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Autoconfrontação cruzada em grupo focal: recurso metodológico para pesquisas em Educação

Self-confrontation crossed in focus group: methodological resource for research in Education

Autoconfrontación indirecta en grupo focal: recurso metodológico para las investigaciones en el campo de la Educación

Resumo:

Este artigo apresenta e discute a autoconfrontação cruzada em grupo focal como recurso metodológico para pesquisas em Educação. O procedimento foi elaborado e explorado no âmbito de uma pesquisa sobre a circulação de saberes entre docentes em espaços formativos sistematizados. A proposta metodológica resultante encontra respaldo, de um lado, em pressupostos ligados à clínica da atividade, especialmente nos trabalhos de Yves Clot - que propõe os procedimentos de autoconfrontação simples e cruzada - e, de outro, na tradição dos grupos focais, cujo emprego em pesquisas educacionais vem se disseminando e ampliando nas últimas décadas. Trata-se de procedimento afinado aos pressupostos da pesquisa qualitativa, voltada à produção de conhecimentos que nos auxiliem na interpretação da realidade vivida pelos sujeitos. Considera-se que a autoconfrontação cruzada em grupo focal constitui alternativa interessante para a investigação de temas complexos - como costuma ser o caso na Educação -, oferecendo, ainda, possibilidades para intervenções de ordem formativa em grupos sociais.

Palavras-chave:
autoconfrontação; formação de professores; gravação em vídeo; grupo focal; metodologia de pesquisa

Abstract:

This article presents and discusses the self-confrontation crossed in focus group, while methodological resource for researches in education. The procedure was elaborated and explored within the scope of a research about circulation of knowledge among teachers in systematized formative spaces. The resultant methodological propose finds support, on one side, on assumptions related to the Clinic of Activity, especially in the work of Yves Clot - who proposes simple and crossed self-confrontation procedures - and, on the other, in traditions of focus groups, whose use in educational research has been spreading and expanding in recent decades. It is a procedure tuned to the assumptions of qualitative research, aimed at the production of knowledge that helps us to interpret the reality experienced by the subjects. It is considered that crossed self-confrontation in a focus group constitutes an interesting alternative for the investigation of complex themes - as it is usually the case in education - still offering possibilities for interventions in formative order with social groups.

Keywords:
focus group; research methods; self-confrontation; teachers training; video recordings

Resumen:

Este artículo presenta y discute la autoconfrontación indirecta en grupo focal como recurso metodológico para investigaciones en el campo de la Educación. El procedimiento fue desarrollado y explorado como parte de una investigación sobre la circulación del conocimiento entre docentes en espacios de formación sistematizados. La propuesta metodológica resultante se sustenta, por un lado, en supuestos vinculados a la clínica de la actividad, especialmente en el trabajo de Yves Clot -quien propone procedimientos de autoconfrontación simple e indirecta- y, por otro, en la tradición de los grupos focales, cuyo uso en la investigación educativa se ha ido extendiendo y expandiendo en las últimas décadas. Es un procedimiento afinado a los supuestos de la investigación cualitativa, dirigido a la producción de conocimientos que nos ayuden a interpretar la realidad vivida por los sujetos. Se considera que la autoconfrontación indirecta en grupo focal es una alternativa interesante para la investigación de temas complejos -como suele ser el caso en Educación- ofreciendo, aún, posibilidades de intervenciones formativas con grupos sociales.

Palabras clave:
autoconfrontación; formación de profesores; grabaciones de video; grupo de enfoque; metodología de investigación

Introdução

O campo acadêmico-educacional brasileiro tem se caracterizado por uma significativa diversidade teórico-metodológica (Borges, 2001BORGES, C. Saberes docentes: diferentes tipologias e classificações de um campo de pesquisa. Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 22, n. 74, p.59-76, abr. 2001. ) que, a um só tempo, favorece e reflete sua expansão e diversificação como espaço de produção de conhecimentos. Nesse cenário dinâmico, a busca por novas estratégias metodológicas para o estudo do fenômeno educativo mostra-se bem-vinda, conquanto as inovações então propostas sejam objeto de exame por parte dos pesquisadores da área, de modo a alcançar necessária legitimidade. Seguindo nessa direção, este artigo apresenta a autoconfrontação cruzada em grupo focal como estratégia metodológica central de uma pesquisa realizada em nível de doutorado e defendida em 2019, que focalizou a circulação de saberes profissionais docentes em espaços formativos.

O emprego da autoconfrontação cruzada em grupo focal, naquela pesquisa, ampliou significativamente as possibilidades de interlocução entre a pesquisadora e os participantes (e entre eles, inclusive), potencializando os processos de coleta e de análise dos dados. Trata-se, nesse sentido, de um recurso promissor para a investigação de processos formativos experimentados em grupos profissionais, como é o caso dos professores focalizados pela pesquisa realizada, estimulando a discussão sobre questões relativas às práticas cotidianas (nem sempre acessíveis ao observador) e à interação entre os sujeitos. Para além dessas possibilidades investigativas, é possível considerar que tal procedimento reúne também potencialidades de ordem formativa.

