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APOCALIPSE E A PANDEMIA: JESUS INSERIDO NA REALIDADE DAS VÍTIMAS

Apocalypse and the Pandemic: Jesus in the Reality of the Victims’ Lives

RESUMO

“Ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,7). O livro do Apocalipse, surgido no fim do primeiro século da era cristã, manteve as comunidades de frente à política devastadora do Império Romano e das acusações das sinagogas (Ap 2,9; 3,9). No caminho da história, e fazendo eco aos nossos dias, se inverteu o teor profético desta narrativa, produzindo medo e apatia social. A pandemia, também, revelou a fragilidade do sistema hegemônico e colocou às claras a necessidade de outro paradigma civilizatório. O planeta já não suporta mais este modelo econômico fixado na produção, no capital e no lucro. A proposta, neste artigo, é confrontar essas duas realidades e fazer uma hermenêutica. Como a literatura apocalíptica vem em socorro de um novo estilo de vida, alicerçado em Jesus, o Cordeiro de Deus, identificado com as vítimas da história? Como a pandemia, sinal claro de uma crise humanitária cósmica, pode ressurgir como oportunidade para uma nova humanidade?

PALAVRAS-CHAVE
Apocalipse; Jesus Cristo; Vítimas; Comunidades cristãs

ABSTRACT

“Listen to what the Spirit says to the Churches” (Rev 2:7). The book of Revelation, which appeared at the end of the first century of the Christian era, kept communities strong in the face of the Roman Empire´s devastating politics and the accusations of Synagogues (Rev 2:9; 3:9). Throughout history, and still echoing today, the prophetic content of this narrative has declined, giving way to fear and social apathy. The pandemic, too, has revealed the weakness of the hegemonic system and clearly highlighted the need for another civilizing paradigm. The planet no longer supports an economic model based on production, capital and profit. This article aims to confront both of these realities and engage in hermeneutics. How can apocalyptic literature encourage a new way of life, based on Jesus, the Lamb of God, identified with the victims of history? How can the pandemic, a clear sign of a cosmic humanitarian crisis, present/become an opportunity for a new humanity?

KEYWORDS
Revelation; Jesus Christ; Victims; Christian Communities

Introdução

O tempo da pandemia colocou em cena muitas questões. As análises começam a se multiplicar e as reflexões ganham direções com perspectivas variadas. Para o propósito desta reflexão, interessa percorrer dois caminhos. Um, perceber que o mal da pandemia pode ser visto como uma oportunidade para chamar à conversão em relação aos rumos trilhados e às decisões tomadas pela humanidade. Relativizar a ganância, a soberba... Se esta geração não se converter todos perecerão (Lc 13,3), pois de acordo com o Papa Francisco: “a nossa civilização […] precisa de uma mudança, de um balanço, de uma regeneração” (FRANCISCO, 2020FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013., p. 6-7). E acrescenta: “É tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira! Chegou o momento de nos prepararmos para uma mudança fundamental no mundo após COVID” (FRANCISCO, 2020FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si’. São Paulo: Paulinas, 2015., p. 9). Nesse mesmo viés, poder-se-ia pensar nas duras palavras de Jesus ao se dirigir às multidões de seu tempo, que não sabiam interpretar o seu tempo presente e continuavam pedindo um sinal do céu. “Hipócritas, sabeis discernir o aspecto da terra e do céu; e por que não discernis o tempo presente?” (Lc 12,56).

A segunda questão caminha no sentido de percorrer as narrativas da literatura apocalíptica, propriamente o livro do Apocalipse, a fim de perceber sua mensagem de esperança em um contexto de desolação total vivido pelas comunidades cristãs do final do primeiro século. Nesse sentido, o livro do Apocalipse é paradigmático, uma vez que passou a ter para o meio social uma compreensão geradora de medo e de aceitação dos males como desejados por Deus. Assim compreendido, esse livro passou a transmitir uma mensagem terrível de fim do mundo, tirando todo seu teor profético de denúncia das maldades provocadas, não por Deus, mas pelos sistemas imperiais e seus representantes. Visto a partir desta perspectiva, torna-se um livro ambíguo, ora servindo para fortalecer a cultura do desespero e da indiferença, ora como literatura revolucionária que interpela, evoca e convoca as comunidades à resistência, na certeza de que o império é poderoso, mas tem pés de barro.

No fundo, esses dois caminhos da reflexão se cruzam e se esclarecem mutuamente, porque tanto a pandemia como o livro do Apocalipse oportunizam avançar rumo à esperança ativa para um mundo novo e transformado. Ora, a pandemia é um remédio amargo que pode se tornar doce, no sentido de chamar à conversão para salvar os pobres crucificados e a Casa Comum. A narrativa do Apocalipse, também supera o medo do fim do mundo e abre caminho para uma mensagem de futuro livre de todos os dragões na existência histórica. “A nova Jerusalém, a cidade santa (Ap 21,2-4), é a meta para onde peregrina toda a humanidade” (EG, n. 71).

1 Pandemia: uma oportunidade de conversão

Entre as palavras bastante seguras está a constatação de que a pandemia colocou em evidência uma realidade sociopolítica que até a chegada da Covid-19 era possível de ser ocultada. A grande narrativa da globalização mantinha ocultos muitos problemas sociais que somente emergiram no contexto da pandemia. É tanto verdade que a própria ideia provocada pela pandemia soa para a grande narrativa como algo inédito e não esperado. O pensamento hegemônico tende a imprimir uma concepção de que a pandemia é uma surpresa jamais imaginada e, como surpresa, desestabilizou o sistema mundial. O perigoso dessa constatação é que tal visão tende a colocar a culpa dos problemas emergidos pela pandemia na própria pandemia. Em síntese: o vírus se torna o culpado da crise e dos problemas já existentes na humanidade. Ao validar essa narrativa, o sistema imperante fica ileso da autocrítica de suas decisões e opções históricas inconsequentes com a vida do planeta. Ora, a busca de um culpado possibilita ao sistema se refazer por dentro para continuar o velho normal de sempre: aumentar seus lucros e livrar-se das responsabilidades da fome, das destruições planetárias e das hecatombes mundiais. O sistema, dessa forma, segue a lógica de sempre: se antes culpabilizavam-se os pobres pelos fracassos do sistema, agora o alvo é a pandemia. Ela se torna a vilã e em nome dela se defende um pacote de medidas que contrariam os direitos trabalhistas e se justificam mais sacrifícios para o planeta e para os pobres.

Este é somente um lado da moeda, porque, do outro lado, felizmente crescem os pensadores críticos que não encaram como surpresa a pandemia, mas interpretam-na como parte da totalidade e da lógica operante do sistema imperante. A questão determinante para esses críticos, perante o atual processo de globalização, era questão de tempo e da forma de manifestação da crise na sua globalidade. Nas palavras de Francisco: “Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente” (FRANCISCO, 2020FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia. São Paulo: Paulinas, 2020., p. 21-22).

Esta é a linha crítica adotada pelo Papa Francisco em relação ao sistema atual que cria ídolos, avança em progresso, mas não em humanidade.

A adoração do antigo bezerro de ouro (Ex 32,1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial, que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo

(EG, n. 55).

No entanto, além do pensamento duríssimo de um religioso, somam-se, nesta mesma perspectiva mordaz, outros como o economista grego Costas Lapavistas, quando afirma que

de maneira ampla, a crise da Covid-19 reafirmou a necessidade histórica de enfrentar um sistema em declínio, preso em seus próprios absurdos. Incapaz de se transformar racionalmente, o capitalismo globalizado e financeirizado continua recorrendo a doses cada vez maiores dos mesmos paliativos desastrosos

(apud SOUZA, 2020SOUZA, L. A. de P. Cura ou qual mundo queremos (re)construir. In: PASSOS, João Décio (Org.). A pandemia do Coronavírus: onde estivemos? Para onde vamos?. São Paulo: Paulinas, 2020. p. 171-183., p. 182).

