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KIERKEGAARD: O MILITANTE ANTICLERIAL

Kierkegaard: The Anticlerical Militant

RESUMO

Durante o último ano da sua vida, Kierkegaard lançou um implacável ataque à Igreja estatal dinamarquesa e às figuras eclesiásticas que a representavam. Ele acusa bispos e pastores de corrupção e hipocrisia e de haver adulterado a mensagem cristã. A necessidade de expor a verdadeira situação da Igreja estatal leva Kierkegaard a recorrer a uma prosa incendiária. Kierkegaard pretende minar a autoridade eclesiástica e forçar o leitor a questionar a obediência ao clero a fim de que possa reconhecer e apropriar o verdadeiro cristianismo do Novo Testamento. A questão é saber se a radicalidade da sua crítica é uma aberração de caráter circunstancial ou a conclusão lógica e epílogo do seu pensamento. As interpretações em torno do ataque de Kierkegaard à Igreja são discordantes. Se bem que se observem evidentes pontos de contato entre as suas obras iniciais e posteriores, não se pode considerar a crítica à Igreja como uma mera reiteração de posições defendidas anteriormente. As questões tratadas nas suas obras iniciais e posteriores representam uma multiplicidade de perspectivas em metamorfose.

PALAVRAS-CHAVE
Cristianismo; Protestantismo; Igreja; Pastores; Anticlericalismo

ABSTRACT

During the last year of his life, Kierkegaard launched a fierce attack on the Danish State Church and the ecclesiastical figures representing it. He accuses bishops and pastors of corruption and hypocrisy and of distorting the Christian message. The need to expose the true situation of the State Church leads Kierkegaard to resort to incendiary language. He intends to undermine the authority of the church and force the reader to question obedience to the clergy, so that the reader may be able to recognize and appropriate the true Christianity of the New Testament. The question is whether his radical criticism is an incidental aberration or the logical conclusion and culmination of his thought. The interpretations of Kierkegaard’s attack on the church vary widely. Although there are undeniable connections between his earlier and later writings, Kierkegaard’s criticism of the church cannot be considered a mere restatement of positions previously defended. The issues addressed in the earlier and later writings reveal a multiplicity of evolving viewpoints.

KEYWORDS
Christianity; Protestantism; Church; Pastors; Anticlericalism

Introdução

Eu não sou o que a época porventura anseia, um reformador, de forma alguma; tampouco sou (...) um vidente, um profeta — não, possuo, se assim quiserem, um invulgar e inegável talento de detetive

(M, p. 40).

A única analogia que tenho perante mim é Sócrates; a minha é uma tarefa socrática, rever o sentido de ser cristão — não digo de mim mesmo que sou cristão, mas posso pôr de manifesto que os outros o são ainda menos

(M, p. 341).

Em outubro de 1855, Kierkegaard jazia no leito de um hospital. Restavam-lhe poucas semanas de vida. Um pastor, seu amigo, visita-o e pergunta-lhe: “Não desejas comungar?”. “Sim, mas não recebo a comunhão das mãos de um pastor, só de um leigo”, responde Kierkegaard. “Isso será difícil de fazer”, retorque o amigo pastor. “Então morro sem comungar”, insiste Kierkegaard. “Isso não está certo”, contrapõe o amigo. “Não se pode debater isto. Tomei a minha decisão. Fiz a minha escolha. Os pastores são funcionários públicos da coroa. Funcionários públicos da coroa não têm nada a ver com o cristianismo”, refuta Kierkegaard, que acabou por morrer sem comungar (KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p. 125-126).

Ao longo do ano que antecedeu a sua morte, Kierkegaard havia lançado um implacável ataque à Igreja estatal dinamarquesa e às figuras eclesiásticas que a representavam. Ele acusa bispos e pastores de corrupção e hipocrisia e de haver adulterado a mensagem cristã. Tacha-os de parasitas que “ganham a vida em nome do cristianismo, proclamando justamente o oposto do cristianismo do Novo Testamento” (M, p. 160). Equipara-os a “antropófagos” que vivem da pregação dos ensinamentos daqueles que deram a vida pela verdade, aparentando serem os discípulos verdadeiros e devotos do Crucificado (M, p. 323). Ele considera o cristianismo oficial “um abismo de falsidade e ilusão”. É tal o sacrilégio que a única coisa a fazer é deixar de participar no culto divino. Não participar no culto divino tem-se “menos uma e grande culpa, a de não participar em mofar-se de Deus” (M, p. 73-74, 131, 235, 312)1 1 Kierkegaard fez o que recomendava Deixando de participar no culto dominical, Kierkegaard despendia regularmente o seu tempo aos domingos de manhã numa biblioteca localizada no centro de Copenhague, manifestando assim a sua oposição à Igreja estatal dinamarquesa. Veja-se: KIRMMSE, 1996, p.115. . Estas são algumas das afirmações lancinantes da diatribe anticlerical que Kierkegaard desenvolve, entre 1854 e 1855, e publica numa série de artigos no jornal dinamarquês Fædrelandet [A Pátria] e na sua própria publicação: O Momento.

A crítica de Kierkegaard é insólita e distinta da crítica ao cristianismo de outras figuras do pensamento do século XIX, tais como Feuerbach, Schopenhauer e Nietzsche. Não vem de fora, mas do seio da Igreja. Da parte de alguém profundamente religioso. Participava regularmente do culto. Havia obtido as qualificações exigidas para ser ordenado pastor, uma vocação que, em vários momentos da sua vida, considerou realizar. Chegou inclusive a completar o programa de formação pastoral e a proferir o sermão de treinamento. A sua crítica não nasce, pois, da descrença, mas da fé e paixão pela figura de Cristo, cujo sentido e exigência de seguimento para a existência pessoal do crente ele profundamente elucidou nas suas obras. O clericalismo que envilece a Igreja de Cristo encontra na figura de Kierkegaard o seu mais intrépido opositor.

1 O Anticlericalismo Latente no Pensamento de Kierkegaard

A crítica de Kierkegaard à Igreja estatal dinamarquesa começou a ganhar contornos a partir de 1847 e aparece inseparavelmente ligada à figura do Bispo primaz de então, Jakob Peter Mynster. Kierkegaard assinala a ambiguidade presente na Igreja estatal e na figura que a representa. “Se iniciamos o debate que traz para discussão justamente o conceito de ‘Igreja estatal’, a posição de Mynster é suspeita — se o conceito de Igreja estatal é aceite, então Mynster é o mestre.” E acrescenta: “Há uma ambiguidade na sua existência que não pode ser evitada, porque ‘a Igreja estatal’ é uma ambiguidade.” (KJN 4, p. 252)2 2 Kierkegaard considera a sua vida e as suas obras uma permanente crítica ao cristianismo que o Bispo Mynster representava. Mas deixa em aberto a possibilidade de o Bispo Mynster conceder a qualquer momento que o cristianismo que representava não era o cristianismo do Novo Testamento. Neste caso, sairia em sua defesa. Mas a longamente esperada concessão não chegou. Kierkegaard permitiu que a vida do Bispo Mynster não fosse perturbada pela sua crítica. Deixou que fosse sepultado com todas as honras e que o monumento lhe fosse erigido. O que Kierkegaard jamais poderia permitir é que o Bispo Mynster passasse à história “como testemunha da verdade, uma das autênticas testemunhas da verdade” (M, p. 15). . No ano seguinte, a sua crítica torna-se mordaz. Ele retrata o Bispo Mynster como alguém que gosta dos momentos de quietude nos lugares santos, onde a religião é distribuída como um mero ingrediente da existência, não como algo que tem caráter absoluto. As cerimônias religiosas desempenham a mesma função que o teatro representava no mundo pagão.

No paganismo o teatro era uma forma de culto — no cristianismo as igrejas tornaram-se, de fato, teatro. De que forma? Da seguinte forma: acha-se agradável, e não sem um certo prazer, entrar em comunhão com o Altíssimo, por meio da imaginação, uma vez por semana

(KJN 4, p. 386).

Numa outra passagem dos seus Diários e Papéis Póstumos, ele equipara as igrejas a estabelecimentos de comércio.

Se a ordenação dominical fosse estritamente observada, as igrejas deviam ser em primeiro lugar encerradas aos domingos. Afinal, ser pastor é um meio de subsistência e a igreja é a loja do pastor; porque, pois, deve o pastor ser o único homem de negócio a quem lhe é permitido manter a loja aberta aos domingos?

(JP 1, p. 154).

Aqui vemos prefigurada a retórica a que Kierkegaard recorre, anos mais tarde, na sua investida contra a Igreja estatal. A partir de 1848, quando a questão da identidade nacional adquiriu proeminência e a Igreja estatal passou a ser designada Igreja do povo, opera-se uma paulatina radicalização da sua crítica.

Espantoso! Outrora a objeção contra o cristianismo [...] era de ser antipatriótico, um perigo para o Estado, revolucionário — e agora o cristianismo tornou-se patriotismo e Igreja estatal. [...] Outrora o cristianismo era escândalo para judeus e loucura para gregos, e agora é — erudição. Para o Bispo Mynster o caráter distintivo do verdadeiro cristianismo é erudição

(KJN 8, p. 264).

O ano de 1848 marca um ponto de viragem na crítica de Kierkegaard à Igreja. Ele sente a exigência de tomar uma postura perante o estado de degradação em que se encontra a Igreja.

