Acessibilidade / Reportar erro

Formação docente em Timor-Leste: prática e reflexão sobre gêneros discursivos e ensino

Teacher training in Timor Leste: practices and considerations on speech genres and teaching

Resumo:

Relato de experiência de uma prática de produção textual em língua portuguesa no ensino superior de Timor-Leste desenvolvida com alunos do 5º semestre do curso denominado Classe de Extensão - Formação de Professores da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL). A turma é composta de professores e futuros professores do ensino básico de Timor. Para esses sujeitos, o trabalho em/com a língua portuguesa configura-se um desafio, pois, apesar de ser estabelecida como língua oficial e de instrução no país, muitos timorenses não a dominam. Tendo como objetivo o ensino de produção de textos em língua portuguesa, realizou-se uma sequência de atividades fundamentadas no conceito de gêneros do discurso e nos aspectos sócio-históricos presentes no contexto dos alunos. Ainda sem um conhecimento claro sobre esse conceito, provavelmente resquício de uma educação pautada na gramática da língua, foi possível aos alunos a compreensão da metodologia utilizada e a reflexão sobre adequações à prática docente.

Palavras-chave:
gêneros discursivos; produção textual; língua portuguesa; Timor-Leste

Abstract:

This is an experience report on a portuguese-writing activity carried with Timor Leste’s higher-education students in the 5th semester of a course called: Further-degree Program - Teacher Training at the National University of Timor Leste (Classe de Extensão - Formação de Professores da Universidade Nacional Timor Lorosa’e). Both active and prospective east-timorese teachers for the basic education level took part in the classes. However, dealing with portuguese - as a communication tool and as a teaching subject - posed a challenge to them. That is because many timorese do not fully command the idiom, despite being the country’s official and instructional language. Thus, aiming to teach the writing skill in portuguese, a series of classroom activities were developed, underpinned in the concept of speech genres and on the socio-historical aspects imposed by the context of the student-teachers. Though they did not fully grasp the concept, which was likely a consequence of a grammar-oriented education, they managed to understand the methodology employed and to assess the necessary changes in their teaching practices.

Keyword:
speech genres; writing; portuguese language; Timor Leste

Introdução

Timor-Leste, país situado no sudeste asiático, foi, durante mais de 400 anos, colônia portuguesa. Dos aspectos remanescentes da cultura lusófona no país, pode-se destacar a presença da língua portuguesa, doravante LP, estabelecida como oficial junto à língua tétum,1 1 O tétum é a língua co-oficial de Timor ao lado do português. É também a língua veicular utilizada entre os timorenses possuidores de diferentes línguas maternas. É considerada como a língua que entrelaça e permite a interação entre os falantes das demais línguas presentes no país, ou seja, a maioria da população timorense é, no mínimo, bilíngue, falando, além de sua língua local, o tétum. em 2002, após o processo de restauração da independência timorense. Porém, atualmente, grande parte da população de Timor tem dificuldade em comunicar-se em português, devido, sobretudo, à escassez de esforços por parte de Portugal em disseminar a cultura e a língua portuguesa no país até a independência em 1974 (Almeida, 2012ALMEIDA, N. C. Para a (re)introdução da língua portuguesa em Timor-Leste. In: TEIXEIRA E SILVA, R.; YAN, Q.; ESPADINHA, M. A.; LEAL, A. V. (Org.). III SIMELP: a formação de novas gerações de falantes de português no mundo. Macau: Universidade de Macau, 2012. p. 29-42.; Soares, 2014SOARES, L. M. M. C. V. P. Línguas em Timor-Leste: que gestão escolar do plurilinguismo? 2014. 579 f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Universidade de Aveiro, Lisboa, 2014.) e à proibição da LP em Timor-Leste durante os 24 anos de domínio indonésio (1974-1999).

Os elementos constituintes da história de Timor corroboraram para a atual dificuldade da população em utilizar a LP e, ao mesmo tempo, foram decisivos para a escolha do português como língua oficial do país. Por conta da relação distante que Portugal estabeleceu com Timor nos quatro primeiros séculos de colonização, não houve, por parte da metrópole, qualquer imposição no que tange à língua, o que proporcionou uma relação de convivência linguística harmoniosa entre o português e o tétum (Corte-Real; Brito, 2006CORTE-REAL, B. de A.; BRITO, R. H. P. de. Aspectos da política linguística do Timor Leste, desvendando do contra-correntes. In: BASTOS, N. B. (Org.). Língua Portuguesa: reflexões lusófonas. São Paulo: EDUC, 2006. p. 123-131.). Por outro lado, com a instauração do domínio indonésio no país, foi instituída a obrigatoriedade do uso da língua indonésia, juntamente com a proibição do uso do português. Além disso, com o intuito de construir uma identidade comum entre o país dominado e o dominador, estabeleceu-se um sistema educacional que propagava a ideologia e a língua indonésias, ao mesmo tempo que suprimia a cultura timorense. Esse cenário opressor concedeu à LP o status de língua da resistência ao domínio indonésio, pois era utilizada pelas organizações timorenses que se opunham à presença indonésia em suas comunicações internas e no contato com o exterior.