É no rol dessas críticas que vem se fortalecendo a necessidade de encarar a pandemia não como castigo de Deus, mas como sinal dos tempos para repensar os rumos da humanidade. Por isso, toda a crise traz em suas entranhas a pergunta urgente e até desesperada pelo futuro.

A palavra crise – krisis do grego ? indica juízo, julgamento, discernimento. Nas crises, há necessidade de julgamento e de decisão. Em primeiro lugar, indica o juízo de Deus e a justiça divina; em segundo lugar, indica o dia do julgamento. Para julgar, são necessários critérios e, no julgamento da história, estão os da justiça divina (BAUER, 1971BAUER, W. Wörterbuch zum Neuen Testamen. Berlin: Walter de Gruyter, 1971., p. 895).

A crise é o corte abrupto da regularidade histórica, no caso, da rotina planetária. Ela, segundo Décio Passos, coloca a humanidade em meio a uma grande travessia. Não sabemos a dimensão do percurso e, menos ainda, o que nos aguarda no outro lado. No entanto, ao menos de imediato, algumas verdades se mostram como ilusões: a ilusão do progresso e do consumo sem limites; a ilusão de um capital mundial salvador do mundo; a ilusão de uma ciência prepotente sempre disponível a intervir em qualquer crise sanitária; a ilusão de uma religião do Deus onipotente que intervém quando a ordem natural joga contra a prosperidade (PASSOS, 2020PASSOS, J. D. (Org.). A pandemia do Coronavírus: onde estivemos? Para onde vamos? São Paulo: Paulinas, 2020., p. 232-234).

A crise provocou o despertar das utopias adormecidas, as viáveis e também as inviáveis. A postura da fé ou dos cristãos diante da pandemia precisa estar ancorada nos valores do Reino de Deus.

2 Comunidades cristãs na defesa da vida

A crise provocada pela pandemia leva à afirmação de que com essa experiência se pode tocar e experimentar a fragilidade humana. E essa realidade levanta a pergunta pelo sentido da vida de uma forma ainda mais radical. Nesta perspectiva, a religião ganha novos contornos e, ao mesmo tempo, revela suas ambiguidades. Vale o adágio: em tempos de chuva se percebem melhor a utilidade e as falhas do guarda-chuva.

Certamente, sempre foi e é difícil concatenar Deus, a religião e a fé com a realidade social e vital das pessoas. Por mais necessário que seja, às vezes é difícil esclarecer aos cristãos a peculiar relação da fé com os problemas do mundo. Como bem disseram os 152 bispos do Brasil na carta intitulada “Carta ao povo de Deus”1 1 A “Carta ao povo de Deus” é um documento assinado por 152 bispos católicos do Brasil, alguns já eméritos, e 1058 padres preocupados com as atitudes do Governo do atual presidente, Jair Bolsonaro, diante da pandemia e de outras crises sociais que atingem grande parte da população brasileira, em 04/08/2020. :

Temos clareza de que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados [...], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus

(Lc 4,43 e Mt 6,33) (EG, n. 180) (BISPOS DO BRASIL, 2020BISPOS DO BRASIL. Carta ao povo de Deus. Brasília: CNBB, 04 de agosto de 2020. [Carta assinada por 152 bispos do Brasil]).

Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta. É nesse horizonte que se precisa compreender a vida cristã e a sua razão de existir no coração do mundo. Os bispos, na Carta Aberta, assumem tal perspectiva não como uma questão optativa, genérica ou como apêndice da fé cristã nem surgem de motivações ideológicas ou partidárias, mas por razões de fé, de seguimento a Jesus. Como deixam registrado: é no horizonte do Reino de Deus que jamais se afasta da vida em sua materialidade que tomam posicionamento frente à realidade atual do Brasil. “Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor” (BISPOS DO BRASIL, 2020BISPOS DO BRASIL. Carta ao povo de Deus. Brasília: CNBB, 04 de agosto de 2020. [Carta assinada por 152 bispos do Brasil], n. 3).

Postura coerente com o sucessor de Pedro, o Papa Francisco, que de forma contundente posicionou-se, afirma a necessidade de encontrar Cristo nas chagas da história. É preciso tocá-las, pois uma das tentações é manter a “prudente distância das chagas do Senhor”. Jesus espera que “toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (EG, n. 270). E, na sequência, esclarece que fazer opção pelos pobres, tocando as suas chagas, não é “a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, diretas e contundentes, que não precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora” (EG, n. 271).

Essa perspectiva da opção pelos pobres está firmemente alicerçada na tradição bíblica, nas conferências episcopais latino-americanas e caribenhas e no Magistério da Igreja. Os pobres estão na origem, na constituição e na dinâmica do cristianismo (WANDERLEY, 2015WANDERLEY, L. E. Pobres. In: PASSOS, J. D.; SANCHEZ, W. L. (Org.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2015. p. 743-745., p. 743). A percepção da real presença dos pobres perpassa, de ponta a ponta, a história do cristianismo, mas nem sempre foram assumidos ou compreendidos da mesma maneira.

Na compreensão de fundo, está a perspectiva de que a fé para ser cristã deve estar a serviço da vida. Sabe-se dos erros históricos provocados por certas práticas religiosas que mais serviram para instrumentalizar as pessoas, eclipsando o poder revolucionário do Evangelho. Em nome de Deus se fizeram e continuam se fazendo muitas atrocidades na história. O Deus Criador e libertador caminha na história com seu povo sempre ao lado dos pobres, das viúvas e dos estrangeiros e nunca ao lado dos poderes instituídos e de seus comandantes. Como bem esclarece Vitor Feller: “Se a maior miséria física é morrer de fome, então a maior miséria espiritual é deixar morrer de fome” (FELLER, 1995FELLER, V. G. A revelação de Deus a partir dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995., p. 119). Continua o autor: os cristãos descomprometidos, na desculpa de buscarem o que julgam essencial, o religioso, o sacramental, na verdade se afastam da fonte da vida cristã, “o amor de Deus apaixonado pelos excluídos, sua revelação na pessoa e na história dos excluídos!” (FELLER, 1995FELLER, V. G. A revelação de Deus a partir dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995., p. 119). Com efeito, a vida neste mundo é para o cristão não somente o tempo da decisão diante da salvação definitiva como também da inauguração do Reino de Deus no mundo. Reino de justiça, de paz e de amor, no qual todas as pessoas participam de todos os bens do mundo criados por Deus.

Essa provocação ressalta como a Palavra de Deus, suporte e base primeira da revelação, pode ser instrumentalizada para diferentes finalidades. A Palavra de Deus não é a que procede da sabedoria humana, mas do Espírito e exprime as realidades espirituais (1Cor 2,13), mas o próprio Paulo denuncia que havia falsificadores da Palavra (2Cor 3,17). E uma vez que a Palavra de Deus não se deixa acorrentar (2Tm 2,9), cabe interrogar como no livro do Apocalipse se essa Palavra foi interpretada comumente a serviço do medo e da justificação das catástrofes. É uma questão que impulsiona a fazer um exercício hermenêutico de desconstrução dessa narrativa. A escolha, portanto, não é arbitrária, mas fruto das dúvidas existentes na cabeça de muitas pessoas, bem como de sua utilização de forma a amedrontar, criar medo, favorecendo a imobilização social.

