escolha do pesquisador. Para reforçar esse passo e situá-lo como essencial na análise do todo, ressaltamos que “[...] o homem não pode conhecer o contexto do real a não ser arrancando os fatos do contexto e tornando-os relativamente independentes” (Kosik, 2002KOSIK, K. Dialética do concreto. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., p. 57).

Na etapa seguinte do procedimento NS, os indicadores sugerem momentos analíticos que avançam para o pensamento concreto. Há a articulação dos pré-indicadores empíricos com suas semelhanças, suas complementaridades e suas contradições. Desse modo, colocam as teses iniciais - pré-indicadores - em xeque (antítese), ao serem confrontadas com uma nova articulação que revela um momento analítico agregador de outros/novos elementos, favorecendo uma apreensão mais totalizante do sujeito, que aponte para a superação da tese inicial. Continuamos esse processo chegando a vários indicadores que, novamente, em um movimento de articulação dialética, irão compor a próxima etapa, os núcleos de significação.

É na produção dos NS que serão elaboradas sínteses, entendidas como teorizações que explicitam, explicam e interpretam o fenômeno estudado, considerando os determinantes da amplitude da realidade social e histórica que o constituem. Será nesse momento analítico-interpretativo que surgirão novos conteúdos, sobrevindos da análise que considera a contraditoriedade e a dialeticidade do real, contidas nos significados das palavras, base material da qual partimos.

É fundamental que, nesse processo de teorização, seja observada a literatura produzida sobre o fenômeno em relevo. Com base na literatura, poder-se-á confirmar ou negar o que vem sendo classificado como verídico e, nesse movimento científico, contribuir com a produção de novos conhecimentos.

Diante desse entendimento, confirmamos que interpretar a totalidade, sem as mediações, é algo abstrato e passível de equívocos, pois, como afirma Mészáros (2013MÉSZÁROS, I. O conceito de dialética em Lukács. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 58):

[...] a totalidade social existe por e nessas mediações multiformes, por meio das quais os complexos específicos - isto é, as totalidades parciais - se ligam uns aos outros em um complexo dinâmico geral que se altera e se modifica o tempo todo.

Há, no procedimento dos NS, análises intra e internúcleos que compõem duas fases distintas. A primeira, a fase intranúcleo, analisa e interpreta o conjunto de indicadores que constituíram o núcleo, ou seja, sua totalidade. Nesse movimento analítico-interpretativo, apoiados nas categorias do materialismo histórico e dialético, procuramos explicar as mediações constitutivas do fenômeno e alcançar as sínteses teóricas elucidativas das significações dos sujeitos participantes da pesquisa.

A segunda fase analítica dos NS, a internúcleos, ocupa-se das discussões teóricas suscitadas na primeira e busca sínteses ainda mais refinadas para interpretar e explicar o fenômeno estudado em uma totalidade mais ampla. O intuito é penetrar e se apropriar da realidade abordada e, com isso, tecer considerações que, nesse momento da análise, reúnem melhores condições teóricas para explicar os nexos que compõem a totalidade histórica do fenômeno em evidência. Com essa apropriação explicativa, as teorizações produzidas nas análises internúcleos ganham grande força, podendo ser referência para pensar e explicar outros fenômenos próximos e/ou articulados.

Na lógica dialética, buscamos, por meio dos NS, analisar e interpretar a realidade concreta e apresentar discussões críticas sobre essa realidade. Pode-se dizer que há, nesse momento de produção dos NS, um retorno ao concreto, mas um retorno com qualidade superior, com nível de abstração diferente do inicial, capaz de explicar a realidade concretamente pensada.

A seguir, com intuito de aprofundar o entendimento dos NS utilizados em situação de grupo, apresentamos a QM.

Questão mediadora: uma proposta de recurso metodológico de análise de grupo

A questão mediadora surgiu no desenvolvimento da tese A dimensão subjetiva da docência: significações de professores e gestores sobre “ser professor”, produzidas em um processo de pesquisa e formação.

A investigação de doutorado originou-se articulada à pesquisa A dimensão subjetiva dos processos educacionais, realizada por um grupo de pesquisa de uma universidade privada na cidade de São Paulo. Desde 2002, o grupo vem produzindo conhecimento cada vez mais aprofundado sobre os aspectos subjetivos que constituem a atividade docente. Para isso, desenvolvem um modo de pesquisa que inclui ações interventivas nos processos educacionais, mais especificamente na escola, envolvendo a formação de professores e gestores. O processo de pesquisa do grupo ancora-se na perspectiva teórica da psicologia sócio-histórica (PSH), fundamentada no materialismo histórico e dialético, e toma como referencial metodológico a pesquisa crítica de colaboração - PCCol (Magalhães, 2011MAGALHÃES, M. C. C. Pesquisa crítica de colaboração: escolhas epistemo-metodológicas na organização e condução de pesquisas de intervenção no contexto escolar. In: MAGALHÃES, M. C. C.; FIDALGO, S. S. (Org.). Questões de método e de linguagem na formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 13-40.).

