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Como ajudar professores do magistério superior a transformar metodologias passivas em metodologias ativas na sala de aula: a prática da Clínica da Atividade Docente em foco

Aiding higher education professors transform passive methodologies into active methodologies in the classroom: the practice of the Clinic of Teaching Activity in focus

Cómo ayudar a los docentes del magisterio superior a transformar metodologías pasivas en metodologías activas en la clase: la práctica de la Clínica de la Actividad Docente en foco

Resumo:

Este texto apresenta um relato de experiência em formação docente continuada na educação superior e tem por objetivo mostrar como ajudar professores a transformar metodologias passivas em metodologias ativas em sala de aula. As chamadas “metodologias ativas” estão em voga e talvez nunca se tenha exigido, recomendado ou esperado tanto quanto agora que os professores passem a “usá-las” ou “empregá-las” em suas salas de aula, para benefício dos alunos. Nesse sentido, os professores teriam que “abandonar” as metodologias passivas que tradicionalmente vêm “utilizando”. Diante desse cenário, adota-se, neste trabalho, a prática teórico-metodológica da Clínica da Atividade Docente, que se orienta amplamente por uma perspectiva dialógico-desenvolvimental, inspirada em Bakhtin e Vigotski, e utiliza o método ou a técnica da autoconfrontação, em que, de modo geral, os professores observam imagens de si em ação e são levados a analisar suas atividades, interagindo coletivamente. Por meio desses pressupostos teórico-metodológicos, nós mostramos, neste relato de experiência, com base em um caso clínico concreto, que o mais indicado é buscar ajudar efetivamente os professores a chegar a metodologias ativas mediante a transformação concreta das metodologias passivas que já mobilizam em sala de aula, ao interagirem dialogicamente com os alunos.

Palavras-chave:
metodologias ativas; prática docente; Clínica da Atividade Docente; formação docente continuada

Abstract:

This study displays an experience report on continuing teacher training in higher education and seeks to aid professors transform passive methodologies into active methodologies in the classroom. These so-called “active methodologies” are in vogue and perhaps have never been demanded, recommended or expected as much as recently, so that teachers begin to “use” or “employ” them in classrooms for the benefit of their students. In this sense, professors would have to “abandon” the passive methodologies that they have traditionally been “using”. In such a scenario, the study adopted a theoretical and methodological standpoint of the Clinic of Teaching Activity, which is largely guided by a dialogical and developmental perspective inspired by Bakhtin and Vygotsky, and uses the method or technique of self-confrontation, in which, generally, professors observe images of themselves in action and are led to analyze their activities and interact collectively. Based on these theoretical and methodological assumptions, our experience report revealed, through a concrete clinical case, that the most appropriate step is to find ways to effectively help professors reaching active methodologies, by means of factual transformation of the passive methodologies that they already mobilize in the classroom when interacting dialogically with the students.

Keywords:
active methodologies; teaching practice; Clinic of Teaching Activity; continuing teacher education

Resumen:

Este texto presenta un relato de experiencia sobre la formación continua de docentes en la educación superior y tiene como objetivo mostrar cómo ayudarlos a transformar metodologías pasivas en metodologías activas en la clase. Las llamadas «metodologías activas» están en boga y quizás nunca se ha exigido, recomendado o esperado tanto como ahora que los docentes comiencen a «usarlas» o «emplearlas» en sus clases, en beneficio de los estudiantes. En este sentido, tendrían que «abandonar» las metodologías pasivas que tradicionalmente han estado «usando». Ante este escenario, se adopta, en este artículo, a partir de la práctica teórico-metodológica de la Clínica de la Actividad Docente, que se orienta en gran medida por una perspectiva dialógico-evolutiva, inspirada en Bajtín y Vygotsky, y utiliza el método o técnica de la auto-confrontación, en la que, por lo general, los docentes observan imágenes de sí mismos en acción y son llevados a analizar sus actividades, interactuando colectivamente. A partir de estos presupuestos teórico-metodológicos, mostramos, a través del estudio de un caso clínico concreto, que lo más adecuado es buscar ayudar efectivamente a los docentes a alcanzar metodologías activas a través de la transformación concreta de las metodologías pasivas que ya movilizan en la clase, al interactuar dialógicamente con los estudiantes.

Palabras clave:
metodologías activas; práctica docente; Clínica de la Actividad Docente; formación continua de docentes

Introdução

No momento, estão em voga na educação as chamadas metodologias ativas de aprendizagem (Barbosa; Moura, 2013BARBOSA, E. F.; MOURA, D. G. Metodologias ativas de aprendizagem na educação profissional e tecnológica. Boletim Técnico do Senac: Revista de Educação Profissional, Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 48-67, maio/ago. 2013.). Não temos a pretensão de entrar no mérito da discussão sobre serem novidade ou terem uma história, mas sim de enfatizar a importância delas no processo de ensino-aprendizagem e tecer considerações acerca do modo como esse tema tem sido abordado pelas instituições com os professores.

Em relação à relevância das metodologias ativas de aprendizagem, destaca-se que,

para se envolver ativamente no processo de aprendizagem, o aluno deve ler, escrever, perguntar, discutir ou estar ocupado em resolver problemas e desenvolver projetos. Além disso, o aluno deve realizar tarefas mentais de alto nível, como análise, síntese e avaliação. (Barbosa; Moura, 2013BARBOSA, E. F.; MOURA, D. G. Metodologias ativas de aprendizagem na educação profissional e tecnológica. Boletim Técnico do Senac: Revista de Educação Profissional, Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 48-67, maio/ago. 2013., p. 55, grifos dos autores).

Em outras palavras, vislumbra-se um processo de ensino-aprendizagem que seja significativo para uma aprendizagem efetiva.

Do nosso ponto de vista, consideramos que o processo de ensino-aprendizagem ideal ocorre por meio de uma relação dialógica entre docentes e discentes, aqui entendida em termos bakhtinianos e implicando, “quer em palavras, quer em ação [...], compreensão ativa e responsiva” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização e tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 122). Isto é, uma interlocução entre agentes da ação, que se revezam nos papéis de ouvinte e falante, ou seja, interagem um com o outro e também consigo mesmos e com o objeto-conteúdo de ensino-aprendizagem, de modo ativo e responsivo, uma vez que a ação é sempre mediada pela linguagem (Lima; Von Duyke, 2016LIMA, A.; VON DUYKE, K. Reflections on a dialogic pedagogy inspired by the writings of Bakhtin: an account of the experience of two professors working together in the classroom. Dialogic Pedagogy: An International Online Journal, Pittsburgh, v. 4, p. A98-A121, 2016. ).

Assim, cabe ponderar que “uma ideia só se esclarece para si mesma no processo de seu esclarecimento para o outro” (Bakhtin, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização e tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 118). O protagonismo do estudante em seu processo de aprendizagem não se dá de maneira monológica, mas endereçado a alguém, em geral ao professor e/ou aos colegas e, assim, a si mesmo.

Além disso, vale lembrar o que Freire (2011FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011., p. 25) enfatiza: “[...] não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro”. Logo, não há uma fronteira clara e definida em que, de um lado, estaria o professor ensinando e, de outro, o aluno aprendendo. O processo de ensino-aprendizagem se realiza na interação entre ambos, mediado pela linguagem.