Esses fatores históricos constituem a relação complexa dos timorenses com a LP - uma relação afetiva e identitária que tem como pano de fundo um abismo no que diz respeito ao uso efetivo dessa língua. Na esfera educacional, os reflexos desse cenário tornam-se mais visíveis.2 2 Conforme preconiza a Lei de Bases da Educação de Timor-Leste (nº 14/2008) em seu artigo 8º: “As línguas de ensino do sistema de ensino timorense são tétum e o português”. Professores e alunos encontram-se em um contexto linguístico problemático: falantes nativos de determinada língua materna, escolarizados - a depender da idade - em português ou na língua indonésia e falantes cotidianos de tétum; ou seja, deparam-se com obstáculos inerentes a um contexto plurilíngue em que o português não é língua materna da maioria desses sujeitos, salvo raras exceções (Brito, 2010BRITO, R. H. P. Temas para a compreensão do atual quadro linguístico de Timor-Leste. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos >. Acesso em: 19 fev. 2015.
http://seer1.fapa.com.br/index.php/arqui...
; Soares, 2014SOARES, L. M. M. C. V. P. Línguas em Timor-Leste: que gestão escolar do plurilinguismo? 2014. 579 f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Universidade de Aveiro, Lisboa, 2014.).

As diretrizes curriculares atuais de Timor-Leste reconhecem a multiplicidade linguística presente no país e apontam a importância da(s) língua(s) que o aluno domina no processo de aquisição/desenvolvimento de outras, como o português. Sendo assim, as línguas que integram o repertório linguístico dos alunos participam desse processo, em um plano progressivo - da pré-escola, com a utilização da língua tétum e das demais línguas maternas,3 3 De acordo com o Decreto-Lei nº 3/2015, que aprova o Currículo Nacional de Base da Educação Pré-Escolar em Timor-Leste, em seu artigo 17, a escolha da língua de interação entre professor e aluno deve ser orientada pela progressão linguística do tétum para o português, “utilizando-se a primeira língua das crianças, quando necessário, para garantir uma comunicação eficaz”. ao 3º ciclo do ensino básico, quando a orientação é que o ensino seja realizado nas línguas oficiais do país, com a carga horária da disciplina de língua portuguesa superior à da disciplina da língua tétum.

Entretanto, ainda há, em Timor-Leste, uma enorme distância entre aquilo que preconizam os documentos que prescrevem as atividades pedagógicas no ensino básico e a realidade em que atuam os docentes nos ambientes de ensino. Os motivos para tal distanciamento são vários: sobreposição de orientações, tendo em vista o caráter e a urgência de constantes mudanças visando à melhoria da educação timorense; desconhecimento dos docentes em relação a essas orientações (seja pela sobreposição de orientações ou por deficit na formação inicial e continuada); utilização de documentos criados em contextos sem, muitas vezes, considerar a realidade linguística timorense;4 4 O Currículo Nacional do Ensino Básico dos 1º e 2º Ciclos, elaborado em 2014, contou com a participação de docentes internacionais e timorenses e o Programa de Português do 3º Ciclo do Ensino Básico (2010), com o apoio da Universidade do Minho, em Portugal. e, além disso, fatores externos, que interferem sobremaneira no desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem (infraestrutura inadequada, número elevado de alunos nas salas de aula etc.).

Para a mudança desse quadro, desde eleita língua oficial e de instrução, o governo de Timor-Leste tem realizado ações para (re)introduzir5 5 Utiliza-se o termo (re)introduzir em conformidade com o entendimento apresentado por [xref ref-type="bibr" rid="r1"]Almeida (2012[/xref]), para quem o uso desse termo pretende retratar a realidade de uma minoria de timorenses que adquiriu algum grau de escolarização durante a reduzida dinâmica do ensino da LP no período de administração portuguesa, reservando o emprego de introdução para o caso da maioria dos cidadãos timorenses que, apesar de não desconhecerem o português, não foram anteriormente escolarizados nessa língua. a LP nos contextos escolares, ações que demandam estratégias voltadas à formação inicial e continuada de docentes timorenses. Para tanto, conta com o auxílio de cooperações internacionais, como a brasileira. Por meio do Programa de Qualificação de Docentes e Ensino de Língua Portuguesa em Timor-Leste (PQLP),6 6 Programa de Qualificação de Docentes em Língua Portuguesa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cujos principais eixos de atuação eram: 1) formação inicial e continuada dos docentes, 2) fomento ao ensino da língua portuguesa e 3) apoio ao ensino superior (disponível em: http://pqlp.pro.br/ Acesso em 28 de out. de 2017). atuei como docente no país durante dois anos em diversos níveis de ensino, sobretudo na formação inicial e continuada de professores. Durante essa experiência, percebi que, dentre as dificuldades que os timorenses apresentam no que diz respeito à LP, a produção de textos ocupa lugar de destaque. As fragilidades em termos de domínio dessa competência linguística e comunicativa acentuam-se e tornam-se particularmente visíveis na esfera docente, pois, nesse caso, a prática de produção textual é uma das habilidades que os professores não só devem dominar, como também devem ser capazes de ensinar aos seus próprios alunos.

Tendo em vista esse contexto, apresenta-se a seguir o relato de uma experiência pedagógica realizada em uma turma do 5º semestre do curso denominado Classe de Extensão - Formação de Professores da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL). Nessa proposta, foram realizadas estratégias metodológicas visando à prática de produção textual em LP como língua não materna, em uma abordagem discursiva, partindo-se, para tanto, de textos reais presentes na sociedade timorense.