3 Apocalipse: revelação a partir das vítimas da história

O livro do Apocalipse é o livro das visões, dos símbolos, dos números, dos personagens, das cores e da linguagem codificada ou cifrada. Por isso, mais do que qualquer outro livro bíblico, precisa-se de capacidades para sua decodificação. Algumas vezes, aquilo que é revelado permanece velado, pois só consegue desvelar (tirar o véu ou destapar) quem tem o código do autor (MAZZAROLO, 2010MAZZAROLO, I. O Apocalipse: esoterismo, profecia ou resistência?. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010., p. 30). Revelar e esconder são um binômio necessário diante da apocalíptica, pois ela envolve sempre o sofrimento e a estratégia da resistência. E o que é anunciado deve acontecer em breve (tachei) e cria sempre uma tensão no ouvinte (BODRIÑAN, 1993BODRIÑAN, C. Apocalipse, una lectura sociopolítica. Roma: Gregoriana, 1993. (Tesis doctoral), p. 77).

Toda a história da apocalíptica está envolvida pelo problema do mal. A toda transgressão corresponde uma sanção e, diante disso, se descortina o drama de uma realidade tremenda que parece ser pré-existente ao próprio ser humano (ABECASSIS, 1985ABECASSIS, A. L’Apocalyptique juive: sens et message. In: SIDIC — Service Internacional de Documentaion Judeo-Chretienne, Roma, v. XVIII, n. 3, p. 11-12, 1985., p. 11). No contexto do Apocalipse, o Império Romano funcionava como a grande besta aliciadora, à qual muitos, inclusive cristãos, sentiam-se atraídos pela avidez de lucros e ganhos com navios mercantes, docas e empresas transportadoras (KRAYBILL, 2004KRAYBILL, J. N. Culto e Comércio Imperiais, no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004., p. 18).

O livro do Apocalipse, assim como qualquer outro texto bíblico, deve também ser interpretado com o espírito com que foi escrito, à luz do seu contexto existencial. Nos anos 90 do século I, esse livro foi escrito por João, simbolicamente, às sete igrejas da Ásia Menor, mas o objetivo era encorajar todos os cristãos em situação de sofrimento. Nesse contexto, o Apocalipse está muito próximo da profecia, pois a vocação e a missão profética são frutos da revelação. Assim, a apocalíptica, como revelação, não é só o fim, mas também o jeito de um começo, a forma de desenvolvimento da missão e da responsabilidade no aqui e agora, como escreve Paulo: “Com efeito, eu vos faço saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi, nem aprendi de algum homem, mas por revelado de Jesus Cristo” (Gl 1,11-12) (MAZZAROLO, 2010MAZZAROLO, I. O Apocalipse: esoterismo, profecia ou resistência?. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010., p. 33). De forma análoga o profeta Jeremias escreve:

Tu te cingirás, levantar-te-ás e lhes dirás tudo o que eu te ordenar. Não tenhas medo deles para que eu não te faça ter medo deles. Quanto a mim, eis que eu te constituo, hoje, como uma cidade fortificada, como uma coluna de ferro, como uma muralha de bronze, diante de toda a terra

(Jr 1,17-18a).

O profeta e o vidente, no nosso caso, João, situam-se sempre do lado oposto do poder. Na época, Roma ditava e escrevia a sua história, mas não era a dos cristãos e das igrejas nascentes. A verdadeira face dessa nova história será inocultável conforme Jesus Morto e Ressuscitado seja o Senhor da história.

Como esclarece Pablo Richard, o Apocalipse é revelação (desocultamento) da presença transcendental e libertadora de Cristo ressuscitado na história. O apocalipse é o oposto do que hoje se chama de ideologia, que oculta a opressão e legitima a dominação. Portanto, voltar a essa narrativa representa “recuperar uma dimensão fundamental do movimento de Jesus e das origens do cristianismo” (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 19-20).

A história comandada pelo Império Romano estava como que fechada e justificada pela necessidade de fazer grande o Império para ampliar a segurança dos cidadãos. A força militar era justificada como segurança imperial. Os impérios têm a força e as astúcias para amarrar a história como realidade impossível de ser transformada. Jesus adverte os discípulos que os reis tiranizam e oprimem o povo, mas depois exigem ser chamados de benfeitores (Lc 22,25). Os imperadores agem sempre da mesma forma, como bem denunciava o proto-Isaías: “Ai daqueles que promulgam leis iníquas e que elaboram rescritos de opressão, a fim de desapossarem os fracos dos seus direitos, privar os pobres do meu povo da justiça, para despojar as viúvas e saquear os órfãos” (Is 10,1-2).

Os déspotas possuem a força da corrupção, do suborno, da agiotagem e manobram o direito e sepultam a justiça. Eles transformam a iniquidade em legalidade, portanto, o que é imoral passa a ser juridicamente correto. Nessa trilha, clamava também o profeta Jeremias, dizendo que o “cálamo do escriba era mentiroso” (Jr 8,8), isto é, a sentença assinada e rubricada pelo juiz era falsa, tendenciosa e mentirosa.

Todos os grandes impérios são construídos com sangue inocente. Quando fecham as portas das possíveis alternativas, resta ao povo a submissão e buscar saídas de resistência e sobrevivência. Eles sempre têm razão, mesmo curando a ferida de modo superficial, e fazem o povo acreditar em determinados chavões: “É assim mesmo”; “precisamos aceitar esta normalidade”. Por isso, João, ao descrever simbolicamente a existência de uma porta aberta no céu, abre uma fresta de luz e esperança, porque no céu é o lugar de Deus. Trata-se de uma simbologia especial para o âmbito da fé, porque “a porta é sempre uma passagem, uma mudança de cenário e uma abertura para outra realidade. O céu está fechado para o mau, para o impudico, o canalha e o amante da mentira (Ap 22,15), mas estará aberto para aquele que lavar suas vestes no sangue do Cordeiro (Ap 7,14)” (MAZZAROLO, 2009MAZZAROLO, I. A visão do trono: exegese e hermenêutica de Ap. 4. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 32, p. 222-241, mai./ago. 2009., p. 238).

A apocalíptica não é uma fuga da história. Ao contrário, é uma leitura concreta das esperanças messiânicas, da presença de Deus que julga e que salva seus filhos dos dragões, famintos por devorar inocentes, justos e mártires, como o autor configura na batalha entre o Dragão e a Mulher (Ap 12). João caracteriza sua obra como uma profecia marcadamente messiânica voltada a alimentar a expectativa do libertador do povo da opressão e da dominação estrangeira (CORSINI, 1984CORSINI, E. O Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 1984., p. 29). Os cristãos estavam mergulhados num ambiente de dupla perseguição. Eles estavam como sem teto e sem pátria (1Pd 2,11). Essa dupla perseguição vinha do Império e da sinagoga.

Os cristãos eram hostilizados e perseguidos pelos judeus, desde os primórdios do primeiro século. Conforme o testemunho de Justino (Dial. 16,4; 47,5; 96,2), nas sinagogas eram pronunciadas maldições e sentenças de excomunhão contra os cristãos. A mesma hostilidade tinha marcado Paulo (At 13,45) e continuou todo o segundo século

(PRIGENT, 1985PRIGENT, P. L’Apocalisse di S. Giovanni. Roma: Borla, 1985., p. 96).

O poder devorador dos dragões, símbolo das maldades provocadas pelas decisões dos imperadores, amargava cada vez mais a vida das comunidades. Viviam de frente para os dentes afiados da política imperial. A situação era tão cruel e difícil de sobreviver que, com base em seu poder, os imperadores conseguiram imprimir tanto o culto ao deus imperador como também uma marca nas pessoas. Isto significava que quem não tinha a marca do império não podia nem comprar e nem vender. “Para que ninguém possa comprar ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome” (Ap 13,17).

Essa repressão, no entanto, fez as comunidades criarem uma linguagem própria de comunicação e de sobrevivência. A linguagem codificada e enigmática que perpassa a estrutura deste livro nada mais é do que uma forma de burlar as opressões bestiais infringidas pelas ordens opressoras dos imperadores. Os códigos surgiram como sinal e instrumento de resistência frente às ofensivas do império. Por isso, desde o início do livro, João declara que tudo o que viu e escreveu é profecia em forma de sinal (Ap 1,3).