À vista disso, destaca-se o que Vigotski (2003VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica: edição comentada. Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003., p. 75) já preconizava há cerca de um século: “na base do processo educacional deve estar a atividade pessoal do aluno, e toda a arte do educador deve se restringir a orientar e regular essa atividade”. Portanto, dessa perspectiva, cabe ao professor ser o organizador do ambiente de ensino-aprendizagem, o que é possível realizar por meio da linguagem. Dessa maneira, a atividade do professor se faz ainda mais necessária e importante como a de um organizador do processo de ensino-aprendizagem, para que o aluno tenha o espaço para ser ativo e responsivo. No entanto,

nos processos de ensino e aprendizagem da maioria das universidades brasileiras, predominam abordagens metodológicas que se limitam à transmissão de conhecimentos dos professores para os estudantes, além de processos avaliativos restritos a níveis cognitivos de desempenho básico, como memorização e compreensão de conteúdos. Dessa forma, constitui-se um ensino autoritário e pouco crítico, no qual o professor é agente ativo, enquanto o aluno é agente passivo. (Vidal, 2015VIDAL, M. Segundo prefácio à edição brasileira. In: SCALLON, G. Avaliação da aprendizagem numa abordagem por competências. Tradução de Juliana Vermelho Martins. Curitiba: Pucpress, 2015. p. 17-19., p. 17).

Diante do exposto, pode-se entender que está mais para o monologismo a relação representada pela condição em que um dos lados está na posição passiva, enquanto uma interação mais dialógica está para uma condição ativa e responsiva de ambos os lados. Mas como o docente pode ter consciência de qual é a sua prática? E como pode agir para nela implementar mudanças caso se identifique a necessidade? Como transformar essa aula em que o professor é o agente ativo - centralizada no docente - e o aluno é agente passivo em uma aula em que o aluno se torna protagonista de sua aprendizagem? Qual é o papel do professor nesse processo?

Isso nos remete ao segundo ponto de nosso interesse neste artigo: a forma como os docentes estão sendo capacitados para atuar com metodologias ativas de aprendizagem. Em uma busca no Google, em março de 2022, utilizando os termos “metodologias ativas de aprendizagem”, o que aparece como sugestão de primeira página são anúncios de sites que habitualmente vendem capacitações, em geral e contraditoriamente oferecidas por meio de metodologias passivas, como cursos, palestras, leituras ou visualização de vídeos desvinculados da realidade concreta de sala de aula. Além disso, frequentemente, as formações docentes continuadas são ofertadas pelos chamados “especialistas externos” à atividade de trabalho docente, ou mesmo por colegas, como porta-vozes do discurso do especialista externo, para fazer recomendações aos demais professores, de modo passivo e assimétrico. Esses “especialistas” não acompanham in loco a vivência da realidade de sala de aula dos professores a quem dizem o que se deve ou não fazer, discurso que, normalmente, não é legitimado pelos verdadeiros atores da atividade: os professores em atuação (Althaus, 2013ALTHAUS, D. Complexidade e relevância de um gesto profissional docente aparentemente simples. 2013. 200 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Pato Branco, 2013., 2020ALTHAUS, D. Embates e perspectivas do trabalho pedagógico com desenvolvimento de práticas docentes. Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 29, n. 1, p. 75-93, jan./abr. 2020. ; Nichele; Borges, 2015NICHELE, A. G.; BORGES, K. S. Comunidades de prática docente: uma alternativa para a formação continuada de professores. ScientiaTec: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia do IFRS, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 125-137, jan/jun. 2015. ; Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

Com efeito, faz-se imprescindível considerar que,

nas ações formativas, é preciso reconhecer, valorizar e veicular os saberes dos(as) docentes, concebidos(as) como sujeitos ativos e em sua totalidade humana (e não como objetos), rompendo com modelos de formação que consideram o(a) professor(a) como mero(a) técnico(a) reprodutor(a) de conhecimentos produzidos pela ciência e que o desvalorizam como produtor(a) de saberes e como quem tem muito a dizer sobre sua realidade, seu trabalho escolar. (Rossi; Hunger, 2020ROSSI, F.; HUNGER, D. Identidade docente e formação continuada: um estudo à luz das teorias de Zygmunt Bauman e Claude Dubar. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 101, n. 258, p. 313-336, maio/ago. 2020. , p. 332-333).

Em contraponto às formações docentes continuadas que colocam os professores em uma posição passiva e como alternativa a isso, apresentamos neste texto alguns resultados de um programa de formação docente continuada, intitulado “Práticas docentes: dialogar, compartilhar e refletir”, implementado por nós em 2010 em um dos campi de uma instituição de ensino superior brasileira e em vigência desde então (Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.). Trata-se aqui, mais especificamente, de uma ação com práticas docentes de duas professoras do curso de Química e seus estudantes, realizada em 2019.

O programa visa apoiar docentes e discentes no desenvolvimento de suas atividades de ensino-aprendizagem, a partir do locus de interação professor-aluno, a sala de aula, respeitando-os enquanto especialistas no que fazem, inclusive em suas dificuldades, e provocando-os a transformar suas práticas. Na intervenção aqui discutida, constatou-se que, de início, as professoras ministravam aulas mais centralizadas nelas mesmas. Nos procedimentos efetuados, foram colocadas na condição de observadoras e analistas do que faziam e do que poderiam mudar. Isso as levou a um deslocamento da prática: passaram a organizar suas aulas de forma diferente para que os alunos participassem mais ativamente.

Esses procedimentos, para que pudessem ser realizados e posteriormente estudados do ponto de vista científico, além de se constituírem em primeiro lugar, autêntica e concretamente, como formação docente continuada de iniciativa de um departamento de educação no seio de uma instituição de ensino superior, seguiram com rigor procedimentos de ética em pesquisa envolvendo seres humanos, tendo todas as autorizações sido coletadas formal e previamente com os docentes e discentes participantes do trabalho.

Assim, a iniciativa foi antecipadamente apresentada à direção e aos colegiados dos diferentes departamentos acadêmicos da instituição, bem como a todos os alunos dos professores mais diretamente envolvidos, seguindo procedimentos éticos e tendo aprovação por unanimidade em todas as instâncias. Os documentos relativos aos procedimentos de ética, como atas de reunião, termos de consentimento e outros, encontram-se disponíveis em nossos arquivos.

Apresentamos, na sequência, a fundamentação teórica e os procedimentos metodológicos que embasam este trabalho, como também a análise dos dados, a discussão dos resultados e as considerações finais.

Fundamentos teóricos e procedimentos

A seguir, serão apresentados os conceitos mais gerais que norteiam a Clínica da Atividade, contudo, não se esgotará a complexidade teórica dessa abordagem, que é a nossa. O programa de formação docente continuada denominado “Práticas docentes: dialogar, compartilhar e refletir” constitui-se por meio de uma Clínica da Atividade Docente (CAD). Não se trata de uma “clínica” aonde as pessoas vão para fazer uma consulta, mas de uma intervenção no ambiente de trabalho, buscando a superação de dificuldades concretas mediante o protagonismo dos próprios trabalhadores docentes (Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

É uma abordagem inspirada na Clínica da Atividade (CA) de Clot (2010)CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade)., que tem como primazia a transformação da ação dos trabalhadores. Para tanto, a CA instaura com os agentes do trabalho um movimento “psicodialógico”, em que o sujeito é levado a se observar, gradativamente, até que consiga implementar mudanças em seus modos de pensar e agir (Althaus, 2019ALTHAUS, D. Aspectos da formação e do papel do interveniente na Clínica da Atividade: um estudo de caso em situação de autoconfrontação. 2019. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019. ).