Caracterização da escola e da turma

A UNTL está localizada na capital de Timor-Leste, Díli. Foi fundada em 2000, logo após a independência do país, e atualmente conta com seis campi, nove faculdades e sete centros de pesquisa. A UNTL caracteriza-se como multilíngue - as aulas são ministradas em língua tétum, indonésia e portuguesa. Na Faculdade de Direito e nos departamentos de Formação de Professores do Ensino Básico e de Língua Portuguesa da Faculdade de Educação, Artes e Humanidades (Feah), as aulas são ministradas em LP.

A experiência docente que será apresentada foi realizada com uma turma da Classe de Extensão do Departamento de Formação de Professores da UNTL. Essa classe é composta por turmas cujas aulas presenciais se realizam no período noturno, atendendo também alunos que já atuam como docentes nas escolas de Timor-Leste. Esse curso habilita os professores formados para atuarem nos três ciclos do ensino básico do país.7 7 O ensino básico em Timor-Leste integra três ciclos: o 1º com quatro anos de duração, o 2º com dois e o 3º com três.

A grade curricular da Classe de Extensão, semelhante à do curso regular de formação de professores desse mesmo departamento, abarca conteúdos concernentes às línguas portuguesa e tétum, à matemática, às ciências naturais e sociais e às ciências da educação. Em relação às disciplinas voltadas ao estudo da LP, nos cinco primeiros semestres do curso há, respectivamente: Língua Portuguesa I; Língua Portuguesa II; Língua Portuguesa III; Língua Portuguesa IV; e Língua Portuguesa V. No quinto semestre do curso, há a disciplina Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa.

A análise dos conteúdos presentes nas ementas dessas disciplinas, com foco nas questões de produção de textos em LP, mostra que há, nos dois primeiros semestres do curso, menção aos seguintes gêneros escritos: relato de atividades, carta, carta formal, bilhete, currículo profissional e guia turístico. Nas ementas das disciplinas Língua Portuguesa III, Língua Portuguesa IV e Língua Portuguesa V, não há menção a gêneros escritos.8 8 A disciplina Língua Portuguesa III destina-se ao estudo da classe gramatical dos verbos, a Língua Portuguesa IV foca na sintaxe e a Língua Portuguesa V, na semântica. No sexto semestre do curso, a disciplina Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa aborda questões relacionadas aos processos de ensino e aprendizagem de LP, apresentando, como um de seus objetivos, “traçar percursos metodológicos: de oralidade, leitura, escrita e funcionamento da língua” (UNTL, 2014UNIVERSIDADE NACIONAL TIMOR LOROSA’E (UNTL). Projeto Político Pedagógico do Curso de FPEB: unidade curricular de ECTS da UNTL e as equivalências ao padrão mínimo do Ministério da Educação. Díli, 2014., p. 160).

Quando ministrei a disciplina Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, o reflexo da ausência de trabalho com gêneros escritos em LP, até então, na formação dos professores e futuros professores suscitou a elaboração da experiência que será apresentada a seguir, com foco na produção escrita em uma perspectiva que considera a língua em uso, na interação entre os falantes.

A turma em que realizei a proposta didática era composta por 33 alunos cuja faixa etária era compreendida entre 23 e 55 anos. A maioria desses alunos apresentava bom nível de proficiência oral em LP, principalmente nos gêneros primários utilizados na comunicação cotidiana.9 9 De acordo com [xref ref-type="bibr" rid="r3"]Bakhtin (2011[/xref]), os gêneros primários realizam-se em condições mais simples da vida, enquanto os gêneros secundários surgem nas condições de um convívio social mais organizado e desenvolvido. Conforme [xref ref-type="bibr" rid="r8"]Schneuwly (2004[/xref]), a produção de um gênero secundário implica, ao aprendente de uma língua, dispor de instrumentos já complexos. Nas palavras do autor: “Esse instrumento é retomado e reutilizado para construir uma nova função no gênero secundário, que poderíamos chamar de mudança de perspectiva no texto (acontecimento inesperado etc.), função que não é mais exatamente a mesma que nos gêneros já dominados” ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]Schneuwly, 2004[/xref], p. 30). Contudo, em se tratando da proficiência escrita nesses mesmos gêneros, além das questões referentes à estrutura e à organização textual em LP, percebi que havia dificuldades comuns aos estudantes, sobretudo em relação ao como escrever os textos que oralmente eram capazes de produzir.

Fundamentação teórica

A experiência didática de produção de textos escritos teve como embasamento teórico-metodológico os estudos de Bakhtin e integrantes do Círculo de Bakhtin. À luz da perspectiva desses estudiosos, linguagem e vida constituem-se mutuamente, o que torna impossível dissociá-las. Ainda que Bakhtin e os integrantes do seu Círculo não tenham tido como foco central a temática educacional, pode-se, nas reflexões desses estudiosos, encontrar apontamentos relacionados com a questão da didática das línguas - que servem, inclusive, ao ensino de uma língua não materna, doravante, LNM.

O essencial desses métodos é familiarizar o aprendiz com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concreta. Assim, uma palavra nova só é introduzida mediante uma série de contextos em que ela figure. O que faz com que o fator de reconhecimento da palavra normativa seja, logo de início, associado e dialeticamente integrado aos fatores de mutabilidade contextual, de diferença e de novidade. [...] Em suma, um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua, isto é, como uma forma sempre idêntica a si mesma, mas na estrutura concreta da enunciação, como um signo flexível e variável. (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 98).