A tese defendida foi a de que professores e gestores, ao participarem de processos formativos mediados por conteúdos delineados com base em temáticas suscitadas na escola e planejados segundo perspectiva da PSH, poderiam produzir novas significações sobre ser professor, afetando, de modo transformador, a dimensão subjetiva da docência. Essa tese foi considerada sustentável por ter como situação de estudo um trabalho de pesquisa e de formação que foi intencionalmente direcionado para produção de conhecimento científico e de transformação da realidade social e educacional brasileira, tendo como eixo direcionador a crítica metodológica apregoada por Karl Marx, L.S. Vygotsky e István Mészáros.

Importante salientar que esse modo de produzir conhecimento e atuar em processos formativos busca romper paradigmas tecnicistas que permeiam a realidade educacional, promovendo, por meio de diferentes ações, a educação emancipadora, menos alienada e que considera o momento histórico atual. Tendo isso em vista, a indicação dos dados, com base na análise e na interpretação, possibilitou apreender a dimensão subjetiva da docência e perceber movimentos indicativos de possível transformação da realidade, na direção da crítica, da desalienação e da emancipação humana, conforme destacaremos adiante.

A base de sustentação teórica da pesquisa teve como ponto de partida o pensamento de Lev S. Vygotsky (1896-1934) e seus seguidores, bem como as contribuições de Karl Marx (1818-1883) e de Friedrich Engels (1820-1895), por entender que estes últimos constituem a gênese da psicologia proposta por Vygotsky. Dialogamos também com autores contemporâneos que aprofundaram o conhecimento na PSH (Aguiar; Bock, 2016AGUIAR, W. M. J.; BOCK, A. M. B. (Org.). A dimensão subjetiva do processo educacional: uma leitura sócio-histórica. São Paulo: Cortez, 2016.; Furtado, 2011FURTADO, O. Trabalho e solidariedade. São Paulo: Cortez , 2011.; Bock; Gonçalves, 2009BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M. A dimensão subjetiva da realidade. São Paulo: Cortez , 2009.; Aguiar; Ozellas, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 222-247, 2006.) e ampliaram seu entendimento na área educacional. Trouxemos, ainda, contribuições de diferentes autores da educação, mais especificamente da pedagogia histórico-crítica, da psicologia e da filosofia da educação.

O campo e os sujeitos da pesquisa foram formados por duas escolas públicas de educação básica da cidade de São Paulo, uma da rede estadual e outra da rede municipal, denominadas escolas colaboradoras 1 e 2 (EC1 e EC2). A pesquisa contou com 40 sujeitos, entre eles, professores, gestores e pesquisadores. Para produção dos dados, realizamos encontros - “sessões reflexivas” - com temas suscitados nas escolas, gravados e filmados com o consentimento prévio dos participantes.

Cabe ressaltar que os dados utilizados no estudo integram o banco do referido grupo de pesquisa. O planejamento e a condução dos encontros foram realizados na disciplina-projeto A dimensão subjetiva dos processos educacionais.

Para produção deste artigo, utilizamos os dados produzidos no campo de pesquisa EC2 - uma escola de educação básica da rede pública municipal de São Paulo que contempla ensino fundamental do 1º ao 9º ano e educação de jovens e adultos. À época da investigação, a unidade escolar contava com aproximadamente 1.200 alunos, distribuídos nos turnos da manhã, da tarde e da noite. Na EC2, a pesquisa foi desenvolvida com três grupos de professores, com 10 a 15 participantes, distribuídos nos turnos matutino, vespertino e noturno. Cada grupo estabeleceu uma temática a ser trabalhada: autoconhecimento e direitos humanos, educação inclusiva e educação alimentar nutricional.

Neste estudo, tomamos os dados produzidos no primeiro encontro - integrante da sequência de quatro encontros com professores da EC2 - que tinha como temática central o autoconhecimento. A escolha do tema justifica-se pelo fato de os professores estarem engajados em um projeto que envolvia o conteúdo em questão e julgarem importante seu aprofundamento. Tudo isso foi acordado em reuniões específicas entre representantes da escola e pesquisadores.

