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A SINODALIDADE COMO REFRÃO: CONTRIBUIÇÕES À IDENTIDADE ECLESIAL

The Synodality as a Leitmotif: Contributions to Ecclesial Identity

RESUMO

O presente artigo almeja refletir sobre a dimensão da sinodalidade como expressão do autêntico modo de ser da Igreja, isto é, como sua identidade. Para isso, apropria-se de alguns aspectos do percurso sinodal recém iniciado sob nova metodologia. De maneira geral, considera a questão da sinodalidade como o grande refrão do pontificado de Francisco, como já manifesto em vários de seus textos magisteriais. A primeira parte do texto realiza uma discussão com base na etimologia do termo sínodo, evoluindo rumo a algumas de suas possibilidades interpretativas. A segunda parte orienta-se ao redor dos três conceitos metodológicos fundamentais para o processo de auscultação sinodal, quais sejam: o encontrar, o escutar e o discernir. A última parte detém-se nalguns dos alcances mais evidentes da internalização da sinodalidade como forma ordinária de expressão da vida eclesial.

PALAVRAS-CHAVE
Sinodalidade; Papa Francisco; Eclesialidade; Teologia

ABSTRACT

This article aims to reflect on the dimension of synodality as an expression of the Church’s authentic way of being, that is, as its identity. For this, it appropriates some aspects of the synodal journey, which has just begun under a new methodology. In general, it considers the question of synodality as the leitmotif of Francis’ pontificate, as already manifested in several of his magisterial texts. The first part of the text holds a discussion based on the etymology of the term synod, evolving towards some of its interpretative possibilities. The second part is oriented around the three methodological concepts fundamental for the process of synodal consultation, namely: encountering, listening and discerning. The last part focuses on some of the most evident achievements of the internalization of synodality as an ordinary form of expression of ecclesial life.

KEYWORDS
Synodality; Pope Francis; Ecclesiality; Theology

Introdução

A dimensão da sinodalidade pode ser considerada como o grande refrão do pontificado de Francisco. Isso é o que ele mesmo aponta, especialmente a partir da valorização dos processos sinodais da Igreja e, entre eles, e com maior destaque, o Sínodo dos Bispos: “Desde o início do meu ministério como Bispo de Roma, pretendi valorizar o Sínodo, que constitui um dos legados mais precisos da última sessão conciliar.” (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Aula Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html Acesso em: 19 out. 2021.
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). Em outras oportunidades, pude insistir nesse ponto, que, quiçá, será recordado pelas próximas décadas como o epicentro de todas as iniciativas levadas a termo por Bergoglio –, e, assim esperamos, com marcas definitivas sobre a autocompreensão da Igreja em relação à sua identidade e metodologia de ação no século XXI (MARTINS FILHO, 2020cMARTINS FILHO, J. R. F. Uma Igreja sinodal e ministerial: novos impulsos para a Amazônia e o mundo. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 52, n. 3, p. 755-773, 2020c.). Além disso, sobressaltar a sinodalidade como modo de ser da Igreja equivale a resgatar uma prática já bastante conhecida, sobretudo ao longo do primeiro milênio da era cristã, embora legada a dimensões muito restritas do fazer eclesial, talvez até entendida como alguma forma historicizada e, por isso, suscetível à substituição por outros modelos eclesiológicos. Diferente de pensar que a Igreja pode existir de maneira sinodal é a convicção de que a natureza da Igreja, ou seja, a sua essência ou quididade, é a sinodalidade. Tal compreensão traz à baila uma série de questões que certamente serão debatidas doravante em meio ao fluxo ora iniciado dessa vez tendo como objetivo – da reflexão/ação – a própria sinodalidade eclesial; a busca por caminhos de comunhão, participação e missão.

Deixando de lado, porém, toda a teologia da sinodalidade, já radicada na tradição, é verdade que se trata de um assunto que nos últimos anos fora retomado propositalmente. Acerca desse incremento, o Papa Francisco possui um papel incontornável, que, ao contrário de uma mera fruição ao acaso das circunstâncias, faz-se explícito em todo o seu percurso como Bispo de Roma, quer seja em sua tarefa docente para com toda a Igreja, quer como certeza calada no coração e traduzida em gestos de abertura à alteridade. Em nosso tempo existe, então, uma oportunidade ímpar para se resgatar uma orientação que não se mostrou como modelo sobressalente nas escolhas metodológicas e de organização institucional que regeram o modus operandi da Igreja, predominantemente ao longo do segundo milênio. Ao que parece, a ênfase na dimensão hierárquica se fez às custas do enfraquecimento da sinodalidade – ou de uma sua dimensão correlata, que é a colegialidade, no caso dos Bispos1 1 Com relação às conquistas implementadas desde o Concílio Vaticano II acerca da sinodalidade, Agenor Brighenti (2020) recorda a importância das Conferências Episcopais regionais, aprofundando o seu estatuto epistemológico – que, inclusive, é atualmente questionado por muitos setores. Isso nos obriga a sempre recordar os passos que já estão em curso, de modo que o resgate de uma discussão sobre a sinodalidade não pode se pretender isolado. Deve-se, ao contrário, considerar os diferentes momentos históricos. No caso específico da América Latina, ou do Brasil, o próprio Papa Francisco recorda, na Exortação Querida Amazônia, o protagonismo das comunidades eclesiais de base: “As comunidades de base, sempre que souberam integrar a defesa dos direitos sociais com o anúncio missionário e a espiritualidade, foram verdadeiras experiências de sinodalidade no caminho evangelizador da Igreja na Amazônia” (QA, n. 96). . Isso em seus dois principais aspectos: como processo de construção conjunta em que todas as partes envolvidas se encontram em igual condição de responsabilidade – mesmo que guardada a pluralidade de vocações no seio da Igreja; e como participação na universalidade da Igreja, que de modo algum depõe contra a variedade de carismas regionais, sem que isso implique em fechamento (uma Igreja particular não é uma ilha, embora nela estejam presentes todos os elementos constituintes da Igreja de Cristo!) (LG, n. 23). Outra vez, portanto, vemo-nos desafiados a buscar caminhos intermediários capazes de manter em realce às várias potências eclesiais congregadas ao redor de um núcleo de fé, mas que, na organização e no serviço, deverão continuar expressando-se plurais. Essa parece ser a aposta de Francisco, que conta, para isso, com o apoio de grande parte da Igreja: cristãos leigos, religiosos e religiosas, parte significativa do clero.