Na perspectiva apontada por Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), a forma da língua (sinal) inserida em um contexto e em uma situação concreta de uso adquire sentido, constituindo um signo linguístico. A linguagem é permeada por esses signos, os quais são produzidos nas esferas sociais em que interagem os sujeitos, refletindo e refratando as ideologias construídas e compreendidas por determinado grupo social. As infinitas possibilidades de sentido do signo linguístico são observadas na relação dos sujeitos com sua língua materna, pois, para o falante nativo de uma língua, a significação (signo) e o reconhecimento (sinal) desse signo estão dialeticamente apagados. De acordo com Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 104), “a palavra nativa é concebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira.” Ao se deslocar o signo linguístico do contexto em que é utilizado, como nas situações de ensino e aprendizagem de uma LNM, há a “identificação de um sinal, não a descodificação de um signo, pois esse é compreensível juntamente com o contexto de enunciação partilhado pelos sujeitos falantes de uma língua” (Guimarães, 2015GUIMARÃES, J. E. Olhar dialógico para o ensino de língua portuguesa em Timor-Leste.Revista Advérbio, Cascavel, v.10, n. 20, p. 120-135, 2015., p. 123).

No intuito de aproximar os sujeitos aprendentes de uma LNM dos sentidos possíveis do signo linguístico enquanto elemento que reflete e refrata uma realidade, propus, com base em Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), que o material utilizado nas aulas fosse representativo de situações reais de comunicação entre os sujeitos sociais. A materialização dessas interações ocorre por meio do enunciado, unidade concreta da comunicação social; elo na cadeia discursiva humana. Sua constituição se dá pelo material verbal (linguístico) e o extraverbal (contexto de produção e interlocutores). De acordo com Bakhtin (2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306., p. 313), “o enunciado em sua plenitude é enformado como tal pelos elementos extralinguísticos (dialógicos), está ligado a outros enunciados. Esses elementos extralinguísticos (dialógicos) penetram o enunciado também por dentro.” E, ainda seguindo a tese do autor, “o texto [enunciado concreto] é o dado (realidade) primário e o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306., p. 319).

Devido ao uso em determinada esfera social, os enunciados estabilizam-se relativamente, dando origem aos gêneros do discurso. Quando os sujeitos se comunicam, sempre o fazem em um gênero. Nas palavras de Bakhtin (2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306., p. 283):

Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível.

Tendo como norte esse entendimento, ao se pensar nas questões de ensino-aprendizagem de línguas, mostra-se pertinente a ordem metodológica para o ensino da linguagem cunhada por Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), a qual deve partir de sua relação intrínseca com a vida - dos usos da linguagem por meio dos gêneros que “nos são dados quase da mesma forma que nos é dada e língua materna, a qual dominamos livremente até começar o estudo teórico da gramática” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306., p. 282) -, e não do estudo da estrutura da língua, como se convencionou por meio de métodos tradicionais de ensino.

Vale ressaltar que o trabalho com os gêneros do discurso (enunciados e seus tipos) na esfera pedagógica não se configura como indicativo de exclusão dos estudos gramaticais. No que tange ao contexto de ensino de uma LNM, conforme Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 107), “a construção de um sistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispensável e importante no processo de deciframento e de transmissão de uma língua estrangeira”. Dessa forma, o que se propõe é o estudo de ambas as dimensões (linguística e discursiva) em sua complementaridade.

O ensino de produção textual, com foco nos gêneros discursivos e à luz dessa perspectiva, propõe um movimento que parte do estudo destes - que, por sua natureza social, apresentam aspectos (forma composicional, tema e estilo) que são reconhecidos nas situações de comunicação - para a análise contextualizada dos signos e das estruturas linguísticas empregadas na construção do texto escrito. Nesse sentido, a produção de textos no processo de ensino-aprendizagem de LNM busca colocar o sujeito aprendente na posição de enunciador, e não de mero reprodutor de discursos, alguém capaz de produzir significados a partir da língua escrita, atendendo, em menor ou maior grau, suas necessidades comunicativas nessa modalidade.

Descrição da experiência

Diante da já mencionada dificuldade dos estudantes timorenses em produzir textos em LP e da escassez de orientações voltadas ao ensino da escrita no currículo do curso de formação de professores do ensino básico de Timor na UNTL, durante minha experiência como professora da cooperação brasileira integrando o PQLP/Capes, realizei um trabalho didático cujo objeto de ensino foram gêneros escritos. O objetivo principal dessa proposta foi possibilitar trocas de experiências entre os participantes para o aprofundamento de reflexões sobre o ensino, especialmente no que se refere ao desenvolvimento de estratégias para a produção de textos na escola, ampliando o repertório de práticas de ensino de LP no contexto timorense.

O caminho traçado para promover tais reflexões contou com o desenvolvimento de uma sequência de atividades, elaborada a partir dos estudos de Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J.; NOVERRAZ, M. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro . Campinas: Mercado de Letras , 2004. p. 95-128.), na qual os alunos vivenciaram uma metodologia de produção de textos com foco em determinados gêneros discursivos escritos. Dessa forma, realizei um movimento de formação que parte da vivência da metodologia proposta para a reflexão dessa experiência e das possibilidades de utilizá-la na prática pedagógica.