O objetivo principal dos encontros com professores e gestores, planejados pelo grupo, consistiu em promover meios para que os participantes refletissem de forma mais ampla e complexa a respeito do tema “autoconhecimento” e, desse modo, produzissem novas significações sobre ser professor, contribuindo para o desenvolvimento de todos os envolvidos no processo, inclusive dos pesquisadores, conforme defende Magalhães (2007MAGALHÃES, M. C. C. Formação contínua de professores: sessão reflexiva como espaço de negociação entre professores e pesquisador externo. In: FIDALGO, S. S; SHIMOURA, A. S. (Org.). Pesquisa crítica de colaboração: um percurso na formação docente. São Paulo: Ductor, 2007. p. 97-113.; 2009MAGALHÃES, M. C. C. O método para Vygotsky: a zona proximal de desenvolvimento como zona de colaboração e criticidade criativas. In: SCHETTINI, R. H. et al. Vygotsky: uma revisita no início do século XXI. São Paulo: Andross, 2009. p. 53-78.; 2011MAGALHÃES, M. C. C. Pesquisa crítica de colaboração: escolhas epistemo-metodológicas na organização e condução de pesquisas de intervenção no contexto escolar. In: MAGALHÃES, M. C. C.; FIDALGO, S. S. (Org.). Questões de método e de linguagem na formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 13-40.) na pesquisa crítica de colaboração. Cabe lembrar que o grupo utilizou a PCCol como referência metodológica na condução dos encontros formativos.

A intenção dos pesquisadores era, nos encontros formativos, promover momentos em que os pensamentos pudessem ser elevados para além da esfera cotidiana (Heller, 2008HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2008.), favorecendo o movimento da crítica sobre a realidade, que abrange as próprias atividades do dia a dia, considerando as condições histórico-sociais.

Após discussão no grupo de pesquisa acerca de como conduzir a primeira sessão reflexiva a respeito de autoconhecimento, ponderamos sobre uma dinâmica com dois bonecos representativos de figuras que poderiam se constituir como motivos favoráveis à reflexão proposta: um boneco-professor e um boneco-alienígena. Ambos seriam confeccionados com papel kraft e afixados em local de boa visibilidade a todos os participantes, que poderiam se servir de materiais como pincel atômico, folhas de papel sulfite, canetas esferográficas, fita crepe e/ou fita durex. Ressaltamos que a estratégia formativa planejada e utilizada pelos pesquisadores denominou-se Diálogo entre professores e um alienígena (E.T.) e teve como referência trabalhos realizados por Ana Bock1 1 Psicóloga e docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). e seu grupo de pesquisa. No primeiro encontro, o propósito foi conhecer os participantes e nos aproximar deles por meio da figura de um alienígena, estabelecendo um diálogo entre pesquisadores e docentes sobre ser professor.

Esperávamos também, com a referida estratégia, que o alienígena, aquele que assume a posição de nada saber, ao fazer perguntas aos docentes sobre ser professor, criasse condições favoráveis para que os participantes produzissem significações que revelassem aspectos da dimensão subjetiva dos processos educacionais.

O primeiro momento ocorreu com a realização da apresentação dos participantes, professores e pesquisadores. Em seguida, houve o esclarecimento da estrutura da atividade pensada para os três encontros voltados à temática “autoconhecimento”, bem como a explicação da intenção do grupo de pesquisa de contribuir com os projetos desenvolvidos na escola.

Em continuidade, socializamos a proposta pensada para aquele encontro e, mediante aceitação dos participantes, lemos um trecho do livro Ei, tem alguém aí? (Gaarder, 1997GAARDER, J. Ei! Tem alguém aí? Tradução de Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997.), para ilustrar uma situação de encontro entre um menino e um extraterreste (E.T.) Assim, propusemos que, nessas condições, poderiam ser produzidas significações decorrentes de uma relação entre um ser humano e um E.T., de modo que ambos se compreendessem.

Após a apresentação dos dois bonecos representativos, organizamos a atividade com os professores, dividindo-os em dois grupos, com cinco componentes cada. Explicamos que o alienígena faria algumas perguntas ao grupo: (1) O que é professor? (2) Vocês são professores? (3) Como é que a gente vira professor? (4) O que vocês estão fazendo aqui hoje?

Mediante essas perguntas, cada grupo discutiu e redigiu uma resposta. A orientação era a de que o grupo precisaria chegar a um consenso. Entendemos que isso favoreceria o debate sobre as possíveis respostas ao E.T. A socialização das respostas deu-se por meio da leitura feita por representantes dos grupos, após um tempo combinado para as discussões. Na sequência, depois da comunicação e da problematização das respostas, no coletivo, realizamos a síntese do encontro, contemplando as objetivações produzidas pelo grupo. O encontro foi filmado, gravado e transcrito com autorização prévia dos participantes.