Com o propósito de contribuir com algumas “migalhas de reflexão” a um debate que é bem mais amplo, lanço algumas pistas no que segue, sem a ambição de resoluções grandiloquentes e apressadamente conclusivas, fadadas, como são todas as desse perfil, a perecerem imediatamente após serem manifestas. Penso, como disse, algumas ênfases para a leitura do momento atual, valorizando – talvez como tema – a importância da iniciativa que testemunhamos e, nesse conjunto, o papel do Papa Francisco como articulador de tensões que não se dissolvem completamente, mas que devem aprender a conviver em harmonia. Numa primeira seção, toco a etimologia da palavra sínodo com a tentativa de sublinhar os dois pilares de sua conjunção: o caminho e a unidade no caminho. É preciso desenvolver a consciência de que caminhar em unidade não implica em seguir o mesmo trajeto, insistir no mesmo passo e na mesma frequência. Isso, embora em termos do “caminho”, permaneça sempre inclinado ao mesmo direcionamento: o Cristo – caminho, verdade e vida (Jo 14,6). Aliás, o próprio caminho, como bem ensinou o poeta, apenas se faz enquanto se caminha, pelo que, apesar de nosso vício, prospecções não são realmente possíveis; quiçá uma avaliação da qualidade de cada passo dado no presente, sob a luz do passado, mas sempre em busca do futuro. Assim, é possível que a percepção do mundo à nossa volta nos obrigue ao que Francisco não cansa de insistir: a uma autêntica mudança de paradigmas – o que também podemos chamar de conversão. Trata-se da descoberta de novos mecanismos para a leitura da realidade, capazes de suscitar os discursos e não de meramente submetê-los à formatação esperada. Isso é o que pretendo ao realçar três verbos, constantemente presentes à proposta sinodal, quais sejam: o encontrar, o escutar e o discernir. Enfim, como última parte deste caminho dialogal, manifesta-se a tentativa de sugerir alguns alcances plausíveis para a proposta sinodal – ou melhor, para a consolidação da sinodalidade como interface na relação entre a Igreja e o mundo. É verdade que os primeiros frutos da experiência sinodal provavelmente serão colhidos em terreno intraeclesial. Mas caso sejamos capazes de realmente adotar uma postura aberta e de acolhimento, no exercício da fraternidade, nosso testemunho, muito possivelmente, ultrapassará os ditames do nosso próprio círculo, lançando-se à sociedade como um todo, como luz e fermento por um mundo melhor. Essa expectativa sadia está em acordo com as últimas indicações de Francisco, por exemplo, na encíclica Fratelli Tutti, mas também em outros expoentes de seu magistério, sempre disposto a considerar um olhar dilatado, da realidade humana para o macrocosmo que a mantém e sustenta.

1 Etimologia e alcance semântico: do sínodo à sinodalidade

Ao tomarmos como meta de nossa reflexão a sinodalidade, devemos, num primeiro momento, concentrarmo-nos ao redor dos alcances semânticos inerentes a esse étimo. Isso porque, como ensinou o filósofo Martin Heidegger (2003)HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2003. (GA 65)., toda palavra traz consigo a marca da inicialidade de que é originada. Ao evocarmos a compreensão de que a sinodalidade é o modo identitário por meio do qual autenticamente pode ser expressa a vocação da Igreja, precisamos estabelecer o alcance do que pretendemos de acordo com o espírito do nosso tempo.

Ao contrário do que pode parecer, não tenho aqui a pretensão de revisitar a história dos sínodos2 2 Especificamente sobre a história dos sínodos no Ocidente e, em particular, sobre a história do Sínodo dos Bispos, não dispomos de muito material. Diferentemente ocorre a respeito dos Concílios, cujo tratamento, de algum modo toca a questão dos sínodos. Sobre esse último tema, há a importante obra organizada por Giuseppe Alberigo (1997). como prática recorrente no cristianismo, tanto no Oriente, quanto no Ocidente, pelo que certamente há referências mais pertinentes e que podem satisfazer o anseio da pesquisa a esse respeito. Pretendo algo que se pode dizer anterior, embora com ressonância sobre o atual momento compreensivo, e que, além disso, também resulta em um movimento significativamente mais simples. Isso porque não se pode falar em sinodalidade sem, de antemão, compreender o sentido radical que está em jogo nessa construção. Em seguida, como tarefa imediatamente necessária, urge reestabelecer o perfil de significação à luz do qual devemos entender a proposta de Francisco não como a definição do enrijecimento nos modos de ser da Igreja, mas, justamente o oposto, a legitimação da participação como única forma possível para se determinar a comunhão. Isto é, não pode haver comunhão sem efetiva participação de todos os envolvidos.

A palavra sínodo, transliteração do grego σύνοδος, é composta pela anteposição do vocábulo ὁδός pelo prefixo σύν (que em algumas circunstâncias também adquire função de preposição dativa). Por um lado, a expressão ἡ ὁδός pode ser traduzida em vernáculo como “o caminho”. Por outro, o prefixo aludido – σύν –, quando acrescido a algum outro termo, indica confluência, unidade de sentido e propósito, donde resulta natural compreender a expressão σύνοδος como equivalente à seguinte formulação: um caminho em conjunto (que também poderia ser um caminho em companhia, em sintonia com...). Desse ponto inicial, ao menos duas constatações podem ser extraídas. A primeira, de que está em jogo um movimento de participação comum, em que duas ou mais partes acomodam-se ao fazer conjunto, nesse caso, ao exercício do caminho como um processo de interdependência. A segunda, de que não se trata de uma única possibilidade de se perfazer determinado trajeto, quer dizer, de uma única maneira de realizar o caminho, mas de uma modalidade eminentemente comum. Vale lembrar que, embora tenham como terreno compartilhado sua origem na língua grega, a leitura praticada a respeito da palavra sínodo não pode ser confundida com a interpretação recorrentemente atribuída ao conceito de método (μέθοδος) – a aposta na eleição de um caminho único para o acesso a determinada finalidade. Um sínodo certamente estará amparado por alguma orientação metodológica, e é justamente sobre isso que tentarei acenar no próximo tópico desta reflexão. Contudo, para que se descubra o real sentido da vivência sinodal – e o caminho apenas pode ser partilhado como uma vivência comum – é certamente preciso relativizar a identificação da sinodalidade ao método de se fazer a pastoral.

Por volta do século XVI e ainda no início do século XVII, período tradicionalmente reconhecido como Modernidade, muitos autores dedicaram-se à delimitação de métodos de incursão sobre a realidade. Todos eles possuíam em comum o seguinte direcionamento: o domínio da criação e a submissão da natureza ao primado do ser humano. Por muito tempo, desse modo, falar em método tornou-se equivalente a se falar em monopólio – o monopólio do eu sobre a objetividade. O caminho particularizou-se ante às múltiplas e, em geral, antagônicas possibilidades de enfrentamento do real; perdeu-se a visão do todo no excessivo vislumbre das partes, sempre outra vez atraídas por um novo processo de subdivisão. O conhecimento humano alcançou progresso, mas não sem o alto preço da “nova Babel”, em que os discursos não se entrecruzam nem se encontram.

No horizonte de nossa proposta reflexiva, a aparente arbitrariedade na aproximação entre dois conceitos aparentemente distantes guarda uma finalidade que, talvez, justifique o seu uso. Se, em nome da conquista do universal, a sociedade do Ocidente encaminhou-se para um processo de unilateralidade, de sobrevalorização dos componentes individuais – e esse é o caminho que parece ter sido percorrido pelas ciências nos últimos quatro séculos, sob a égide do método – caso não estabeleçamos uma adequada compreensão a respeito do sentido inerente à sinodalidade, não estaremos sujeitos a repetir o mesmo equívoco, embora às avessas? Explico-me. Com alcance sempre imediato, sobre “esta” parcela específica da realidade, toda e qualquer proposta metodológica precisa, para manter-se fiel ao seu objetivo, declinar de sua vocação ao todo, exaurindo-se na parte. De volta à nossa discussão sobre o conceito de sínodo e a implicação que isso tem para a compreensão da sinodalidade, não residiria aí o risco de uma limitação semelhante, a despeito de que, agora, a tensão se sobreviria em direção ao todo, aniquilando o expressivo e pulsante espaço das partes? Dito de outro modo, se, de um ponto de vista de sua etimologia, a palavra sínodo guarda a perspectiva de um caminho conjunto, como garantir que as partes não restem submetidas ao jogo de forças do todo, constantemente absorvidas pelo discurso predominante? Diferentemente do que se deu com a subdivisão das ciências e metodologias, o risco a essa altura seria de diluição numa totalidade abstrata e sem chão. Como insiste Francisco, o todo é superior à parte (EG, n. 234-237) e a unidade deve sempre permanecer ao conflito (EG, n. 226-230; LS, n. 198). Mas isso não significa desconsiderar que não há todo sem partes – donde unidade não pode ser uniformidade.