A escolha dos gêneros que integraram a sequência de atividades propostas pautou-se nos seguintes critérios: gêneros socialmente reconhecidos pelos alunos e escritos em LP. Nessa etapa de seleção, deparei-me com um problema advindo da característica da LP em Timor: apesar de língua oficial, é utilizada nesse país, sobretudo, nas esferas administrativas e nos ambientes de educação formal. Por conta disso, os gêneros escritos de circulação mais comum entre os timorenses são nas línguas tétum e/ou indonésia. Assim, a escolha dos textos foi orientada apenas por gêneros socialmente reconhecidos pelos alunos: bilhete, convite, receita, anúncio publicitário, anúncio de procura-se, anúncio de emprego, notícia e e-mail. Para a seleção de textos escritos em LP nesses gêneros, recorri àqueles produzidos no contexto brasileiro.

O projeto didático teve duração de um mês. Os quatro encontros, de 1h30 cada, ocorreram uma vez por semana. A seguir, relato as atividades realizadas em cada aula.

1ª aula: Apresentei aos alunos a proposta didática de produzir textos em LP. Expliquei que essa produção seria resultado de um processo que daria início nessa primeira aula e que passaria por algumas etapas antes da produção final. Em seguida, dividi os alunos da turma em oito grupos e entreguei a cada grupo um texto em LP. Cada texto estava escrito em um determinado gênero e preservava características de forma e conteúdo tal qual seu uso social: bilhete, convite, receita, anúncio publicitário, anúncio de procura-se, anúncio de emprego, notícia e e-mail. Apesar de os textos entregues aos alunos terem sido produzidos e circularem socialmente no Brasil, houve, por parte deles, o reconhecimento dos gêneros e de sua função social.

Após uma primeira análise e identificação dos textos, solicitei que cada grupo respondesse às seguintes perguntas: Por que esse texto foi escrito? Para quem esse texto foi escrito?

À medida que os grupos foram socializando suas respostas, coloquei-as por escrito no quadro. Em seguida, juntos, pudemos ver a finalidade dos textos em uma situação real de comunicação e o motivo pelo qual cada um deles foi escrito. Após essa primeira análise, pedi que os alunos destacassem nos textos as palavras que não compreendiam. Consoante ao ensino de uma LNM, havia várias palavras cujos significados os alunos desconheciam. Então, à medida que cada grupo as apresentava, eu procurava explicar seu significado relacionando-o à situação específica de comunicação no gênero em estudo, buscando, assim, que eles compreendessem os signos linguísticos empregados.

Ao final da aula, solicitei que cada grupo procurasse um texto, como o que havia sido analisado, em seu cotidiano e trouxesse para a aula na semana seguinte.

2ª aula: Os textos trazidos pelos alunos estavam escritos em língua tétum. Iniciamos a análise desses textos pelo plano discursivo e constatamos que apresentavam a mesma finalidade discursiva dos textos em português que havíamos estudado na aula anterior: no bilhete e no e-mail, havia o objetivo de transmitir uma mensagem e, para isso, eram utilizadas poucas palavras e linguagem clara; no convite e no anúncio publicitário, havia uma tentativa de convencimento do leitor a alguma coisa; na receita, algo estava sendo ensinado e, para isso, a linguagem utilizada era mais didática; no anúncio de procura-se e no anúncio de emprego, havia uma minuciosa descrição daquilo que se procurava ou se oferecia e dados de contato; e na notícia, havia a transmissão de uma informação, com linguagem clara, objetiva e direta. Organizei essas informações no quadro e classifiquei-as de acordo com a tipologia textual: narração, argumentação, instrução e descrição. Para tanto, baseei-me no agrupamento de gêneros proposto por Schneuwly, Dolz e Noverraz (2004SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J.; NOVERRAZ, M. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro . Campinas: Mercado de Letras , 2004. p. 95-128.).10 10 Diante da diversidade e do grande número de gêneros existentes, os autores propõem que determinados gêneros sejam agrupados para a realização da progressão metodológica. Esse agrupamento é orientado por três critérios que são mobilizados na apropriação que os sujeitos fazem dos gêneros nas situações de comunicação: domínio social de comunicação, capacidades de linguagem envolvidas e tipologias textuais existentes.

Importa ressaltar que nessa etapa foi possível a reflexão acerca do emprego de algumas palavras em língua tétum e dos diferentes sentidos que uma mesma palavra pode comportar. Ao me explicarem o significado de algumas delas, já que a língua tétum não é de meu domínio, solicitei aos alunos que realizassem tal explicação de acordo com o significado da palavra no contexto em que estava sendo empregada. Esse exercício expandiu a reflexão sobre os significados dessas palavras para outras circunstâncias.

3ª aula: Solicitei que os alunos retornassem aos textos em LP entregues na primeira aula, buscando, agora, as estratégias linguísticas utilizadas para desenvolver o projeto comunicativo. Após uma primeira análise realizada pelos alunos, destaquei, por escrito no quadro, alguns aspectos linguísticos utilizados em cada tipologia (recursos coesivos, pontuação, tempo verbal etc.). Houve, portanto, nesse momento o estudo dos recursos em língua portuguesa empregados na escrita. Tal estudo se orientou pela maneira como os recursos linguísticos em LP haviam sido utilizados em função da realização do projeto comunicativo em cada gênero.

Após análise e discussão conjunta, propus que cada grupo escrevesse uma primeira versão de um texto no gênero analisado em LP, mas levando em conta o contexto em que estava sendo escrito: Timor-Leste. Para tanto, ressaltei aspectos como a finalidade comunicativa do texto e os possíveis interlocutores em cada gênero. Ao final da aula recolhi as produções.