A organização, a análise e a interpretação dos dados foram feitas conforme orientação do recurso metodológico núcleos de significação. Portanto, inicialmente, fizemos leituras sistemáticas do material produzido, isto é, das falas dos participantes, provenientes dos diálogos ocorridos nesse primeiro encontro, para, em seguida, darmos continuidade às etapas, conforme propõe o procedimento teórico-metodológico NS. No entanto, no momento das leituras reiterativas, surgiu um problema: como organizar, analisar e interpretar dados produzidos em situação de grupo de discussão, utilizando o procedimento NS, se até o momento isso era feito com um ou com poucos sujeitos?

Para responder a essa questão, entendemos ser necessário expor detalhadamente como se deu a organização dos dados produzidos em grupo. Para isso, explicamos primeiramente dois fenômenos apreendidos no movimento de análise e tomados por nós como estruturantes do processo analítico: os blocos dialógicos (BD) e a QM, foco deste artigo. Tanto um como outro existem como fenômenos da realidade e, ao serem identificados e apreendidos no movimento de análise, coube a nós buscarmos uma forma de descrevê-los e explicá-los, nomeando-os conforme apontado.

Os blocos dialógicos

Com base nas leituras sistemáticas do material produzido, especificamente no primeiro encontro da EC2, ao levantarmos os pré-indicadores, notamos que, nas discussões dos pequenos grupos, denominadas discussão intragrupo 1 (DIG1) e discussão intragrupo 2 (DIG2), ocorriam diálogos sobre as perguntas do E.T.2 2 Personagem usado pelos pesquisadores com o objetivo de propiciar uma situação para que os participantes explicassem o que é ser professor a alguém que nada sabe sobre isso. As perguntas do E.T. foram as seguintes: (1) o que é professor?; (2) vocês são professores?; (3) como é que a gente vira professor?; (4) o que vocês estão fazendo aqui hoje? que pareciam constituir um bloco dialógico. Esse BD se caracterizava por um conjunto de falas que mantinham entre si um eixo organizador que, se rompido, poderia prejudicar o entendimento e a apreensão do processo em que os envolvidos produziam suas significações sobre ser professor. Estamos falando de uma estrutura dialógica criada pelo grupo que se traduz como fonte de conhecimento para o investigador de elementos constitutivos importantes dos processos de significação de cada participante do diálogo, seja com a participação do pesquisador, seja entre os próprios participantes. Essa estrutura dialógica é produzida na relação do grupo, constituída por múltiplas mediações que atravessam as falas dos sujeitos e são objetivadas nas significações do grupo.

Sobre a importância e a qualidade dos diálogos que podem ser gerados entre o pesquisador e os participantes e entre os próprios participantes, nas pesquisas de base qualitativa, Rey (2011REY, G. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2011., p. 85) nos alerta que “neles se desenvolve a identificação dos participantes com o problema, assim como a identificação deles como grupo”. O autor entende que “a trama de diálogos no curso da pesquisa adquire uma organização própria, em que os participantes se convertem em sujeitos ativos que não só respondem às perguntas formuladas pelo pesquisador, mas constroem suas próprias perguntas e reflexões” (Rey, 2011REY, G. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2011., p. 86). Ressalta, ainda, que a posição ativa assumida pelos participantes permite o compartilhamento de reflexões muitas vezes inauguradas naquele momento.

De alguma maneira, as perguntas do E.T. movimentaram o grupo de professores, deram o eixo inicial, não apenas para apresentar respostas prontas a ele, mas para instigar os participantes a repensar suas respostas e compartilhá-las com o grupo.

Fica claro que as perguntas integravam esse movimento, visto que foram intencionalmente pensadas para isso. Contudo, surgiram outras falas nos grupos que, como aquelas dos pesquisadores, carregavam muitas e complexas intencionalidades. Essas falas, que constituíam as questões iniciais, apareceram como desdobramentos, uma vez que os sujeitos participavam a seu modo, com base em suas significações, estabelecendo outras reflexões que compuseram um bloco de significações que não podem ser fragmentadas, para que não se perca o processo dialógico composto pelas significações, o que levaria a comprometer a apreensão historicamente produzida nesse espaço grupal.

Quando falamos de produção de diálogo, nesse caso específico, remetemo-nos a um processo ativo de ouvirmos o outro atentamente, de sermos afetados e de direcionarmos a conversa com uma intencionalidade que considera as falas do grupo como um todo. O que estamos dizendo é que o diálogo produzido na situação de grupo tem mediação determinada, inicialmente, por uma intencionalidade do pesquisador e, posteriormente pelas mediações dos participantes.

