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"NOVOS" MESSIANISMOS

“New” messianisms

Quando falamos de novos messianismos estamos longe de acenar para um retorno, na arena política ou religiosa, de figuras carismáticas ou tendências socioculturais que, ao longo da história da humanidade, conseguiram canalizar reivindicações sociais denunciando-as através de levantes armados, formação de comunidades ideais com propostas de estilos de vida social e religiosa. Estas figuras gozam de uma “legitimidade” que poderíamos identificar como “política”, pois, de algum modo, encarnam, em meio a uma grave crise, situações de precariedade ou expectativas populares, aspirações coletivas alternativas à vida social. Esta alternativa pode se apresentar mediante formas reformistas ou revolucionárias.

Todavia, a legitimidade destes movimentos e das figuras que os representam reside no fato de encarnar uma reivindicação ou expectativa coletiva, mas não conseguir ir além do plano do “agitador político ou revolucionário fracassado”, posto que o agitador, ainda que modifique superficial e efemeramente o panorama político, acaba derrotado (SEGUNDO, 1982SEGUNDO, J. L. El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret II/1. Historia y actualidad: Sinópticos y Pablo. Madrid: Cristiandad, 1982., 111).

Estes messianismos “legítimos” têm sido frequentes ao longo da história da humanidade e sempre incorporam um matiz religioso. No Brasil, a lista é longa: Antônio Conselheiro, Padre Cícero, os Santarrões do Rio Grande do Sul, Monge João Maria e José Maria do Contestado, Beato José Lourenço, Pedro Batista, o movimento dos Mucker, Frei Damião, etc.

O Brasil parece fadado a viver sob o signo da utopia, pelo fato de o imaginário messiânico constituir um dos elementos fundantes de sua cultura. A “Terra brasilis”, no entanto, parece estigmatizada, desde os primórdios, por uma utopia “intrinsecamente contraditória”: por um verso, colonizadores portugueses forjaram “uma teologia alucinada e messiânica” (Darcy Ribeiro), imbuídos da divina missão de instaurar o Reino de Deus em terras até então ignotas; por outro, povos subjugados e escravizados, protagonistas de um "messianismo perdido" (Roger Bastide).

Não por acaso nossa história e literatura consagraram “caudilhos, coronéis e pais da Pátria” cuja lista seria enorme. Pensemos apenas em alguns deles: desde o imperador Pedro I que, recusando-se a fazer retorno a Portugal, proclamou em alto e bom som “... diga ao povo que fico”, passando pela era Vargas, cognominado de “Pai dos pobres”, e, sucessivamente, por Jânio Quadros com sua mágica “vassoura” e ainda pelo “caçador de marajás”, Collor de Mello, até chegarmos ao atual presidente cujo nome – Jair “Messias” – parece insinuar que a ironia tem apreço pela gramática. Como se pode ver, exemplos não faltam em nossa história.

E isso nos leva a suspeitar de que o messianismo constitua chave privilegiada para se interpretar não só a história brasileira e sua situação atual, mas também uma ascensão populista, de direita e de esquerda, no cenário político internacional que ameaça seriamente as instituições democráticas, os direitos da terra, das pessoas, dos povos e o principio da inviolabilidade da dignidade humana.

Essa espécie de messianismo arraigado na história dos povos talvez explique certa propensão a se deixar envolver por personalidades carismáticas e suas respectivas promessas messiânicas que, salvaguardadas diferenças contextuais, fazem-se mediar tanto por estratégias de cooptação, clientelismo e tutela das massas, quanto por teorias “conspiratórias” que exploram o medo do outro e do diferente. Deflagra-se, em ambos os casos, a presença de novo messianismo “persistentemente contraditório”. Por um lado, constata-se a presença de dois elementos reciprocamente implicados: exacerbada desigualdade econômica e social e persistente imposição de imaginário autoritário e providencialista. Vítima da escandalosa desigualdade econômico-social e em situação de total desamparo dada a inexistência de uma cultura política, o povo acaba acreditando em promessas, movido, sobretudo, pela esperança obstinada de que finalmente um dia alguém será fiel ao que promete. Neste contexto de desamparo, a perversidade alcança seus níveis mais iníquos, posto que não apenas se defrauda e se rouba a esperança do povo, mas também se consegue forjar uma situação na qual o povo se volta contra si mesmo, o “povo contra a democracia”.