Um dos referenciais mais importantes da CA é a psicologia desenvolvimental de Vigotski (2007VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução de José Cipolla Neto et al. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes , 2007., p. 68), segundo a qual, entre outras ideias fundamentais, “é somente em movimento que um corpo mostra o que é”, ou seja, é só em transformação que se entende como a prática docente é de fato e pode vir a ser. Cabe salientar que a condição para que tal transformação ocorra é que os trabalhadores, nesse caso os docentes, estejam no papel de protagonistas da análise e da transformação de sua atividade.

Outro embasamento primordial para a CA é o conceito de “gêneros de discurso” de Bakhtin (2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 262), os chamados “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Com fundamento nesse conceito, a CA desenvolveu o de “gêneros de atividade”, que são “tipos relativamente estáveis de atividades” (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade)., p. 124). Assim, o gênero tem dois lados indissociáveis: o relativo e o estável. Segundo Lima (2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: CRV, 2010.), o lado da estabilidade diz respeito à repetição da ação humana e o lado da relatividade refere-se à recriação dessa mesma ação.

Para os estudos da linguagem, o falante, ao repetir seu enunciado, pode recriá-lo e, com isso, reelaborar o sentido das palavras por ele incorporadas; desse modo, repete enunciados anteriores ao compor seus próprios enunciados com maior ou menor grau de recriação, com “um grau vário de alteridade ou de assimilidade” (Bakhtin, 2011BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011., p. 294-295).

Com o mesmo alcance normativo, o trabalhador, ao repetir sua ação, pode recriá-la e, com isso, reelaborar o sentido dos gestos por ele incorporados; dessa maneira, repete ações anteriores ao compor suas próprias ações atuais com maior ou menor grau de recriação (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).). Contudo, para haver “recriação da ação”, é necessário que o sujeito esteja engajado no trabalho. Por outro lado, se ocorrer um desengajamento do sujeito, a ação pode entrar em ciclo vicioso de repetição ao idêntico, sem que haja recriações significativas (Lima, 2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: CRV, 2010.).

A docência é um “gênero de atividade” e a “recriação da ação” docente é possível a partir de uma tomada de consciência. A “tomada de consciência”, geralmente, corresponde a um contato social consigo mesmo (Vigotski, 1998VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.). Em CA, isso significa a redescoberta da atividade em outra possibilidade de agir, diz respeito a uma experiência de desenvolvimento subjetivo, uma espécie de metamorfose do passado em possibilidades no presente e/ou futuro, que pode ser provocada e acessada por meio da linguagem na interação com outros (Clot, 2014CLOT, Y. Vygotski: a consciência como relação. Tradução de Maria Amália Barjas Ramos. Psicologia & Sociedade, [S. l.], v. 26, n. esp. 2, p. 124-139, 2014.).

Isso nos remete ao conceito de “real da atividade”:

O que não se faz, o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido - o drama dos fracassos - o que se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser capaz de fazer noutro lugar. E convém acrescentar - paradoxo frequente - o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito, assim como o que se tinha feito a contragosto. (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade)., p. 103-104).

O real da atividade é tudo o que poderia ou deveria ter sido realizado e que, por algum impedimento, não foi possível, mas poderá vir a ser realizado no futuro, quando o desenvolvimento subjetivo, no modo de pensar, for mobilizado para uma mudança no modo de agir, podendo ocorrer uma recriação da ação (Clot, 2010)CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).. Assim, a tomada de consciência, mesmo que de uma ínfima parte, do real da atividade é fundamental para as transformações em situações de trabalho.

Além disso, Lima (2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: CRV, 2010.) desenvolveu o conceito de “atividade reguladora”, em que o sujeito, ao enfrentar um conflito de critérios, busca conciliar duas atividades diferentes, até eventualmente encontrar entre elas um ponto de equilíbrio. Esse conceito é mobilizado na CAD, de modo a levar os participantes a explorarem os dois lados conflitantes que eles mesmos revelam em suas atividades, a fim de encontrarem uma regulação possível.

Para tanto, a CAD, inspirada na CA, utiliza métodos, como o de autoconfrontação, que levam o docente a um contato dialógico consigo mesmo, mediado pelo olhar de outros sobre si, bem como pela duplicidade do sujeito, que vê a si mesmo na filmagem em situação de interação com os alunos em sala de aula (Giordan; Sarti, 2021GIORDAN, M. Z.; SARTI, F. M. Autoconfrontação cruzada em grupo focal: recurso metodológico para pesquisas em educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 102, n. 262, p. 707-722, set./dez. 2021. ).

Cabe salientar que o papel dos “destinatários” é decisivo e inevitável. De acordo com Clot (2010)CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade)., são três os destinatários: os “imediatos”, que são os intervenientes - pessoas que conduzem a autoconfrontação (Althaus, 2019ALTHAUS, D. Aspectos da formação e do papel do interveniente na Clínica da Atividade: um estudo de caso em situação de autoconfrontação. 2019. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019. ) - e um colega do mesmo nível de expertise, que participa dos procedimentos; o “subdestinatário”, que é o outro de si mesmo, registrado nas imagens de si em ação; e os “sobredestinatários”, que são interlocutores indiretos e fazem parte de um coletivo mais amplo que compartilha o mesmo ofício (Lima; Althaus, 2016LIMA, A. P.; ALTHAUS, D. Formação docente continuada, desenvolvimento de práticas pedagógicas em sala de aula e promoção da saúde do professor: relações necessárias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 97, n. 245, p. 97-116, jan./abr. 2016. ). Nessa condição dialógica, o docente é levado a fazer uma análise de sua atividade, tendo a oportunidade de perceber possibilidades não realizadas em aula e, a partir disso, buscar a superação de dificuldades que identifique em seu trabalho (Lima, 2021)LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021..

A autoconfrontação é uma intervenção clínica na atividade e é conduzida por pessoas preparadas para atuar com a abordagem da Clínica da Atividade, as quais no Brasil são denominadas “intervenientes” (Althaus, 2019ALTHAUS, D. Aspectos da formação e do papel do interveniente na Clínica da Atividade: um estudo de caso em situação de autoconfrontação. 2019. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019. ). Os procedimentos metodológicos da autoconfrontação são praticados em três fases, implicando várias etapas (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).).

A primeira fase antecede as autoconfrontações e inicia-se com a sistematização da demanda pela organização coletiva. Na educação, o coletivo é constituído por docentes, agentes do mesmo gênero de atividade, agrupados em uma instituição e/ou área, mas que quase nunca estão afinados em compartilhar e dialogar sobre as situações de trabalho. Para o programa em pauta, considera-se que todos os docentes do campus formam um grande coletivo, o qual está arranjado em coletivos menores, que são os departamentos acadêmicos.