Ao pensarmos em BD, devemos ter em mente as unidades categoriais que compõem os pares dialéticos “pensamento e linguagem” e “sentido e significado”, unidades de contrários que, mantidas suas especificidades, são dependentes.

A intencionalidade e a carga emocional das falas que compõem o BD expressam, em alguma medida, o modo de pensar, sentir e agir daqueles que falam. Esse modo revelador da trama se estabelece no grupo concreto, com pessoas, questões e condições específicas estabelecidas naquele espaço e naquele tempo histórico daquele grupo singular.

Partindo da relação inter e intrasubjetiva que ocorre no diálogo, como o estamos concebendo, os participantes do grupo podem reorganizar seu pensamento e, ao mesmo tempo, suas falas, baseadas em múltiplas e complexas mediações do processo de significação produzido no interior do grupo, entendendo mediação como um elemento que viabiliza e organiza a relação humana. Afirmamos isso com base em Vygotsky (2009VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2009.), em seu livro A construção do pensamento e da linguagem.

Das discussões ocorridas nos grupos, destacamos alguns trechos nos quais é perceptível que os professores, mediante o empenho em elaborar a resposta para o E.T. e se posicionar diante do grupo, sinalizam qualidades de participação diferenciada. Isso é essencial ao pesquisador; é algo que só poderá ser notado e avaliado a posteriori, no processo analítico-interpretativo. No movimento de participação diferenciada dos professores e gestores, foram identificadas falas que mobilizaram o grupo a avançar no entendimento de determinados assuntos. Essas falas foram nomeadas “questões mediadoras”.

A questão mediadora

A questão mediadora aparece como eixo organizador de um BD, como fenômeno a ser apreendido em sua totalidade, a fim de entender a dinâmica constitutiva do grupo. Isso acarreta, como procedimento de análise, o cuidado de, ao articular os pré-indicadores, considerar a totalidade do diálogo do grupo, não perder os múltiplos vínculos estabelecidos entre as falas, entendendo que cada uma só será compreendida à luz do todo, das falas produzidas em torno do eixo organizador (a QM), observando as múltiplas e complexas mediações.

Desse modo, a QM se constitui como elemento que afeta a dinâmica do grupo, que gesta um movimento inicial, mediante o qual os sujeitos históricos e individuais, participantes do grupo, foram apropriando-se, reconfigurando-se e ressignificando suas falas, criando um movimento em que todos se constituem mutuamente.

Foram essas mediações que favoreceram os movimentos de reflexão do grupo e, ainda, o processo de identificação das contradições, baseadas nas significações produzidas naquele espaço intersubjetivo, contradições de difícil percepção no discurso aparente, podendo ser, em uma análise pífia, confundidas com falas ambíguas ou incoerentes, próprias do ser humano.

As relações humanas, compreendidas como sociais e históricas, são constituídas na realidade dialética, marcadas pela contradição e objetivadas por meio de diferentes mediações. Essas mediações se interpõem nas relações humanas como um centro organizador e gerador de conflitos e novas contradições. Segundo Severino (2002SEVERINO, A. J. Educação, sujeito e história. São Paulo: Olho D’Água, 2002.), mediação é “uma instância que relaciona objetos, processos ou situações entre si; a partir daí o conceito designará um elemento que viabiliza a realização de outro que, embora distinto dele, garante a sua efetivação, dando-lhe concretude” (Severino, 2002SEVERINO, A. J. Educação, sujeito e história. São Paulo: Olho D’Água, 2002., p. 44).

No processo dialógico de pensar o que e como responder às questões do E.T., no primeiro encontro da EC1, os participantes elaboraram diferentes significações para expressar o que sabiam, revelando, assim, elementos constitutivos da docência com detalhes pouco claros até o momento, inclusive para eles.

Durante o processo analítico dos diálogos, constatamos que os docentes foram produzindo falas que geraram novas movimentações na dinâmica do grupo. Essas falas foram identificadas por nós como questões mediadoras, por provocarem, de algum modo, um movimento de reflexão e avanço na compreensão da realidade, considerando que essa situação de diálogo experimentada foi provocada intencionalmente, por meio do planejamento do grupo, almejando a produção de significações e ressignificações sobre ser professor.

Ressaltamos que não basta uma boa fala para propiciar desenvolvimento, com o propósito de ampliar o entendimento sobre a realidade, de “desalienar” e de transformar o sujeito e a realidade circunscrita a ele, quando sabemos que o sujeito é síntese de múltiplas determinações. Sendo assim, devemos considerar em nossas análises os diferentes determinantes históricos, sociais, culturais e individuais que se condensam e que compõem um determinado grupo nas falas dos participantes, entre eles, os pesquisadores. Portanto, as condições objetivas e subjetivas (consignas, formas de condução, tipo de papéis dos participantes, relações hierárquicas, instituição etc.) são elementos a serem apreciados na análise.