Fiquei horrorizado ao ver o que se entendia por uma nação cristã (isto vi especialmente em 1848). Vi como aqueles que deviam exercer autoridade, quer na Igreja quer no Estado, ocultavam-se de forma covarde, enquanto a barbárie ousada e descaradamente se alastrava. [...] Isto sela o meu destino. [...] Proponho-me começar aqui na Dinamarca a determinar o preço de ser cristão de tal forma que a totalidade do conceito — Igreja estatal, nomeações oficiais, meios de vida — imploda

(KJN 6, p. 138).

No mesmo ano, escreve A Prática do Cristianismo, uma obra que enuncia o ideal cristão e coloca a Igreja institucional perante a exigência de admitir a sua acomodação ao mundo e distância do ideal, que o cristianismo do Novo Testamento representa. A obra só veio a ser publicada dois anos mais tarde, em 1950, sob o pseudónimo Anti-Climacus. No prólogo do editor, Kierkegaard escreve:

Neste escrito, que data de 1848, a exigência de ser cristão é requerida pelo autor pseudônimo que seja elevada à mais suprema idealidade. Contudo, a exigência deve na verdade ser afirmada, exposta e escutada. Do ponto de vista cristão, a exigência não deve ser depreciada nem silenciada — ao invés de admissão pessoal e confissão. A exigência deve ser escutada — entendo o que é dito como dirigido somente a mim — a fim de que possa aprender não só a recorrer à graça, mas a recorrer a ela para o seu uso

(PC, p. 7).

Não obstante a contundência da crítica, que a idealidade enunciada representa, Kierkegaard não pretende que se operem alterações imediatas na estrutura eclesiástica ou que essa seja eliminada. É exigido apenas que se reconheça a discrepância entre o ideal e a realidade.

No mais eminente sentido cristão, não existe Igreja estabelecida, tão-somente Igreja militante. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto é que de fato existe uma tal Igreja estabelecida. Não deve ser abolida, não, mas um ideal mais elevado deve pairar sobre ela como uma possibilidade vivificante.

(KJN 7, p. 482).

A publicação da sua obra, A Prática do Cristianismo, visa inclusive “fortalecer e mostrar a forma como a instituição religiosa deve ser guiada”. Mas, a fim de que venha “a reinar outra vez, terão que ser feitas concessões”. Visto que, reitera Kierkegaard, “só desta forma se pode apontar o caminho a seguir para a instituição religiosa” (KJN 8, p. 89-90).

Mas, no ano seguinte, em 1851, o tom da sua crítica torna-se mais áspero. Kierkegaard declara que a Igreja não se pode amoldar à ordem estabelecida. Igreja e ordem estabelecida são incompatíveis. Deve haver, pois, separação entre Igreja e Estado. “Em sentido estritamente cristão, a exigência é: separação — esta é a exigência suprema da idealidade.” Ele adverte, porém, que esta separação só pode ser operada por uma figura eminentemente religiosa, por uma testemunha da verdade à imagem de um apóstolo. Na falta de uma tal figura, é preferível uma desconforme ordem estabelecida a uma reforma destituída de caráter. Por essa razão, não obstante a exigência da idealidade, ele pretende salvaguardar a ordem estabelecida, sob condição de que “temos de confessar que em sentido mais rigoroso não somos cristãos” (KJN 8, p. 351-352)3 3 Kierkegaard vê mais perigo nos reformadores diletantes que na mais corrupta ordem estabelecida. “O mal da nossa época não é a ordem estabelecida com as suas muitas faltas. Não, o mal na nossa época é exatamente: esta má predileção por reforma, este cortejar a vontade de reformar, esta farsa de querer reformar sem estar disposto a sofrer e fazer sacrifícios. [...] Esta não pode ser a ideia de Deus, mas uma fátua estratégia humana, razão pela qual, ao invés de temor e tremor e muitas provações espirituais, há: viva, bravo, aplauso, votação, inépcia, alvoroço, ruído — e um falso alarme.” (FSE/JFY, p. 212-213). .

Kierkegaard foi gradualmente percebendo que não podia esperar da estrutura eclesiástica o reconhecimento da incongruência entre a realidade da ordem estabelecida e a idealidade da fé cristã. Simultaneamente entreviu que ele poderá vir a converter-se na figura de caráter requerida para operar a separação entre Igreja e Estado. Torna-se evidente para Kierkegaard que, quando a Igreja se acomoda ao mundo, este ganha e a Igreja perde. A Igreja, insiste Kierkegaard, só pode existir no mundo como Igreja militante.

A Igreja só pode subsistir neste mundo, pelejando — isto é, constantemente pelejando. Se é Igreja estabelecida, então significa que foi triunfante. A Igreja militante subsiste mediante a peleja, mas a Igreja chamada estabelecida tem evidentemente de ser a Igreja que se estabeleceu após haver triunfado. E esta Igreja triunfante ou cristandade estabelecida assemelha-se à Igreja militante tanto quanto um quadrado se assemelha a um círculo

(PC, p. 212).

Visto que a existência humana no mundo comporta necessariamente adversidades e provações, do ponto de vista estritamente cristão, a peleja é travada por indivíduos. Ser espírito consiste precisamente nisto, que cada pessoa existe perante Deus. Por isso, de acordo com Kierkegaard, a sociabilidade é uma categoria subalterna ao conceito de indivíduo singular (PC, p. 223). O indivíduo singular tem primazia sobre a assembleia e a comunidade. Isto significa que “não é a relação do indivíduo singular com a comunidade ou a assembleia que determina a sua relação com Deus, mas é a sua relação com Deus que determina a sua relação com a assembleia” (JP1, p. 241). Neste sentido, a crítica de Kierkegaard não se limita a questionar o conformismo e a mundanidade que observa na Igreja estatal dinamarquesa. É a própria concepção de Igreja e assembleia que é problematizada. Numa entrada de seus Diários e Cadernos de Anotações de 1854, encontramos a seguinte passagem que ele intitula: “Uma Nota Bene suspeita.”

Logo no início, quando no Pentecostes três mil foram acrescentados em massa à assembleia — não havia já um equívoco? Não deviam os apóstolos mostrar-se apreensivos sobre se é realmente possível milhares se tornarem cristãos de uma só vez? [...] Na pessoa de Cristo o cristianismo é uma questão para o indivíduo, aqui o indivíduo singular. Para o Apóstolo, é imediatamente a assembleia. Mas com isto, o cristianismo é transposto para uma esfera conceptual completamente diferente. É o conceito de assembleia que se tornou a ruína do cristianismo. Deve-se a isto a ideia confusa de nações, países, povos, reinos que são cristãos

(KJN 9, p. 401-402).

A crítica de Kierkegaard revela um menosprezo radical pela história. A seu ver, a história não clarifica as ideias. Pelo contrário, desvirtua-as. Kierkegaard considera um disparate ver o cristianismo como perfectível, suscetível de aperfeiçoamento mediante o progresso da história. Ele assevera que o cristianismo não entrou de facto no mundo. Nunca progrediu para além do protótipo4 4 A ideia de Cristo como protótipo cuja imitação carateriza a vida do cristão encontra eco na crítica de Nietzsche ao cristianismo. “No fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O ‘evangelho’ morreu na cruz. O que doravante foi denominado de evangelho foi o oposto do que ele viveu: ‘más novas’, um dysangelium. É falso, ao ponto de ser considerado absurdo, pensar que os cristãos se caraterizam pelas suas crenças, tais como a fé na salvação em Cristo: apenas a prática do cristianismo é realmente cristã, viver como o homem que morreu na cruz... Uma vida como esta é possível ainda hoje, para certas pessoas é até necessária: o cristianismo primitivo e genuíno continuará sendo possível... não crer, mas atuar.” (NIETZSCHE, 2005, p. 35). . Os apóstolos começaram logo a proclamar a mensagem de Cristo na linha da propagação. Enquanto Jesus durante três anos e meio conseguiu reunir apenas onze apóstolos, um apóstolo conseguiu congregar três mil seguidores num só dia. “Ou o seguidor é maior que o mestre” ironiza Kierkegaard, “ou a verdade é que o apóstolo foi um pouco precipitado em negociar, apressou-se um pouco a propagar; assim, o equívoco começa já aqui” (M, p. 181)5 5 Numa outra passagem, ele observa ironicamente o contraste ente a figura de Cristo abandonado por todos e os milhões que a Ele aderem posteriormente. “O Deus-Homem é atraiçoado, insultado, abandonado por todos, todos; nem uma só pessoa, literalmente nem um só lhe permanece fiel — e depois, depois, depois há milhões que peregrinam de joelhos aos lugares onde há muitas centenas de anos os seus pés terão deixado traços; depois, depois, depois, milhões adoram uma lasca da cruz em que foi crucificado!” (M, p. 316). .