“O Apocalipse de João une Apocalíptica e Profecia. Os mitos e símbolos que utiliza não são representações estáticas e definitivas da realidade, mas instrumentos e critérios para um discernimento profético da história” (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 21). É uma maneira de chamar à conversão e oferecer a salvação universal. Oportuno notar a novidade profética manifestada em todo o percurso da história bíblica, com linguagens modificadas, mas mantendo sempre a lógica: um grito profético em defesa da vida dos pobres. Assim, pode-se dizer e compreender que na linguagem bíblica perpassa sempre uma novidade particular: ser um anúncio profético em vista da vida dos pobres e excluídos de cada tempo e lugar. Mesmo que expressa ora como narrativas históricas, relatando os mandamentos e leis do povo de Deus, seja através dos profetas propriamente, outras vezes em salmos, poemas, provérbios, novelas, cartas, ou mesmo por meio dos Evangelhos. Neste sentido, o livro do Apocalipse chega, por meio dessa linguagem simbólica, mas altamente revolucionária, ao grande sonho de Deus para a humanidade: um novo céu e uma nova terra (Ap 22).

Essa nova realidade é gestada no meio de um contexto extremamente desfavorável. O povo clamava em alta voz, dizendo: “Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardará a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?” (Ap 6,10). Esse grito se conecta com a realidade de extrema opressão e martírios. O próprio João está exilado na ilha de Patmos, sente-se amigo e companheiro nas tribulações e descreve o motivo desse exílio: “por causa da Palavra de Deus e do Testemunho de Jesus Cristo” (Ap 1,9).

As cartas do Apocalipse (2–3) se constituem em verdadeiro retrato da situação vivida pelas comunidades, bem como descobrem os fundamentos da vida cristã. Entre os vários elementos exegéticos e hermenêuticos possíveis em relação às sete cartas, interessa apenas centralizar na maneira como as comunidades caracterizam a pessoa de Jesus. Em cada uma, é descrita com características próprias, o que explicita a dimensão inculturada do querigma. Essa mística transmitida por João não estaria em relação fecunda com os apelos do Papa Francisco para uma Igreja em saída, pobre e dos pobres, com cheiro de ovelhas, inculturada nas periferias existenciais e sociais da vida das pessoas no mundo?

3.1 A face inculturada de Jesus na vida do povo

Cristo é o Evangelho de valor eterno (Ap 14, 6), que, sendo “o mesmo ontem, hoje e pelos séculos” (Hb 13,8), possui uma beleza inesgotável. Jesus é sempre jovem e fonte de constante novidade, e a Igreja não cessa de se maravilhar com a “profundidade de riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus” (Rm 11,33). Nas palavras do Papa Francisco, “com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece” (EG, n. 11). E da convicção de Francisco, “sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual” (EG, n. 11).

A partir dessa motivação de Francisco, no que tange à importância de Jesus como fonte cristalina para vigorar sempre de novo a missão evangelizadora da Igreja, buscar-se-á tirar o véu, a fim de perceber a revelação da fase genuína da pessoa de Jesus pintada pelas comunidades cristãs. O objetivo é fazer um exercício hermenêutico percebendo exclusivamente o anúncio querigmático do processo de inculturação da pessoa de Jesus na vida de cada uma das comunidades. João tem a sensibilidade e a perspicácia de inculturar o mesmo Jesus, no entanto, com rostos próprios de acordo com a realidade da comunidade. Como as sete comunidades pintam o rosto de Jesus?

1. Na comunidade de Éfeso, Jesus é descrito tendo presente “as sete estrelas em sua mão direita, o que anda em meio aos sete candelabros de ouro” (Ap 2,1). Abertura importante, pois Jesus está no centro da comunidade cristã. A vida cristã comporta centralidade em Jesus Cristo. O livro do Apocalipse está centralizado em Jesus Cristo como Cordeiro redivivo que liberta e resgata (Mc 10,45) e o único que tem o poder de abrir o livro e revelá-lo aos seus irmãos (Ap 4–5). “Como uma pedagogia da resistência, como uma catequese cristocêntrica da Revelação de Deus para as pequenas comunidades que surgiam e estavam sendo oprimidas pela sinagoga e pelo Império romano” (MAZZAROLO, 2009MAZZAROLO, I. A visão do trono: exegese e hermenêutica de Ap. 4. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 32, p. 222-241, mai./ago. 2009., p. 227). É centralidade impulsionadora para construir processos pastorais de uma evangelização cristocêntrica, livrando-se de certos exageros de ministros celebrantes e outros figurantes ocupando o lugar do próprio Cristo. O número 7 significa a plenitude, universalidade sem perder o caráter real e concreto de cada comunidade. As comunidades do Apocalipse são como as de hoje: todas elas muito diferentes e com problemas específicos (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 95-96).

2. Na comunidade de Esmirna, Jesus é “o Primeiro e o Último, aquele que esteve morto, mas voltou à vida” (Ap 2,8). Uma referência prioritária ao Jesus histórico que se constituiu no ressuscitado. É o Jesus pintado com as marcas dos pregos nas mãos e com o lado aberto pela lança, para os cristãos não esquecerem que a experiência da ressurreição do inocente não desfaz, mas exige a permanente referência ao crucificado. Em um belo texto, o teólogo Jon Sobrino aborda com propriedade a consistência da relação do crucificado como ressuscitado (SOBRINO, 1998SOBRINO, J. O Ressuscitado é o Crucificado. In: AMERÍNDIA (Org). Globalizar a esperança. São Paulo: Paulinas, 1998. p. 63-76., p. 63-76).

O Papa Francisco tem enfocado a preocupação de fontalizar Jesus, sempre atento com as chagas humanas. “Dado que não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer, também a tua missão é inseparável da construção do Reino: ‘procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça’ (Mt 6,33)” (GE, n. 25). Nesse quesito, vale a lembrança do Apóstolo Tomé que alerta sobre o perigo de crer em um Jesus sem as marcas da história. “Se eu não vir em suas mãos o lugar dos cravos e se não puser meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não crerei” (Jo 20,25).

Jesus deve ser considerado como o Primeiro e o Último, isto é, Aquele que se encarnou na história, aquele que ressuscitou e aquele que virá para julgar os vivos e os mortos no fim dos tempos. Nesse sentido, a escatologia do Apocalipse realiza-se fundamentalmente no tempo presente: “Não está orientado para a ‘segunda vinda de Jesus’ ou para o ‘fim do mundo’, mas está centralizado na presença poderosa de Jesus ressuscitado, agora, na comunidade e no mundo” (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 19).

O mais importante é que tal futuro escatológico é parte da e realiza-se na história. “É um futuro transcendente, enquanto é realizado por Deus e está além do fim, além da morte, além deste mundo, mas se realiza dentro da história como êxito total e final desta mesma história” (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 59, grifo do autor).