Por outro lado, em contextos políticos “estáveis” e de relativa segurança social, novos messias se vendem como guardiães de “valores”, da paz e do bem estar social. Seriam, na opinião deles, conquistas dos antepassados, ameaçadas por inimigos externos. Em vez de pontes que favoreçam a “cultura do encontro”, prometem-se muros protetores; em substituição à solidariedade e à “amizade social”, propõe-se o princípio de uma espécie de egoísmo sócio-nacionalista (“America first”). Prevalece, no final das contas, a estratégia do isolamento, do confronto e da polarização.

Em seu recente magistério social, o Papa Francisco caracteriza tais líderes como “populistas”. O populista é um sujeito habilidoso capaz de “atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder. Outras vezes, procura aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas dalguns setores da população. E o caso agrava-se quando se pretende, com formas rudes ou subtis, o servilismo das instituições e da legalidade” (Fratelli Tutti, n. 159).

Nesse particular, o mito parece desempenhar a função de galvanizar relações de cooptação, de clientelismo, de tutela e de promessas messiânicas em torno do imaginário autoritário e providencialista. De fato, o mito pode dar forma ao real, mas, ao pretender representá-lo, opera uma substituição da realidade pela crença, tornando invisível a realidade existente. Mais do que os próprios fatos, o que conta é a maneira como são imaginados e narrados.

E é por essa razão que, para embasar e justificar esse “messianismo intrinsecamente contraditório”, o mito, assim concebido, tem operado de maneira socialmente diferenciada. Do lado dos dominantes, tem reafirmado o direito natural ao poder e sua legitimação por meio do ufanismo nacionalista, da ideologia do desenvolvimento e progresso ilimitados, propiciados pela graça de Deus: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. E, da parte dos dominados, vem elegendo a via messiânica que, mediante o processo paradoxal de sacralização-satanização da política, considera o governante como “ungido de Deus” e, portanto, “salvador da Pátria” capaz de satisfazer todas as necessidades das massas.

Profeticamente, as escrituras cristãs retratam estes usurpadores e ladrões como o anti-cristo (1Jo 2,18; 4,3; 2Jo 7). Na catedral de Orvieto, Itália, o pintor renascentista Luca Signorelli representa, em um afresco, as obras do Anticristo. Trata-se provavelmente da única imagem conhecida do adversário de Deus e “inimigo da natureza humana”. A despeito da surpreendente semelhança com Cristo, são os detalhes a desfazer esta impressão. O que mais impressiona é a imagem do demônio que, à semelhança de um “ponto”, sussurra aos ouvidos do pregador a mensagem dirigida a seus ouvintes. O demônio aparece tão grudado ao pregador a ponto de seu braço, no ato de deslizar por baixo da toga, se confundir com o do aparente Cristo. Desse modo, ao espectador se lhe desvela o engodo que caracteriza a cena e, como que em um abrir de olhos, vê claramente uma multidão que, seduzida por toda sorte de promessas mentirosas e induzida a consentir na injustiça, não acolhe o amor da verdade e, assim, malogra sua humanidade (2Ts 2, 9-12).

O povo de Israel também tinha suas expectativas messiânicas, ansiava por “um esperado”, um ungido por Deus. Na perspectiva profética, o correlato desta esperança messiânica são os pobres do povo, o migrante, o órfão e a viúva. Esta “pobreria” — assim Monsenhor Romero se referia a seu povo salvadorenho – são os protegidos pela lei e pelo próprio Deus. Trata-se, portanto, de uma esperança messiânica histórica, coletiva e parcial. O messianismo de Jesus se situa na esteira dessa expectativa e o kerygma primitivo deixa claro que “Deus o constituiu Senhor e Cristo [Messias], este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2, 36). Em Jesus se cumprem todas as esperanças messiânicas do povo. Trata-se, porém, de um cumprimento ao modo de Deus que os discípulos terão que aprender, anunciar e testemunhar e, portanto, de um aprendizado que continua em aberto nos caminhos poeirentos da história. Por ser o Messias de Deus e segundo Deus, Jesus não é só um messias legítimo, mas o Messias.