2 Investida contra o Clero e a Igreja Estatal

A ocasião imediata da investida de Kierkegaard contra a Igreja estatal dinamarquesa foi um sermão proferido pelo Professor Hans Lassen Martensen, velho rival de Kierkegaard, a 5 de fevereiro de 1854. Nesse período ainda Bispo de Schleswig, viria, pouco depois, a ser nomeado Bispo de Zealand e primaz da Igreja estatal dinamarquesa. Na sua homília em memória do recentemente falecido Jakob Peter Mynster, o Bispo Martensen evoca o seu antecessor e refere-se a ele “como testemunha da verdade”. Kierkegaard sente-se indignado pela caraterização do falecido Bispo Mynster como testemunha da verdade e escreve de imediato um artigo intitulado: “Foi o Bispo Mynster uma ‘testemunha da verdade’, uma das ‘verdadeiras testemunhas da verdade’ — é isto a verdade?” O artigo, porém, em decorrência de várias circunstâncias em torno da nomeação do Bispo primaz, só veio a ser publicado em Fædrelandet, meses mais tarde, a 18 de dezembro de 1854.6 6 A delonga na publicação do artigo prende-se com o fato de Kierkegaard querer, por um lado, evitar ser processado por tentativa de interferir na nomeação de Martensen para Bispo primaz e, por outro, não se expor a uma possível ação judicial por libelo ou blasfémia que o extremamente conservador governo poderia mover contra ele. Uma ação judicial, quer da parte de Martensen, quer da parte do governo, obscureceria a finalidade do seu projeto de crítica à Igreja estatal dinamarquesa. Kierkegaard espera, pois, o momento oportuno para iniciar o seu ataque. Em abril de 1854, Martensen é empossado como Bispo primaz e em dezembro do mesmo ano cai o governo conservador, abrindo caminho para um novo governo liberal, que assume o poder a 18 de dezembro. Precisamente no mesmo dia, Kierkegaard inicia o seu ataque à Igreja estatal. Não foi mera casualidade. Fazia parte de um plano meticulosamente preparado à espera do momento oportuno. Para uma elaboração detalhada das razões do adiamento da publicação do artigo, veja-se: KIRMMSE, 1990, p. 450-451; GARFF, 2005, p. 729-732.

No referido artigo e em artigos ulteriores, Kierkegaard elucida o sentido de testemunha da verdade no cristianismo do Novo Testamento, contrapondo-o ao cristianismo que as eminentes figuras eclesiásticas de Mynster e Martensen representavam. No Novo Testamento, ser testemunha da verdade implica viver em pobreza, ser maltratado, perseguido e injuriado. Na Igreja primitiva, “o cristão era tão pobre que, por vezes, lhe faltava o pão quotidiano, mas recebia diariamente e abundantemente o pão quotidiano da perseguição” (M, p. 6). Nessa época, identificar-se como cristão significava pôr em perigo a própria vida. O cristianismo era uma religião pequena e marginalizada, exposta à ostracização social. O caráter de testemunha da verdade do cristianismo primitivo não transparece, de forma alguma, no cristianismo proclamado pelo Bispo Mynster. “A proclamação do cristianismo por parte do Bispo Mynster”, assevera Kierkegaard, “ameniza, encobre, suprime, omite partes do que é o mais decisivamente cristão, o que é demasiado inconveniente para nós, seres humanos, o que tornaria a nossa vida árdua e nos impediria dela usufruir — a questão de morrer para o mundo, de renúncia voluntária, de ódio de si mesmo, sofrimento pela doutrina, etc.” (M, p. 3-4).

Kierkegaard considera uma farsa ridícula referir como testemunha da verdade alguém que, como o Bispo Mynster, usufruiu de todas as benesses e privilégios derivadas da pregação do cristianismo. Havendo-se deleitado a declamar a mensagem cristã em momentos de quietude ao domingo, protegia-se a si mesmo, de forma sagaz e mundana, à segunda-feira, procurando, assim, dar a impressão de haver sido um homem de princípios e caráter (M, p. 7-8). Apresentar uma tal figura como testemunha da verdade, conclui Kierkegaard, “é tão ridículo como falar de uma virgem com um bando de filhos” (M, p.10).

Não obstante a incomum contundência e, por vezes, caráter hiperbólico da sua crítica, havia um fundo de verdade que as próprias figuras eclesiásticas admitiam. O Bispo Martensen, já Bispo primaz da Igreja estatal dinamarquesa, numa carta dirigida a um amigo pastor, confidenciava: “Obtive uma boa compreensão das condições e circunstâncias muito miseráveis da situação eclesiástica. Há certamente coisas na Igreja estatal que não podem nem devem ser mantidas.” E conclui a sua análise: “O clero integra um bom número de membros pelos quais não valeria a pena apoiar a instituição eclesiástica.” (GARFF, 2005GARFF, J. Søren Kierkegaard: A Biography. Translated by Bruce Kirmmse. Princeton. NJ: Princeton University Press, 2005., p. 746-747). Martensen, porém, foi incapaz de admitir publicamente as falhas na instituição eclesiástica que Kierkegaard exigia. Pelo contrário, em resposta à crítica de Kierkegaard, ele observa, num artigo publicado em Fædrelandet a 20 de dezembro de 1854, que o cristianismo, sem Igreja e sem história que Kierkegaard propugna, carece de sentido eclesial e visa apenas criar sensação. “O Dr. S. Kierkegaard deve estar obcecado por uma ideia fixa que no final perdeu a mais simples presença de espírito, ou, contrariamente a uma melhor ponderação, deve ter definido o conceito de testemunha da verdade desta forma exorbitante porque agora, uma vez mais, se deve criar sensação.” (M, p. 361-362).7 7 Sobre o contexto e reações à crítica de Kierkegaard veja-se KIRMMSE, 1996, p.99-115; GARFF, 2005, p. 734-739. Martensen qualifica Kierkegaard de experiente e versado sofista, cuja concepção de testemunha da verdade é arbitrária e carece de fundamento. No final, Martensen não faz mais do que problematizar a crítica de Kierkegaard, acusando-o de identificar a testemunha da verdade com martírio e de defender um ideal de vida cristã impossível de alcançar.

Inicialmente, a crítica de Kierkegaard visava apenas a figura do Bispo Mynster. Mais tarde, porém, Kierkegaard alarga a sua crítica a todos os pastores, a quem lhes nega o direito de se considerarem testemunhas da verdade. A crítica culmina com o ataque à Igreja estatal na sua totalidade. Kierkegaard considera o estado clerical uma falsificação humana do cristianismo do Novo Testamento. É, em si mesmo, um mal que gera devassidão e “faz do cristianismo exatamente o oposto do que Cristo fez” (M, p. 199). A perversão clerical do cristianismo torna-se patente na forma como o seguimento de Cristo é interpretado e vivido. No Novo Testamento, seguir a Cristo exige uma vida de humildade, pobreza e desprendimento de si e das realidades terrenas. A exigência cristã da pobreza, assevera Kierkegaard, “não é uma mera caprichosa veleidade da parte do cristianismo, é exigida porque o cristianismo está bem ciente que só em pobreza pode ser servido verdadeiramente e que quanto mais elevada for a remuneração de quem ministra, menos apto estará para servir o cristianismo” (M, p. 48). Porém, enquanto Cristo viveu em pobreza e proclamou o evangelho em pobreza, o clero recebe uma elevada remuneração pela pregação da doutrina cristã. “O padre é alguém que é pago pelo Estado para proclamar a doutrina de pobreza”, declara ironicamente Kierkegaard. “O padre é alguém que é respeitado, honrado e estimado na sociedade por proclamar que não se deve buscar glória mundana, estima e riqueza (KJN 11/2, p.169). Pregar o evangelho converteu-se num meio de vida, “a forma mais segura de garantir o ganha-pão, com permanente avanço da carreira” (M, p. 20). Ele vive da pregação de Cristo crucificado e defende que isto é profunda seriedade e representa o cristianismo do Novo Testamento (M, p. 31). O perigo da figura clerical, adverte Kierkegaard, é sobranceiramente não dar importância ao ganha-pão e, revestindo-se de “solenidade e dignidade”, pretender que tudo “é em prol do cristianismo” (FSE/JFY, p. 126-127). Se bem que se vincule por juramento ao Novo Testamento, à imitação e seguimento do Salvador do mundo, não lhe “importa absolutamente nada pela imitação”. Vive tranquilo com a família, descrevendo os sofrimentos do Salvador e expondo as Suas doutrinas. Pretende mostrar, deste modo, “ser o verdadeiro, devoto discípulo do Crucificado” (M, p. 322).

A avidez de riqueza e poder por parte do clero perverte a mensagem cristã. Enquanto Cristo pede ao jovem rico que venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, “o pastor diz: vende tudo o que tens e dá-mo a mim” (M, p. 204). Kierkegaard reitera que o clero não se preocupa com o evangelho, mas apenas em assegurar um bom salário e elevado nível de vida. A renúncia é substituída por benesses. O pastor prega que “o cristianismo é renúncia, e depois faz da pregação o seu ganha-pão (M, p. 226)8 8 Ele assemelha os pastores a canibais que, ao invés de comer os inimigos, come os amigos. “O canibal come os seus inimigos. Não é o caso do pastor. Ele dá a impressão de ser excecionalmente dedicado àqueles que ele come. O pastor, particularmente o pastor, é o amigo mais dedicado daqueles gloriosos. ‘Apenas o escute, ouça como ele é capaz de descrever os seus sofrimentos, expor os seus ensinamentos. Não merece ele um galheteiro de prata, uma cruz de cavaleiro, um conjunto completo de poltronas ornamentadas, uns poucos milhares adicionais ao ano, ele próprio, este homem glorioso, comovido até às lágrimas, sendo capaz de descrever os sofrimentos daqueles gloriosos desta forma?’ O canibal, como se pode ver, não é assim.” (M, p. 322). . Daí o interesse pecuniário do pastor “em ter pessoas que se consideram cristãs, visto que cada uma de tais pessoas é evidentemente [...] um membro contribuinte e contribui também para dar à profissão visível poder” (M, p. 96). Embora não se possa viver sem nada, ironiza Kierkegaard, “os pastores são precisamente aqueles que realizam este feito: O cristianismo é completamente inexistente — contudo eles vivem dele” (M, p. 205).

Kierkegaard adverte as pessoas da influência nefasta dos pastores. “Evita-os; eles enganam-te acerca do eterno, simplesmente ao levar-te a pensar que podes receber o eterno sob alguma outra condição que não seja o sofrimento.” (M, p. 299). A função dos pastores é proteger a sociedade das exigências que o cristianismo coloca. Estabelece-se uma espécie de pacto secreto para benefício de ambas as partes.