3. Na comunidade de Pérgamo, Jesus vem com o retrato daquele que tem a “espada afiada, de dois gumes” (Ap 2,12). Imagem de um Jesus profético e amigo da vida, que não sossega enquanto não vir concretizada a justiça do Reino. Esta justiça que passa pela concretude do Reino de Deus tem a primazia da vida em primeiro lugar e não a economia. Por isso, há a necessidade de anunciar a Boa Notícia do Reino e, também, de denunciar os pecados que impedem a vida dos pobres. Mostra, outrossim, o Reino crescer na história conforme e somente quando o antirreino é vencido. Reino e antirreino são realidades contrapostas e antitéticas. Um atua contra o outro, assim como o crescimento dos ricos gera e produz os pobres. Essa prática da comunidade produz fruto por meio do martírio. Nessa carta é nomeado Antipas como testemunha exemplar, como pessoa que manteve a fidelidade e não renegou a fé frente aos outros que se aliaram à doutrina de Balaão e dos nicolaítas (MAZZAROLO, 2010MAZZAROLO, I. O Apocalipse: esoterismo, profecia ou resistência?. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010., p. 65-66)2 2 Membros desses grupos aparecem nas comunidades de Éfeso e de Pérgamo (Ap 2,2.6.15.20.24). Do grego (nikôn + laós = povo que vence), os nicolaítas são partidários de uma seita gnóstica libertina, presente nas comunidades de Pérgamo e de Éfeso. Alguns autores acreditam que eles se colocavam do lado do vencedor, logo, do lado do Império Romano. Teriam fundado uma seita que se opunha ao matrimônio, incentivando o celibato. Como gnósticos, eram dualistas e consideravam o corpo como o cárcere da alma. Essa teoria já era refutada por Paulo (1Cor 1,17-31). Eles também rejeitavam o sofrimento cristão, o que, para Paulo, significava destruir o sentido da cruz de Cristo. Segundo Irineu (Adv. Haer. 1,2.63), eles seriam discípulos do diácono Nicolau (At 6,5). No entanto, é mais fácil ver o nome como símbolo da heresia, assim como Jezabel (Ap 2,20) que já não existe, mas o vício está presente (VAN DE BORN, 2013, p. 1042). .

4. A comunidade de Tiatira é exemplar e apresenta a figura de Jesus como “o Filho de Deus, cujos olhos parecem chamas de fogo e cujo pés são semelhantes ao bronze” (Ap 2,18). A teologia de fundo dessa promessa é Jesus apresentado como o Filho de Deus, como aquele que recebe o poder sobre as nações e sobre os reis da terra. “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52). De que poder se trata?3 3 Segundo Pablo Richard, “a designação de Deus como o Todo poderoso (ho pantocrator) no NT é típica do Apocalipse. Aparece 6 vezes no contexto litúrgico: 1,8; 4,8; 11,17; 15,3; 16,7; 19,6, sempre com um colorido político” (1996, p. 77-78). No NT, aparece somente uma vez em 2Cor 6,18, numa citação do AT, e 9 vezes no Apocalipse. “Não se trata de um Deus abstrato universal, mas do Deus dos santos, dos justos, dos oprimidos pelo Império: o Deus dos pobres é um Deus todo-poderoso” (RICHARD, 1996, p. 77-78). Não se trata do mesmo poder do império, mas do poder da solidariedade, da fé, do serviço e da resistência, do poder da verdade, do testemunho. Este é o poder dos santos, dos pobres e dos oprimidos. Os valores evangélicos constroem, da mesma forma, uma solidez com pés de bronze. O bronze é a expressão da experiência construída em cima de algo sólido, que não se desmancha e nem se deixa corroer com os valores do mundo. Portanto, com os olhos fixos em Jesus, o filho de Deus, a comunidade cristã dá seguimento a sua práxis, construindo relações de igualdade, justiça e paz, características que cimentam a rocha do Reino de Deus.

5. A comunidade de Sardes descreve a pessoa de Jesus como aquele que tem os “sete Espíritos de Deus e as sete estrelas” (Ap 3,1). Ele está junto aos anjos das comunidades segurando as sete estrelas, bem como a plenitude do Espírito de Deus: tem sete espíritos. Com o número sete a comunidade de Sardes expressa a perfeição e o incomparável poder de Jesus em relação aos poderes do imperador Romano. Uma caracterização perfeita para contrapor-se aos imperadores que assumiram o status de objeto de culto. Se Jesus tem os sete Espíritos de Deus e as sete estrelas, será o vencedor, mesmo que a maneira dessa vitória é no sentido da pirâmide invertida, para utilizar uma expressão feliz do Papa Francisco4 4 Nesta Igreja, como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se abaixo na base. Por isso, aqueles que exercem a autoridade chamam-se ministros, porque, segundo o significado original da palavra, são os menores no meio de todos. O que significa concretamente essa imagem da pirâmide invertida? Antes de mais, que é próprio da Igreja partir da unidade fundamental para caminhar juntos, não permitindo que ninguém se eleve acima dos outros, nem que ninguém seja rebaixado ou humilhado. O papa Francisco deixou, ainda, na sua exortação A alegria do Evangelho, outras pistas muito promissoras para uma Igreja em saída missionária. Nessa perspectiva, caminhar juntos, diz o Papa, “às vezes significa pôr-se à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras manter-se no meio de todos com a proximidade simples e misericordiosa e caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobre tudo porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas” (EG, n. 31). . Porque, para Jesus, o maior é aquele que serve e o primeiro que se faz último (Mt 20,27-28). É no bojo dessa perspectiva que a glória de Deus se manifesta. Ou seja, quando não existem mais relações assimétricas e todos se reconhecem e vivem como irmãos e companheiros, mesmo que tal fraternidade continue gerando conflitos com os impérios no percurso da história. Seguindo a lógica do Espírito, testemunhada por Jesus, trata-se de reconhecer e aceitar um deslocamento teológico fundamental. Segundo bem observou o biblista Sandro Gallazzi:

O novo centro, o lugar do trono de Deus e de seu Cordeiro, não será nem o palácio imperial, nem o templo de Jerusalém. O novo centro é Patmos: o lugar do conflito, o lugar da perseguição, o lugar onde estão os que são capazes de dar sua vida pela Palavra de Deus e pelo Testemunho de Jesus

(GALLAZZI, 1999GALLAZZI, S. Sem mar, sem templo e sem lágrimas (Apocalipse 21-22). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, n. 34, p. 93-98, 1999., p. 97).

6. A comunidade de Filadélfia atribui a Jesus a qualidade de “o Santo, o verdadeiro, aquele que tem a chave de Davi, o que abre e ninguém mais fecha e fechando, ninguém mais abre” (Ap 3,7). Aqui, na maneira de apresentar Jesus para a comunidade se acentuam duas coisas ligadas entre si: a coerência e a fidelidade. Jesus é o Santo, o Verdadeiro. Outra, o poder sobre a vida e a morte: Jesus tem a chave e o controle total da porta da morada dos mortos (MESTERS; OROFINO, 2002MESTERS, C.; OROFINO, F. Apocalipse de São João: esperança, coragem e alegria. São Leopoldo: CEBI, 2002., p. 75-76). Diante de uma história lacrada e protegida de todos os lados pelas ideologias imperiais, João realça a santidade, a verdade e a pessoa de Jesus como a chave certa para abrir a história do lado avesso do império. Assim, essa chave vem testemunhar a revelação da história a partir de seu avesso. Jesus a tem para abrir a história e mostrar quem são os filhos de Deus e quem são os perseguidores do povo. A história tem saída na medida em que as comunidades mantêm aberta a porta do Reino. Segundo Richard, “Paulo de Tarso usa a expressão ‘porta aberta’ como uma oportunidade missionária (1Cor 16,9; 2Cor 2,12; Cl 4,3)” (1996, p. 109-110).

7. A comunidade de Laodiceia apresenta Jesus como o “Amém, a Testemunha fiel e verdadeira, o Princípio da criação de Deus” (Ap 3,14). “Cristo é identificado aqui com a sabedoria e com a Palavra criadora (cf. Pr 8,22; Sb 9,1s; Jo 1,3; Cl 1,15-17; Hb 1,2)”5 5 Nota C referente a Hb 1,2 na Bíblia de Jerusalém (2004). Ela explicita que o Filho tem direito à herança, mas a posse de todas as coisas depende sempre de uma iniciativa de Deus. . Jesus Cristo é testemunha fiel (ho pistós) da missão e da revelação do Pai, cuja palavra deixou gravada na história humana em sinal de verdade e de Lei. Como Mediador entre o Pai e o ser humano, Ele é o Evangelho do Pai para os seus filhos, o seu servo fiel (Hb 7,26-28), o amado, no qual Deus colocou todo o seu bem querer (Mc 1,11). No Antigo Testamento, Amém é um título do próprio Deus e significa verdadeiro (Is 65,16). Paulo chega a dizer que Jesus é o Amém de Deus às promessas feitas no AT (1Cor 1,20).