Jesus exerce seu ministério de anunciar a proximidade do Reinado de Deus em ambiente e contexto de alta politização religiosa. O esperado, ungido por Deus, no imaginário popular era concebido na linha do restaurador da dinastia davídica. Esta expectativa popular situa Jesus na linha desses messias legítimos. O Novo Testamento testemunha massivamente esta esperança desde a pergunta do Batista: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” (Mt 11, 3) até a Ascensão. E, mesmo após a experiência da ressurreição, os discípulos recolocam a pergunta que acompanhou todo o seguimento de Jesus: “é agora que irás restaurar a realeza em Israel?” (At 1, 6).

Há que se observar uma diferença nessas perguntas. Curiosamente, a pergunta de João Batista parece insinuar que essa expectativa não estava recebendo uma resposta satisfatória a julgar pelas notícias que recebia sobre a atividade de Jesus. Com sua pergunta, no entanto, João abre a possibilidade a outro messianismo, dispondo-se a reconhecer em Jesus o esperado e, nesse sentido, o autêntico ungido de Deus a corrigir e purificar as expectativas do povo.

Todavia, essa irrupção alvissareira e desinstaladora de Deus parece não ter sido ainda reconhecida pelos discípulos mesmo após a Ascensão, posto que, até o último momento, se aferram a possibilidades descontruídas por Jesus ao longo de sua vida. Contudo, a narrativa cristã se ocupa desse outro messianismo. Na perspectiva lucana, o próprio ressuscitado não abdica de sua missão nem se sente desanimado diante “dos insensatos e lentos para crer” (Lc 24, 25), mas será a força do Espirito Santo que acompanhará a missão encomendada: ser testemunhas (At 1, 8) daquele que “passou fazendo o bem... no entanto o mataram... Mas Deus o ressuscitou” (At 10, 38-40).

Contudo, as Escrituras cristãs insistem em não ocultar a insensatez e lentidão dos discípulos para crer e “reaprender” esse novo messianismo, testemunhado por Jesus, que, a despeito de tudo, acompanha seus seguidores até o final. Sem dúvida, poderia se fazer aqui apelo a uma intenção explícita das Escrituras de nos colocar em situação vigilante frente à tentação de todos os tempos e que, inclusive, acompanhou o próprio Jesus, — uma vez que também Ele teve que aprender que seu messianismo era outro com respeito às expectativas do povo -, e que, com mais realidade e fundamento histórico, acompanha toda a Igreja. A história nos ensina que para esta tentação, o inimigo sempre tem encontrado seu “kairós”, um tempo oportuno (Lc 4, 13).

Pois bem, sem ocultar essa tentação (ambiguidade), o caráter distinto e específico do novo messianismo encarnado por Jesus não deixa nem abre espaços para “novos messias” ou “novos messianismos”: “Todos os que vieram antes de mim são ladrões e salteadores” (Jo 10, 8). Todo aquele que se atribui esta tarefa de “mediação” entre Deus e a humanidade é um mercenário e um ladrão.