Esta é a importância dos ‘pastores’ para a sociedade, que de geração em geração usa um ‘necessário’ número de perjuros a fim de, em nome do cristianismo, ser totalmente protegida do cristianismo e, totalmente protegida, ser capaz de viver o paganismo, salvaguardada, mesmo refinada, por isso ser cristianismo.

(M, p. 255).

O que é essencialmente cristão exige que a mensagem proclamada na Igreja seja expressa na atualidade, que penetre a vida. Isso distingue o que é essencialmente cristão de mera teatralidade. Por isso é que o pastor tem de sair para o espaço público e pôr em prática o que proclama. Mas verifica-se o contrário. Logo que retira os paramentos, moteja Kierkegaard, o pastor profere algo assim:

Por amor de Deus, não falemos nisso — eu sou como qualquer um de vós, membro do clube, membro votante de tudo que é mundano, um agradável companheiro social, astutamente consciente do que é do meu interesse, como qualquer um de vós. Que indecoroso e ignaro da minha parte seria lembrar ou trazer existencialmente à mente o que é essencialmente cristão fora da igreja; se assemelharia verdadeiramente a um ator que continuava a atuação numa comédia na sociedade e na vida quotidiana

(KJN 7, p. 57).

O problema do clero, adverte Kierkegaard, não é encontrar-se “sumido em dissolução e impetuosa devassidão”; é antes “estar sumido em inanidade, em filistinismo trivial”, que arrasta os paroquianos para uma “rasa mediocridade e ausência de espírito” (JP 6, p. 555). Por isso, ele considera o padre mais perigoso para o cristianismo que o ateísta.

O ateísta quer livrar-se do ‘padre’, pois com a sua atitude míope e preconceito crê que assim conseguirá libertar-se do cristianismo. Eu quero livrar-me do ‘padre’ — a fim de que o cristianismo possa emergir novamente; enquanto houver o padre, o cristianismo é uma impossibilidade. No seu ódio cego ao cristianismo o ateísta é suficientemente cortês para presumir que, do ponto de vista cristão, o padre se justifica. Vejo que ‘o padre’ e o ateísta são aliados, salvo que o padre é o inimigo mais perigoso

(JP 3, p. 462).

Não obstante a contundência da sua crítica, Kierkegaard deixa claro que não o move qualquer forma de hostilidade contra o clero. A seu ver, o clero é uma classe social tão competente, respeitável e honrada como qualquer outra, mas tão-somente “na condição de não serem considerados ‘testemunhas da verdade’” (M, p. 53).

3 O Cristianismo do Novo Testamento e a Religião Oficial Cristã

Para Kierkegaard, a Igreja não é tanto o meio pelo qual o evangelho é preservado e propagado; é antes a estrutura que perverte a fé cristã. Ele enfatiza que o critério da autêntica fé cristã não é a estrutura eclesial, as doutrinas e os sacramentos, mas só e exclusivamente o Novo Testamento. A crítica de Kierkegaard à Igreja assenta na convicção que ela não reflete o cristianismo do Novo Testamento.

Ó Lutero, tu tinhas 95 teses — terrível! E, contudo, em sentido mais profundo, quanto mais teses há, menos terrível é. A questão é bem mais terrível — há apenas uma tese. O cristianismo do Novo Testamento é completamente inexistente. Aqui não há nada para reformar; trata-se de aclarar um crime que continuou ao longo dos séculos e praticado por milhões (mais ou menos culpados), um crime em que paulatinamente sob pretexto do aperfeiçoamento do cristianismo se intentou sagazmente de ludibriar Deus e o cristianismo se converteu no oposto daquilo que encontramos no Novo Testamento

(M, p. 39).

O problema não reside em qualquer forma de heterodoxia. A ortodoxia doutrinal que prevalece na Igreja parece-se, admite Kierkegaard, àquilo que é “verdadeiramente cristão na medida em que inegavelmente não é doutrina falsa, heresia”. O cristianismo, porém, não é tanto um conjunto de doutrinas a que se adere, mas uma forma exigente de viver em conformidade com Cristo. Não obstante a sua ortodoxia doutrinal, o cristianismo que prevalece na Igreja assemelha-se ao que é “verdadeiramente cristão ainda menos que qualquer heresia e doutrina falsa” (M, p. 120). O Novo Testamento tem do ser humano uma ideia elevada. Orienta o ser humano para o ideal, que está acima do corpo doutrinal produzido desde tempos imemoriais. Contudo, aqueles que são considerados “testemunhas da verdade” fazem carreira e asseguram sucesso neste mundo, “descrevendo aos domingos como a verdade deve sofrer neste mundo” (M, p. 120)9 9 Kierkegaard lembra que o cristianismo no Novo Testamento foi servido por testemunhas da verdade que, ao invés de tirarem proveito da doutrina, sacrificaram tudo pela doutrina. Não viveram, junto com a família, da doutrina. Pelo contrário, viveram e morreram pela doutrina. Por isso, o cristianismo se tornou um imenso poder capaz de transformar o mundo. Assim continuou durantes cerca de três séculos. A partir de então a questão que se colocou foi a de saber como usar este imenso capital. Aqui se inicia o declínio e entra a ambiguidade. O cristianismo é adulterado. É que a sagacidade mundana, adverte Kierkegaard, teve a “ideia de transformar a vida dessas testemunhas da verdade, os seus sofrimentos e sangue em dinheiro, honra e prestígio. [...] os predicadores converteram o sofrimento dos mortos em benefício próprio” (FSE/JFY, p. 129-130). . De acordo com Kierkegaard, a prolixidade doutrinal na cristandade encobre o que é essencialmente cristão. “Digo que a cristandade é um envolto de tagarelice que se grudou ao cristianismo como uma teia de aranha à fruta e agora pretende identificar-se com o cristianismo, como se a teia de aranha quisesse ser a fruta porque a ela se gruda” (M, p. 215). Kierkegaard declara que o cristianismo oficial é mais repugnante para Deus que qualquer heresia.

Creia-me, não há nada tão repugnante para Deus, nenhuma heresia, nenhum pecado, nada tão repugnante para Ele que o oficial. Pode entendê-lo facilmente. Posto que Deus é um ser pessoal, pode certamente compreender quão repugnante é para Ele que se Lhe queira limpar a boca com fórmulas, que se queira servi-l’O com solenidade oficial, com platitudes oficiais, etc. Na verdade, justamente porque Deus é, no sentido mais pleno da palavra, personalidade, pura personalidade, precisamente por isso, o que é oficial é infinitamente mais repugnante para Ele que o é para uma mulher que descobre que lhe é feito um pedido de casamente seguindo — um manual de fórmulas

(M, p. 172-173).

O cristianismo oficial deseja ardentemente o mundano e o temporal, mas, por decência, pretende que não o deseja. Toma grande cuidado em obtê-lo às escondidas, visto que se tem de pretender. Kierkegaard moteja as figuras eclesiásticas quando aceitam os altos e suntuosos postos, aos quais se opõem decididamente e que “só por sentido de dever, única e exclusivamente por sentido de dever, são capazes de decidir aceitar tal posto, e só após ter implorado a Deus de joelhos e com gemidos, lamentavelmente em vão, que lhes seja retirada esta cruz, este cálice amargo” (M, p. 199-200). Como bem observa J. Elrod, o cristianismo oficial da Igreja estatal dinamarquesa e do protestantismo em geral havia-se tornado um sedativo cultural que “legitimava a busca humana de poder, autoridade e conforto” (ELROD, 1981ELROD, J. Kierkegaard and Christendom. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1981., p. 200). Se bem que o cristianismo tenha a ver essencialmente com o sofrimento e se dirija a quem sofre, Kierkegaard observa que na cristandade foram os favorecidos que tomaram conta do cristianismo, os ricos e poderosos, que ademais do seu desfrute da vida pretendem que todo o seu poder e domínio sejam explicados como manifestação da graça de Deus e sinal de serem piedosos. É com esses que o clero preferentemente se associa, porque aqui eles são mais bem remunerados, quer em dinheiro, quer em títulos honoríficos. De sorte que “o cristianismo é realmente furtado àqueles que sofrem, e o que é apresentado em nome do cristianismo é esta posição judaica e pagã, que ter sucesso na vida é sinal de ser piedoso” (KJN 9, p. 27).

Este não é um problema que se confina à Igreja estatal dinamarquesa ou ao protestantismo em geral. Remonta aos primórdios do cristianismo. Kierkegaard declara que o cristianismo foi apropriado pela ambição de poder. Deus quis, por meio do cristianismo, educar e instruir os seres humanos, tendo como pano de fundo a eternidade: a salvação eterna e perdição eterna. Mas os seres humanos estremeceram de medo e ficaram aterrados diante da majestade de Deus. Transcorrido algum tempo, imediatamente, a ambição de poder, quiçá a mais forte paixão no ser humano, dirigiu a sua atenção para o cristianismo com o intuito de ver se seria possível “apoderar-se astuciosamente dele e exercer domínio sobre outros seres humanos, assumindo o papel de Nosso Senhor, que governa com o auxílio da eternidade. O verdadeiro grande desígnio deste gênero é o Papa. A sua ideia era governar as pessoas com o auxílio da eternidade” (KJN 11/2, p. 370-371)10 10 De acordo com Kierkegaard, não foi apenas a instituição religiosa que fez uso do cristianismo para controlar as pessoas. O Estado também usou o cristianismo para assegurar-se de cidadãos obedientes. O Estado, ironiza Kierkegaard, considera que “é sempre uma boa ideia ter a eternidade na manga de forma a governar as pessoas mais eficazmente, de sorte que o cívico e o cristão possam coincidir, de sorte que o que o Estado designa por bom cidadão seja sinônimo de ser um bom cristão, absolutamente seguro da salvação eterna, e o que o Estado designa por cidadão rebelde seja sinônimo de ser um mau cristão que vai para o inferno” (KJN 11/2, p. 371). Vemos aqui adumbrada uma pungente crítica ideológica à religião. Para Kierkegaard a simbiose ente Igreja e Estado é impelida pela ambição de poder e domínio sobre as pessoas. . O cristianismo oficial que historicamente se desenvolveu acabou por se converter, de acordo com Kierkegaard, na falsificação humana do cristianismo do Novo Testamento.