O conjunto das comunidades fecha com a sentença do amém. Como palavra definitiva, é Jesus a testemunha fidedigna e na presença Dele está o próprio Deus. O Verbo encarnado em Jesus já existia antes da criação do mundo, como pertencente à família intra trinitária. Agora, na história, por meio da encarnação, manifestou-se definitivamente em Jesus de Nazaré. Em sua passagem pela história, pôde ser reconhecido por seu testemunho fiel. Nas palavras do Apóstolo São Pedro, foi aquele que passou pelo mundo fazendo o bem. “Como Deus o ungiu com o Espírito Santo e com poder ele que passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo, porque Deus estava com ele” (At 10,38).

As cartas são de uma profundidade místico-espiritual-carnal, imprimindo uma roupagem cada vez mais humana e corpórea a Jesus. Desde o princípio, João tem a preocupação de apresentar Jesus como o Cordeiro, sem nenhuma abstração. Segundo Pablo Richard, a visão insiste na corporeidade de Jesus: a figura humana tem vestes, cabeça, cabelos, pés, voz, mãos, boca, face (1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 94). Essa maneira expressa como o autor experimenta cada um dos elementos da corporeidade de Jesus: a veste é uma túnica sacerdotal, os cabelos são brancos; os olhos, como o fogo; os pés, sólidos como o metal; a mão tem sete estrelas; de sua boca saía uma espada afiada; seu semblante brilha como o sol. O máximo dessa experiência é narrada como um toque físico de Jesus no corpo de João: Ele colocou a sua mão direita sobre mim (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 94).

3.2 ‘Uma porta’ se abre para a evangelização

Esse retrato de Jesus revelado pelas sete comunidades cristãs do final do primeiro século da era cristã é promissor para o anúncio do Evangelho no tempo presente. Sem ter como objetivo esgotar as diferentes perspectivas possíveis, buscar-se-á elencar algumas ideias-forças pertinentes para o processo de evangelização.

Uma das marcas indeléveis na vida das comunidades do Apocalipse é a presença central de Jesus crucificado e ressuscitado. Ele é, ao mesmo tempo, o Cordeiro do sacrifício e o Carneiro expiatório que tira os pecados do mundo. O encontro com Jesus fundamenta a vida da comunidade diante das tribulações, perseguições, oferecendo sentido para enfrentar o próprio martírio. Jesus, como o Cordeiro redivivo, está no centro da revelação e do anúncio (Ap 1,1), é aquele que vai abrir o livro selado (Ap 5–6), aquele que resgatou os 144 mil (Ap 14,1-13) e aquele que celebra as núpcias da vitória (Ap 19,9): “O Cordeiro, de pé e vitorioso sobre o mal, é o começo e o fim, a razão primeira e a última de toda a história” (MAZZAROLO, 2009MAZZAROLO, I. A visão do trono: exegese e hermenêutica de Ap. 4. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, ano XIII, n. 32, p. 222-241, mai./ago. 2009., p. 231). Assim, as comunidades poderiam cultivar a esperança de que Jesus era o Senhor e junto dele, no centro da sala real, está o Pai, aquele que confiou sua missão ao Filho e agora o empossa para o julgamento.

João tinha clareza que precisava elaborar uma catequese da resistência, do fortalecimento das motivações e da elaboração de propostas estratégicas de saída. No sofrimento, a escatologia fica mais forte, a esperança de julgamento e intervenção divina na história se torna mais incisiva. No Apocalipse, a Besta e a Prostituta que se embriagavam com o sangue dos santos (Ap 17,6), a qual se julgava capaz de subir do Abismo por sua própria conta, agora já não existe, ela foi derrotada (Ap 17,8)

(MAZZAROLO, 2010MAZZAROLO, I. O Apocalipse: esoterismo, profecia ou resistência?. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010., p. 35, grifos do autor).

Outra dimensão a ser realçada é o conhecimento profundo e minucioso por parte de João da realidade das comunidades. Esse fato se manifesta na descrição detalhada dos valores e pecados de cada uma das comunidades cristãs, questão determinante para que João apresente a figura de Jesus sempre inculturada com a vida e os problemas reais da comunidade. Por isso, o Jesus apresentado nunca comporta abstração com a realidade social e cultural, mas está inserido plenamente na história do povo. É ensinamento atual para avançar em uma evangelização mais compatível e de acordo com a cultura contemporânea. Chamamento proveniente do Papa Francisco, quando a partir do Sínodo da Amazônia, reconhece a necessidade de desenvolver “cada vez mais um processo necessário de inculturação, que nada despreza do bem que já existe nas culturas amazônicas, mas recebe-o e leva-o à plenitude à luz do Evangelho” (QA, n. 66). Processo esse que também não “despreza a riqueza de sabedoria cristã transmitida ao longo dos séculos, como se pretendesse ignorar a história na qual Deus operou de várias maneiras, porque a Igreja possui um rosto pluriforme” (QA, n. 66).

No aspecto da inculturação, vale lembrar que Francisco já assinalava sua preocupação desde a primeira exortação Evangelii Gaudium. A propósito da inculturação: baseia-se na convicção de que “a graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe (EG, n. 115). Isto implica um duplo movimento: por um lado, uma dinâmica de fecundação que permite expressar o Evangelho num lugar concreto, pois “quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho” (EG, n. 116); por outro, a própria Igreja vive um caminho de recepção, que a enriquece com aquilo que o Espírito já tinha misteriosamente semeado naquela cultura.

A realidade de sofrimento e de perseguição no seio da comunidade não a leva a desviar-se do Cristo crucificado e ressuscitado. A comunidade mantém firme sua fé em Jesus, o Vivente, Aquele que estava morto, mas tornou a viver. Desta forma, a comunidade não se acovarda diante de um mundo de pecado e muito menos recorre a um Jesus milagreiro que possa livrá-la das cruzes do mundo. Não renega a cruz do mundo para anunciar um Jesus etéreo e distante da realidade de morte das pessoas. Na verdade, testemunha que é no sangue do Cordeiro, Aquele que esteve morto e ressuscitou, que a comunidade encontra fundamento para resistir aos ataques dos dragões. O Cristo revelado por João é o mais real, com as marcas da história, e nem por isso a comunidade se refugiou nas doutrinas gnósticas e com os nicolaítas, perspectivas de abrandar ou mesmo espiritualizar a proposta profética do Evangelho.

A experiência revelada pelo Apocalipse, bem como os testemunhos dos mártires da América Latina e Caribe, comprova que o cristianismo precisa ser vivido como opção fundamental na defesa da vida. O sentido do Evangelho comporta sempre o perigoso confronto com os valores do antirreino, mas sempre também com profundo sentido de doação da vida como semente que cai na terra para produzir frutos. A comprovação histórica dessa opção martirial ficou sentenciada: os mártires são semente de novos cristãos.

Jesus identificado com as vítimas se insere como Salvador e Senhor no seio das comunidades. Como é singular dentro da fé cristã, Jesus é o Deus conosco no compromisso com a vida e a libertação plena. Se as pessoas deixam-no entrar, Ele vem por entre as nuvens, e até mesmo as pessoas que os transpassaram reconhecerão que é o Deus amigo da vida e amante da justiça (Ap 1,7). O Jesus que bate à porta das comunidades é Aquele que respeita o processo da comunidade, por isso pede conversão, faz repreensões severas quando abandonam o primeiro amor e corrige na dinâmica do amor.