Diante disso, faz-se necessária uma reunião de organização desse coletivo e a sistematização de suas demandas por formação docente continuada para, então, apresentar-lhe a proposta da CAD e engajá-lo, constituindo duplas de professores voluntários para procedimentos de filmagens em ação. A partir disso, os professores das duplas indicam, cada um, uma turma de alunos e horários para a realização da intervenção e essas turmas são visitadas em três momentos:

  1. apresentação aos alunos da proposta de trabalho em que seu professor está engajado, convite para esclarecerem dúvidas e participarem juntos e coleta do consentimento livre e esclarecido dos estudantes;

  2. observação de uma aula de cada docente, na qual se tomam notas tão descritivas quanto possível a respeito da situação de interação professor-aluno. Nesse momento, evitam-se, tanto quanto possível, julgamentos de valor a priori: opta-se pelo posicionamento segundo o qual o interveniente está levantando elementos para analisar com os docentes nas etapas seguintes. No intervalo entre esse momento e o próximo, ocorre a devolutiva da observação de aula aos professores; na ocasião, os docentes têm a oportunidade de acessar o ponto de vista dos intervenientes sobre suas aulas por meio da leitura das anotações descritivas e da problematização da situação de trabalho juntos, pois, sendo descritivas, espera-se que possam gerar um estranhamento do professor sobre os atos que não percebeu durante a ação; e

  3. realização de filmagem de uma aula de cada professor e recorte de trechos cuja escolha é guiada pela problematização desenvolvida na devolutiva, para serem tema da próxima fase. Trata-se de um momento em que o professor tem a oportunidade de iniciar o processo de se auto-observar como profissional e ter tomadas de consciência de parte do real da atividade (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).; Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

Na segunda fase, ocorrem as autoconfrontações. A partir do trecho de aula selecionado com base nos resultados da fase anterior, realiza-se uma reunião pedagógica individual com cada docente, a denominada “autoconfrontação simples”, em que o professor se vê nas imagens em ação e é convidado a explicar detalhadamente para o interveniente o que aparece fazendo no vídeo; desse modo, dialoga também consigo, ao se tornar outro para si mesmo com o auxílio das imagens, e com seu ofício, por meio de um movimento psicodialógico em que se interroga sobre o que seus pares pensariam de sua condução em aula e o que diria em resposta (Lima; Althaus, 2016LIMA, A. P.; ALTHAUS, D. Formação docente continuada, desenvolvimento de práticas pedagógicas em sala de aula e promoção da saúde do professor: relações necessárias. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 97, n. 245, p. 97-116, jan./abr. 2016. ).

Em seguida, realiza-se outra reunião pedagógica com a dupla de professores, a chamada “autoconfrontação cruzada”, momento em que cada docente assiste ao trecho de aula do colega na presença desse colega, o qual é convidado a explicar detalhadamente o que o outro aparece fazendo. Nessa instância, quase sempre, um se reconhece na atividade do outro, mas não totalmente, ocorrendo controvérsias nos modos de pensar e agir (Giordan; Sarti, 2021GIORDAN, M. Z.; SARTI, F. M. Autoconfrontação cruzada em grupo focal: recurso metodológico para pesquisas em educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 102, n. 262, p. 707-722, set./dez. 2021. ).

Essa circunstância é salutar para que os dois sejam levados a dialogar sobre tais diferenças e sobre as possibilidades de recriação da ação. Nessa fase, ocorre um movimento psicodialógico envolvendo os diferentes destinatários e, com isso, o processo de auto-observação se amplia, possibilitando novas tomadas de consciência de parte do real da atividade (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).; Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

A terceira fase sucede às autoconfrontações. Essa fase engloba a edição de dois videodocumentários, acerca da atividade de cada professor, e o retorno ao coletivo por meio de reuniões pedagógicas coletivas, a fim de compartilhar com os pares a experiência vivenciada pela dupla de autoconfrontados registrada nos videodocumentários, para que dialoguem sobre os aspectos semelhantes e diferentes de suas práticas docentes e sobre as possíveis mudanças a serem implementadas no trabalho.

O coletivo, que faz parte do mesmo gênero de atividade e, portanto, atua com o mesmo ofício em situações semelhantes, tem a oportunidade de se reconhecer na ação dos colegas e, assim, passar também pelos processos de se auto-observar, tomar consciência de parte do real da atividade, com potencial para a recriação da ação (Clot, 2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Marlene Machado Zica Vianna. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. (Série Trabalho e Sociedade).; Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

Esses videodocumentários, além de registrarem de maneira efetiva as transformações pelas quais passou a atividade dessa dupla de professores, tendem a ampliar essas mesmas transformações aos demais membros do coletivo, provocando ainda outras mudanças.

Expostos brevemente os conceitos e os procedimentos, passamos para a apresentação e discussão dos nossos dados/resultados.

Análises dos dados/resultados

Em relação aos dados, na primeira fase, consideramos como coletivo os professores de um campus de uma instituição de ensino superior brasileira. Tais docentes estão organizados em coletivos menores, os departamentos acadêmicos, das seguintes áreas: Administração, Agrimensura, Agronomia, Engenharia Civil, Ciências Contábeis, Engenharia Elétrica, Física, Humanas, Informática, Letras, Matemática, Engenharia Mecânica e Química.

Quando da implantação do programa, em 2010, fizemos reuniões por departamentos para apresentar e submeter a proposta à validação dos professores, os quais foram unânimes em concordar com a realização do programa: houve o reconhecimento da necessidade desse trabalho de formação docente continuada e, com ele, houve também o voluntariado de várias duplas de professores para participar dos procedimentos da CAD, com mais de uma dupla por departamento (Lima, 2021LIMA, A. P. Como transformar a prática docente nas escolas: guia definitivo para o coordenador pedagógico. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.).

Foi nessa ocasião que a dupla de professoras de Química, Crislaine e Sueli (nomes fictícios), voluntariou-se para participar. Embora as filmagens com elas só tenham ocorrido em 2019, nesse ínterim, duplas de outros departamentos participaram e compartilharam suas práticas com o grande coletivo, com elas inclusive.

A seguir, relatamos e discutimos algumas amostras da devolutiva da observação de aula, do trecho de aula e das autoconfrotações com as professoras Crislaine e Sueli. Quanto ao retorno ao coletivo, comprometemo-nos em apresentar e discutir os resultados em um próximo trabalho, pois essa apresentação, pela sua extensão, exige e merece um trabalho de publicação à parte, em continuidade a este.

Devolutiva da observação de aula: problematização e tomadas de consciência

A devolutiva da observação de aula foi realizada com cada professora a partir de anotações descritivas feitas por nós, intervenientes, durante as aulas. Tais anotações são tão descritivas quanto possível, referindo-se aos atos realizados em sala de aula com o máximo de detalhes, evitando julgamentos/avaliações a priori de nossa parte, como intervenientes. Quando há algum tipo de julgamento, este é emitido pelas próprias docentes, que começam a analisar a si mesmas por meio do acesso às notas de observação dos intervenientes. Isso porque, nessa abordagem, o especialista na atividade do professor é o próprio professor, inclusive em relação às suas dificuldades; ao interveniente cabe apenas ser especialista na condução dos procedimentos metodológicos, e não na atividade do professor (Althaus, 2019ALTHAUS, D. Aspectos da formação e do papel do interveniente na Clínica da Atividade: um estudo de caso em situação de autoconfrontação. 2019. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019. ).

Assim, após as observações das aulas das duas professoras, nós, os intervenientes, reunimo-nos com elas individualmente, a fim de lhes dar conhecimento das anotações, e iniciamos alguma problematização com as docentes sobre suas práticas de ensino observadas mediante o que elas disseram em resposta às anotações.

Devolutiva com a professora Crislaine

Em síntese, as anotações sobre as nossas observações em relação à prática da professora Crislaine indicaram um padrão:

  • a professora Crislaine projetava o conteúdo na tela; fazia perguntas do tipo “completem a frase” e os alunos respondiam; explicava e escrevia no quadro e, quando os alunos perguntavam ou tinham dúvidas, ela respondia localmente/individualmente para aquele que perguntou; além disso, fez algumas pequenas pausas para tomar um gole d’água, que rapidamente eram interrompidas pelos estudantes com perguntas para ela.