As longas vestes, as imponentes construções das igrejas, etc., tudo isto vai junto, e é a falsificação humana do cristianismo do Novo Testamento, a falsificação que vergonhosamente faz uso, infelizmente, do fato que grande parte da gente se deixa facilmente enganar pela impressão dos sentidos e, por isso, (completamente contrário ao Novo Testamento) é propensa a identificar o verdadeiro cristianismo pela impressão dos sentidos

(M, p. 199)11 11 A ilusão de nações cristãs deve-se, segundo Kierkegaard, “ao poder que os números exercem sobra a imaginação”. Considera-se cristã uma nação, “mas de tal forma que nenhum de nós se reveste do caráter do cristianismo do Novo Testamento” (M, p. 36). Enquanto que “o cristianismo veio ao mundo como a verdade pela qual se morre”, na cristandade de nações cristãs esse tornou-se “a verdade mediante a qual se vive com a família, prosperando constantemente”. É por demais evidente, insiste Kierkegaard, que “o cristianismo oficial não é o cristianismo do Novo Testamento, assemelha-se a ele tanto quanto um quadrado se assemelha a um círculo” (M, p. 52). .

Kierkegaard observa que quando, por toda a parte, todos se tornam cristãos, o cristianismo passa a ser um meio de se proteger de toda a sorte de problemas e inconveniências e de assegurar bens terrenos e comodidades. Guiados pelos pastores, todos declamam ter fé, seguir a Cristo e dar testemunho d’Ele no mundo. Por toda a parte floresce a ortodoxia, não há heresias nem cismas (M, p. 32). Aqui se gera, segundo Kierkegaard, a mais perigosa forma de indiferentismo religioso.

Por indiferentismo entende-se na verdade não ter qualquer religião. Mas não ter religião de forma decisiva, categórica e resoluta, é já algo ardente e, por isso, não é a mais perigosa forma de indiferentismo. É por esta razão que aparece raramente. Não, a forma mais perigosa de indiferentismo, e a mais comum, é ter uma determinada religião, mas esta religião está adulterada e degenerou em pura prolixidade; por isso, pode ter-se uma determinada religião de modo totalmente desapaixonado. Esta é forma mais perigosa de indiferentismo

(M, p. 208-209).

Em decorrência desta perigosa forma de indiferentismo, adverte Kierkegaard, “a defeção do cristianismo não acontecerá abertamente, mediante a renúncia do cristianismo por parte de toda a gente, não, mas se efetuará astuciosamente, dissimuladamente, inescrupulosamente, professando todos serem cristãos” (M, p. 58). Essa forma mitigada de religiosidade promovida pelo cristianismo oficial advém do abandono daquilo que é fundamental na fé cristã: a imitação de Cristo. Kierkegaard assevera que Cristo não pode ser concebido apenas como redentor. Deve ser tido também como o protótipo que o crente é chamado a imitar. É mediante a luta interior em torno da exigência de imitação e não através de mera observância de ritos e cerimônias da religião estabelecida, que o crente se torna verdadeiro seguidor de Cristo. Quando se omite a imitação de Cristo, o cristianismo converte-se em fábula e poesia, que o ateísta pertinentemente critica.

A diferença entre o ateísta e o cristianismo oficial é que o ateísta é uma pessoa sincera, que ensina diretamente que o cristianismo é fábula e poesia; o cristianismo oficial é a falsificação que assegura solenemente que o cristianismo é algo completamente distinto, declama solenemente contra o ateísmo, dissimulando, assim, que está a converter o cristianismo em poesia e a abolir a imitação de Cristo

(M, p. 129)12 12 Nos seus Diários e Cadernos de Anotações, Kierkegaard enaltece a figura de Feuerbach por, mediante a sua crítica, defender o cristianismo da Igreja estabelecida. “O grupo mais recente de livres-pensadores (Feuerbach e companhia) trataram e entenderam a questão de modo bastante mais inteligente do que havia sido feito anteriormente; visto que se olharmos com atenção, veremos que eles, com efeito, chamaram a si a tarefa de defender o Cristianismo da presente geração de cristãos. A verdade é que a cristandade estabelecida se encontra desmoralizada. [...] É, de facto, uma falsidade dizer que Feuerbach ataca o cristianismo—isso não é verdade, ele está a atacar os cristãos, mostrando que a vida deles não corresponde aos ensinamentos do cristianismo” (KJN 6, p. 339). .

O cristianismo do Novo Testamento e o cristianismo oficial representam duas visões diametralmente opostas. Enquanto no Novo Testamento o cristianismo afirma-se pela renúncia, impotência e sofrimento, na cristandade caracteriza-se pela busca de poder e influência no mundo. A alteração que se operou na história do cristianismo com a aquisição de poder e influência, ao invés de manifestar a proximidade de Deus torna-O mais distante. “A lei da proximidade e distanciamento de Deus é esta: quanto mais o fenômeno, a aparência, manifesta que seria impossível Deus estar presente, mais próximo Ele está; inversamente, quanto mais o fenômeno, a aparência manifesta que Deus está muito próximo mais distante ele se encontra.” (KJN 10, p. 224). Kierkegaard ilustra como essa lei se manifestou concretamente na história do cristianismo.

Quando não havia igrejas, mas os cristãos se reuniam nas catacumbas como gente refugiada e perseguida, Deus estava mais próximo da realidade. Depois vieram igrejas, tantas igrejas, tão grandes e esplendorosas igrejas: na mesma medida tornou-se Deus distante. É que a proximidade de Deus está em relação inversa com o fenômeno e este acréscimo (igrejas, muitas igrejas, esplendorosas igrejas) é um acréscimo em aparência. — Quando o cristianismo não era doutrina, quando era um par de afirmações simples, mas estas eram expressas na vida das pessoas: então Deus estava mais próximo da realidade do que quando o cristianismo se tornou doutrina. [...] Quando não havia padres, mas os cristãos eram todos irmãos, Deus estava mais próximo da realidade do que quando houve padres, muitos padres, um imponente sacerdócio. É que os padres constituem um acréscimo de aparência, e Deus está em relação inversa com o fenômeno

(KJN 10, p. 225).

Kierkegaard vê a história da cristandade como um progressivo distanciamento de Deus resultante do fortalecimento da aparência. Remove-se Deus discretamente “por meio da construção de igrejas e estruturas esplendorosas, com estruturas doutrinais gigantescas e monstruosas, com um incalculável número de padres” (KJN 10, p. 225). Na perspectiva de Kierkegaard, Deus encontra-se no mais improvável de todo os lugares e fenômenos. Em Jesus Cristo, Deus está presente “num ser humano desventurado, solitário, destituído, abandonado — esse é o lugar para Deus” (KJN 10, p. 227). Essa é a forma em que Deus se revela no Novo Testamento. Mas a cristandade foi incapaz de assentir. Era algo demasiado rigoroso. No catolicismo, o cristianismo converteu-se no reino deste mundo. Elimina-se a colisão com o mundo e a evidência direta que agrada ao povo torna-se norma. No protestantismo, por outro lado, o cristianismo é transposto para o domínio da interioridade de forma a mostrar que não pertence a este mundo. Aqui também se evita a colisão com o mundo. Para Kierkegaard, tanto um como outro são formas inadequadas de manifestação do cristianismo no mundo. Se bem que o cristianismo não seja um reino deste mundo, quer ter um lugar no mundo, mas não como reino deste mundo. “Quer ter visibilidade paradoxal, por meio da qual todas as colisões cristãs se produzem.” (KJN 10, p. 254). Mediante esta crítica, Kierkegaard pretende recuperar a dimensão profética e contracultural do cristianismo.

A crítica de Kierkegaard ao cristianismo oficial não é ditada por meras contingências históricas. Procede da própria essência da mensagem cristã, patente na vida e ação de Cristo, nomeadamente, na sua colisão com a ordem estabelecida do seu tempo. Jesus Cristo, como indivíduo singular, entra em colisão com a ordem estabelecida, porque esta tende a deificar-se a si mesma, a considerar-se superior a cada indivíduo particular. O mesmo ocorre quando alguém se recusa a submeter a determinada ordem estabelecida e questiona a sua autoridade. A ordem estabelecida, ao considerar-se a si mesma como “uma totalidade que não reconhece nada acima de si”, espera que cada indivíduo singular a ela se submeta e intimida de ser culpado de blasfêmia alguém que apela à sua relação com Deus para questionar e criticar tal ordem (PC, p. 91). Ao deificar-se a ordem estabelecida, esta converte-se em objeto supremo de lealdade e devoção. Deus não é mais que a personificação dessa ordem, e as pessoas, sob pretexto de prestar culto a Deus, acabam por “honrar e adorar a sua própria invenção” (PC, p. 92). Ao converter-se essa concepção distorcida de Deus em critério de verdade, Jesus Cristo ou qualquer outro indivíduo singular que ponha em questão a ordem estabelecida é inevitavelmente acusado de blasfêmia, por presumivelmente pretender ser alguém extraordinário e reivindicar para si autoridade divina. Kierkegaard observa, contudo, que a blasfêmia procede não do indivíduo singular, mas da ordem estabelecida, como uma espécie de “ilusão acústica”. É que a ordem estabelecida projeta para o indivíduo singular a sua própria impiedade de tacitamente se considerar de caráter divino. (PC, p. 87-88).