Elementos da autoconfrontação cruzada e do grupo focal para a pesquisa qualitativa em Educação

A autoconfrontação cruzada em grupo focal como procedimento metodológico e como proposta aqui se insere no âmbito das pesquisas de natureza qualitativa, voltadas à produção de conhecimentos que nos auxiliem na interpretação da realidade vivida pelos sujeitos. Essa abordagem “defende uma visão holística dos fenômenos, isto é, que leve em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas” (Gatti; André, 2010GATTI, B. A.; ANDRÉ, M. E. D. A. A relevância dos métodos de pesquisa qualitativa em Educação no Brasil. In: WELLER, W.; PFAFF, N. (Org.). Metodologias da pesquisa qualitativa em educação: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 29-38., p. 30).

A pesquisa qualitativa, segundo Bogdan e Biklen (1982BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação. Tradução de Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto Editora, 1982.apudAndré; Ludke, 1986LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária , 1986., p. 13), “envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo que o produto e se preocupa em apreender a perspectiva dos participantes”. Seguindo nesse prisma epistemológico, a autoconfrontação em grupo focal prevê, em todo o processo de construção da pesquisa e coleta dos dados, a contribuição dos participantes na forma de discussões dos temas observados.

A confrontação dos sujeitos com sua própria atividade, com o recurso da videogravação, é um procedimento proposto por Clot, ao qual ele denomina como “autoconfrontação”, que pode ser simples ou cruzada (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.). No procedimento original proposto por Clot, os sujeitos (geralmente dois) confrontam-se com a videogravação de sua atividade na presença do pesquisador e de um colega que já se confrontou com o vídeo, referente a sua própria atividade (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.). A autoconfrontação em grupo focal foi uma apropriação e adaptação do procedimento metodológico da autoconfrontação cruzada. Assim como nesta, o procedimento que propomos inclui sujeitos envolvidos nas videogravações e o pesquisador. Os episódios (recortes das filmagens) resgatam aspectos do real que se pretende problematizar com os participantes no momento das autoconfrontações, de modo a se aproximar do objeto de estudo da pesquisa.

Tanto na autoconfrontação cruzada quanto naquela em grupo focal os participantes são “protagonistas do diálogo” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 241), e os sujeitos se manifestam a qualquer momento, em que o

comentário cruzado orienta os diálogos para a confrontação das ‘maneiras de fazer’ diferentes a fim de atingir os mesmos objetivos ou fixar-se em outros. Os trabalhadores em questão fazem, então, a experiência do plurilinguismo profissional.

Esses procedimentos se aproximam no sentido de que o diálogo é central e “nômade” - termo utilizado por Yves Clot para indicar que o diálogo, durante a interação, não segue uma sequência determinada, ele vai acontecendo entre os sujeitos e a qualquer momento pode migrar de um para outro participante, inclusive para o pesquisador que leva os sujeitos a se interrogarem sobre o que observam. Por isso, a gravação em áudio e vídeo desses momentos é importante e crucial.

Também é comum aos procedimentos propostos por Yves Clot a utilização de vídeos (na forma de episódios) elaborados com base em registros anteriores - método empregado nesta pesquisa. O olhar a posteriori e a discussão com mais sujeitos sobre um ato permitem ter acesso a algo “impossível de dizer” no momento (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 244) e:

[...] a montagem das imagens de vídeo relativas à atividade é um procedimento concebido para superar tal dificuldade. O trabalho do pesquisador consiste, também, em ‘provocar’ sua análise. E isso a fim de preservar todas as possibilidades de desenvolvimento para o real do diálogo no interior do diálogo realizado.

Assim, as gravações anteriores são usadas para a produção de episódios utilizados nas autoconfrontações em grupo focal, momento que representa a coleta de dados propriamente dita da pesquisa, por meio dos diálogos estabelecidos.

A técnica do grupo focal tem sido cada vez mais utilizada em pesquisas de abordagens qualitativas e tem se caracterizado como um bom instrumento para o levantamento de dados em investigações em Ciências Sociais e Humanas, quando integrado ao corpo geral da pesquisa e a seus objetivos, sendo necessário um uso criterioso e coerente com os propósitos do estudo. Além disso, o grupo focal comporta o conhecimento de representações, crenças, hábitos, valores, percepções, entre outros aspectos que permitem a obtenção de perspectivas diferentes sobre uma questão, mas também de ideias partilhadas por pessoas em seu dia a dia (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.). Ainda de acordo com a autora:

Privilegia-se a seleção dos participantes segundo alguns critérios - conforme o problema de estudo -, desde que eles possuam algumas características em comum que os qualificam para a discussão da questão que será o foco do trabalho interativo e da coleta do material discursivo/expressivo. Os participantes devem ter alguma vivência com o tema a ser discutido, de tal modo que sua participação possa trazer elementos ancorados em suas experiências cotidianas (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012., p. 7).

O convite para a participação no grupo focal deve ser pautado em alguns critérios, no entanto, a adesão é sempre voluntária. Prima-se por um convite motivador (a atividade no grupo focal deve ser atraente aos participantes) e, algumas vezes, a participação pode propiciar um momento de desenvolvimento para os envolvidos, pontos que podem contribuir para a adesão (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.).