Ao ouvir as anotações descritivas sobre seus atos em sala de aula, a professora Crislaine faz a seguinte análise: “Você comentando que eles faziam as perguntas e que eu respondia ali, eu fiquei pensando que eu deveria pedir para que eles falassem em voz alta para os outros. E, às vezes, no dia a dia, a gente acaba não percebendo essas coisas.”

Ao ter a oportunidade de se auto-observar por meio do nosso trabalho, de intervenientes, e do diálogo conosco desencadeado, a professora percebe que “deveria” realçar a pergunta de um aluno para que os demais pudessem acompanhar a questão e a resposta. Com base na fala da professora e em nossa perspectiva de análise, pode-se afirmar que Crislaine “toma consciência” de um aspecto do “real da atividade”, que fica marcado em seu discurso com o verbo “dever” conjugado no futuro do pretérito, afirmando que “deveria” relançar para toda a turma as perguntas que os alunos fazem de modo mais direto a ela, quase “em particular”, em geral com tom de voz mais baixo.

Com efeito, como tematizaremos, isso de que a professora toma consciência, dizendo que “deveria” fazer, ela efetivamente passa a fazer em suas aulas, o que está inequivocamente registrado no videodocumentário dedicado à abordagem do processo de transformação de sua prática de ensino, com imagens da professora concretamente realizando essa ação recriada/transformada em sala de aula e discutindo essa transformação em sessões de autoconfrontação.

Devolutiva com a professora Sueli

Da mesma maneira, nós, intervenientes, compartilhamos com a professora Sueli as anotações descritivas de sua aula. Em síntese, as anotações indicaram que:

  • a professora Sueli também projetava o conteúdo na tela; explicava e fazia anotações no quadro; efetuava perguntas aos alunos e eles respondiam; fazia brincadeiras e riam juntos; quando ela tentava fazer pausas para tomar água, os discentes também aproveitavam o momento para tirar dúvidas, interrompendo-a.

A professora, ao ouvir o nosso relato, no decorrer do diálogo conosco, chega à seguinte análise: “talvez eu tenha que achar alguma outra forma para instigar eles e eles começarem a fazer perguntas sem eu precisar cutucar”.

De modo semelhante ao da sua colega, a professora Sueli verbaliza que teve uma “tomada de consciência” de uma parte do “real da atividade”, assinalada em seu discurso por “eu tenho que achar outra forma” de fazer com que os alunos participem de maneira mais ativa da aula, ou seja, eles mesmos propondo questões, não ela.

Uma vez mais, como abordaremos adiante, essa tomada de consciência efetivamente leva a professora a proceder de modo diferente em suas aulas, o que pode ser verificado no videodocumentário que tematiza o processo de transformação de sua prática de ensino, com imagens da docente realizando sua ação de forma recriada/transformada em sala de aula e discutindo essa transformação em sessões de autoconfrontação.

A filmagem de aula: uma recriação da ação ao vivo

Na sequência, filmamos uma aula de cada professora. Depois das filmagens, disponibilizamos o material audiovisual às docentes e as incentivamos a assistirem e escolherem um trecho de aproximadamente um ou dois minutos para ser tema das autoconfrontações. Contudo, Crislaine disse que não conseguiu assistir à gravação, segundo ela, por conta do excesso de trabalho. Sueli, posteriormente à gravação da aula e antes de receber o material em vídeo, ao ser encontrada no horário de café por um de nós, intervenientes, relatou que estava ansiosa para assistir à aula filmada.

Disse ela: “estou curiosa para ver o vídeo da aula e, ao mesmo tempo, com receio de me ver. Na conversa com vocês, tive várias ideias e já fiz alterações [em minha prática observada] na aula gravada”. De fato, a professora deu a devolutiva de que assistiu ao material audiovisual da aula, entretanto, não conseguiu decidir qual trecho selecionar. Desse modo, ambas deixaram que nós, intervenientes, escolhêssemos os trechos de aula para tema de análise.

Para guiar a escolha de um trecho de aula para análise nas autoconfrontações, recorremos aos principais acontecimentos da aula registrados nas anotações das observações que foram problematizados no diálogo com as professoras, ocorrido nas devolutivas após a observação de aula.

Aula da professora Crislaine

A gravação de aula da professora Crislaine foi de 52min15s. Desse material, recortamos um excerto que vai de 12min35s a 13min26s, portanto, 51 segundos retratando o momento em que a professora destacou a pergunta de um aluno para a turma toda, algo que, na devolutiva de observação de aula, ela diz que “deveria” fazer e que não fazia anteriormente, mas, após ter “tomado consciência” e acessado uma ínfima parte do “real da atividade”, passou a fazer. Com isso, na filmagem de aula, além de se constatar que a Clínica da Atividade Docente é efetiva para transformar a prática docente em sala de aula, é possível visualizar a gênese dessa transformação se efetivando/acontecendo/desenvolvendo.

Aula da professora Sueli

A aula gravada da professora Sueli também durou 52min15s. O trecho escolhido foi de 27min48s a 29min48s, totalizando dois minutos, situação em que se verifica que a professora deu abertura para os alunos proporem um “mecanismo”1 1 Mecanismo é um termo que em Química significa o processo de reação química. . Na devolutiva conosco, após a observação, ela havia dito: “eu tenho que achar outra forma” de instigar os alunos para que eles façam perguntas, proponham questões. Portanto, o processo de transformação da prática docente e discente também pôde ser acompanhado concretamente no vídeo da referida aula, o que, mais uma vez, mostra que a Clínica da Atividade Docente é efetiva para transformar a prática docente em sala de aula.

Autoconfrontação simples: contato social consigo mesmo por meio de imagens de si em ação

O próximo passo foi realizar uma autoconfrontação simples (ACS) com cada docente. Vale lembrar que esse é o momento em que cada uma delas visualiza o trecho de sua aula e é convidada a explicá-lo e a analisá-lo detalhadamente para nós, intervenientes, que fazemos perguntas, colocando-nos no lugar de aprendizes daquela prática, e não de avaliadores, pois nessa abordagem o foco está no protagonismo dos docentes, no seu desenvolvimento profissional (Althaus, 2019ALTHAUS, D. Aspectos da formação e do papel do interveniente na Clínica da Atividade: um estudo de caso em situação de autoconfrontação. 2019. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2019. ). As professoras, ao dialogarem conosco para nos explicar suas ações, têm então a oportunidade de melhor esclarecê-las para si mesmas.

Autoconfrontação simples com a professora Crislaine

Na ACS, a professora Crislaine (PC) explica:

PC2 2 Legenda: PC - professora Crislaine e ID - interveniente Dalvane. : Na observação que vocês fizeram, vocês chamaram a minha atenção para isso: que às vezes eu respondia uma pergunta de um aluno para o aluno e a turma continuava um ou outro distraído e não prestava atenção. E poderia ser uma pergunta importante, né?! Então isso agora eu tenho feito mais nas aulas: chamar mais os alunos, responder, falar a pergunta do aluno, em voz alta, para que a turma escute. E eu percebi que eles têm perguntado mais.

[...]

ID: E você tem conseguido continuar tomando água

PC: Ah, sim! Se não, olha: estava rouca (risos). Eu tenho que tomar sempre.

ID: Mesmo com eles participando mais, você continua conseguindo?

PC: Ah! Agora isso eu não sei se dá tempo. Não tenho percebido, é automático, né?! [...] Vou prestar atenção na próxima aula se é isso que ocorre.