As cartas dirigidas às comunidades se encerram, em sua totalidade, conservando o desejo de mudança, de conversão e de esperança no sangue do Cordeiro. É dessa forma que a realidade será transformada em novo céu e nova terra, porque já não existem mais fome, injustiça e morte. As coisas antigas se passaram e o mar, símbolo de todas as maldades, já não existe mais. Permanece o convite para juntos celebrar o banquete na nova Jerusalém Celeste, realidade pintada como encontro universal de todas as tribos, raças e nações.

Em tempos nos quais não se choram mais as vítimas inocentes da história, e o mundo prefere ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las, o Apocalipse anuncia um mundo sem lágrimas, sem mar e sem templo. Não haverá quem faça chorar, porque desaparecerão os covardes, os infiéis, os corruptos, os assassinos, os mágicos, os idólatras, todos os mentirosos (Ap 22,15), cuja porção é o lago ardente de fogo e enxofre e a segunda morte. Desaparecerão junto com o Dragão e as duas Bestas (Ap 21,8).

As narrativas do Apocalipse são envolventes, sua maneira de comunicar a profecia convocam à esperança6 6 O Apocalipse foi lido e interpretado, ao longo da história, como um manual para o caos e o fim terrível de todas as coisas, no entanto, ele é o livro da profecia, da resistência, da unidade e da esperança. Nele encontramos sete bem-aventuranças para encorajar e fortalecer a fé e o ânimo no testemunho do Cordeiro (cf. 1,3; 14,13; 16,15; 19,9; 20,6; 22,7; 22,14). . No seu conjunto, João mostra que a revelação de Jesus, vítima do império, provoca uma reviravolta no modo e lugar de buscar a Deus. Lugar escandaloso, mas real e consequente com a revelação divina, pois o Deus cristão toma partido junto ao “sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano” (LS, n. 241). Este aparece como o novo lugar teológico – a presença de Deus que livremente escolhe os últimos para revelar seus desígnios na história. A liberdade divina, no entanto, não se faz valer de qualquer forma, mas é comunicada por alguém (João) que se sente “irmão e companheiro no meio dos sofrimentos e prisões” (Ap 1,9). A história não será mais vista a partir dos poderes dominantes, mas por meio da pirâmide invertida que recupera o direito dos marginalizados, volta a pôr no centro o Cordeiro degolado que resgata todas as vítimas.

Conclusão

O objetivo deste texto se fixou na problematização da realidade da pandemia, considerando-a em sua manifestação como um sinal dos tempos. Sinal típico de uma humanidade doente e irresponsável com a Casa Comum, onde os mais atingidos são os pobres. A pandemia aparece assim como uma chamada à conversão, para que a humanidade volte ao primeiro amor, reencontre a beleza e a simplicidade da criação primordial, espelhando na identidade e na alteridade a imagem e semelhança de Deus (Gn 3,26). É o sinal inequívoco da necessidade de mudança para outro estilo de vida, nas palavras de Francisco (QA, n. 58)FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate. São Paulo: Paulinas, 2018..

Por isso, Francisco é provocativo ao chamar atenção para algumas preocupações em relação aos rumos e às opções fundamentais da humanidade.

Seremos capazes de agir de forma responsável perante a fome que muitos sofrem, conscientes de que há comida para todos? Continuaremos a olhar para o outro lado, com um silêncio cúmplice face às guerras alimentadas por desejos de domínio e de poder? Estaremos dispostos a mudar os estilos de vida que afogam muitos na pobreza, promovendo e encontrando a coragem de levar uma vida mais austera e humana, que permita uma distribuição equitativa dos recursos? Tomaremos, como Comunidade internacional, as medidas necessárias para impedir a devastação do meio ambiente, ou continuaremos a negar a evidência? A globalização da indiferença continuará a ameaçar e a tentar o nosso caminho... Que ela nos encontre com os necessários anticorpos da justiça, da caridade e da solidariedade. Não devemos ter medo de viver a alternativa da civilização do amor, que é uma civilização da esperança: contra a angústia e o medo, a tristeza e o desânimo, a passividade e o cansaço. A civilização do amor constrói-se diariamente, sem interrupções. Pressupõe um esforço concentrado de todos. Para isto, requer uma comunidade de irmãos comprometidos

(FRANCISCO, 2020FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia. São Paulo: Paulinas, 2020., p. 50-51).

No mesmo modo, a presente reflexão se fixou na compreensão da narrativa do livro do Apocalipse tão temido e tão belo e com consequências enormes no seio social e eclesial. O desconhecimento e suas hermenêuticas infundadas dificultaram uma aproximação madura e aberta para captar sua originalidade ao longo da história. O que o Espírito diz às Igrejas (Ap 2,7)?

Uma literatura profética revelada por meio de sinais e surgida com o interesse de ajudar as comunidades a resistir frente às ameaças do Império Romano se tornou estranhamente uma linguagem fundamentalista, desencadeando medo e paralisia diante dos males do mundo. João encontrou na figura de Jesus, o Cordeiro imolado, a porta aberta para fortalecer a vida das comunidades e para superar os conflitos provenientes tanto da política do Império Romano quanto dos grupos dos nicolaítas e das seitas gnósticas, preocupadas fundamentalmente com uma proposta de fé desencarnada e dicotômica em relação aos problemas do mundo.

Infelizmente, esta é uma perspectiva espiritual sempre em voga na história do cristianismo. Recentemente, o Papa Francisco, com sua exortação Chamados à santidade no mundo atual, retoma o alerta sobre o perigo de uma espiritualidade alienada distante da carne dos pobres. O Pontífice propõe como fundamentos da santidade cristã a prática presente em Mateus 25,31-44 e as bem-aventuranças, que são como um bilhete da identidade cristã (GE, n. 63). Na mesma exortação, lembra-se do perigo de duas heresias presentes na Igreja antiga que se atualizam atualmente. Trata-se do gnosticismo e do pelagianismo. Para o pontífice: graças a Deus, ao longo da “história da Igreja, ficou bem claro que aquilo que mede a perfeição das pessoas é o seu grau de caridade, e não a quantidade de dados e conhecimentos que possam acumular” (GE, n. 36).

Na verdade, trata-se de uma das preocupações centrais das reflexões protagonizadas pela teologia da libertação. Por exemplo, o teólogo Jon Sobrino escreveu um texto autobiográfico intitulado Teologia a partir da realidade e conclui com algumas preocupações. A primeira delas diz respeito ao que ele denomina Tendência ao docetismo na teologia atual:

O que mais me preocupa na teologia é sua tendência ao docetismo, isto é, a criar um âmbito próprio de realidade que a distancie e a desentenda da realidade real, ali onde o pecado e a graça se fazem presente. Este docetismo, que normalmente é inconsciente, pode muito bem levar ao aburguesamento, isto é, a prescindir dos pobres e vítimas que são maioria na realidade e são a realidade mais flagrante

(SOBRINO, 2000SOBRINO, J. Teología desde la realidad. In: SUSIN, Luís Carlos (Org.). O mar se abriu. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 153-170., p. 168).

Essa chamada de atenção de Sobrino sobre o docetismo no campo teológico tem sérias consequências para a Igreja em saída proposta pelo papa Francisco. Se no pano de fundo da Igreja em saída está a preocupação com o outro, o pobre, a casa comum, a cultura do encontro, a misericórdia como a vida pulsante do evangelho, o docetismo e o gnosticismo levam a conceber “uma mente sem encarnação, incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros” (GE, n. 36).