Enfatizamos que, em nosso estudo, partimos do micro, ou seja, das falas (pré-indicadores) que constituem o BD e expressam certos movimentos particulares, mas são sociais ao mesmo tempo. Logo, partimos desse particular, das falas que se chocam, complementam-se e se negam, para o entendimento de sua constituição na relação com a totalidade.

Podemos ouvir algo e simplesmente concordar ou discordar, sem elaborarmos explicações reflexivas. Isso ocorre por vários motivos: falta de interesse, receio de exposição, desânimo, não entendimento do assunto, entre outros. Agimos “no automático”, aceitando ou discordando de algo e permanecendo na superficialidade ou na zona de conforto.

Nosso entendimento é que a QM pode quebrar a barreira da zona de conforto, por conter a intencionalidade de provocar o outro para entrar no debate. Portanto, percebemos nela um diferencial em relação a outras questões que permitem deixar a discussão no nível da aparência. A QM possibilita “uma análise não unilateral, baseada não apenas no uso dos conceitos de confirmação e legitimação” (Cury, 1985CURY, C. R. J. Educação e contradição. São Paulo: Cortez , 1985., p. 32). Isso será esclarecido no processo analítico que compõe os NS.

Expomos no Quadro 1 a organização, seguida pelo processo analítico, dos dados utilizando BDs e QMs.

Quadro 1
Organização dos dados

Vale ressaltar, no processo analítico-interpretativo dos BDs, a fim de se produzirem os indicadores, o movimento que a QM provocou no grupo até os participantes chegarem a uma síntese provisória sobre o assunto debatido. Percebemos o empenho dos participantes em elaborar uma resposta ao E.T. que explicasse o que é ser professor de uma maneira simples, para que qualquer pessoa, até mesmo uma criança, sem a linguagem técnica da pedagogia, pudesse entender.

Podemos dizer, respaldados pelo método MHD, que buscamos apreender o processo de produção das significações geradas naquele conjunto de ideias que indicam uma síntese precária e provisória do grupo sobre determinado conteúdo, mas que revelam sua materialidade ao assimilarmos a totalidade do pensamento. Essa síntese coletiva é que apontará um ou mais indicadores, os quais carregarão a materialidade das significações do grupo, analisadas e interpretadas pelo pesquisador, de modo a se aproximar cada vez mais da realidade constituída pelas significações dos sujeitos que a vivem, isto é, da realidade concreta.

Vimos que a organização das falas dos sujeitos em BDs, com base em uma QM que assume o papel de eixo organizador das significações criadas por determinado grupo, parece ser relevante nas pesquisas com dados produzidos em situação coletiva de discussão que tenha um número reduzido de pessoas, conforme observamos e constatamos.

A fala de um, no grupo de discussão, é constituída pela mediação da fala dos demais participantes, e esta é constituída pela mediação da fala de cada um, movimento que representa uma dinâmica própria do grupo. A QM pode ser - e percebemos que cumpre esse papel em algumas situações - um instrumento favorecedor da apreensão do movimento dialético que constitui o grupo e os seus participantes.

A QM articula falas/conteúdos em um BD, ao mesmo tempo que os BDs nos indicam a existência da QM. A apreensão do BD favorece a não fragmentação de falas que compõem um diálogo que, se rompido, correria o risco de perder o movimento constitutivo de produção de significações daquele grupo, favorecedoras ou não de desenvolvimento dos participantes, conforme explicaremos adiante.

Em síntese, ao nos depararmos com os diálogos produzidos no grupo, verificamos a necessidade de colocar uma lente de aumento em alguns momentos, por indicarem uma determinada qualidade de articulação entre falas/significações que parece ter como um dos elementos formadores uma mediação específica, uma QM (fala/significação de alguém) que logo a seguir poderá ou não ser substituída por outra.

Se não considerarmos a especificidade desse movimento, ou da QM, corremos o risco de ignorar uma trama constitutiva que deverá ser apreendida e interpretada à luz do todo, tanto para que possamos levantar teses sobre o que movimenta o processo de significações de um grupo quanto para que possamos, no momento de análise e de interpretação, considerar a dialética e a específica articulação entre as falas como algo a ser observado no processo de organização dos pré-indicadores e dos indicadores.