A professora revelou que, depois da devolutiva da observação, percebeu que respondia às perguntas dos alunos individualmente e resolveu fazer uma mudança na condução da aula: quando um aluno faz uma pergunta, ela passou a destacá-la para a turma toda e, a partir disso, os alunos passaram a perguntar ainda mais. Isso, vale sempre ressaltar, mostra que a Clínica da Atividade Docente é efetiva para transformar a prática docente em sala de aula, inclusive já nas fases iniciais de sua implementação.

Diante do fato de os alunos terem se tornado mais participativos, nós, intervenientes, questionamos sobre o momento em que eles fazem as perguntas. Isso porque, na observação, notou-se que havia um padrão em que a professora projetava os conteúdos, falava, explicava-os e, quando parava para tomar água, os estudantes aproveitavam esse exato momento para fazer perguntas. Contudo, a professora disse que em sala de aula não havia percebido especificamente isso, mas que iria “prestar atenção na próxima aula se é isso [mesmo] que ocorre”. Assim, percebe-se que a Clínica da Atividade Docente, além de contribuir para transformar a prática docente em sala de aula já nas fases iniciais de sua implementação, também contribui para o desenvolvimento da consciência do professor quanto ao que efetivamente ocorre em sala de aula e, com isso, potencializa a amplitude dessa transformação.

Nesse extrato da ACS, há indicativos inequívocos da transformação pela qual passa a docente em seu modo de agir, em sua prática de ensino. É possível, aqui, visualizar ao menos dois. Em primeiro lugar, com a nossa devolutiva da observação, antes ainda da filmagem da aula, ela “tomou consciência” de que as perguntas feitas pelos alunos direcionadas de maneira mais individual à professora poderiam ser importantes para toda a turma. Então, na aula filmada, já foi possível constatar a docente, por sua própria iniciativa, modificando seu modo de agir e, em vez de responder localmente ao aluno, passando a envolver toda a turma nas respostas às perguntas individuais. Nesse sentido, relata na ACS: “agora tenho feito mais nas aulas [...] falar a pergunta do aluno, em voz alta, para que a turma escute”. A transformação desse ato docente teve repercussão na prática discente também, pois, dessa forma, segundo ela, os alunos “têm perguntado mais”.

Em segundo lugar, o dispositivo continuou repercutindo sobre a professora, uma vez que, de acordo com ela, não percebe o fato de os alunos aproveitarem o momento em que ela está tomando água para fazerem perguntas porque “é automático”. No entanto, continuará exercitando o processo psicodialógico para observar a si mesma e verificar se é precisamente isso o que acontece, prometendo que trará a resposta na fase de autoconfrontações cruzadas (ACC).

Autoconfrontação simples com a professora Sueli

Na ACS, a professora Sueli (PS) diz:

PS3 3 Legenda: PS - professora Sueli e IA - interveniente Anselmo. : Eu tentei nessa aula... também aquela história que eu falo, falo, falo... Eu pergunto e eles não perguntam... Eu tentei ficar mais quieta e eu observei que eles fazem perguntas. Assim, eles formulam mais perguntas mesmo! Esse é um erro meu, sabe?

IA: Qual erro?

PS: Que é eu fazer as perguntas. Eu faço as perguntas porque daí eu já sei qual é a resposta. Quando eu fico quieta e digo: “Olhem aqui, vejam...” se esse mecanismo pode ser assim ou assado, não sei o quê”. Aí eles foram olhando, ficaram olhando e tentaram propor mecanismos para mim. Só que para mim parece um sacrifício, assim, eu ficar quieta esperando que eles (risos) procurem, vejam, enxerguem. Daí, eles começaram a propor mecanismos. [...] E eu me dei conta [de] que se eu continuar com essa interação com eles, mas deixando eles interagirem mais comigo do que eu com eles - pensando nesse sentido - para eles será mais interessante e o aprendizado mais significativo.

A professora inicia compartilhando conosco que está tentando implementar uma mudança no seu modo de agir: em vez de ficar falando e fazendo ela mesma perguntas para as quais já sabe a resposta, passou a dar um tempo para que os alunos façam a atividade, ou seja, para que tenham espaço para pensar. Assim, verificou que eles passaram a fazer as perguntas.

A professora Sueli revela que percebeu como um “erro” seu fazer as perguntas para as quais já sabe a resposta e considera que, para “corrigir” isso, precisa ficar mais “quieta” e deixar os alunos tentarem resolver as questões. Contudo, isso é para ela um “sacrifício”. Mesmo assim, tem tentado mudar porque notou que o resultado foi que “daí eles começaram a propor mecanismos”, ou seja, os estudantes passaram a ser mais ativos e responsivos.

Tal mudança da professora é atribuída por ela aos procedimentos de observação e devolutiva realizados por nós, intervenientes. À vista disso, “tomou consciência” de que, possivelmente, com a forma como fazia, “monopolizando” a palavra, o resultado “não fosse tão significativo”. Todavia, abrindo espaço para os alunos interagirem mais com ela do que ela com eles, é mais “interessante o aprendizado” e isso faz com que ele “seja mais significativo”.

Nesse trecho, fica evidente na explicação da professora Sueli que ela se deslocou de uma aula mais centrada nela mesma (“aquela história que eu falo, falo, falo, eu pergunto e eles não perguntam”) para uma aula protagonizada pelos alunos: “eu tentei ficar mais quieta e observei que eles fazem perguntas [...], começaram a propor mecanismos”. O resultado foi que “o aprendizado” se tornou “mais significativo”. Isto é, houve uma transformação da maneira de a professora conduzir sua aula, que repercutiu também na maneira de o aluno estudar.

Destaca-se, novamente, que a Clínica da Atividade Docente é efetiva para transformar a prática docente em sala de aula, inclusive já nas fases iniciais de sua implementação, além de contribuir para o desenvolvimento da consciência do professor quanto ao que efetivamente ocorre em sua sala de aula; com isso, potencializa a amplitude dessa transformação.

Na sequência, foram feitas as autoconfrontações cruzadas (ACC), cujas repercussões serão apresentadas no próximo item.

Autoconfrontação cruzada: reconhecer-se no outro

Na ACC, inicialmente, a professora Sueli assistiu ao trecho de aula da professora Crislaine, na presença desta, e foi convidada a descrever e explicar o que a colega aparece fazendo, sempre em sua presença. Na sequência, a professora Crislaine foi convidada a fazer o mesmo procedimento em relação à aula da professora Sueli, também na presença desta. A partir disso, foi estabelecido um diálogo entre as professoras e nós, intervenientes.

Autoconfrontação cruzada com as professoras Crislaine (PC) e Sueli (PS)

Seguem alguns trechos do diálogo entre as professoras:

PS: Aqui talvez fosse: estava falando, falando, falando. E aí eu acho que é quase a mesma coisa, quase, que aconteceu comigo, você está falando, falando, falando. E, quando você para e vai tomar água, esse cara pergunta. Esse aluno aqui.

PC: Sim.

PS: Mas ele está aqui na frente. Mas você disse que tem mais alunos aqui atrás. E talvez você fique só mais aqui próximo dele. Daí ele perguntou porque estava pertinho de você. Só que a dúvida que ele tinha era a dúvida da turma toda.

PC: Sim.

PS: Quer dizer, se ele não perguntasse, a turma toda iria ficar com dúvida?

PC: Também se eu não parasse para tomar água, ele talvez não fizesse a pergunta.

PS: É algo assim, sei lá.

[...]