O indivíduo singular que questiona a ordem estabelecida não se coloca acima da condição humana. Kierkegaard admite que cada indivíduo singular, sem exceção, mantém a mesma relação pessoal com Deus. Assim como estar enamorado não implica negar que outros o possam estar, muito menos apelar à relação pessoal com Deus, por parte de um indivíduo singular que critica a ordem estabelecida, acarreta superioridade ou recusa de reconhecer que outros indivíduos possuam a mesma relação (PC, p. 91). Para Kierkegaard, como bem observa G. Pattison, o repositório último de autêntica religiosidade reside não na ordem estabelecida socialmente determinada, mas no indivíduo singular (PATTISON, 2013, p. 47). Na primazia do indivíduo singular sobre a ordem estabelecida reside o fulcro da crítica de Kierkegaard.

4 O Radicalismo Teológico da Crítica de Kierkegaard

A necessidade de expor a verdadeira situação da Igreja estatal leva Kierkegaard a recorrer a uma prosa incendiária, entretecida por uma linguagem inequívoca e contundente, que se mostra irreverente às normas sociais de conduta. Por meio de uma linguagem dramática, Kierkegaard pretende minar a autoridade eclesiástica e forçar o leitor a questionar a obediência ao clero a fim de que possa reconhecer e apropriar o verdadeiro cristianismo do Novo Testamento. A questão é saber se a radicalidade da sua crítica é uma aberração de caráter circunstancial ou a conclusão lógica e epílogo do seu pensamento. As interpretações em torno da crítica de Kierkegaard são discordantes.

A impetuosidade do ataque de Kierkegaard à Igreja estatal deixou muitos dos seus contemporâneos atônitos e aturdidos. Várias figuras atribuem o ataque à insanidade. “Ele enfureceu-se desvairadamente contra a [Igreja] nos seus Momentos e estava simplesmente a ponto de enlouquecer quando a morte o chamou.” (KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p. 130). Outros assinalam a doença que o afligiu nos últimos anos da sua vida. “A amargura e paixão nas suas mais recentes obras originaram-se na doença que estava já a afetar os seus extraordinários talentos.” Uma tal “amargura doentia” impediu-o de alcançar “clareza e um reto discernimento” (KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p. 130, 136). Mesmo por parte daqueles que estimavam a figura de Kierkegaard e admiravam a sua produção literária, o seu ataque à Igreja estatal foi considerado uma aberração e incongruente com o pensamento desenvolvido nas suas obras anteriores. “Abraça firmemente o que descobriste ser belo e bom nos escritos anteriores de Kierkegaard; entre as coisas a serem deploradas é também isto, a saber: no seu ataque a Mynster, ele prejudicou grandemente o efeito dos seus escritos anteriores.” (KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p. 104).

Outra linha de interpretação procura estabelecer a continuidade existente entre as últimas obras da crítica à Igreja e a produção literária anterior. De acordo com alguns críticos, é possível discernir uma “impressionante coesão e consistência interna em toda a produção literária de Kierkegaard, do princípio ao fim” (THULSTRUP, 1984THULSTRUP, N. Kierkegaard and the Church in Denmark. Copenhagen: C. A. Reitzels Forlag A/S, 1984., p. 258-259). A sua crítica à Igreja não é uma digressão na evolução do seu pensamento. É antes, “o resultado logicamente consistente de mutantes perspectivas sociais e políticas presentes nas obras de Kierkegaard” (KIRMMSE, 1990KIRMMSE, B. Kierkegaard in Golden Age Denmark. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p. 4). Não é possível interpretar adequadamente “o final vituperioso da sua carreira” se é ignorada a evolução do pensamento que o precede (KIRMMSE, 1990KIRMMSE, B. Kierkegaard in Golden Age Denmark. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p. 5).

Kierkegaard declara explicitamente que o ataque à Igreja estatal é a conclusão lógica do seu pensamento, desenvolvido nas obras que o precederam. “Nas minhas obras exerci a minha tarefa, e com todo o meu ser e atividade de autor sou um permanente ataque a toda a proclamação do cristianismo por parte de Mynster.” (M, p. 15). Quando um autor anônimo sugere que, ao invés de atacar a Igreja, Kierkegaard devia escrever uma obra acadêmica sobre a doutrina do Novo Testamento, Kierkegaard contesta que tais obras já existem e que seria mais sensato ao referido autor desafiar antes “os meus contemporâneos a familiarizarem-se melhor com os meus escritos anteriores, com o Post Scriptum Conclusivo, A Doença Mortal, e especialmente Prática do Cristianismo” (M, p. 50). Kierkegaard insiste que “estas obras estão relacionadas precisamente com o momento e proporcionam o desejável conhecimento preparatório para o momento” (M, p. 50). No rascunho de um artigo publicado no jornal dinamarquês Fædrelandet, Kierkegaard reitera, de forma ainda mais contundente, a ligação indissociável entre o pensamento desenvolvido ao longo dos anos e o ataque final à Igreja estatal.

Da minha parte existe um esforço consistente, continuado ao longo de mais de quatorze anos, ao serviço de um único pensamento. [...] Esta diligência e esforço são exercidos para minar a ilusão, e nos meus escritos anteriores usei material inflamável em todos os pontos decisivos. [...] Assim, apenas esperei pelo momento. Este chegou. Acendi o fogo, ateei-o — agora está a arder

(M, p. 533).

Assim, para Kierkegaard, parece não haver descontinuidade entre a sua crítica à Igreja estatal e a atividade de autor que a procedeu. A diferença reside apenas na intensidade e na forma em que a crítica, presente nas suas obras, é apresentada. Inicialmente, de modo implícito e velado; no final, de forma explícita e direta.

Se bem que se observem evidentes pontos de contato entre as suas obras iniciais e posteriores, não se pode considerar a crítica à Igreja como uma mera reiteração de posições defendidas anteriormente. Há também uma clara evolução na intepretação do cristianismo assim como mudança de ênfase e perspectiva relativamente a várias questões. Em 1851, A. G. Rudelbach, uma figura acadêmica que liderou uma campanha de separação da Igreja e Estado, num dos seus escritos intenta associar a figura de Kierkegaard ao seu projeto. Em “Uma Carta Aberta”, Kierkegaard dissocia-se clara e inequivocamente da posição de Rudelbach e do movimento eclesial liderado por Grundtvig do qual Rudelbach fazia parte. Recorrendo à ironia, diz que oferece um prêmio a quem encontrar nas suas obras uma única proposta de reforma que vise alterações de caráter externo da ordem estabelecida (COR, p. 53). Kierkegaard enfatiza que pretende apenas oferecer o que poderá ser designado de “corretivo existencial para a ordem estabelecida, orientado para o aprofundamento interior no ‘indivíduo singular’”. Adverte, ademais, que “nunca dirigiu uma palavra contra o ensinamento e a organização da ordem estabelecida” (COR, p. 56). Estas afirmações põem em evidência que Kierkegaard não vê, neste período, necessidade de reforma da Igreja, visto que tal reforma implicaria apenas alterações de caráter externo e constituiria uma distração da verdadeira questão, isto é, da apropriação interior do cristianismo por parte do indivíduo singular. Neste mesmo escrito, admite, no entanto, a possibilidade de haver situações em que a ordem estabelecida seja de tal natureza que um cristão não poderá manifestar-se indiferente ao caráter externo dessa ordem nem a suportar (COR, p. 56). Embora crítico dos movimentos reformadores da instituição eclesiástica, ele antevê o aparecimento de figuras religiosas conscienciosas, das quais ele porventura fará parte, que são chamadas a agir no mundo e introduzir alterações na organização da ordem temporal.

A descontinuidade entre as posições defendidas nas obras iniciais e posteriores também pode ser vista na forma como Kierkegaard interpreta a relação entre a Igreja e as Sagradas Escrituras. Na sua crítica à Igreja estatal dinamarquesa, ele tende a ver a totalidade da história da Igreja em contínuo processo de degradação do ideal que o Novo Testamento representa. Ele não reconhece o papel e a importância da Igreja na formação do Novo Testamento. Porém, as suas obras iniciais evidenciam uma maior apreciação da tradição eclesial, onde, mormente, a Igreja tem precedência sobre as Sagradas Escrituras. Nos seus Diários e Cadernos de Anotações, escreve: “A Bíblia constitui a Igreja? Não, a Igreja constitui a Bíblia, isto é demostrado pela circunstância, entre outras, que foi escrita para os cristãos. O protestantismo vê a Bíblia a pairar sobre a Igreja como o ataúde de Maomé paira entre os quatro ímãs” (KJN 11/1, p. 109). Nesta fase da evolução do seu pensamento, Kierkegaard manifesta-se claramente crítico do princípio protestante sola scriptura.

Estas breves considerações deixam patente que não é possível discernir uma evolução linear no pensamento de Kierkegaard. As questões tratadas nas suas obras iniciais e posteriores representam uma multiplicidade de perspectivas em metamorfose. Percebe-se continuidade, mas também ruptura e discordância.