Na sequência do processo de organização e de análise dos dados, prosseguimos com o agrupamento dos indicadores e a produção dos núcleos de significação. Cabe destacar que o agrupamento de indicadores em um conjunto é feito de acordo com os critérios de “similaridade”, “complementaridade” e/ou “contraposição” (Aguiar; Ozella, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 222-247, 2006.; 2013AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 94, n. 236, p. 299-322, jan./abr. 2013.). Lembramos que esses critérios estão imbuídos no método, portanto, o conjunto de indicadores se constitui ao serem articulados entre si, considerando as múltiplas e complexas mediações, condensadas na totalidade de cada um deles, compondo, assim, uma totalidade mais ampla, um NS. Desse modo, o pesquisador, assegurado pelo rigor teórico-metodológico das categorias do método materialista histórico e dialético, poderá interpretar e explicar a realidade estudada com mais profundidade.

Até o momento, constatamos que a QM é gerada em lugares e momentos específicos no processo de articulação de ideias entre sujeitos em situação de diálogo. Ela ajuda a explicar a dinâmica de mudança qualitativa do pensamento dos sujeitos em situação social de desenvolvimento, isto é, configura-se como um momento inicial gerador de mudanças significativas no modo de pensar, entendendo que a situação social de desenvolvimento pode ser potencializada no processo vivido pelos sujeitos em determinados espaço e tempo, como observamos na pesquisa e na formação proposta pelo grupo.

Vygotsky (2009VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2009.) afirma que a relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasce por meio das palavras. A palavra, desprovida de pensamento, é morta, e o pensamento, não expresso por palavras, permanece obscuro. A relação entre eles não é, no entanto, formada e imutável, surge e modifica-se ao longo do desenvolvimento do ser humano.

Pensamento e linguagem constituem-se mutuamente, são inseparáveis. Todavia, o pensamento não é, em sua totalidade, expresso na linguagem, como em um processo mecanizado de relação causal. Trata-se, pois, de uma relação processual, dinâmica e modificável. Assim, o pensamento pode ou não se concretizar por meio da linguagem.

Vygotsky (2009VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2009.) critica as visões psicológicas em que pensamento e linguagem são vistos ora como elementos isolados, ora como unidade sem diferenciação, ambas fragilizadas pelo caráter dicotômico e imutável. O autor avança na análise do pensamento e da linguagem ao utilizar o método dialético para explicar como ambos se constituem sem, com isso, perder suas especificidades.

Diante dessa explicação, entendemos a QM como possibilitadora da apreensão de movimentos de articulação entre pensamento e linguagem, explicitando assim, a unidade que os condensa e os diferencia ao mesmo tempo. Isso é possível, por meio da identificação da QM em um BD, da apreensão de momentos em que participantes de grupos de discussão produzem seu modo de pensar sobre determinado assunto e, mediante um embate de ideias, conseguem refinar seus pensamentos. Isso não ocorre por acaso. Ocorre porque os integrantes estão engajados em elaborar sínteses acerca de certo assunto de interesse mútuo e são instigados a reelaborar o que pensam e a objetivar, de modo cada vez mais refinado, o que produzem coletivamente: as significações daquele grupo.

Defendemos que a QM oferece condições para reconhecer, mesmo que sutilmente, movimentos de significação, em que o sujeito, afetado pela fala de outros, avança na produção de novos sentidos e significados, reconfigurando seu modo de pensar. Nesse movimento de produzir novas significações em situação dialógica, os participantes do grupo mostram indícios de aprendizagem e desenvolvimento.

O desenvolvimento é “um processo dialético complexo” caracterizado pela “metamorfose ou transformação qualitativa” das funções superiores (Vygotsky, 2007VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 80). Não podemos ter certeza de que houve desenvolvimento dos participantes da pesquisa e da formação do grupo, mas podemos afirmar que houve indícios de existência de desenvolvimento em determinados grupos, ao analisarmos o movimento desencadeado por QMs, sob o prisma da teoria vygotskyana e munidos dos princípios e dos fundamentos do método do MHD. Para estabelecer o que entendemos como indício de existência de desenvolvimento, recorremos ao conceito vygotskyano de zona de desenvolvimento iminente (ZDI), que chama nossa atenção para os processos de desenvolvimento do ser humano que ainda se encontra em fase embrionária, em iminência de se realizarem; não define, portanto, que haverá desenvolvimento. Vygotsky (2007VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 103) afirma que os “processos internos de desenvolvimento” são capazes de se realizar quando o ser humano está em situação de aprendizagem, em colaboração com seus companheiros. De acordo com o pensamento do autor, podemos concluir que a aprendizagem em situação de grupo permite que os participantes penetrem na vida intelectual uns dos outros, favorecendo o desenvolvimento individual e coletivo.