Eis, então, o que podemos considerar como um dos principais pontos de tensão presentes à realização de um sínodo. No caso específico que aqui tratamos, a proposta tem em vista, a partir de um instrumento ordinário de participação, como é o caso do Sínodo dos Bispos, criado pelo Papa Paulo VI em 15 de setembro de 1965, abrir a discussão sobre a sinodalidade como modo de ser da Igreja, como sua identidade. O processo sinodal, nesse sentido, adquire um duplo direcionamento, que aqui podemos qualificar como o passo da abertura e, ulteriormente, o do afunilamento. Mesmo que se trate de uma iniciativa oficial da Igreja resultante de uma convocação magisterial – nesse caso, feita pelo Papa Francisco, com divulgação através de nota da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, de 21 de maio de 2021 – tudo se inicia pelo movimento de auscultação de vivências que apenas se realizam nos domínios da vida concreta. Para dizer de modo mais pontual, em situações com endereço bem definido, sustentadas por pessoas com história, sonhos e dificuldades, entrelaçadas a outras pessoas igualmente históricas e temporalmente delimitadas. Noutras palavras, lembrar sempre que a realidade é maior que a ideia (EG, n. 231-233; LS, n. 201). Posteriormente, o movimento de inclinação ao concreto deve regressar à base de todo perguntar, criando ressonância. Eis o que acima chamamos de afunilamento, sem o qual não é possível relacionar a realidade vivida ao caminho conjunto de uma instituição que já ultrapassou a franja de seu terceiro milênio. Ocorre, porém, que esse duplo e constante movimento não pode perder a consciência de que o vislumbre de um caminho conjunto não deve ser confundido com uniformidade. Sobre isso, aliás, há uma excelente consideração do próprio Papa Francisco, na recente encíclica Fratelli Tutti, quando ressalta a urgência em se desenvolver perspectivas de interação entre o macro e o microcosmo: “O universal não deve ser o domínio homogêneo, uniforme e padronizado de uma única forma cultural imperante, que perderá as cores do poliedro e ficará enfadonha.” (FT, n. 144).

Para garantir a exequibilidade do processo, que dá voz aos diferentes componentes da vida eclesial, o Vademecum elaborado pelo Sínodo dos Bispos (2021b, p. 11-12)SÍNODO DOS BISPOS. Vademecum do Sínodo dos Bispos. Manual oficial para o processo de auscultação e discernimento nas Igrejas locais (2021b). Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2021/09/07/0541/01166.html Acesso em: 19 out. 2021.
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para conduzir o processo de auscultação sinodal apresenta os seguintes passos, que devem ser observados com zelo e rigor: o discernimento, necessário para se deixar conduzir pela luz do Espírito; a acessibilidade, que permite a participação de um maior número de pessoas possível, oriundas das mais diferentes culturas e faixas etárias; a sensibilidade cultural, sempre pronta a acolher as comunidades locais; a inclusão, movendo todos os esforços necessários para que também participem os que se sentem, por algum motivo, marginalizados; a parceria e o respeito, mantendo aberta a possibilidade de manifestação de todos os membros; a síntese precisa e a transparência, que não traem as contribuições manifestas, nem as submetem aos rótulos já praticados sobre determinado tema e, enfim, a justiça, que garante que cada pessoa seja ouvida, mas também ouça o que o outro tem a dizer.

A Igreja, como lembra o Papa, também não pode se dispor a um idealismo desconectado da vida vivida por tantos e tantas, sob os termos de uma suposta existência global. Precisa, ao contrário, pôr-se nesta justa tenção entre local e global (FT, n. 142), dando voz e protagonismo aos agentes da vida eclesial e, mesmo assim, fazendo das experiências imediatas laboratórios de partilha com outras realidades para o benefício para todos. Essa parece ser a forma mais adequada para se ler o sentido da sinodalidade que não se faz sem a necessária adesão ao caminho conjunto, que nem é dissolução na totalidade, nem desconexão das partes do todo. Isso é o que significa permanecer como uma parte, mas como parte criativa, capaz de dar resposta às suas demandas sem que isso ponha em risco a sua identidade. Diz o Papa: uma sã abertura nunca ameaça a identidade, porque, ao enriquecer-se com elementos de outros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia, nem mera repetição, mas integra as novidades segundo as modalidades próprias” (FT, n. 148). Portanto, se até aqui fiz questão de ressaltar o equilíbrio indispensável para a leitura da sinodalidade a partir de suas raízes compreensivas, um segundo ponto se impõe à nossa reflexão, como consequência natural ao que dissemos. Outra vez trata-se de uma questão de método.

2 Reorientação metodológica necessária: encontrar, escutar, discernir

Por muito tempo – e particularmente pensando a realidade do Brasil ou, mais amplamente, da América Latina – deu-se bastante ênfase ao tríplice enfoque ancorado no método de análise da realidade conhecido como ver, julgar e agir. Conforme Lopes e Pertile (2021)LOPES, A. de L.; PERTILE, C. A. O método ver-julgar-agir: genealogia e sua relação com a Teologia da Libertação. Razão e fé¸ v. 22, n. 2, p. 33-43, 2021., após sua elaboração pelo padre belga Joseph Cardijn, ainda anteriormente ao Concílio Vaticano II, o método se capilarizou na ação pastoral emergente – como, um pouco mais tarde, foi o caso da Teologia Latino-Americana (mormente, através da Teologia da Libertação). Para os autores, de algum modo é possível afirmar a oficialização do método ver-julgar-agir pelo magistério3 3 A apropriação objetiva do método ver-julgar-agir pelo magistério oficial da Igreja deu-se propriamente com a encíclica Mater et Magistra, de João XXIII. Especialmente o n. 235 do documento explicita sua filiação: “Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: “ver, julgar e agir” (MM, n. 235). , sobretudo caso se considere a estrutura de documentos conciliares como Gaudium et Spes. Tal apropriação, porém, foi mais evidentemente sentida no que se conheceu como a “recepção” do Concílio na América Latina, constituindo-se como as lentes predominantes para o enfoque dos documentos de Medellín (1968) e de Puebla (1979), de Santo Domingo (1992) (o último de maneira relativamente controversa) e, por fim, de Aparecida (2007). Em se tratando de Santo Domingo, houve certa resistência na adoção do método que, ao longo da Conferência, foi assumido como orientação geral, em comunhão com as edições anteriores4 4 Como mais tarde se manifestaram autores como Libânio (2007) e Brighenti (2016), no caso da Conferência de Aparecida, trata-se de uma retomada mascarada. Conforme o relato de Libânio (2007, p. 821), por exemplo, “apesar da opção pelo método, as resistências persistiram e, no decorrer da redação, envolveram o Documento de Aparecida com certo véu”. Para Brighenti (2016, p. 690), “Aparecida resgatou o método ver-julgar-agir, ainda que não sem dificuldade”. . No caso do Brasil, a metodologia tripartida do ver-julgar-agir também se tornou fonte de análise da realidade para as Campanhas da Fraternidade, já consolidadas há décadas no país como momento de integração da vida eclesial nacional.