4ª aula: Iniciei a última aula dedicada ao projeto tecendo comentários sobre os textos produzidos na aula anterior e ressaltei os aspectos positivos deles. Mostrei aos alunos que todos os grupos haviam feito textos de acordo com a finalidade de cada gênero e que isso foi possível porque eles tiveram conhecimento, para a produção, de elementos como o gênero em que iriam escrever e os interlocutores de seus textos. Essas observações foram acompanhadas de sugestões de melhoria do texto - algumas partes que careciam de maior detalhamento e/ou explicação - e, em relação ao plano linguístico, foram apontadas as inadequações quanto à norma padrão da LP para que os alunos pudessem revê-las na etapa de reescrita do texto.

De posse dessa primeira versão, os alunos reescreveram seus textos e acrescentaram elementos não verbais, como desenhos, buscando deixá-los mais próximos de sua forma em situações reais de uso (exemplos dessas produções estão no anexo deste trabalho). Ao final dessa atividade, cada grupo apresentou sua produção.

Após as apresentações, procedemos à etapa de reflexão acerca da experiência e das hipóteses de aplicabilidade dessa metodologia no contexto escolar timorense. Primeiramente, os alunos fizeram uma autoavaliação do seu aprendizado, socializando suas opiniões a respeito do processo de escrita. Os relatos foram positivos no que diz respeito à realização do processo de reconhecimento, estudo e escrita dos gêneros. Não houve, por parte deles, comentário sobre a dificuldade em como escrever o texto no gênero solicitado e muitos disseram que nunca haviam escrito textos como esses na escola ou na universidade. As dificuldades relatadas, no que diz respeito à produção dos textos, estavam relacionadas ao plano linguístico da LP, como o uso de verbos, artigos, pontuação etc.

Em um segundo momento, solicitei que os alunos refletissem sobre a concepção de ensino presente por trás dos procedimentos metodológicos adotados na sequência de atividades realizadas, a fim de que eles pensassem sobre como e porque trabalhar com textos reais na sala de aula. Ainda que sem um conhecimento claro sobre o conceito de gêneros, provavelmente resquício de uma educação pautada na gramática da língua, foi possível aos alunos a compreensão da metodologia utilizada e a reflexão sobre adequações à prática docente. Essa afirmação se baseia nos enunciados por eles proferidos em relação à adequação dos gêneros utilizados na sequência didática à realidade escolar timorense. Apenas o gênero e-mail foi considerado inapropriado, pois muitos alunos que frequentam as escolas de Timor-Leste não têm acesso à internet. Como sugestão, foram apontados gêneros como a carta-licença, documento que os alunos em Timor escrevem e entregam aos professores quando precisam se ausentar da aula por algum motivo, e o convite, ampliando seu uso à festa de desluto.11 11 O desluto é uma cerimônia tradicional que se realiza em todo o território de Timor-Leste um ano após o falecimento de alguém. A avaliação dos alunos acerca dos gêneros adequados ao contexto escolar timorense, levando em consideração, para tanto, a característica de serem socialmente reconhecidos pelos sujeitos em aprendizagem, demonstra que houve, por parte deles, uma compreensão da relação intrínseca do gênero com o contexto de sua produção e vivência que não pode ser ignorada na apropriação do conceito de gêneros na esfera pedagógica.

Durante a mediação, percebi que o estabelecimento de diálogo e troca de saberes e experiências possibilitou aos alunos um processo de autorreflexão capaz de construir novos conhecimentos, os quais podem ser reinvestidos e ressignificados na ação docente.

Avaliação dos resultados

A proposta anteriormente descrita, a princípio, causou estranhamento nos alunos, haja vista que as práticas de ensino realizadas em Timor-Leste seguem, ainda, um modelo tradicional com foco nos aspectos gramaticais e nas regras da estrutura da língua. É possível inferir que o desconhecimento dos alunos em relação a essas teorias e metodologias é consequência, em parte, da ausência dessas perspectivas nos currículos do curso de formação de professores do ensino básico da UNTL.

Quanto ao processo de escrita percorrido pelos cursistas - do reconhecimento e estudo à produção do gênero -, pude perceber que os alunos não apresentaram dificuldades referentes ao que e como iriam escrever seus textos, percepção que se comprovou nos depoimentos desses sujeitos no momento de autoavaliação. As produções finais demonstraram que, de acordo com a perspectiva assumida neste trabalho, os alunos conseguiram criar textos dialogicamente orientados, pois houve, mesmo na forma imobilizada da escrita, o estabelecimento de relações dialógicas com os possíveis interlocutores de seus textos; ou seja, houve um movimento para “fora” da língua, para o contexto extraverbal de produção. Em se tratando de produção escrita em uma LNM, esse movimento é ainda mais desafiador, pois “trata-se, antes, da reflexão de uma consciência que luta para abrir caminho no mundo misterioso de uma língua estrangeira” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 102).

Na produção de textos em uma LNM, passa-se, necessariamente, pelo reconhecimento de formas da língua que são, a princípio, identificadas pelos sujeitos em aprendizagem (constituem um sinal) e não compreendidas em sua completude (enquanto signo linguístico). Sobre esse aspecto, o estudo do sentido da palavra, tendo em vista a situação comunicacional, mostrou-se fecundo (tanto na língua em aprendizagem, a LP, quanto na de conhecimento dos alunos, o tétum), pois possibilitou a reflexão acerca da polissemia da palavra em função do contexto em que ela figura.