Conclusão

O radicalismo da crítica de Kierkegaard ao cristianismo oficial parece revelar ausência de uma concepção positiva da Igreja. Alguns críticos vão ao ponto de afirmar que o cristianismo proposto por Kierkegaard “é tão extremo que ninguém jamais o poderá praticar”; a sua exposição da vida do crente como “o puro contemporâneo de Cristo, sofrendo crucificação com Ele, sem Igreja, sem tradição e ritos, pode existir apenas fora da história” (RICOEUR, 1998RICOEUR, P. Philosophy after Kierkegaard. In: RÉE, J. and CHAMBERLAIN, J. (Ed.). Kierkegaard: A Critical Reader. Oxford: Blackwell Publishers, 1998., p. 13). Na mesma linha, outros sustentam que a sua crítica, nomeadamente a falta de propostas concretas de reforma e formas alternativas de organização eclesiástica, parece indicar que ele não antevê qualquer função da Igreja na ação salvífica de Deus. A Igreja é considerada “uma realidade fundamentalmente anticristã” (LAW, 2009LAW, D. The Contested Notion of “Christianity” in the Mid-Nineteenth-Century Denmark: Mynster, Martensen, and Kierkegaard’s Antiecclesiastical, “Christian” Invenctive in the Moment and Late Writings. In: PERKINS, R. (Ed.). International Kierkegaard Commentary. Macon, Ga.: Mercer University Press, 2009. v. 23, p. 43-70., p. 68-69). É inegável que Kierkegaard, em várias passagens das suas obras, parece advogar um cristianismo de pura interioridade desprovido de qualquer dimensão eclesial. Ele declara reiteradamente que “a primeira condição para se tornar cristão é voltar-se incondicionalmente para a interioridade [...] o que se volta para a interioridade não tem absolutamente nada que ver com os outros” (PC, p. 225). Se bem que se tenha de reconhecer a vertente individualista e incontestável perspectiva antieclesial do seu pensamento, é questionável querer interpretar a sua concepção do cristianismo e ideia de Igreja unicamente na base dos seus escritos polêmicos contra a Igreja. Nas declarações antieclesiais da sua crítica, Kierkegaard não visa abolir a Igreja, mas antes oferecer um corretivo à ordem estabelecida. Ele mantém que aquele que é chamado a apresentar o corretivo tem de examinar atenta e minuciosamente os pontos fracos da ordem estabelecida, só assim pode proporcionar o lado oposto, apresentando-o deliberadamente de forma unilateral. Aqui reside precisamente o corretivo. A pessoa que fornece o corretivo poderia naturalmente apresentar o lado que é desconsiderado. Mas nesse caso o corretivo deixaria de o ser e se converteria em ordem estabelecida (KJN 6, p. 194).

Quando no final da sua vida, Kierkegaard jazia no leito de um hospital, um pastor amigo seu pergunta-lhe se gostaria de alterar algo, visto que as suas palavras “não correspondiam à realidade, mas eram mais rigorosas”. Kierkegaard replicou-lhe: “É assim que deve ser, de outra forma não adianta nada. Penso efetivamente que quando a bomba explode tem de ser assim! Achas que devia refrear, falar primeiro a fim de despertar a gente e depois acalmá-la?” E, mais adiante, acrescenta: “Deves tomar nota do fato que vi as coisas a partir do âmago do cristianismo, que tudo é procrastinação, pura procrastinação.” (KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p. 125). Estas palavras deixam patente que no seu ataque à Igreja, Kierkegaard não visa propor um plano de reforma, isto é, uma estrutura eclesial alternativa, mas expor a contradição existente entre a realidade eclesial e o ideal do cristianismo do Novo Testamento.

À imagem de Sócrates, Kierkegaard é uma espécie de tavão instigador da ordem estabelecida. Perante uma Igreja acomodada ao mundo, que barateava a cruz e o sofrimento de Cristo e recorria abusivamente à graça de Deus, assegurando complacentemente a salvação, Kierkegaard confronta-a com o rigor do ideal cristão, com o chamamento de Cristo a imitá-l’O no sacrifício de si mesmo a favor do irmão que sofre e padece necessidade. Ele pretende recuperar a instância crítica e profética da Igreja relativamente à ordem política e social. Para este fim, intenta erradicar as incrustações culturais e teológicas que obscureciam a humanidade de Jesus de Nazaré. Porém, sem deixar de proclamar e celebrar a imutável presença do amor de Deus (PLEKON, 1982PLEKON, M. “Introducing Christianity into Christendom”: Reinterpreting the Late Kierkegaard. Anglican Theological Review, Sewanee, TN, v. 64, p. 327-352, 1982., p. 344). Ele adverte que querer converter o corretivo, que a sua crítica representa, em normativo é um “erro fatal” que “confunde tudo” (KJN 9, p. 49). No dia 1º de agosto de 1855, no período culminante do ataque à Igreja e poucos meses antes da sua morte, Kierkegaard interrompe a publicação de O Momento e publica um discurso que havia proferido em 1851. Intitula-se: A Imutabilidade de Deus. Nesse discurso reverbera, como contraponto do cristianismo austero e rigoroso presente na crítica implacável à instituição eclesiástica, a graça e o amor de Deus.

Ó Deus, tu o Imutável, tu, imutável, és sempre encontrado, sempre encontrado imutável. [...] Sempre que uma pessoa vem a ti, qualquer que seja a idade, qualquer que seja a hora do dia, em qualquer estado — se vem sinceramente, sempre encontrará (como a frescura invariável do manancial), o teu amor igualmente terno, tu, o Imutável! Amém

(M, p. 280-281).

Paralelamente ao desdém que nutre pelos pastores e a instituição eclesiástica, Kierkegaard manifesta-se próximo do homem comum, de quem diz fazer parte. No último número de O Momento, ele reitera:

Tu, homem comum! Não separei a minha vida da tua, tu o sabes, vivi na rua, todos me conhecem. Além disso, não me tornei importante, não faço parte do egoísmo de classe. Se pertenço a alguém, é a ti que devo pertencer, tu homem comum, tu que, sem embargo, instigado alguma vez por alguém que de ti obtinha dinheiro, fazendo-te crer que era para o teu bem, chegaste a considerar a minha pessoa e a minha vida ridículas. [...] Tu, homem comum! Não escondo de ti que, segundo a minha concepção, ser cristão é algo infinitamente elevado, [...] contudo é possível para todos. Mas imploro-te, por amor de Deus e por tudo o que é sagrado: evita os pastores

(M, p. 346-347).

Não se percebe em Kierkegaard elitismo ou sobranceria. Ele não se apresenta como reformador. Tampouco diz de si mesmo ser cristão em sentido estrito. Apenas se considera um poeta religioso que apresenta um corretivo para o cristianismo amorfo e a Igreja acomodada da sua época. Se o corretivo à ordem estabelecida, que a crítica de Kierkegaard representa, não é tido como normativo e os escritos polêmicos contra a Igreja não se consideram dissociados do contexto geral do seu pensamento, torna-se uma interpretação unilateral apresentá-lo como proponente de um cristianismo de pura interioridade, ascético e austero, desprovido de dimensão eclesial.