Ocorre que os novos desafios impostos pelo tempo presente obrigam-nos a olhar além, considerando o mundo que nos cerca como sujeito de um movimento interpelativo. Guardados os benefícios colhidos até aqui, certamente em cadeia com uma concepção eclesial participativa, ao ver-julgar-agir, podem-se complementar três outras iniciativas que, mesmo que já estejam compreendidas nos processos gestados desde o Vaticano II, ganharam maior ênfase com o pontificado de Francisco. Dito de forma mais diretamente relacionada ao escopo de nossa reflexão, não se pode negar a insistência de Francisco quanto a duas categorias preliminares a todas as modalidades de ação, inclusive como sua condição de possibilidade, como segue: o encontrar e o escutar. Note-se que se trata de duas categorias radicalmente fundadas na dimensão da alteridade, seja do outro com quem se encontra, seja do seu apelo que se escuta. Ora, o encontro não se pode operar entre o ser humano e as coisas meramente dispostas em seu mundo. O real encontro se dá quando duas subjetividades igualmente dispostas à partilha do mundo comum orientam-se uma para a outra, como forma de doação de um sentido que é mutuamente recepcionado. Restabelecer a “cultura do encontro” em substituição à “cultura da indiferença” parece, então, ser o primeiro passo para a descoberta da sinodalidade como condição de ser da Igreja. Diante disso, é sempre bom recordar que o próprio “Jesus saiu ao encontro de pessoas em situações muito diferentes: homens e mulheres, pobres e ricos, judeus e estrangeiros, justos e pecadores... convidando-os a segui-lo” (DA, n. 147, grifo nosso). Por meio da ação evangelizadora da Igreja, continua, também hoje, disponível ao encontro, que não anula as diferenças e a diversidade, mas as congrega em um só coração. Tendo o encontro como condição, segue-se à possibilidade de escutar5 5 No Documento de Aparecida (DA), verbo escutar ganha relevância, além disso, nos seguintes números: 79, 103, 158, 279, 308, 348, 366, 397, 454. – um verbo insistentemente conjugado por Francisco em diferentes manifestações de seu magistério.

Não raras vezes, como dito, o Papa Francisco tem recorrido à necessidade de se escutar: “escutar a fé do povo” (EG , n. 139), “escutar os gritos da própria natureza” (LS, n. 117), “escutar o ponto de vista do outro” (FT , n. 190), “escutar sem ruídos no coração” (AL , n. 137), “escutar a voz suave do Senhor” (GE , n. 149), “escutar por um dever de justiça” (QA , n. 26), “escutar sempre de novo” (CV, n. 111). É possível até mesmo falar em um crescendum contínuo desde o início do seu pontificado, em que todos os pontos se articulam ao redor da necessidade de se escutar. E, diz o Papa, escutar não é o mesmo que ouvir. Não se trata de meramente acionar os mecanismos fisiológicos do corpo que se dispõem à percepção de sons e silêncios, mas esvaziar o espaço excessivamente preenchido do coração para dar lugar ao outro, escutando-o. Por isso escutar “sem ruídos”. Na Evangelii Gaudium, Francisco já deixou claro o teor de seu ministério e, conseguintemente, a sua concepção eclesiológica, que é a de uma Igreja participativa, sinodal, capaz de escutar: “Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. [...] Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno” (EG, n. 171). Eis porque ao passo do escutar segue-se imediatamente a possibilidade do discernimento. Então, é necessário encontrar-se para escutar, e escutar para discernir. Discernir a partir da categoria do encontro com o outro; discernir um caminho que é comum.

Quem sabe seja esse o movimento que enseja a convocação do Sínodo Geral dos Bispos nessa sua edição com nova formatação6 6 Em 21 de maio de 2021, a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos lançou uma nota a respeito da reformulação aplicada por Francisco. Os primeiros parágrafos da referida nota contêm o seguinte teor: “Em 24 de abril de 2021, o Papa Francisco aprovou um novo itinerário sinodal para a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, inicialmente prevista para o mês de outubro de 2022, sob o tema: ‘Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão’. A Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, com consentimento do Conselho Ordinário, propôs uma inédita modalidade para o caminho até Assis. O percurso para a celebração do Sínodo se articulará em três fases, entre outubro de 2021 e outubro de 2023, passando por uma fase diocesana e uma continental, que darão vida a dois diferentes Instrumentum Laboris, até aquela fase conclusiva em nível da Igreja Universal.” . Em seu discurso pela celebração do jubileu de ouro do Sínodo dos Bispos, Francisco afirmou que “o sensus fidei impede uma rígida separação entre Ecclesia docens e Ecclesia discens, já que também o Rebanho possui a sua ‘intuição’ para discernir as novas estradas que o Senhor revela à Igreja” (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Aula Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html Acesso em: 19 out. 2021.
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). O caminho de discernimento da proposta do Espírito à Igreja de nosso tempo passa, portanto, de maneira inarredável, pelo comprometimento de todas as instâncias, cada qual consciente de seu papel na organização do todo, mas igualmente envolvidas e participantes em todos os passos do processo, mesmo naqueles que resultarão em tomadas de decisão. Especialmente desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Romana tem despertado cada vez mais para a importância da consolidação da sinodalidade como forma de expressão do Espírito. No mesmo discurso, Francisco (2015)FRANCISCO, Papa. Discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Aula Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html Acesso em: 19 out. 2021.
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declara: “Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar é mais que ouvir. É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender. Povo fiel, Colégio Episcopal, Bispo de Roma: cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, o ‘Espírito da Verdade’”. Essa é a concepção eclesiológica que está na raiz da atual proposta do Sínodo dos Bispos, que almeja a conformação do que chamou uma Igreja “constitutivamente sinodal”, apelando, para isso, ao testemunho dos últimos séculos – particularmente do primeiro milênio do cristianismo.

Por um lado, a implementação da sinodalidade como modo de se exercitar a fé cristã no século XXI exige a superação de egoísmos manifestos em diferentes modalidades, seja a tentação do individualismo que paira sobre todos nós, o fechamento incondicional ao outro, sejam as suas demais ramificações, como é o caso dos “monopólios personalistas”, do clericalismo, do fechamento em pequenos séquitos, supostamente mais afinados com a “sã doutrina”, deixando de fora a comunidade dos fiéis batizados, integrantes do Corpo de Cristo. Por outro lado, como insiste o Documento preparatório para o Sínodo, em perspectiva extraeclesial, a consolidação do modelo sinodal como condição fundamental para a fé cristã também poderá ser um testemunho para o mundo inteiro, em que parecem não mais existir espaços vigorosos para a experiência comunitária, servindo como protótipo à solidariedade e à fraternidade entre nações e povos de diferentes culturas: “uma Igreja sinodal é um sinal profético sobretudo para uma comunidade de nações incapaz de propor um projeto partilhado” (SÍNODO DOS BISPOS, 2021aSÍNODO DOS BISPOS. Documento Preparatório da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão (2021a). Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2021/09/07/0540/01156.html#PORTOGHESEOK Acesso em: 19 out. 2021.
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, n. 15). Trata-se de algo que só é possível caso sejamos capazes de retomar cada um dos passos elencados acima, encontro, escuta e discernimento, não como a manutenção de uma petitio principii, ou círculo vicioso, mas como a implantação de um círculo virtuoso, como se referiu Francisco (2017)FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco no encontro com o clero da Diocese de Roma. Basílica de São João do Latrão, quinta-feira, 02 de março de 2017. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/march/documents/papa-francesco_20170302_parroci-roma.html Acesso em: 02 out. 2021.
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em discurso remetido ao clero de Roma.