As principais dificuldades apresentadas pelos estudantes no que diz respeito ao processo de escrita estavam relacionadas com questões estruturais da LP, como a ortografia, o vocabulário e a pontuação. O fato de as dúvidas recaírem, sobretudo, no plano linguístico denota e traz à tona as reais dificuldades que esses sujeitos apresentam na escrita em uma LNM - o sistema abstrato e estrutural dessa língua. Tal constatação ratifica a forma pela qual os sujeitos, no entendimento de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.), interagem com a linguagem - do plano discursivo para o linguístico. Sendo assim, a ordem metodológica para o estudo da linguagem deveria ser perseguida à maneira como as relações sociais se constituem, ou seja, a produção da língua pela sua realidade concreta de constituição. Desse modo, primeiro é preciso apreendê-la no plano discursivo, o que torna esse caminho o mais propício, para, então, entendê-la também no plano linguístico-formal.

A partir dessa experiência de produzir textos em determinados gêneros socialmente reconhecidos pelos sujeitos em aprendizagem, tendo no norte dessa produção o que, como e para quem dizer, foi possível aos alunos/docentes refletir sobre a maneira pela qual, geralmente, instruem seus alunos a escreverem seus textos. Essa reflexão é resultado do que esses docentes puderam observar ao final da sequência de atividades realizadas: foram capazes de produzir textos escritos em LP em determinados gêneros, atendendo aos aspectos discursivos e linguísticos. Sendo assim, considero a experiência didática realizada com os professores e futuros professores do ensino básico de Timor para o trabalho com os gêneros do discurso na escola como um passo inicial, uma abertura para o diálogo e uma possibilidade de mudança nas práticas escolares do país com a LP.

Compreender e assumir como docentes a prática de ensino da escrita contemplando a dimensão dialógica da linguagem e o conceito de gêneros do discurso causa, certamente, incertezas, como é comum diante do que é o novo. Contudo, a reflexão e autoavaliação da experiência promoveu o reconhecimento por parte dos alunos de que a metodologia empregada nas atividades auxiliou no desenvolvimento da escrita de seus textos em LP. Esse reconhecimento é importante, dado que esses alunos, como professores e futuros professores que trabalham com ensino de LP nas escolas de Timor-Leste, podem inserir práticas dessa natureza em suas aulas.

Considerações

Desde o início de minha experiência com formação de professores em Timor-Leste, percebi as dificuldades desses sujeitos com a LP na comunicação oral e elas aumentam no que diz respeito a práticas mais complexas de uso da língua, como a produção escrita. Para eles, essa produção estava diretamente relacionada à forma do texto, como a estrutura em parágrafos, e ao correto emprego da língua escrita em detrimento do conteúdo. Procurei então inserir em meu contexto de trabalho em Timor outra perspectiva de produção textual, com enfoque no plano discursivo da língua, atentando para o que esses sujeitos tinham a dizer.

Os resultados dessa experiência didática mostraram-se extremamente positivos. Os professores timorenses produziram textos em LP em diferentes gêneros discursivos, percorrendo um caminho até então novo para eles: o estudo do gênero do plano discursivo para o plano linguístico. Essa vivência suscitou reflexões acerca do como a prática da escrita pode se dar de formas diferentes daquelas atreladas à estrutura da língua e/ou ao conteúdo do texto. Reflexões que partiram do professor no lugar do aluno, daquele que aprende a escrever textos em uma língua diferente da sua língua materna.

Dessa forma, é possível afirmar que possibilitar a um sujeito ser autor-criador, na acepção que confere Bakhtin (2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306.) a esse termo, de seus textos em LNM demanda, necessariamente, um conhecimento da língua que vai além de aspectos estruturais. O caminho a ser percorrido nesse sentido é longo e cheio de obstáculos, contudo, é preciso que se estabeleçam mudanças nas metodologias utilizadas para que a prática de produção de textos em LP como língua não materna possibilite uma tomada de posição por parte daquele que escreve, constituindo-se, assim, uma situação real de interlocução.