Para a composição de um grupo focal, Gatti (2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.) destaca dois aspectos relevantes: o grupo deve possuir algumas características homogêneas, mas com suficientes variações que permitam o aparecimento de opiniões divergentes.

Ainda de acordo com a autora:

A abertura do grupo é um momento crucial para a criação de condições favoráveis à participação de todos os componentes. Precisa-se criar uma situação de conforto, de certo distensionamento, para gerar uma atmosfera permissiva. Nos primeiros momentos, o moderador deve oferecer informações que deixem os participantes à vontade, sabendo o que deles espera, qual será a rotina da reunião e a duração do encontro (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012., p. 28-29).

Gatti (2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012., p. 17) acrescenta que “o problema precisa estar claramente exposto, e a questão ou questões a serem levadas ao grupo para a discussão que dele decorre”. Além disso, os participantes devem se sentir livres para colocarem seus pontos de vista, destacando-se a importância de deixar claro que em uma discussão em grupo focal não há certo ou errado, bons ou maus argumentos, mas todas as ideias e opiniões interessam, sendo a discussão aberta em torno da proposta, e qualquer reflexão e contribuição é de suma importância para a pesquisa.

Assim, a proposição desse procedimento de pesquisa nos pareceu a mais adequada por entendermos que a utilização de vídeo como recurso para a discussão em grupo focal seria ideal para nos aproximarmos do objeto de estudo. A produção de episódios é um momento crucial, pois eles precisam se tornar starts (desencadeadores) da discussão, que deve ser norteada por questões amplas e gerais, mas que busquem responder aos objetivos da pesquisa.

Esse procedimento em que se utiliza a autoconfrontação permite ao pesquisador e aos participantes do grupo focal captarem elementos que vão além da fala (entonações, gestos, sentimentos, expressões etc.), fornecendo mais indícios para a discussão (dos participantes) e para a análise (do pesquisador), além de propiciar uma maior liberdade no diálogo, não sendo necessário nomear quem está se pronunciando (tal como ocorre no grupo focal “tradicional”), pois o vídeo faz todos esses registros. Para Clot (2007CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007., 2010), a autoconfrontação favorece a vivência da dialogicidade profissional, em que emergem informações sobre os conflitos, as dissonâncias e as concordâncias acerca da atividade de trabalho, o que traz à tona informações mais ampliadas durante as autoconfrontações do que aquelas que vivenciam em suas atuações profissionais.

Destaca-se que a utilização de gravações em pesquisas no Brasil ainda é recente e não habitual e, portanto, corre-se o risco de constrangimentos e direcionamentos na fala dos sujeitos, o que, de modo geral, não foi observado na pesquisa desenvolvida com o uso desse procedimento, provavelmente pelo tempo em que foram realizadas as filmagens (durante todo o curso de extensão, ao longo de um ano). Se no início a presença da câmera era algo estranho, com o passar dos encontros foi se tornando algo rotineiro e os próprios participantes mencionaram que “se esqueciam” da câmera, o que tende a minimizar os riscos supracitados.

Das autoconfrontações em grupo focal são “extraídos” dados empíricos da pesquisa, além de complementações com o diário de campo, as observações e as gravações. A análise dos dados em uma pesquisa de autoconfrontação em grupo focal tende a seguir uma abordagem qualitativa, conforme indicam André e Ludke (2012, p. 45):

Analisar os dados qualitativos significa “trabalhar” todo o material obtido durante a pesquisa, ou seja, os relatos de observação, as transcrições de entrevistas, as análises de documentos e as demais informações disponíveis. A tarefa de análise implica, num primeiro momento, a organização de todo o material, dividindo-o em partes, relacionando essas partes e procurando identificar nele tendências e padrões relevantes. Num segundo momento, essas tendências e padrões são reavaliados, buscando-se relações e inferências num nível de abstração mais elevado.

De acordo com Gatti (2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012., p. 44):

A análise é um processo de elaboração, de procura de caminhos, em meio ao volume das informações levantadas. Rotas de análises são seguidas, e essas se abrem em novas rotas ou atalhos, exigindo dos pesquisadores um esforço para não perder de vista seus propósitos e manter a capacidade de julgar a pertinência dos rumos analíticos em sua contribuição ao exame do problema. O processo de análise é sistemático, claro nos percursos escolhidos e não espontaneísta.

Ainda segundo a autora:

[...] não existe um modelo único e acabado de análise de dados para grupos focais. A capacidade de elaboração de um processo de busca de significados dos dados obtidos está vinculada a formação do pesquisador, a seu estofo teórico e a sua criatividade. (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012., p. 46).

O encaminhamento metodológico nesse tipo de pesquisa em que se utiliza como recurso a autoconfrontação em grupo focal exige do pesquisador especial clareza com relação ao seu problema de pesquisa, para que o processo de análise seja convergente com o enfoque do estudo, de modo a captar todas as informações importantes para o desenho das categorias de análise.