As narrativas do Apocalipse, como foi possível perceber, rechaçam fortemente tal ideia, uma vez que se interessam pela encarnação de Jesus na história, como vítima inocente e sempre ao lado dos pobres. Portanto, as vítimas inocentes significam todas as pessoas que se mantiveram fiéis ao sangue do Cordeiro. Mesmo os dragões e as bestas e feras, com seus poderes que chegam a varrer a terça parte da terra, não cantarão sua vitória, porque seus projetos estão baseados na injustiça e na iniquidade. As comunidades cristãs estão nas mãos de Deus, como estrela da manhã para celebrar o novo nascimento. É essa mística que os cristãos de todos os tempos precisam cultivar para superar a pandemia, não esquecendo quem ficou para trás, com o grave risco de deixar-se atingir por um vírus ainda mais fatal: o da indiferença egoísta.

Diante dos impérios econômicos e políticos atuais, é necessário ter lucidez crítica, esperança e resistência ativa. A lucidez crítica evitará que nos deixemos enganar pela propaganda do sistema econômico neoliberal dominante. E, também, manterá viva a esperança de que outro mundo é possível e necessário, um mundo no qual reine a paz com justiça. Nesse novo mundo, os pobres crucificados deixarão de existir (Dt 15,4); porque todos compartilham os bens da Criação (At 4,32-35).

Ora, se, por um lado, a realidade da pandemia nos deixa transtornados e inseguros sobre o futuro, o Apocalipse, por outro lado, contagia com um entusiasmo por dias melhores e com a alegria festejada, sobretudo, no final do livro (Ap 21–22). É possível confiar Naquele que diz: vou enxugar toda lágrima e farei novas todas as coisas (Ap 21,4-5). Ao invés de medo e terror, é preciso cultivar o ânimo de vida, as boas perspectivas e a segurança de que os tempos favoráveis se realizarão. Nas palavras de Pablo Richard:

Quando a terra parece destruída e ameaçada de morte, quando as maiorias pobres e oprimidos são cada dia mais excluídas das possibilidades de vida, então, se torna precioso reconstruir na consciência o projeto de Deus, oculto aos poderosos, mas revelado aos humildes (Mt 11,25-26). Apocalipse é a conquista da consciência para a transformação da terra

(RICHARD, 1990RICHARD, P. Apocalíptica, esperança dos pobres. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, n. 7, p. 5-7, 1990., p. 6).

O Apocalipse não é algo do passado, mas continua atual para nossos dias. Uma das formas de lhe subtrair o poder revolucionário é direcioná-lo somente ao final dos tempos. Pelo contrário, é uma literatura de descobertas radicais e revolucionárias em vista da vida e das mudanças necessárias para outro mundo possível.

A pandemia, chamada de Covid-19, poderia ser considerada a primeira guerra mundial, pois nenhuma guerra provocou tantas crises e tantas mortes. Conhecidas como as duas grandes guerras de 1914-1918 e de 1939-1945, não abalaram o mundo de forma global como esta pandemia. Hoje assistimos e participamos, não somos apenas ouvintes ou telespectadores, sentimos em nossa sociedade, em nossas famílias, em nossos corpos e até em nossos ânimos a força do medo, a força da enfermidade e o medo da morte. Enquanto alguns vão caminhando, outros vão caindo à beira dos caminhos. A falta de recursos financeiros, a perda dos postos de trabalho, a quebradeira de muitas empresas aéreas, hotelarias, locais turísticos afetaram de modo desigual a humanidade. Os mais pobres são, novamente, os mais afetados, mais sofridos e mais castigados.

O Apocalipse nos faz olhar novamente essa triste realidade das massas oprimidas, exploradas e marginalizadas pelos sistemas dos grandes impérios, das fábricas da morte, dos sistemas perversos de dominação e de controle do crescimento dos mais pobres. Fazem-se necessárias a sabedoria, a resistência e a esperança na justiça, na verdade e no amor de Jesus Cristo. O nosso tempo pode estar necessitado da escuta, do silêncio, da oração, da contemplação e da mística. A consciência de que todos somos células de um corpo vivo (1Cor 12,12-30) pode encorajar-nos a formar uma fraternidade universal, justa e hospitaleira.

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    A “Carta ao povo de Deus” é um documento assinado por 152 bispos católicos do Brasil, alguns já eméritos, e 1058 padres preocupados com as atitudes do Governo do atual presidente, Jair Bolsonaro, diante da pandemia e de outras crises sociais que atingem grande parte da população brasileira, em 04/08/2020.
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    Membros desses grupos aparecem nas comunidades de Éfeso e de Pérgamo (Ap 2,2.6.15.20.24). Do grego (nikôn + laós = povo que vence), os nicolaítas são partidários de uma seita gnóstica libertina, presente nas comunidades de Pérgamo e de Éfeso. Alguns autores acreditam que eles se colocavam do lado do vencedor, logo, do lado do Império Romano. Teriam fundado uma seita que se opunha ao matrimônio, incentivando o celibato. Como gnósticos, eram dualistas e consideravam o corpo como o cárcere da alma. Essa teoria já era refutada por Paulo (1Cor 1,17-31). Eles também rejeitavam o sofrimento cristão, o que, para Paulo, significava destruir o sentido da cruz de Cristo. Segundo Irineu (Adv. Haer. 1,2.63), eles seriam discípulos do diácono Nicolau (At 6,5). No entanto, é mais fácil ver o nome como símbolo da heresia, assim como Jezabel (Ap 2,20) que já não existe, mas o vício está presente (VAN DE BORN, 2013VAN DE BORN, A. Nicolaítas. In: Dicionário Enciclopédico da Bíblia. São Paulo: Paulus/Loyola/Paulinas; Santo André: Academia Cristã, 2013. p. 1042., p. 1042).
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    Segundo Pablo Richard, “a designação de Deus como o Todo poderoso (ho pantocrator) no NT é típica do Apocalipse. Aparece 6 vezes no contexto litúrgico: 1,8; 4,8; 11,17; 15,3; 16,7; 19,6, sempre com um colorido político” (1996, p. 77-78). No NT, aparece somente uma vez em 2Cor 6,18, numa citação do AT, e 9 vezes no Apocalipse. “Não se trata de um Deus abstrato universal, mas do Deus dos santos, dos justos, dos oprimidos pelo Império: o Deus dos pobres é um Deus todo-poderoso” (RICHARD, 1996RICHARD, P. Apocalipse: reconstrução da esperança. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 77-78).
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    Nesta Igreja, como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se abaixo na base. Por isso, aqueles que exercem a autoridade chamam-se ministros, porque, segundo o significado original da palavra, são os menores no meio de todos. O que significa concretamente essa imagem da pirâmide invertida? Antes de mais, que é próprio da Igreja partir da unidade fundamental para caminhar juntos, não permitindo que ninguém se eleve acima dos outros, nem que ninguém seja rebaixado ou humilhado. O papa Francisco deixou, ainda, na sua exortação A alegria do Evangelho, outras pistas muito promissoras para uma Igreja em saída missionária. Nessa perspectiva, caminhar juntos, diz o Papa, “às vezes significa pôr-se à frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras manter-se no meio de todos com a proximidade simples e misericordiosa e caminhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram e sobre tudo porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas” (EG, n. 31).
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    Nota C referente a Hb 1,2 na Bíblia de Jerusalém (2004)BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2004.. Ela explicita que o Filho tem direito à herança, mas a posse de todas as coisas depende sempre de uma iniciativa de Deus.
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    O Apocalipse foi lido e interpretado, ao longo da história, como um manual para o caos e o fim terrível de todas as coisas, no entanto, ele é o livro da profecia, da resistência, da unidade e da esperança. Nele encontramos sete bem-aventuranças para encorajar e fortalecer a fé e o ânimo no testemunho do Cordeiro (cf. 1,3; 14,13; 16,15; 19,9; 20,6; 22,7; 22,14).

Referências

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  • BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2004.
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  • FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate São Paulo: Paulinas, 2018.
  • FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia São Paulo: Paulinas, 2020.
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  • MAZZAROLO, I. O Apocalipse: esoterismo, profecia ou resistência?. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2010.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2020
  • Aceito
    10 Dez 2020
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