De modo a ressaltarmos ainda uma última dimensão, o processo sinodal será capaz de “partilhar protagonismos”, difundindo a ideia de que o “progresso” no caminho apenas se atinge quando todos têm a oportunidade de se expressar, de dar a sua parcela de contribuição. Isso é o que está em jogo logo no início do Documento Preparatório à próxima edição do Sínodo dos Bispos, que afirma de maneira categórica a sua intenção primeira de “viver um processo eclesial participativo e inclusivo, que ofereça a cada um [...] a oportunidade de se expressar e de ser ouvido, a fim de contribuir para a construção do Povo de Deus” (SÍNODO DOS BISPOS, n. 2). Segundo nos parece, tal possibilidade, que exprime o ponto fulcral da proposta eclesial do Papa Francisco, desdobra-se em alcances multiformes, acerca dos quais gostaria de assinalar três grandes eixos.

3 Grandes alcances da sinodalidade para a Igreja e para o mundo

A Comissão Teológica Internacional, no documento A sinodalidade na vida e na missão da Igreja, afirma que, ao falarmos de sinodalidade, estamos defronte a uma das dimensões que melhor podem qualificar a natureza e o papel da Igreja de Cristo. Por isso mesmo ela deve “exprimir-se no modo ordinário de viver e de agir da Igreja” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, n. 70). Ao propor a dimensão sinodal como objeto de reflexão do Sínodo dos Bispos, aderindo a novas metodologias de participação, capazes de incluir toda a Igreja e as sociedades em que essa está inserida, Francisco tem em vista um amplo horizonte de alcance, que certamente tem por ponto de partida a esfera eclesial, mas que não se encerra em seu limite, extrapolando fronteiras e propondo novos diálogos num plano macrocósmico. A Igreja sempre reconheceu a sua vocação à universalidade. No entanto, universalidade aqui não deve ser confundida com generalidade, ou com superficialidade, já que tudo o que desconsidera a realidade concreta em que se inserem os fenômenos pode estar fadado a “perder-se no éter”. A tendência à universalidade, como componente da Boa-nova de Cristo, que é sempre aberta a todos os homens e mulheres, de todas as épocas e realidades históricas, faz-se a cada novo passo dado, em cada circunstância, com seus dilemas e possibilidades. Eis porque a orientação para uma postura sinodal, ainda que impacte diretamente o cenário eclesial, também manifestará suas ressonâncias sobre o campo circunstante à vida externa à Igreja, quer dizer, sobre o universo da sociedade e da política, da cultura e da ecologia, para citarmos apenas frentes mais explícitas desse desdobramento. Com o propósito de dar cabo deste breve aceno sobre a experiência sinodal, gostaria, enfim, de apontar três horizontes de alcance possíveis, sempre em sintonia com as mais recentes indicações do apostolado de Francisco. Mais que apontar novidades, o que segue visa fortalecer o fluxo do debate, provavelmente aliando-se à esteira dos argumentos que já são conhecidos pelo debate teológico atual.

3.1 O alcance eclesial

O primeiro e mais notório alcance da proposta sinodal aplica-se, evidentemente, ao campo eclesial. Respondendo à questão sobre quem pode participar do processo de auscultação, o Vademecum elaborado para orientar o andamento das diferentes etapas do Sínodo responde: “todos os batizados”. Isso, contudo, não significa um fechamento da Igreja sobre si mesma, isto é, da capacidade de dar voz e vez apenas aos já integrados ao seu convívio e comunhão. Ao contrário, os dispositivos auxiliares ao Sínodo deixam claro que “enquanto todos os batizados são especificamente convocados a participar no Processo Sinodal, ninguém – não importa a sua filiação religiosa – deve ser excluído de partilhar a sua perspectiva e experiências, na medida em que querem ajudar a Igreja no seu caminho” (SÍNODO DOS BISPOS, 2021bSÍNODO DOS BISPOS. Vademecum do Sínodo dos Bispos. Manual oficial para o processo de auscultação e discernimento nas Igrejas locais (2021b). Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2021/09/07/0541/01166.html Acesso em: 19 out. 2021.
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, p. 13). Desse modo, o alcance eclesial que é naturalmente aferido como primeiro nível de exposição e impacto do Sínodo não implica, de forma alguma, em fechamento, mas em abertura e consideração dos diferentes atores eclesiais e sociais. A Igreja está inserida num contexto que não pode ignorar. Mas também é verdade que, antes de abrir-se completamente ao diálogo com a sociedade plural, urge reconsiderar estruturas e metodologias de ação, repensar caminhos e, nesse sentido, ser capaz de compreender o apelo do Espírito que fala a nós e através de nós.

Quando nos deparamos com o contexto eclesial, alguns temas ainda são motivo de censura por grupos e ideologias afeitas à conservação utópica de um passado que efetivamente nunca se deu. Em tempo de inseguranças e de medo, corre-se sempre o risco de substituir o frescor e o constante desafio das utopias pela aparente segurança e conforto das retropias (QA, n. 66). Isso não é diferente em termos da Igreja, que apenas com muito custo no último século conseguiu aproximar-se do mundo moderno para um diálogo franco – mesmo que ainda não em igualdade de condições. Assim, embora o Concílio Vaticano II tenha se apresentado como uma oportunidade salutar de renovação e de abertura às novas demandas do tempo – e os anos que o sucederam também permaneceram repletos de seu impulso – as últimas três décadas sofreram uma espécie de frenagem ao ímpeto conciliar. A palavra voltou, pouco a pouco, para o domínio de alguns poucos e, em diferentes espaços eclesiais, ressurgiram os estereótipos de um passado que não se mostra mais adequado. Nesse contexto, algumas frentes certamente merecem atenção redobrada por parte do processo sinodal, ainda que não sejam completamente novas e, de outro modo, já tenham sido contempladas por iniciativas relativamente recentes. Entre elas, poderíamos destacar o apostolado dos leigos e leigas7 7 Em geral, o catolicismo popular é sempre reportado como referência sobre o protagonismo dos leigos e leigas no exercício da fé cristã, sendo, inclusive, uma importante fonte para a consideração de metodologias de participação, em perspectiva sinodal (MARTINS FILHO, 2018). , revestidos pelo múnus batismal e configurados a Cristo, como autênticos membros da Igreja, que é seu corpo. Entre esses, ainda mais, o papel desempenhado pelas mulheres e pelos jovens, que, vale dizer, permanecem em algum grau desassistidos pela possibilidade de uma ação qualificada em termos das instâncias de decisão: as mulheres, dada a ainda tímida existência de ministérios instituídos que as possam incluir, os jovens, como aposta num futuro que insistentemente avança além do agora como vislumbre, permanente de um amanhã que parece não chegar (QA, n. 99-103). Enquanto isso, do outro lado do jogo das tensões, vemos emergir o que talvez possa ser apontado como um dos principais efeitos da retropia experienciada em nossos dias: o crescimento do clericalismo – dessa vez, travestido nas mais diferentes performances8 8 Em recente publicação, Agenor Brighenti elabora uma robusta interpretação do fenômeno posto em questão sob o título O novo rosto do clero (BRIGHENTI, 2021). . De todo modo, desde o mais conservador ao estereótipo híbrido do show-man-terapeuta, vemos eclodir a determinação de personalismos completamente incompatíveis com o projeto de uma Igreja-comunhão, movida pela participação como forma de alimentar a sua vida e missão.