A pesquisa qualitativa utilizando videogravações

O avanço tecnológico dos últimos anos tem facilitado o acesso aos recursos de vídeo e imagens pelos pesquisadores, e o uso desses meios na pesquisa em Educação tem proporcionado o registro mais preciso das informações, o que confere maior confiabilidade dos dados utilizados nela (Dias; Castilho; Silveira, 2018DIAS, A. R. M.; CASTILHO, K. C.; SILVEIRA, V. S. Uso e interpretação de imagens e filmagens em pesquisa qualitativa. Revista Ensaios Pedagógicos, Sorocaba, v. 2, n. 1, p. 81-88, jan./abr. 2018.).

Pesquisas qualitativas que empregam videogravações permitem ao pesquisador observar uma multiplicidade de perspectivas e situações que ocorrem nos contextos interativos proporcionados (Naves; Peres; Borges, 2017NAVES, R. M.; PERES, S. G.; BORGES, F. F. O uso de videogravação como recurso para análise de interação entre professora e alunos na contação de histórias. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA - CIAIQ, 6., 2017, Salamanca. Atas... [S.l.]: CIAIQ, 2017. p. 640-649. ; Dias; Castilho; Silveira, 2018DIAS, A. R. M.; CASTILHO, K. C.; SILVEIRA, V. S. Uso e interpretação de imagens e filmagens em pesquisa qualitativa. Revista Ensaios Pedagógicos, Sorocaba, v. 2, n. 1, p. 81-88, jan./abr. 2018.; Belei et al., 2008BELEI, R. A. et. al. O uso de entrevistas, observação e videogravação em pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, Pelotas, n. 30, p. 187-199, jan./jun., 2008.), que se traduzem em características importantes para a composição de um corpus de investigação.

A opção por realizar gravações para a construção de dados de pesquisa torna-se interessante, posto que a filmagem capta sons e imagens, o que aumenta a fidedignidade dos dados observados (Belei et. al., 2008BELEI, R. A. et. al. O uso de entrevistas, observação e videogravação em pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, Pelotas, n. 30, p. 187-199, jan./jun., 2008.). Além de permitir filmar aspectos do que se pretende investigar para posterior análise, os vídeos produzidos podem ser utilizados para que os sujeitos da pesquisa discutam sobre o que foi gravado (Pinheiro; Kakehashi; Angelo, 2005PINHEIRO, E. M.; KAKEHASHI, T. Y.; ANGELO, M. O uso de filmes em pesquisas qualitativas. Revista Latino-Americana Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 13, n. 5, p. 717-722, set./out. 2005.; Godoi; Benites; Borges, 2019GODOI, M.; BENITES, L. C.; BORGES, C. O uso da autoconfrontação simples e cruzada para analisar o ensino em Educação Física. Movimento, Porto Alegre, v. 25, p. 1-14, jan./dez. 2019. ).

O vídeo pode ser considerado um recurso metodológico que proporciona maiores especificidades de análise ao pesquisador, pois a filmagem de um episódio representa “um meio de registro da imagem que preserva situações passadas que podem ser analisadas no presente” (Naves; Peres; Borges, 2017NAVES, R. M.; PERES, S. G.; BORGES, F. F. O uso de videogravação como recurso para análise de interação entre professora e alunos na contação de histórias. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA - CIAIQ, 6., 2017, Salamanca. Atas... [S.l.]: CIAIQ, 2017. p. 640-649. , p. 641). Trata-se de um recurso interessante por “permitir a captura do momento em que ocorrem as interações, bem como possibilitar inúmeras revisões, a fim de melhor analisar o fenômeno pesquisado” (Naves; Peres; Borges, 2017NAVES, R. M.; PERES, S. G.; BORGES, F. F. O uso de videogravação como recurso para análise de interação entre professora e alunos na contação de histórias. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA - CIAIQ, 6., 2017, Salamanca. Atas... [S.l.]: CIAIQ, 2017. p. 640-649. , p. 642). Ampliam-se, dessa forma, as alternativas de análises de um fenômeno.

Dentre as vantagens do uso da videogravação está a possibilidade de analisar os eventos em suas minúcias. A pesquisa de Godoi, Benites e Borges (2019GODOI, M.; BENITES, L. C.; BORGES, C. O uso da autoconfrontação simples e cruzada para analisar o ensino em Educação Física. Movimento, Porto Alegre, v. 25, p. 1-14, jan./dez. 2019. ) o destaca como um recurso para “desnudar” a realidade no seio de situações profissionais complexas e singulares, como é o caso da docência. Por meio das videogravações, é possível observar interações, gestos, trocas, risos, entre outros aspectos significativos para compor, no contexto da investigação, elementos para a análise.

O uso de videogravações em pesquisa qualitativa é justificado quando se pretende explorar aspectos que vão além da fala (Garcez; Duarte; Eisenberg, 2011GARCEZ, A.; DUARTE, R; EISENBERG, Z. Produção e análise de videogravações em pesquisas qualitativas. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 249-262, maio/ago. 2011.). No caso da autoconfrontação cruzada em grupo focal, procedimento aqui proposto, esse uso se justifica inicialmente pela necessidade de produção dos episódios, mas também pela mobilização do grupo focal. Durante as discussões no grupo, os episódios selecionados podem estimular o “jogo dialógico”, por meio do qual um participante parte do feedback de outro para confirmar o que está falando, além das interações não verbais, como sorrisos, movimentos de cabeça, expressões corporais, entre outras. Esse “jogo” oferece ao pesquisador oportunidades para estabelecer a confiabilidade das informações coletadas para posterior análise.