PC: Quando teve a filmagem e depois a conversa com eles [os intervenientes], na observação, quando um aluno perguntava, [o que] eu fazia antes de ter a filmagem [era:] o aluno me perguntava e eu respondia ali para ele. E, às vezes, poderia ser a dúvida de outros. Aí, quando teve a filmagem, eu já falei em voz alta a pergunta dele. Em outros momentos depois dessa nossa última conversa, eu comecei a pedir para que eles falassem em voz alta. Mas, às vezes, não falam tanto em voz alta. Uns são mais tímidos. Então eu tenho respondido a pergunta do colega, comentado, e eu percebi que eles têm participado mais e têm tido mais interesse também. E eu tenho parado em mais momentos para beber água (risos). Porque é bem nesse momento que eles perguntam. Eu dou uma pausa, aquela pausa parece que eles absorvem, eles precisam de um tempo para entender e depois seguir. Eu já dou mais pausas na aula. Às vezes, a gente vai falando, falando e acha que eles estão entendendo. Então eu estou dando mais pausas rápidas. [...] Intencionalmente! Já aproveito, bebo uma água e vou andando com a água pela sala.

[...]

PS: O que eu aprendi com vocês aqui, de eu enxergar isso, é assim: não sou eu que faço tudo agora, entendeu?! Eu monto lá o mecanismo tal e tal: “Eu quero que o reagente passe por aqui, por aqui... tá aqui. Agora eu quero que vocês desenvolvam, vocês, cada um aí, vão conversando e discutam e proponham um mecanismo. Vocês façam!”. Aí eu paro, é um sacrifício para mim. Aí eu paro, fico lá esperando, daí “vamos lá, gente!”. Aí dou uma andada, assim... “Professora, aqui não sei o quê”. Daí eu olho lá: “olha, aqui talvez não sei o quê”. Daí eu vou lá para a outra ponta, fico caminhando porque eu não consigo parar. Mas eu falei para eles: “eu estou me policiando! [...] Vocês vão fazer e vão me propor, eu não vou fazer no quadro enquanto não tiver uma proposta de vocês”. Isso foi muito legal! Isso é uma coisa que eu vou continuar. Não posso fazer isso no começo porque eles não têm o embasamento. Depois que eles têm o embasamento, eles conseguem fazer.

Ao visualizar o trecho de aula de sua colega, a professora Sueli se reconhece em situação semelhante de trabalho: “a mesma coisa, quase, que aconteceu comigo, você estava falando, falando, falando. E, quando você para e vai tomar água, esse cara pergunta. Esse aluno aqui”. Sueli se vê, tal como era num passado bem próximo, na postura da colega, que ela descreve como de uma professora centralizadora, quase monológica, que fica “falando, falando, falando”. Em contrapartida, é possível afirmar que o aluno fica “ouvindo, ouvindo, ouvindo”, ou seja, nesse modelo em que ambas se encontravam antes da intervenção, o aluno era passivo porque, com a professora “falando, falando, falando”, não havia espaço para uma aprendizagem mais ativa e responsiva.

Sueli reconhece também que o momento em que o aluno fez a pergunta está relacionado com o gesto de Crislaine de parar para tomar água. Porém, levanta a hipótese segundo a qual isso poderia ter ocorrido porque a PC estava mais próxima daquele aluno, sendo que, se ele não tivesse perguntado, a turma toda ficaria com aquela dúvida. A professora Crislaine discorda, dizendo: “também se eu não parasse para tomar água, ele talvez não fizesse a pergunta”. Para ela, parece ser a parada para tomar água que levou o aluno a assumir o espaço de aula, fazendo a pergunta.

A professora Crislaine, inclusive, segue argumentando que se trata de uma mudança que ela implementou na aula, pois “antes da filmagem”, quando da “conversa com eles [nós, os intervenientes]” sobre a observação da aula, no momento da devolutiva, ela percebeu que respondia às perguntas individualmente, mas, nesse caso, os demais estudantes poderiam ter a mesma dúvida.

Diz a PC: “comecei a pedir que eles falassem em voz alta [...] e eu tenho respondido à pergunta do colega, comentado”. Ou seja, ela esclarece que implementou uma alteração na sua prática a partir da oportunidade que o dispositivo de CAD lhe concedeu com a “tomada de consciência” de parte do “real da atividade”, de como as coisas eram e de como poderiam ser diferentes.

A PC afirma, ainda, que a mudança por ela implementada teve resultados com os alunos: “eu percebi que eles têm participado mais e têm tido mais interesse também”. Isto é, o protagonismo do aluno não se desenvolve de modo espontâneo e independente, pois é preciso que o professor organize a aula de forma a levar o aluno à mudança de sua prática também.

Além disso, a PC destaca: “tenho parado em mais momentos para beber água (risos) porque é bem nesse momento que eles perguntam. Eu dou uma pausa, [n]aquela pausa parece que eles absorvem, eles precisam de um tempo para entender e depois seguir.” Na ACS, a PC havia dito que não percebia em que momento os alunos faziam perguntas, se era quando parava para tomar água, ou não, porque para ela isso era algo “automático”, mas que iria “prestar atenção na próxima aula [para ver] se é isso que ocorre”.

Entre a ACS e a ACC houve aulas e, de fato, a professora pôde constatar que é na pausa para tomar água que os alunos aproveitam para participar mais da aula. E chegou ao ponto de passar a usar esse “recurso” intencionalmente: “já aproveito, bebo uma água, e vou andando com a água pela sala”. A professora Crislaine parece convencida de que a pausa para tomar água funciona como dispositivo para que a aula deixe de estar centralizada nela e passe a ocorrer com os alunos assumindo o espaço de aula, sendo mais ativos e responsivos.

A professora Sueli, no diálogo com a colega, reafirma: “o que eu aprendi com vocês aqui de enxergar isso [foi considerável!]”. Em outras palavras, com essa intervenção, ela aprendeu a se observar, a “tomar consciência” do modo como conduzia sua aula e, na esfera do “real da atividade”, passou a se beneficiar da possibilidade de mudança: “não sou eu que faço tudo agora”. Assim, a PS passou a organizar a aula de maneira que expõe o exercício (“eu monto lá o mecanismo”) e diz aos alunos: “agora eu quero que vocês desenvolvam”.

Portanto, organiza a aula e prescreve aos alunos o que devem fazer. Enquanto eles trabalham, a PS para e fica “lá esperando”. Diz ela: “aí dou uma andada [...] porque eu não consigo parar. Mas eu falei para eles: eu estou me policiando! [...] Eu não vou fazer no quadro enquanto não tiver uma proposta de vocês”. Fica visível o quanto é complexo para o professor deixar de ser o centro da aula e dar espaço para o protagonismo dos estudantes. A professora relata ficar inquieta e ter dificuldade para esperar o tempo dos alunos. Percebe-se que ela se encontra engajada em uma “atividade reguladora” (Lima, 2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: CRV, 2010.), pois está se “policiando” para esperar a proposta dos alunos para a resolução do exercício. Diante dos resultados positivos que tem alcançado, diz ela: “isso foi muito legal!”.

Esses dados e sua interpretação analítica confirmam que, de fato, a Clínica da Atividade Docente é efetiva para transformar a prática de ensino em sala de aula, inclusive já nas fases iniciais de sua implementação, além de contribuir para a tomada de consciência do professor quanto ao que efetivamente ocorre em sua sala, com isso potencializando a amplitude e, consequentemente, o alcance dessa transformação, que se consolida da fase de autoconfrontação simples para a de autoconfrontação cruzada, traduzindo-se em recriação concreta da prática docente (e também discente) na sala de aula.