Do ponto de vista eclesial, dessa forma, o principal obstáculo ao caminho sinodal e, mais que isso, à constatação da sinodalidade como forma fundamental de exercício da vida cristã, é, certamente, a retropia, cuja tentação deve ser superada o quanto antes possível. Mas é a própria Igreja que parece estar convicta disso: de que novos tempos requerem novas estruturas, novas metodologias, novos ministérios, nova organização. Sobre isso, o Documento Preparatório ao processo sinodal afirma: “É precisamente nos sulcos cavados pelos sofrimentos de todos os tipos, suportados pela família humana e pelo Povo de Deus, que florescem novas linguagens da fé e renovados percursos” (SÍNODO DOS BISPOS, 2021aSÍNODO DOS BISPOS. Documento Preparatório da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão (2021a). Disponível em: https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2021/09/07/0540/01156.html#PORTOGHESEOK Acesso em: 19 out. 2021.
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, n. 7). Conforme o mesmo documento, onde se conseguiu distinguir por um estilo sinodal, a Igreja voltou a florescer, com renovada participação de todos, especialmente dos jovens e das mulheres, como expressão de um anseio que já se tem feito notar desde outras assembleias sinodais, como as transcorridas em 2018 e em 2019 – das quais algumas consequências já podem ser sentidas, como a recente instituição do ministério laical do catequista e/ou a abertura às mulheres aos ministérios do leitorado e do acolitado. Com o processo do sínodo – como as consultas às dioceses e regiões eclesiais têm demonstrado – muitos outros temas virão à baila e deverão ser enfrentados com sensibilidade à ação do Espírito e lucidez aos desafios impostos, podendo mesmo ocasionar uma profunda reorientação do campo eclesial.

3.2 O alcance social e político

Para além do potencial notadamente eclesial, porém, a discussão sobre a sinodalidade traz consigo impactos que certamente atingem o plano social e das relações políticas. Ao longo de seu pontificado, aliás, Francisco jamais deixou de transparecer sua origem, o contexto latino-americano, em que a Teologia descobriu-se profundamente afetada pelos problemas de ordem social. Em diferentes oportunidades, o Papa expôs a relação entre fé e política, com culminância no que muitos estudiosos têm considerado como a série de documentos sociais emanados pelo pontífice, entre os quais obtiveram maior destaque as duas últimas encíclicas, Laudato Si’ e Fratelli Tutti, ambas inspiradas no homônimo proposital com o poverello d’Assisi. A despeito do significado e do alcance desses textos, todos os pronunciamentos e demais manifestações públicas do Papa, em exercício de cátedra ou não, trazem uma maior ou menor parcela de inserção social e política, tornando seu ministério completamente condizente com os desafios do tempo presente e, mais que isso, formatando a sua figura como um dos últimos personagens de resistência contra a “fúria do capitalismo”, a “cultura do descarte e de morte”9 9 Os impactos desse posicionamento aplicado à realidade brasileira podem ser lidos em Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco (SOUZA; BATISTA, 2020). . Permitindo-nos uma rápida comparação, se Bento XVI permanecera voltado para dentro, como o arauto da verdade contra os relativismos – e o n. 21 de Lumen Fidei, encíclica construída conjuntamente por Francisco e Bento XVI, dá prova disso –, Francisco conseguiu aprofundar a discussão e apontar a existência do relativismo de instrumentalização do outro e da natureza, que não pode ser contido caso também a fé não contribua na promoção de uma sociedade com maior distribuição das condições de dignidade para todos. A vivência da fé não está, portanto, apartada do exercício da cidadania, da construção de mecanismos que difundam boas práticas de convivência na relação entre os povos mundiais, entre as comunidades religiosas, dos indivíduos uns com os outros e desses com a natureza.

Já no início de seu pontificado, quando da publicação da Evangelii Gaudium, Francisco se dedicou aos grandes temas que assolam o tecido social, como pode ser notado em toda a segunda parte do documento (especialmente EG, n. 52-75). Àquela altura, ganharam destaque questões como a “economia da exclusão”, a “idolatria do dinheiro”, a “desigualdade que gera violência” e desafios como a “inculturação da fé10 10 Pudemos nos dedicar a esse tema, à luz do Sínodo Extraordinário para a Região Pan-Amazônica, em O Papa Francisco e o Sínodo Amazônico: novos impulsos para a inculturação (MARTINS FILHO, 2020b). , as novas culturas urbanas, entre outros. Em Fratelli Tutti, mais recentemente, a discussão ganhou proporções ainda mais intensas, desvelando uma realidade de “sombras”, sobre a qual a luz de Cristo deve se irradiar. Problemas de muita atualidade são enfrentados pelo Papa em suas constantes alusões à crise da vida comunitária, movida pelo fascínio do poder que tudo corrompe: “o individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. [...] Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (FT, n. 105). É também nesse mesmo texto que se dá vazão a demandas como a crise geracional e a insistente divergência entre local e global, já aludida anteriormente. As iniciativas voltadas ao social, contudo, não param na percepção manifesta por parte da Igreja das condições do mundo que a cerca. O magistério de Francisco é propositivo, marcado por movimentos em direção ao mundo concreto, em que a vida transcorre e é sentida por tantos e tantas. À guisa de ilustração, tomemos, por exemplo, o Pacto Global pela Educação, uma iniciativa bastante recente e que visa ultrapassar os mecanismos inibidores de uma formação que contemple o ser humano de forma integral e, além disso, esteja ao alcance de todos. Em mensagem enviada por ocasião do encontro promovido pela Congregação para a Educação Católica, com o título Global Compact Education. Together to look beyond, em outubro de 2020, entre os sete compromissos evocados por Francisco, os dois últimos chamam particular atenção: a descoberta de novas formas de se compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso e, além disso, a necessidade de se adquirir estilos de vida mais sóbrios, com utilização de energias renováveis, tendo como centro o ser humano e uma economia subsidiaria e solidária11 11 No caso do Papa, outras iniciativas certamente poderiam compor esse argumento, como a Economia de Francisco, que fora título de um encontro mundial. .