Além de relevante para a pesquisa, “o vídeo pode servir também como uma forma de feedback para o pesquisador, ainda durante o processo de pesquisa de campo” (Garcez; Duarte; Eisenberg, 2011GARCEZ, A.; DUARTE, R; EISENBERG, Z. Produção e análise de videogravações em pesquisas qualitativas. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 249-262, maio/ago. 2011., p. 253), possibilitando-lhe se autoavaliar criticamente, de modo a evoluir como pesquisador e melhorar gradativamente seu trabalho com o método, corrigindo aspectos importantes para as atividades subsequentes.

Garcez, Duarte e Eisenberg (2011GARCEZ, A.; DUARTE, R; EISENBERG, Z. Produção e análise de videogravações em pesquisas qualitativas. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 249-262, maio/ago. 2011., p. 254-255) chamam a atenção no sentido de que:

a produção de videogravações envolve, inevitavelmente, o conhecimento dos aspectos técnicos relacionados à captura e à edição de imagens. [...] para que uma videogravação desempenhe, efetivamente, o papel a ela destinado em contextos investigativos, é necessário que o pesquisador esteja minimamente familiarizado com o equipamento e sinta-se à vontade para utilizá-lo.

Há, de fato, vários aspectos que precisam ser observados em relação às questões técnicas na operação das câmeras, dentre as quais estão: a captação de imagens e sons de qualidade, a posição da câmera, a duração da gravação, o uso de tripé - podendo o pesquisador focar outros aspectos durante a gravação - ou uso da câmera móvel, buscando outros ângulos e em espaços em que a movimentação dos sujeitos pesquisados é maior, além de, quando possível, uma câmera auxiliar para eventuais erros na gravação da câmera principal. Todos esses são elementos que precisam ser considerados pelo pesquisador sempre de acordo com seu objeto de pesquisa. Vale ressaltar que todo cuidado é uma precaução, pois erros e distrações podem acontecer, e trata-se do recurso para obtenção dos dados no trabalho de campo, o que, por consequência, influencia nos resultados alcançados.

Cabe destacar, ainda, que os registros audiovisuais implicam uma produção que envolve a subjetividade do pesquisador e que esse fator, como ocorre no caso de outros recursos metodológicos empregados nas pesquisas qualitativas, requer atenção e busca constante e sistemática por rigor na coleta e na análise dos dados.

A produção de episódios

Os episódios, produzidos a partir de excertos de videogravações realizadas previamente com os participantes, atuam como um ponto de partida para as discussões a serem estabelecidas no grupo focal. Ao se confrontarem com a videogravação de suas ações, os participantes do grupo têm a oportunidade de percebê-las sob o ponto de vista do observador e de identificar detalhes e produzir informações inéditas sobre elas.

O processo de produção dos episódios requer atenção e cuidados especiais. As videogravações, a partir das quais os participantes serão “recortados”, precisam captar com clareza a fala deles e, ao mesmo tempo, serem pertinentes ao tema estudado e suficientemente “potentes” para estimular a fala dos sujeitos (até dos mais lacônicos).

No caso da proposta aqui apresentada, da autoconfrontação cruzada em grupo focal, exibem-se, durante as sessões do grupo, esses episódios para gerar discussões entre os participantes. No momento da exibição, o pesquisador deve contar com um roteiro de questões previamente elaboradas, que possa nortear o diálogo com os participantes do grupo. O pesquisador atua, assim, como um mediador que provoca a análise (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.); enquanto os participantes são os protagonistas da discussão.

Os episódios não podem ser extensos - durando em torno de dois a três minutos -, pois devem captar a atenção e o interesse dos participantes, mobilizando-os para a discussão de aspectos específicos da situação focalizada. As discussões então empreendidas pelo grupo, orientadas pelas questões trazidas pelo pesquisador, devem extrapolar o que já foi capturado no episódio, permitindo uma aproximação mais ampla com os questionamentos que orientam a pesquisa.

A exibição dos episódios aos participantes deve acontecer em local adequado, com áudio e vídeo de boa qualidade. Nesse momento, é essencial que o pesquisador e os participantes estejam ambientados e confortáveis, além de terem clareza dos procedimentos que serão empregados no grupo focal. O vídeo do episódio poderá ser reexibido tantas vezes quanto necessário, de acordo com as demandas do grupo.