Logicamente, se todos os que vieram antes de Jesus com tais pretensões são mercenários e ladrões, aqueles que vierem depois, entrarão na mesma categoria. Tudo o que cheira a politização da religião e, não menos perversamente, a “religiosização” (ELLACURÍA, 2000ELLACURÍA, I. Dimensión política del mesianismo de Jesús. In: Escritos teológicos II. San Salvador: UCA Editores, 2000., p. 60) do político parece atribuir-se tais pretensões. Parafraseando Rahner que, referindo-se ã relação entre cristianismo e humanismo cristão, afirmava o cristianismo como fim de todo humanismo, pode-se afirmar que a vida cristã é messiânica na medida em que o cristão se configura a Cristo, mas trata-se de um messianismo histórico e concreto e, por esta razão, sempre superável (RAHNER, 1970, p. 57-60). Consequentemente, o messianismo cristão, sem excluir a si próprio, condena todo messianismo que se erige em absoluto e, portanto, se encerra na imanência e bloqueia o caminho ao futuro, à “história complementária” (BLONDEL, 1950BLONDEL M. Exigences Philosophiques du Christianisme. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1950., p. 253). Por esta razão o messianismo de Jesus seria o fim de todo messianismo ou, melhor dizendo, a crítica a todo messianismo que não se proponha como configuração a Ele: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mc 8, 34)

Nesta perspectiva, a teologia latino-americana, aquela libertada e da libertação, tem falado do “povo crucificado” como sujeito histórico que torna presente em nosso contexto – e quiçá hoje em um contexto global –, o messianismo de Jesus. Se a obra da salvação continua na história, continua também o processo contra Deus: o processo que levou Jesus à cruz é o mesmo que crucifica o povo. Os povos crucificados atualizam historicamente o processo contra Deus enquanto visibilizam na história o corpo crucificado de Jesus (SOBRINO, 1976SOBRINO, J. Cristología desde América Latina: esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico. México: Ediciones CRT, 1976., p. 93). Deste modo, a teologia latino-americana tem teologizado a realidade histórica ao encontrar e reconhecer Cristo onde ele próprio disse que estaria e poderia ser encontrado (Mt 25, 31-46). E, na esteira da estrutura histórica da revelação, Cristo não simplesmente se identifica com a humanidade crucificada, mas esta humanidade se torna a mediação da própria realidade de Cristo; o povo crucificado é, portanto, a continuidade histórica da crucifixão de Cristo (Cl 1, 24).

Do ponto de vista da cristologia, teologizar a realidade dos povos crucificados não equivale a fazer valer um “novo messianismo popular” ou um “novo messianismo dos oprimidos”, mas, sim, a afirmar o único e inesperado messianismo de Jesus. Os povos crucificados se incorporam a Cristo na história enquanto crucificado, incorporam na história o Cristo Messias crucificado e deste modo encarnam o “mistério messiânico”: o verdadeiro messias acaba na cruz.

É na perspectiva da cruz que o messianismo perde ou enfraquece sua ambiguidade e seu risco potencial de ser instrumentalizado por ideologias de corte populista e nacionalista. Ainda mais, a cruz ajuda a superar a tentação do messias como “homem mágico” ao qual poderíamos delegar nossa inteira responsabilidade, ao afirmar de forma taxativa que a esperança do Reino anunciado pelo inesperado passa pela reprodução de sua práxis; práxis capaz de fazer descer da cruz os crucificados, mas também, e isto é o mais real, de subir na cruz com eles. A práxis do messias crucificado recupera o messianismo de Jesus e sua eficácia histórica, a ponto de se tornar modo único por meio do qual podemos, enquanto cristãos, ser chamados de messias (At 11, 26). Tanto nas escrituras cristãs como na história, messianismo e crucifixão mantém uma relação historicamente necessária, pois aquele que defende a esperança dos pobres tem que escutar a sentença: “É réu de morte” (Mt 26, 66).

Referências

  • BLONDEL M. Exigences Philosophiques du Christianisme Paris: Les Presses Universitaires de France, 1950.
  • ELLACURÍA, I. Dimensión política del mesianismo de Jesús. In: Escritos teológicos II San Salvador: UCA Editores, 2000.
  • SEGUNDO, J. L. El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret II/1 Historia y actualidad: Sinópticos y Pablo. Madrid: Cristiandad, 1982.
  • SOBRINO, J. Cristología desde América Latina: esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico. México: Ediciones CRT, 1976.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2020
  • Aceito
    07 Dez 2020
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