Referências bibliográficas

  • ALMEIDA, N. C. Para a (re)introdução da língua portuguesa em Timor-Leste. In: TEIXEIRA E SILVA, R.; YAN, Q.; ESPADINHA, M. A.; LEAL, A. V. (Org.). III SIMELP: a formação de novas gerações de falantes de português no mundo. Macau: Universidade de Macau, 2012. p. 29-42.
  • BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 261-306.
  • BRITO, R. H. P. Temas para a compreensão do atual quadro linguístico de Timor-Leste. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 175-194, jul./dez. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos >. Acesso em: 19 fev. 2015.
    » http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos
  • CORTE-REAL, B. de A.; BRITO, R. H. P. de. Aspectos da política linguística do Timor Leste, desvendando do contra-correntes. In: BASTOS, N. B. (Org.). Língua Portuguesa: reflexões lusófonas. São Paulo: EDUC, 2006. p. 123-131.
  • GUIMARÃES, J. E. Olhar dialógico para o ensino de língua portuguesa em Timor-Leste.Revista Advérbio, Cascavel, v.10, n. 20, p. 120-135, 2015.
  • SCHNEUWLY, B. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 19-34.
  • SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J.; NOVERRAZ, M. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro . Campinas: Mercado de Letras , 2004. p. 95-128.
  • SOARES, L. M. M. C. V. P. Línguas em Timor-Leste: que gestão escolar do plurilinguismo? 2014. 579 f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Universidade de Aveiro, Lisboa, 2014.
  • TIMOR-LESTE. Lei nº 14, de 29 de outubro de 2008. Lei de Bases da Educação. Disponível em: <Disponível em: http://www.jornal.gov.tl/?mod=artigo&id=1453 >. Acesso em: 7 fev. 2016.
    » http://www.jornal.gov.tl/?mod=artigo&id=1453
  • TIMOR-LESTE. Decreto-Lei nº 3, de 14 de janeiro de 2015 Aprova o currículo nacional de base da educação pré-escolar. Disponível em: <http://www.mj.gov.tl/jornal/?q=node/6510>. Acesso em: 10 set. 2018.
    » http://www.mj.gov.tl/jornal/?q=node/6510
  • UNIVERSIDADE NACIONAL TIMOR LOROSA’E (UNTL). Projeto Político Pedagógico do Curso de FPEB: unidade curricular de ECTS da UNTL e as equivalências ao padrão mínimo do Ministério da Educação. Díli, 2014.
  • 1
    O tétum é a língua co-oficial de Timor ao lado do português. É também a língua veicular utilizada entre os timorenses possuidores de diferentes línguas maternas. É considerada como a língua que entrelaça e permite a interação entre os falantes das demais línguas presentes no país, ou seja, a maioria da população timorense é, no mínimo, bilíngue, falando, além de sua língua local, o tétum.
  • 2
    Conforme preconiza a Lei de Bases da Educação de Timor-Leste (nº 14/2008) em seu artigo 8º: “As línguas de ensino do sistema de ensino timorense são tétum e o português”.
  • 3
    De acordo com o Decreto-Lei nº 3/2015, que aprova o Currículo Nacional de Base da Educação Pré-Escolar em Timor-Leste, em seu artigo 17, a escolha da língua de interação entre professor e aluno deve ser orientada pela progressão linguística do tétum para o português, “utilizando-se a primeira língua das crianças, quando necessário, para garantir uma comunicação eficaz”.
  • 4
    O Currículo Nacional do Ensino Básico dos 1º e 2º Ciclos, elaborado em 2014, contou com a participação de docentes internacionais e timorenses e o Programa de Português do 3º Ciclo do Ensino Básico (2010), com o apoio da Universidade do Minho, em Portugal.
  • 5
    Utiliza-se o termo (re)introduzir em conformidade com o entendimento apresentado por [xref ref-type="bibr" rid="r1"]Almeida (2012[/xref]), para quem o uso desse termo pretende retratar a realidade de uma minoria de timorenses que adquiriu algum grau de escolarização durante a reduzida dinâmica do ensino da LP no período de administração portuguesa, reservando o emprego de introdução para o caso da maioria dos cidadãos timorenses que, apesar de não desconhecerem o português, não foram anteriormente escolarizados nessa língua.
  • 6
    Programa de Qualificação de Docentes em Língua Portuguesa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cujos principais eixos de atuação eram: 1) formação inicial e continuada dos docentes, 2) fomento ao ensino da língua portuguesa e 3) apoio ao ensino superior (disponível em: http://pqlp.pro.br/ Acesso em 28 de out. de 2017).
  • 7
    O ensino básico em Timor-Leste integra três ciclos: o 1º com quatro anos de duração, o 2º com dois e o 3º com três.
  • 8
    A disciplina Língua Portuguesa III destina-se ao estudo da classe gramatical dos verbos, a Língua Portuguesa IV foca na sintaxe e a Língua Portuguesa V, na semântica.
  • 9
    De acordo com [xref ref-type="bibr" rid="r3"]Bakhtin (2011[/xref]), os gêneros primários realizam-se em condições mais simples da vida, enquanto os gêneros secundários surgem nas condições de um convívio social mais organizado e desenvolvido. Conforme [xref ref-type="bibr" rid="r8"]Schneuwly (2004[/xref]), a produção de um gênero secundário implica, ao aprendente de uma língua, dispor de instrumentos já complexos. Nas palavras do autor: “Esse instrumento é retomado e reutilizado para construir uma nova função no gênero secundário, que poderíamos chamar de mudança de perspectiva no texto (acontecimento inesperado etc.), função que não é mais exatamente a mesma que nos gêneros já dominados” ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]Schneuwly, 2004[/xref], p. 30).
  • 10
    Diante da diversidade e do grande número de gêneros existentes, os autores propõem que determinados gêneros sejam agrupados para a realização da progressão metodológica. Esse agrupamento é orientado por três critérios que são mobilizados na apropriação que os sujeitos fazem dos gêneros nas situações de comunicação: domínio social de comunicação, capacidades de linguagem envolvidas e tipologias textuais existentes.
  • 11
    O desluto é uma cerimônia tradicional que se realiza em todo o território de Timor-Leste um ano após o falecimento de alguém.

Anexos

Exemplos de produções dos alunos timorenses:

Figura 1:
Produção de texto, gênero - anúncio publicitário

Figura 2:
Produção de texto, gênero - anúncio procura-se

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2017
  • Aceito
    26 Jun 2018
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira Setor de Indústrias Gráficas - Quadra 04 - lote 327, Térreo, Ala B, CEP 70.610-440 – Brasília-DF – Brasil, Telefones: (61) 2022-3077, 2022-3078 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: editoria.rbep@inep.gov.br