O número de episódios elaborados para uma pesquisa depende do número de sessões de autoconfrontação em grupo focal a serem realizadas. Considera-se importante produzir alguns “episódios extras” para serem empregados, caso algum outro episódio não mobilize as discussões esperadas no grupo focal. De todo modo, em cada sessão, recomenda-se a exibição de um número limitado de episódios (em torno de três), para não correr o risco de cansar os participantes. É importante que cada episódio seja bem explorado pelo pesquisador, que deve buscar estimular as discussões a seu respeito. Ademais, cabe ressaltar que, no diálogo estabelecido entre os participantes do grupo focal, é importante atentar para o que Clot denomina como “fronteira da veracidade do diálogo”, em que “fala-se e, ao mesmo tempo, sente-se, procura-se ver, fazer ver ou fazer sentir” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 243). Assim, o sujeito além de discutir sobre o que observou no episódio, fala sobre o que sentiu ao se observar.

Para a composição do corpus de análise, são realizadas as transcrições das autoconfrontações em grupo focal na íntegra para organização e leitura dos dados, visando identificar aspectos que respondam ao problema de pesquisa. Nesse tipo de procedimento, as categorias empíricas tendem a emergir dos dados, por não haver um direcionamento das discussões que fluem de acordo com “os interesses” dos participantes, daquilo que mais lhes chama a atenção nos episódios. Buscam-se, na análise, os significados presentes nos dados, aproximando-os com o referencial teórico da pesquisa.

A autoconfrontação em grupo focal em uma pesquisa em Educação

Apresenta-se aqui o relato da pesquisa de doutoramento (Giordan, 2019GIORDAN, M. Z. A circulação de saberes entre professores: uma análise a partir do gênero profissional docente. 2019. 147 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Rio Claro, 2019.), na qual se buscou investigar o conteúdo das partilhas realizadas entre docentes em situação formativa, considerando a possibilidade de identificar, no âmbito de tais partilhas, elementos do gênero profissional docente. O emprego da autoconfrontação cruzada em grupo focal constituiu recurso metodológico central para a pesquisa.

A produção, no âmbito daquela investigação, desse recurso metodológico específico orientou-se pela necessidade investigativa imposta pelo objetivo almejado: identificar elementos do gênero profissional docente que circulam entre professores da educação básica em encontros formativos. A busca por esses elementos carecia de discussões entre sujeitos (professores) de momentos de partilhas de saberes no espaço formativo em questão. Tem-se, pois, que as especificidades relativas ao objeto de estudo focalizado pela pesquisa foram centrais para o delineamento da estratégia metodológica aqui exposta, bem como para os demais procedimentos referentes à exploração dos dados coletados por seu intermédio.

Os fundamentos teóricos da pesquisa desenvolvida, relativa ao tema do gênero profissional docente, encontram-se na clínica da atividade, que tem suas raízes na psicologia do trabalho e, mais especificamente, nas pesquisas de Yves Clot (2007CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007., 2010), que propõe os procedimentos de autoconfrontação simples e cruzada, que ofereceu elementos fundamentais para desenvolvermos a autoconfrontação cruzada em grupo focal. Essa estratégia de investigação foi proposta a partir da confluência de dois procedimentos já bastante difundidos no âmbito das pesquisas em Educação: a autoconfrontação cruzada (Clot, 2007CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007., 2010) e o grupo focal (Gatti, 2012GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília, DF: Liber Livro, 2012.).

O desenvolvimento dessa estratégia metodológica resultou de um conjunto de decisões assumidas no âmbito da investigação mencionada. Em um primeiro momento, foram realizadas videogravações no espaço empírico do estudo - os encontros presencias de um curso de extensão universitário promovido por uma universidade pública paulista. Os sujeitos participantes foram professores, coordenadores, gestores e estudantes que frequentavam o referido curso, que, por sua vez, inscreveram-se em um projeto de extensão mais amplo, que oferece formação continuada presencial para profissionais da educação básica das redes pública e privada. O grupo que participou da pesquisa era bastante diverso no que se refere ao tempo e aos tipos de experiência no magistério. Sujeitos que vivenciavam diferentes fases do ciclo profissional docente (Garcia, 1999GARCIA, C. M. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto: Porto Editora , 1999.) encontravam-se nas atividades relativas àquele curso. Diversidade considerada, no âmbito da investigação, como possível elemento favorável para a coleta de dados sobre partilhas docentes (hipótese que se confirmou ao longo do desenvolvimento do trabalho).

No início do curso de extensão, foi realizada uma apresentação da pesquisa em questão, momento em que foram esclarecidos os objetivos e procedimentos metodológicos a serem empregados. Os cursistas foram convidados a responder a um formulário enviado por mensagem eletrônica, via Google Forms, para manifestarem sua intenção de participar (ou não) na pesquisa. Foi-lhes perguntado, na ocasião, se autorizavam (ou não) sua gravação em vídeo nos encontros. Salientou-se que a participação na pesquisa seria voluntária, sem qualquer prejuízo para seu engajamento no curso de extensão. Na nota explicativa inicial do formulário, foi esclarecido que as gravações dos encontros seriam utilizadas exclusivamente para a produção de episódios para as videoconfrontações em grupo focal, que aconteceriam a posteriori. Dentre os cursistas que retornaram o formulário, 56 autorizaram as gravações e 11 participantes não autorizaram.