Não pretendemos nos aprofundar no conceito de aprendizagem, mas também não podemos deixá-lo de lado quando falamos de desenvolvimento. Não podemos confundir esses conceitos. O aprendizado, que se dá na relação sempre mediada entre os seres humanos, “desperta vários processos internos de desenvolvimento” (Vygotsky, 2007VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 103), mas não se confunde com ele, ou seja, não há uma relação de identidade entre eles, pois formam uma unidade dialética.

Os participantes, ao debaterem determinado conteúdo em grupo, evidenciaram o que sabiam sobre aquilo, isto é, evidenciaram certa “zona de desenvolvimento real” (Vygotsky, 2007VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.). Sendo o grupo de professores e gestores composto por docentes de diferentes áreas, os participantes tiveram a oportunidade de se confrontar com visões diversas de pessoas com experiências distintas, colocando em xeque o que sabiam e o que não sabiam sobre os assuntos debatidos. Podemos dizer que, no processo de produção de sínteses para representar o que o grupo sabia naquele momento sobre o assunto em questão, novos conhecimentos foram sendo gestados por cada integrante, revelando certa ZDI.

Tentamos apreender em nossas análises, com o recurso da QM, o movimento embrionário gerado no grupo para produzir novos conhecimentos ou novas significações. Em outras palavras, tentamos localizar e apreender o processo em que o grupo, a partir do engajamento de cada integrante, tentou superar a contradição básica entre o que são capazes de dizer acerca de determinado assunto (o que sabem), suas necessidades e desejos (o que gostariam de saber) e as possibilidades do ambiente (o conhecimento oferecido pelo grupo).

Considerações finais

No movimento construído pelos grupos de pesquisa e formação, que contemplaram as significações de cada participante, pudemos identificar que, ao produzirem sínteses do assunto que estavam debatendo, revelaram ter ampliado seus conhecimentos, e, de acordo com o método adotado, essa ampliação de conhecimento reverbera modificações qualitativas na escola e no modo de ser docente, potencializando maior engajamento daqueles profissionais na formação continuada, com vistas a práticas pedagógicas críticas e emancipatórias.

Nessa direção, sugerimos a QM não apenas como procedimento analítico auxiliar de dados forjados no movimento de pesquisa em grupo, mas também como recurso metodológico na própria atividade de processo formativo, como o de pesquisa e formação. A nosso ver, os movimentos provocados pela QM tencionam mobilizações críticas, com o intuito de criar e evidenciar possíveis transformações na realidade - como a constatação, no movimento de percepção do grupo pesquisado, da falta de um trabalho coletivo efetivo na escola, no qual haja planejamento e acompanhamento das ações pedagógicas do cotidiano - e, ao mesmo tempo, apontar a necessidade e o interesse em construir um trabalho coletivo que fortaleça ainda mais os vínculos entre os pares, com intencionalidade teórica de provocar situações de desenvolvimento e de aprendizagem.

Não podemos afirmar, a priori, que a consigna do pesquisador ou do formador vai mobilizar o grupo de maneira a provocar engajamento e participação dos integrantes, isto é, se a fala do pesquisador é ou será uma QM. A QM se constitui na relação do grupo, no embate dialógico, portanto só se revela a posteriori, no processo de análise e interpretação dos dados. Podemos até planejar possíveis QMs, no entanto, sua função mediadora só se realizará na articulação dialética das significações produzidas no e pelo grupo.

Com base na pesquisa, podemos dizer que a QM se configura como um potente recurso metodológico nos processos formativos, ao ser reconhecida e utilizada para movimentar grupos na produção de conhecimento sistematizado, em colaboração crítica (Magalhães, 2011MAGALHÃES, M. C. C. Pesquisa crítica de colaboração: escolhas epistemo-metodológicas na organização e condução de pesquisas de intervenção no contexto escolar. In: MAGALHÃES, M. C. C.; FIDALGO, S. S. (Org.). Questões de método e de linguagem na formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2011. p. 13-40.) entre diferentes parceiros, considerando a ZDI instaurada nos espaços sociais de aprendizagem e desenvolvimento. Contudo, consideramos imprescindível aprofundar e aperfeiçoar os estudos sobre o uso da QM na formação continuada.

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  • VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2009.
  • 1
    Psicóloga e docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
  • 2
    Personagem usado pelos pesquisadores com o objetivo de propiciar uma situação para que os participantes explicassem o que é ser professor a alguém que nada sabe sobre isso. As perguntas do E.T. foram as seguintes: (1) o que é professor?; (2) vocês são professores?; (3) como é que a gente vira professor?; (4) o que vocês estão fazendo aqui hoje?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2018
  • Aceito
    10 Jul 2018
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