Seja como for, é inegável, por isso, o alto potencial social e político de contribuição para com a humanidade toda presente à consolidação de uma Igreja sinodal cada vez mais aberta à participação de todos e todas e, por isso, geradora de comunhão – também entre os povos e diferentes culturas (religiosas ou não). Se, em outras épocas históricas, a Igreja conquistou protagonismo na formatação dos poderes, na conquista de novos espaços, mesmo que às custas de sua afiliação às formas vigentes de poder e dominação, o século XXI se abre como a possibilidade de uma contribuição mais incidente sobre o cenário político e social movida pelo testemunho da fraternidade. Existe, então, um alcance social e político do exercício da sinodalidade que de modo algum é ignorado pelo Papa: “o nosso olhar estende-se também para a humanidade. Uma Igreja sinodal é como estandarte erguido entre as nações num mundo que, apesar de invocar participação, solidariedade e transparência na administração dos assuntos públicos, frequentemente entrega o destino de populações inteiras nas mãos gananciosas de grupos restritos de poder” (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Aula Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html Acesso em: 19 out. 2021.
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). Enquanto caminha em conjunto com a humanidade, compartilhando sua história, a Igreja oferece seu testemunho de salvaguarda da dignidade inviolável dos povos e, em sua função de serviço, pode “ajudar também a sociedade civil a se edificar na justiça e na fraternidade, gerando um mundo mais belo e mais digno do homem para as gerações que hão de vir” (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Discurso em comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos. Aula Paulo VI, sábado, 17 de outubro de 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/october/documents/papa-francesco_20151017_50-anniversario-sinodo.html Acesso em: 19 out. 2021.
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).

3.3 O alcance ecológico

Enfim, um aceno sobre o potencial ecológico da sinodalidade, que, de algum modo, é complementar ao significado da relação homem-natureza acolhido por Francisco em seu apostolado, como já tivemos a oportunidade de explorar em outro lugar (MARTINS FILHO, 2020aMARTINS FILHO, J. R. F. Um sonho ecológico para a Igreja: o magistério de Francisco da Laudato Si’ ao Sínodo para a Amazônia. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 104-126, jan./abr. 2020a.)12 12 No texto Um sonho ecológico para a Igreja: o magistério de Francisco da Laudato Si’ ao Sínodo para a Amazônia, publicado em 2020, pudemos explorar mais detalhadamente a ênfase ecológica impressa pelo papa ao seu pontificado. . Subvertendo a ordem do que se encontra no n. 219 da Laudato Si’, conquanto à conversão ecológica, é possível dizer, na esteira de nossos argumentos até aqui, que a conversão comunitária é também uma conversão ecológica13 13 No aludido fragmento, o texto se dispõe na seguinte ordem: “A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.” (LS, n. 119). . Isto é, a adoção de uma perspectiva sinodal no enfrentamento da vida cristã, que se alarga na consolidação de mecanismos de subsidiariedade com relação a toda a humanidade, também encontra reflexo na questão ecológica – para além dos limites da vida humana, embora sempre em sua sintonia. É inegável, mesmo para os que extrapolam o círculo intraeclesial – e, quiçá, especialmente para esses – a importância da ecologia para o magistério do Papa Francisco. A própria Laudato Si’ provavelmente se encontra entre os textos pontifícios de maior impacto sobre o mundo moderno. Contudo, seu conteúdo, como o próprio autor insiste em delimitar, não apresenta necessariamente uma nova concepção a respeito da natureza, mas colhe da própria tradição espiritual cristã elementos que nos ajudam a superar o antigo antagonismo homem versus natureza em busca de uma leitura mais equilibrada, que considere a obra criadora de Deus de forma mais abrangente e, em seu âmbito, a atmosfera para o crescimento material e espiritual do ser humano. Como marca d’água para essa percepção se encontra justamente a consolidação de experiências comunitárias, atravessadas pelo supremo esforço da ação humana por séculos a fio. A vivência das verdades do Evangelho de Cristo, nesse sentido, desdobra-se a partir de um círculo de convivência fraterna e de bom relacionamento com o meio ambiente em que se vive, devendo atingi-lo em sua proposta de transfiguração. Quando o homem se renova pela ação salvadora, é a natureza toda que se faz renovada, como primícias da criação de Deus. Desse modo, a perspectiva sinodal retira a centralidade inconsequente e antes tomada como absoluta e a substitui por um olhar mais alargado sobre o meio e, em decorrência, sobre as populações que nele desenvolvem a vida, em fraternidade e sempre solidárias umas com as outras.

Em primeiro lugar, a relação desastrosa entre homem e natureza deve-se em muito à antropologia clássica e à perspectiva de que o prometido “domínio” do homem (Gn 1,26) se daria às custas da submissão incontrolada. O ensinamento sofista de que o “homem é a medida de todas as coisas”, referido pelo filósofo Platão em seu Teeteto (151e-152d), fora entendido ao longo dos séculos não apenas como a autodeterminação de si e de suas atitudes, mas a partir do critério de que o ser humano é a medida para tudo o que há. Esse passo, modificado à luz da centralidade do si mesmo, ou do que o século XVII consolidaria como o primado do eu, declarou a última sentença sobre a possibilidade ilimitada de submissão. O imperium homini dos modernos chegou até nós no entendimento de que a natureza, antes tida como viva e dinâmica, restaria ao nosso alcance como um recurso. Na busca pelo desvelamento da sacralidade antes inerente ao cosmos, à vida em sua integralidade e, assim, também à natureza, os filósofos do passado descobriram o ser humano nu e sozinho, desarticulado dos outros e herdeiro de um primado que não se sustentaria por muito tempo. A leitura praticada pelo Papa Francisco, em estreita vinculação com as tradições espirituais que orientaram o cristianismo desde suas origens, restabelece o lugar de Deus como ponto de irrupção, força criadora de tudo o que há. Olhar para a natureza, a partir daí, significa voltar o rosto para a magnificência de Deus, que é o seu Criador. Esse ensinamento – agostiniano, devemos confessar14 14 Em Agostinho, no que se refere à visão cosmológica relativa a uma teoria da beleza e da perfeição, o Criador é o fundamento daquilo que é belo. A beleza presente no ser humano ou nas demais criaturas é somente uma parcela da Beleza, sejam seres racionais ou não, fauna ou flora. Toda “criação entoa sem cessar seus louvores” (AGOSTINHO, 2015, p. 113). Por isso, a “beleza original fundada na semelhança é reencontrada em todas as belezas participantes” (GILSON, 2006, p. 403). Aquilo que é contemplado como belo, não traz em si uma beleza própria, mas traços da Beleza, que voltam para Ele como um perene louvor. Olhar para a criação é, então, descobrir sua origem no Criador, que é Bom e Belo. – está na base de uma expansão que tem a nós, os homens e as mulheres de hoje, como alvos, traduzida nos ensinamentos de Francisco como forma de realçar a fé que sempre professamos, mas da qual nos distanciamos nos processos históricos. Não se trata, por isso, de um endeusamento da natureza, como alguns insistem em propalar, mas da boa e velha antropologia teológica em seu melhor uso. Uma leitura em viés sinodal permite-nos acessar esse conhecimento, já que tem como ponto de partida o fato de participarmos de um caminho conjunto.