Em função do número de participantes do curso, os sujeitos eram divididos em três subgrupos durante os encontros, ocupando três salas distintas. Dessa forma, as filmagens ocorreram na sala em que todos os cursistas as autorizaram. A câmera era ligada no início do encontro e assim permanecia até o fim, sendo posicionada em um canto da sala de modo a captar as imagens de todos os participantes. Quando aconteciam discussões em grupos menores, com a autorização dos integrantes, aproximava-se a câmera de modo a captar som e imagens de momentos de discussões focalizadas. Em vários desses momentos, o áudio ficou comprometido, pois havia muitos ruídos dos outros subgrupos. Já os momentos de socialização dessas discussões, em que os participantes formavam um semicírculo na sala e falavam um de cada vez, foram os que mais forneceram elementos para a seleção dos episódios, por apresentarem áudio e imagens limpos e por oferecerem uma síntese de discussões coletivas.

Cabe ressaltar que, durante os encontros e a realização das videogravações, foram produzidos registros em diário de campo, a partir da observação das interações em curso. A produção de tais registros buscou oferecer complementação para as filmagens e suporte para a etapa seguinte, de exploração e edição dos vídeos.

Na etapa seguinte, as videogravações produzidas foram visualizadas pela pesquisadora repetidas vezes, de modo a possibilitar sua edição, para a extração de episódios, ou seja, excertos das filmagens especialmente interessantes para o estudo, o que, no caso daquela pesquisa, eram trechos que revelavam momentos de partilha entre os professores. Os episódios foram “recortados” das filmagens com o auxílio do programa movie maker (que faz parte do pacote Windows). Considerou-se que tais episódios poderiam ser empregados nas sessões de grupo focal para atuarem como recursos mobilizadores de discussão entre os professores participantes. Foram elaborados 12 episódios para serem exibidos em três sessões de autoconfrontação no grupo focal. Desses episódios produzidos, somente quatro foram efetivamente utilizados, em função da fertilidade das discussões que geraram no grupo.

Além desses episódios, foi organizado um roteiro de questões a serem apresentadas aos professores participantes, de modo a aproximá-los ainda mais efetivamente, durante os grupos focais, de elementos relativos à partilha realizada durante os encontros do curso de extensão.

As sessões de autoconfrontação em grupo focal ocorreram na mesma sala em que os participantes realizavam os encontros do curso. A sala era silenciosa, com espaço suficiente e os sujeitos posicionavam-se em semicírculo, de tal forma que conseguiam ficar face a face para as interlocuções do grupo e para assistirem aos episódios, além de facilitar o registro via gravação em áudio e vídeo. Devido às gravações realizadas desde os primeiros encontros do curso de extensão, os participantes já estavam habituados a presença das câmeras e não houve nenhuma indisposição quanto a isso. Foram feitas as gravações com duas câmeras e a qualidade do áudio e do vídeo ficou sem ruídos ou interferências, tornando possível a transcrição integral das sessões.

Os grupos focais com a autoconfrontação cruzada foram filmados com duas câmeras (Sony Full HD e GoPro Hero4), com a autorização expressa dos participantes via Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de modo que se tornasse possível captar o máximo de informações (tanto da fala quanto das expressões) para compor o corpus da pesquisa.

Foram realizadas três sessões de grupo focal ao longo das atividades de campo. Nas duas primeiras sessões, foi explorado somente um episódio inédito; enquanto na última sessão, foram introduzidos dois outros episódios. A escolha dos episódios no desenvolvimento desta pesquisa atingiu o objetivo de provocar discussões que pudessem explorar melhor o conteúdo das partilhas que foram realizadas durante o curso de extensão, em que três perguntas sobre os episódios nortearam as discussões, sendo: “O que neste episódio mais me interessa? Por que isso me interessa mais? Para o meu trabalho docente, por que isso me interessa tanto?”.

Desse modo, durante as autoconfrontações cruzadas em grupo focal, os participantes manifestaram-se, após assistir ao episódio, atendo-se inicialmente às três questões orientadoras, e depois de cada um ter falado, solicitou-se que complementassem ou discutissem sobre o que os colegas apontaram e daí derivaram muitos relatos de experiências a partir de trocas e partilhas com colegas e a importância disso para o dia a dia do trabalho docente.

A constituição do corpus de dados da pesquisa se materializou com a transcrição das videogravações dos grupos focais, além de registros então realizados pela pesquisadora durante esses encontros.

Com base no corpus de dados produzido, foram feitas várias leituras pautadas no referencial teórico da pesquisa, qual seja, o gênero profissional docente (Clot, 2007CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. 2ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007., 2010), destacando-se interações entre os participantes que pareciam conter indícios de tal gênero. As transcrições e anotações das videogravações do grupo focal possibilitaram a identificação das categorias de análise a serem exploradas nas fases seguintes da investigação.