Abreviações das Obras de Kierkegaard

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    KierkegaardKIERKEGAARD, S. Søren Kierkegaard’s Journals and Papers. Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong, assisted by Gregor Malantschuk (vol. 7, Index and Composite Collation). Bloomington, IN: Indiana University Press, 1967–78. v. 1-6. fez o que recomendava Deixando de participar no culto dominical, Kierkegaard despendia regularmente o seu tempo aos domingos de manhã numa biblioteca localizada no centro de Copenhague, manifestando assim a sua oposição à Igreja estatal dinamarquesa. Veja-se: KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p.115.
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    KierkegaardKIERKEGAARD, S. Kierkegaard’s Journals and Notebooks. Edited by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2007-20. v. 1-11. considera a sua vida e as suas obras uma permanente crítica ao cristianismo que o Bispo Mynster representava. Mas deixa em aberto a possibilidade de o Bispo Mynster conceder a qualquer momento que o cristianismo que representava não era o cristianismo do Novo Testamento. Neste caso, sairia em sua defesa. Mas a longamente esperada concessão não chegou. Kierkegaard permitiu que a vida do Bispo Mynster não fosse perturbada pela sua crítica. Deixou que fosse sepultado com todas as honras e que o monumento lhe fosse erigido. O que Kierkegaard jamais poderia permitir é que o Bispo Mynster passasse à história “como testemunha da verdade, uma das autênticas testemunhas da verdade” (M, p. 15).
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    KierkegaardKIERKEGAARD, S. For Self-Examination and Judge for Yourself. Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990. vê mais perigo nos reformadores diletantes que na mais corrupta ordem estabelecida. “O mal da nossa época não é a ordem estabelecida com as suas muitas faltas. Não, o mal na nossa época é exatamente: esta má predileção por reforma, este cortejar a vontade de reformar, esta farsa de querer reformar sem estar disposto a sofrer e fazer sacrifícios. [...] Esta não pode ser a ideia de Deus, mas uma fátua estratégia humana, razão pela qual, ao invés de temor e tremor e muitas provações espirituais, há: viva, bravo, aplauso, votação, inépcia, alvoroço, ruído — e um falso alarme.” (FSE/JFY, p. 212-213).
  • 4
    A ideia de Cristo como protótipo cuja imitação carateriza a vida do cristão encontra eco na crítica de Nietzsche ao cristianismo. “No fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz. O ‘evangelho’ morreu na cruz. O que doravante foi denominado de evangelho foi o oposto do que ele viveu: ‘más novas’, um dysangelium. É falso, ao ponto de ser considerado absurdo, pensar que os cristãos se caraterizam pelas suas crenças, tais como a fé na salvação em Cristo: apenas a prática do cristianismo é realmente cristã, viver como o homem que morreu na cruz... Uma vida como esta é possível ainda hoje, para certas pessoas é até necessária: o cristianismo primitivo e genuíno continuará sendo possível... não crer, mas atuar.” (NIETZSCHE, 2005NIETZSCHE, F. The Anti-Christ, Ecce Homo, Twilight of the Idols. Edited by Aaron Ridley and Judith Norman. Cambridge: Cambridge University Press, 2005., p. 35).
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    Numa outra passagem, ele observa ironicamente o contraste ente a figura de Cristo abandonado por todos e os milhões que a Ele aderem posteriormente. “O Deus-Homem é atraiçoado, insultado, abandonado por todos, todos; nem uma só pessoa, literalmente nem um só lhe permanece fiel — e depois, depois, depois há milhões que peregrinam de joelhos aos lugares onde há muitas centenas de anos os seus pés terão deixado traços; depois, depois, depois, milhões adoram uma lasca da cruz em que foi crucificado!” (M, p. 316).
  • 6
    A delonga na publicação do artigo prende-se com o fato de KierkegaardKIERKEGAARD, S. Practice in Christianity. Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press 1991. querer, por um lado, evitar ser processado por tentativa de interferir na nomeação de Martensen para Bispo primaz e, por outro, não se expor a uma possível ação judicial por libelo ou blasfémia que o extremamente conservador governo poderia mover contra ele. Uma ação judicial, quer da parte de Martensen, quer da parte do governo, obscureceria a finalidade do seu projeto de crítica à Igreja estatal dinamarquesa. Kierkegaard espera, pois, o momento oportuno para iniciar o seu ataque. Em abril de 1854, Martensen é empossado como Bispo primaz e em dezembro do mesmo ano cai o governo conservador, abrindo caminho para um novo governo liberal, que assume o poder a 18 de dezembro. Precisamente no mesmo dia, Kierkegaard inicia o seu ataque à Igreja estatal. Não foi mera casualidade. Fazia parte de um plano meticulosamente preparado à espera do momento oportuno. Para uma elaboração detalhada das razões do adiamento da publicação do artigo, veja-se: KIRMMSE, 1990KIRMMSE, B. Kierkegaard in Golden Age Denmark. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p. 450-451; GARFF, 2005GARFF, J. Søren Kierkegaard: A Biography. Translated by Bruce Kirmmse. Princeton. NJ: Princeton University Press, 2005., p. 729-732.
  • 7
    Sobre o contexto e reações à crítica de Kierkegaard veja-se KIRMMSE, 1996KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996., p.99-115; GARFF, 2005GARFF, J. Søren Kierkegaard: A Biography. Translated by Bruce Kirmmse. Princeton. NJ: Princeton University Press, 2005., p. 734-739.
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    Ele assemelha os pastores a canibais que, ao invés de comer os inimigos, come os amigos. “O canibal come os seus inimigos. Não é o caso do pastor. Ele dá a impressão de ser excecionalmente dedicado àqueles que ele come. O pastor, particularmente o pastor, é o amigo mais dedicado daqueles gloriosos. ‘Apenas o escute, ouça como ele é capaz de descrever os seus sofrimentos, expor os seus ensinamentos. Não merece ele um galheteiro de prata, uma cruz de cavaleiro, um conjunto completo de poltronas ornamentadas, uns poucos milhares adicionais ao ano, ele próprio, este homem glorioso, comovido até às lágrimas, sendo capaz de descrever os sofrimentos daqueles gloriosos desta forma?’ O canibal, como se pode ver, não é assim.” (M, p. 322).
  • 9
    KierkegaardKIERKEGAARD, S. The Moment and Late Writings. Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press 1998. lembra que o cristianismo no Novo Testamento foi servido por testemunhas da verdade que, ao invés de tirarem proveito da doutrina, sacrificaram tudo pela doutrina. Não viveram, junto com a família, da doutrina. Pelo contrário, viveram e morreram pela doutrina. Por isso, o cristianismo se tornou um imenso poder capaz de transformar o mundo. Assim continuou durantes cerca de três séculos. A partir de então a questão que se colocou foi a de saber como usar este imenso capital. Aqui se inicia o declínio e entra a ambiguidade. O cristianismo é adulterado. É que a sagacidade mundana, adverte Kierkegaard, teve a “ideia de transformar a vida dessas testemunhas da verdade, os seus sofrimentos e sangue em dinheiro, honra e prestígio. [...] os predicadores converteram o sofrimento dos mortos em benefício próprio” (FSE/JFY, p. 129-130).
  • 10
    De acordo com KierkegaardKIERKEGAARD, S. The Corsair Affair. Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1982., não foi apenas a instituição religiosa que fez uso do cristianismo para controlar as pessoas. O Estado também usou o cristianismo para assegurar-se de cidadãos obedientes. O Estado, ironiza Kierkegaard, considera que “é sempre uma boa ideia ter a eternidade na manga de forma a governar as pessoas mais eficazmente, de sorte que o cívico e o cristão possam coincidir, de sorte que o que o Estado designa por bom cidadão seja sinônimo de ser um bom cristão, absolutamente seguro da salvação eterna, e o que o Estado designa por cidadão rebelde seja sinônimo de ser um mau cristão que vai para o inferno” (KJN 11/2, p. 371). Vemos aqui adumbrada uma pungente crítica ideológica à religião. Para Kierkegaard a simbiose ente Igreja e Estado é impelida pela ambição de poder e domínio sobre as pessoas.
  • 11
    A ilusão de nações cristãs deve-se, segundo Kierkegaard, “ao poder que os números exercem sobra a imaginação”. Considera-se cristã uma nação, “mas de tal forma que nenhum de nós se reveste do caráter do cristianismo do Novo Testamento” (M, p. 36). Enquanto que “o cristianismo veio ao mundo como a verdade pela qual se morre”, na cristandade de nações cristãs esse tornou-se “a verdade mediante a qual se vive com a família, prosperando constantemente”. É por demais evidente, insiste Kierkegaard, que “o cristianismo oficial não é o cristianismo do Novo Testamento, assemelha-se a ele tanto quanto um quadrado se assemelha a um círculo” (M, p. 52).
  • 12
    Nos seus Diários e Cadernos de Anotações, Kierkegaard enaltece a figura de Feuerbach por, mediante a sua crítica, defender o cristianismo da Igreja estabelecida. “O grupo mais recente de livres-pensadores (Feuerbach e companhia) trataram e entenderam a questão de modo bastante mais inteligente do que havia sido feito anteriormente; visto que se olharmos com atenção, veremos que eles, com efeito, chamaram a si a tarefa de defender o Cristianismo da presente geração de cristãos. A verdade é que a cristandade estabelecida se encontra desmoralizada. [...] É, de facto, uma falsidade dizer que Feuerbach ataca o cristianismo—isso não é verdade, ele está a atacar os cristãos, mostrando que a vida deles não corresponde aos ensinamentos do cristianismo” (KJN 6, p. 339).

References

  • ELROD, J. Kierkegaard and Christendom Princeton. NJ: Princeton University Press, 1981.
  • GARFF, J. Søren Kierkegaard: A Biography Translated by Bruce Kirmmse. Princeton. NJ: Princeton University Press, 2005.
  • KIERKEGAARD, S. Søren Kierkegaard’s Journals and Papers Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong, assisted by Gregor Malantschuk (vol. 7, Index and Composite Collation). Bloomington, IN: Indiana University Press, 1967–78. v. 1-6.
  • KIERKEGAARD, S. Kierkegaard’s Journals and Notebooks Edited by Niels Jørgen Cappelørn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, George Pattison, Vanessa Rumble, and K. Brian Söderquist. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2007-20. v. 1-11.
  • KIERKEGAARD, S. For Self-Examination and Judge for Yourself Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990.
  • KIERKEGAARD, S. Practice in Christianity Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press 1991.
  • KIERKEGAARD, S. The Moment and Late Writings Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press 1998.
  • KIERKEGAARD, S. The Corsair Affair Edited and translated by Howard V. Hong and Edna H. Hong. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1982.
  • KIRMMSE, B. Kierkegaard in Golden Age Denmark Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990.
  • KIRMMSE, B. (Ed.). Encounters with Kierkegaard: A Life as Seen by His Contemporaries. Princeton. NJ: Princeton University Press, 1996.
  • LAW, D. The Contested Notion of “Christianity” in the Mid-Nineteenth-Century Denmark: Mynster, Martensen, and Kierkegaard’s Antiecclesiastical, “Christian” Invenctive in the Moment and Late Writings. In: PERKINS, R. (Ed.). International Kierkegaard Commentary Macon, Ga.: Mercer University Press, 2009. v. 23, p. 43-70.
  • NIETZSCHE, F. The Anti-Christ, Ecce Homo, Twilight of the Idols Edited by Aaron Ridley and Judith Norman. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
  • PLEKON, M. “Introducing Christianity into Christendom”: Reinterpreting the Late Kierkegaard. Anglican Theological Review, Sewanee, TN, v. 64, p. 327-352, 1982.
  • RICOEUR, P. Philosophy after Kierkegaard. In: RÉE, J. and CHAMBERLAIN, J. (Ed.). Kierkegaard: A Critical Reader Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
  • THULSTRUP, N. Kierkegaard and the Church in Denmark Copenhagen: C. A. Reitzels Forlag A/S, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2020
  • Aceito
    10 Jun 2021
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