Considerações finais

Com essa intervenção, foi possível constatar que as professoras se encontravam em uma repetição ao idêntico e quase monológica de determinada prática de ensino: “falando, falando, falando”, ou seja, empregavam uma metodologia em que elas eram ativas e os alunos eram passivos. O padrão observado era o de que projetavam conteúdos no quadro, explicavam-nos, faziam perguntas que elas mesmas respondiam e, quando já estavam cansadas e com a “boca seca” de tanto falar, davam uma pausa para tomar água. No entanto, nem sempre conseguiam saciar a sede porque os alunos aproveitavam esse espaço-tempo para participar da aula por meio de perguntas.

A CAD proporcionou às professoras a possibilidade de se verem, de tomarem consciência de como eram e de parte do real da atividade (como poderiam ser diferentes), bem como de desenvolverem mudanças efetivas em suas práticas, numa recriação da ação que levou à transformação da interação professor-aluno e do próprio conhecimento mobilizado em sala de aula. As docentes passaram de uma aula mais centrada no ensino (exposição monologal) para uma aula mais centrada na aprendizagem do aluno (exposição dialogal).

A transformação alcançada pode parecer pequena, quando pensada em termos de atos minuciosos realizados de forma aparentemente isolada pelas professoras, que passaram a destacar coletivamente, para toda a turma, as perguntas individuais dos alunos, a parar para tomar água a fim de dar espaço para a participação dos estudantes com suas perguntas e a esperar que estes desenvolvam a atividade sem dar a resposta pronta antes de a concluírem. Porém, no conjunto, e especialmente pelo resultado de levar os alunos a serem mais ativos e protagonistas de sua própria aprendizagem, é que se pode afirmar que ocorreu uma transformação significativa e de grande relevância por elas protagonizada.

Tal processo de transformação não é simples, não deve ser subestimado e não ocorre “num passe de mágica”. Ele aconteceu aos poucos, na sala de aula, etapa por etapa, ao longo do processo de implementação da Clínica da Atividade Docente. A auto-observação teve início quando as professoras se voluntariaram e escolheram as turmas para observação e filmagem de aulas. Com a devolutiva da observação de aula, já houve tomadas de consciência manifestadas no discurso das professoras. A professora Crislaine diz que deveria responder à dúvida de um aluno para a turma toda. A professora Sueli menciona que deveria dar um tempo para os alunos resolverem os mecanismos, em vez de fazer perguntas prontas.

Na aula filmada, já foi possível constatar as docentes colocando concretamente em prática aquilo que elas mesmas identificaram que deveriam fazer de modo diferente, num verdadeiro processo de transformação de suas práticas, não se tratando aqui - de forma alguma - apenas de mera percepção isolada de pontos que precisariam transformar em sua prática e na do outro para torná-las mais próximas de metodologias ativas.

As autoconfrontações têm marcas discursivas do processo de “atividade reguladora” (Lima, 2010LIMA, A. P. Visitas técnicas: interação escola-empresa. Curitiba: CRV, 2010.) vivenciada pelas docentes para implementarem as mudanças e alcançarem os resultados. Além disso, registram a significativa ampliação do olhar da professora Crislaine que, na ACS, não percebia que os alunos aproveitavam para fazer perguntas no momento da pausa para tomar água. Então, conforme registrado, ela volta para a sala de aula e, em seguida, quando retorna para a ACC, afirma que passou a usar essa pausa intencionalmente, como recurso para melhor encaminhar o processo de ensino-aprendizagem. Registram, ainda, a transformação da professora Sueli, que diz ser para ela um sacrifício ter que esperar que os alunos proponham a solução do mecanismo, mas relata também que está se “policiando” para dar esse tempo-espaço de protagonismo e participação ativa dos estudantes, enquanto efetivamente lhes dá.

Ao compartilhar todo esse trabalho de intervenção/transformação com o coletivo docente, constatou-se que os professores efetivamente se reconhecem no que veem os colegas fazendo, no gênero de atividade de docência, e que podem pensar suas práticas juntos, de uma forma inédita, de um modo que talvez jamais fariam se não tivessem a oportunidade de ter contado com a mediação dos videodocumentários, nos retornos aos coletivos, nas reuniões pedagógicas. Contudo, essa fase específica será objeto de um próximo estudo, considerando-se a necessidade de maior espaço para essa apresentação e discussão.

Como temos ressaltado até aqui, nosso artigo se propôs, por meio de um relato de experiência, a trazer e discutir a própria transformação (mudança) das práticas docentes de sala de aula, na interação com os alunos, conforme é empreendida pelas professoras a partir de tomadas de consciência desencadeadoras de uma nova e imediata maneira de agir docente. Entretanto, salientamos que, ao longo do estudo, indagamo-nos sobre a permanência dessa transformação (será que poderia haver “recidivas”?) e, assim, dois anos depois, procuramos saber com as professoras, mediante entrevistas orais gravadas, o que teria permanecido em suas práticas tendo em vista o trabalho do qual participaram. Eis as respostas que obtivemos:

Intervenientes: o que ficou para vocês dessa experiência? Se ficou alguma coisa, o que ficou?

Professora Crislaine: A gente acaba reclamando muito que os alunos não fazem perguntas, né? Isso foi o que aconteceu no meu caso! Eles participavam muito pouco. E depois dessa intervenção, dessa contribuição, abriu-se o meu olhar de uma forma diferente. Ajudou no sentido de a turma participar mais e ser uma aula mais interessante, uma aula mais participativa da parte dos alunos.

Professora Sueli: Levando isso para as aulas remotas agora, uma coisa que a gente fez e parece que ficou em mim mesmo foi a história de deixar que eles me apresentem possibilidades. Então, quando eu coloco slides, hoje, por exemplo, de manhã, eu dei aula às 10:20 e eu trabalhei com mecanismos com eles. Aí tinha o primeiro slide, com três reações que eu ia trabalhar, e embaixo estava escrito assim: “proponha os mecanismos para as reações”. Então, na sequência, eu mostrei como funcionava o mecanismo, mas aquelas três reações eles terão que propor e, na próxima aula, sexta-feira, a primeira coisa que eu vou fazer é: eles vão me mostrar as propostas. Aí é aquilo que eu falei para vocês: eles mostram na câmera para mim. E aí eu vou, entre aspas, “corrigir” com eles. Então isso eu acho que eu aprendi, sabe? Deixar eles fazerem! Eles fazerem!

Essas respostas, de alguma forma, parecem apontar para a permanência da transformação empreendida, não perdendo ela os seus efeitos com o decurso do tempo.

Diante de todo o exposto e discutido neste trabalho, podemos afirmar que nosso programa de formação docente continuada levou as professoras a passarem de uma metodologia de aprendizagem passiva para uma ativa. E, diferentemente de outras abordagens, em que frequentemente se usa metodologia passiva para, de fora da sala de aula, falar aos professores que eles devem adotar metodologias ativas, neste programa, “Práticas docentes: compartilhar, dialogar e refletir”, nós o fazemos, de dentro da sala de aula, por meio de uma metodologia ativa, que parte do locus de sala de aula, levando os docentes a serem protagonistas de sua formação continuada, de modo a tomarem consciência de parte do real da atividade e a se disporem, por sua própria iniciativa, a realizar uma recriação autêntica e duradoura de sua ação.

Referências

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  • 1
    Mecanismo é um termo que em Química significa o processo de reação química.
  • 2
    Legenda: PC - professora Crislaine e ID - interveniente Dalvane.
  • 3
    Legenda: PS - professora Sueli e IA - interveniente Anselmo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2022
  • Aceito
    12 Abr 2023
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