Em síntese, dos resultados obtidos pela investigação realizada, destacam-se três elementos do gênero profissional docente: o segredo, a conexão entre iguais e a dinâmica da docência. Os professores tendem a tratar seus estilos profissionais como segredos ante os colegas e, em momentos de “desprivatização” da prática, esses segredos são “revelados”, em contrapartida à partilha dos segredos dos outros, fomentando uma relação de cumplicidade profissional. O que chamamos de conexão entre iguais diz respeito às relações de proximidade e de identificação entre os professores, possibilitando as partilhas. A dinâmica na docência aqui considerada pauta-se em um tempo que é cronológico e mensurável (chronos) e em um tempo que é vivido, das experiências particulares (embora sempre de natureza sócio-histórica), da ação (kairós). A imersão nessa dinâmica é aqui assumida como um dos elementos que tornam o trabalho do professor difícil e complexo. Esses três elementos identificados apontam para posturas favoráveis à partilha, atreladas à ideia de apoio e de legitimação da ação docente, a partir de pressupostos produzidos e colocados em circulação no grupo. Considera-se que a necessária confrontação sistemática dos professores com essa dimensão complexa de seu trabalho, para a qual eles mobilizam o gênero profissional docente, consiste em desafio importante para as ações formativas que lhes são dirigidas.

Parece possível afirmar que o emprego da autoconfrontação cruzada em grupo focal se mostrou muito relevante para o alcance dos objetivos da pesquisa, tendo em vista que permitiu à pesquisadora e aos participantes a percepção de elementos das partilhas realizadas e exibidas nos episódios (relativas a momentos anteriores), possibilitando o estabelecimento de novos diálogos sobre o conteúdo das trocas, que versavam especialmente sobre os saberes postos em circulação no grupo, sobre seu lugar na formação e no trabalho docente.

Considerações finais

A utilização de videogravações na pesquisa em Educação pode apresentar tanto um conjunto de possibilidades a serem desfrutadas quanto desafios a serem enfrentados e superados. As possibilidades referem-se, sobretudo, a uma ampliação e a um refinamento dos registros pelo uso do vídeo, facilitando a captação não só de sons, como de gestos, expressões e outros elementos da situação a ser observada, aumentando as informações para análise. Já os desafios, diversos, podem se impor desde os primeiros momentos da coleta de dados, como a inibição dos participantes diante das câmeras e mesmo a obtenção da autorização por parte de todos do grupo para a implementação do procedimento.

No âmbito da pesquisa aqui referida, o período inicial de um ano de coleta de dados, com a videogravação dos encontros feitos no curso de extensão - anterior à realização da autoconfrontação cruzada em grupo focal - possibilitou que os participantes se acostumassem com a presença das câmeras e, no momento da composição do corpus da pesquisa, já estavam mais habituados e não pareciam preocupados com as filmagens.

Outros desafios importantes - e possibilidades - referem-se à produção dos episódios, elementos fundamentais para a estratégia em questão. A escolha de momentos realmente potentes - interessantes, atraentes, instigantes, desafiadores e significativos - para a mobilização dos participantes impõe sérias dificuldades, cujo enfrentamento requer um alto grau de investimento do pesquisador, no sentido de se atentar para as oportunidades que se apresentam no material empírico reunido, nem sempre muito evidentes.

Outro elemento-chave para o desenvolvimento da autoconfrontação cruzada em grupo focal como estratégia investigativa é a participação ativa dos sujeitos nas discussões dos episódios, bem como a valorização, por parte do pesquisador, dessas contribuições. Nessa estratégia metodológica, desenha-se uma situação na qual os participantes apontam e defendem suas ideias, expressam-se e são ouvidos (está presente o dialogismo) e, portanto, expõem-se e participam ativamente das discussões. O pesquisador atua ao mesmo tempo como desencadeador, mediador e observador dessas situações dialógicas.

Um último aspecto a ser destacado se refere ao potencial formativo das experiências vividas no âmbito dos grupos nos quais a autoconfrontação cruzada foi implementada. Esse caráter formativo se assenta no diálogo que se instaura entre os participantes, uma vez que

o pensamento ou, melhor ainda, a nova ideia caminha com as palavras, por meio das palavras, entre as palavras, para além das palavras e, às vezes, contra as palavras. [...] Assim, a ideia que se produz no diálogo realizado é [...] um novo meio para pensar. (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de João Guilherme de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010., p. 245-246).

Esse caráter formativo ultrapassa os objetivos da pesquisa desenvolvida, mas pode oferecer novas possibilidades para a proposição de trabalhos investigativos que agreguem objetivos de intervenção nas situações pesquisadas. De todo modo, mesmo para trabalhos que, como o aqui descrito, não almejam a intervenção deliberada na cena investigada, o recurso da autoconfrontação cruzada em grupo focal faz emergir a voz dos participantes, com suas percepções, inquietações e pontos de vista. Os participantes estão “em cena” nas videogravações, podem assim perceberem a si mesmos como focos da atenção do pesquisador. Suas falas e gestos - por vezes os mais sutis e inaudíveis, não fosse o recurso do vídeo - interessam ao pesquisador, que se mostra disposto a ouvi-los e organiza o ambiente para que sejam ouvidos também pelos demais participantes. Pressupõe-se a composição, por essa via, de um recurso catalisador para a reunião de dados para investigação de temas complexos - como o que perseguimos, sobre o gênero profissional docente -, bem como para intervenções de ordem formativa em diferentes grupos sociais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2020
  • Aceito
    30 Jun 2021
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