Em segundo lugar, e aqui considerando a direta conexão entre a encíclica Laudato Si’ e a realização do Sínodo Extraordinário para a Região Pan-Amazônica, em 2019, o exercício de uma Igreja em perspectiva sinodal permite-nos ouvir o “clamor do território” em seus diferentes povos e comunidades. Aqui outra vez recorremos ao primado do verbo escutar presente como uma constante aos escritos de Francisco. Quando, no n. 57 da exortação pós-sinodal Querida Amazônia, o Papa recorre à urgência de se “escutar o grito da Amazônia”, no mesmo documento, oferece-nos uma das chaves para a sua decifração: escutá-lo na voz das tradições ancestrais que ali desenvolvem a vida, em plena harmonia com a natureza. Diz Francisco: “[...] a Igreja precisa escutar a sabedoria ancestral, voltar a dar voz aos idosos, reconhecer os valores presentes no estilo de vida das comunidades nativas, recuperar a tempo as preciosas narrativas dos povos” (QA, n. 70). Especialmente, trata-se de uma postura de abertura às culturas pré-cristãs, anteriores à colonização dos europeus em território latino-americano. A abertura sinodal, nesse sentido, permitirá descobrir a riqueza que já na Conferência de Santo Domingo se havia ressaltado, como forma oportuna de “abertura à ação de Deus, o sentido de gratidão pelos frutos da terra, o caráter sagrado da vida humana e a valorização da família, o sentido de solidariedade e corresponsabilidade no trabalho comum” (SD, n. 17). Também nisso compreendemos o alcance ecológico de uma Igreja sinodal, do empreendimento da sinodalidade como forma de ser da comunidade eclesial, sempre aberta à relação com os outros e com a natureza.

Conclusão

Ao passar pelos pontos anteriores e chegar à oportunidade desta conclusão, sinto-me desafiado por um duplo sentimento: de alegria esperançosa, ansiosa pelo que virá a partir das ferramentas conceituais e de ação de que já dispomos, e de medo em relação à grandiosidade do trabalho que nos espera. A construção da sinodalidade como modo de ser condiciona a Igreja à manutenção de sua fidelidade ao chamado de Cristo, que a constituiu como sua presença temporal. Tal convicção não pode deixar de arrepiar e emudecer, mesmo que imediatamente a seguir também impulsione o novo passo. A esperança que, apesar do medo, mantém-se presente, faz-se graças à consciência de que não se trata de um caminho solitário, mas, longe disso, conjuntamente trilhado. Nos momentos de cansaço, poder-se-á recorrer ao conforto dos outros que conosco empreendem o trajeto. O fruir das ideias permitirá a descoberta de novas possibilidades e metodologias de inclusão e participação. Assim, a exemplo do que ocorre com o caminho real da vida, em que prospecções são sempre arriscadas, a reflexão ora proposta não encontra um termo definitivo, mas visa permanecer acessa nas ressonâncias que possivelmente irá despertar, fomentando outras tensões e resoluções, recepções e difusões. De minha parte, importa apenas lançar-me nesse contínuo jogo em que todos tomamos parte, os de dentro e os de fora.

Siglas

  • AL  Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia
  • CV  Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christus Vivit
  • DA  Documento de Aparecida
  • EG  Exortação Apostólica Evangelii Gaudium
  • FT  Carta Encíclica Fratelli Tutti
  • GE  Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate
  • LG  Constituição Dogmática Lumem Gentium
  • LS  Carta Encíclica Laudato Si’
  • QA  Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia
  • MM  Carta Encíclica Mater et Magistra
  • SD  Documento de Santo Domingo
  • 1
    Com relação às conquistas implementadas desde o Concílio Vaticano II acerca da sinodalidade, Agenor Brighenti (2020)BRIGHENTI, A. A sinodalidade como referencial do estatuto teológico das conferências episcopais. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 24, n. 64, p. 197-213, jan./abr., 2020. recorda a importância das Conferências Episcopais regionais, aprofundando o seu estatuto epistemológico – que, inclusive, é atualmente questionado por muitos setores. Isso nos obriga a sempre recordar os passos que já estão em curso, de modo que o resgate de uma discussão sobre a sinodalidade não pode se pretender isolado. Deve-se, ao contrário, considerar os diferentes momentos históricos. No caso específico da América Latina, ou do Brasil, o próprio Papa Francisco recorda, na Exortação Querida Amazônia, o protagonismo das comunidades eclesiais de base: “As comunidades de base, sempre que souberam integrar a defesa dos direitos sociais com o anúncio missionário e a espiritualidade, foram verdadeiras experiências de sinodalidade no caminho evangelizador da Igreja na Amazônia” (QA, n. 96).
  • 2
    Especificamente sobre a história dos sínodos no Ocidente e, em particular, sobre a história do Sínodo dos Bispos, não dispomos de muito material. Diferentemente ocorre a respeito dos Concílios, cujo tratamento, de algum modo toca a questão dos sínodos. Sobre esse último tema, há a importante obra organizada por Giuseppe Alberigo (1997)ALBERIGO, G. (Org.). História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1997..
  • 3
    A apropriação objetiva do método ver-julgar-agir pelo magistério oficial da Igreja deu-se propriamente com a encíclica Mater et Magistra, de João XXIII. Especialmente o n. 235 do documento explicita sua filiação: “Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: “ver, julgar e agir” (MM, n. 235).
  • 4
    Como mais tarde se manifestaram autores como Libânio (2007)LIBANIO, J. B. Conferência de Aparecida. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 67, n. 268, p. 816-842, abr. 2007. e Brighenti (2016)BRIGHENTI, A. Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o Papa Francisco. Revista Pistis Praxis, Curitiba, v. 8, n. 3, p. 673-713, set./dez., 2016., no caso da Conferência de Aparecida, trata-se de uma retomada mascarada. Conforme o relato de Libânio (2007, p. 821), por exemplo, “apesar da opção pelo método, as resistências persistiram e, no decorrer da redação, envolveram o Documento de Aparecida com certo véu”. Para Brighenti (2016, p. 690)BRIGHENTI, A. Documento de Aparecida: O texto original, o texto oficial e o Papa Francisco. Revista Pistis Praxis, Curitiba, v. 8, n. 3, p. 673-713, set./dez., 2016., “Aparecida resgatou o método ver-julgar-agir, ainda que não sem dificuldade”.
  • 5
    No Documento de Aparecida (DA), verbo escutar ganha relevância, além disso, nos seguintes números: 79, 103, 158, 279, 308, 348, 366, 397, 454.
  • 6
    Em 21 de maio de 2021, a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos lançou uma nota a respeito da reformulação aplicada por Francisco. Os primeiros parágrafos da referida nota contêm o seguinte teor: “Em 24 de abril de 2021, o Papa Francisco aprovou um novo itinerário sinodal para a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, inicialmente prevista para o mês de outubro de 2022, sob o tema: ‘Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão’. A Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, com consentimento do Conselho Ordinário, propôs uma inédita modalidade para o caminho até Assis. O percurso para a celebração do Sínodo se articulará em três fases, entre outubro de 2021 e outubro de 2023, passando por uma fase diocesana e uma continental, que darão vida a dois diferentes Instrumentum Laboris, até aquela fase conclusiva em nível da Igreja Universal.”
  • 7
    Em geral, o catolicismo popular é sempre reportado como referência sobre o protagonismo dos leigos e leigas no exercício da fé cristã, sendo, inclusive, uma importante fonte para a consideração de metodologias de participação, em perspectiva sinodal (MARTINS FILHO, 2018MARTINS FILHO, J. R. F. Sobre o protagonismo laical do catolicismo popular: pistas para reflexão. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 78, n. 311, p. 679-694, set./dez. 2018.).
  • 8
    Em recente publicação, Agenor Brighenti elabora uma robusta interpretação do fenômeno posto em questão sob o título O novo rosto do clero (BRIGHENTI, 2021BRIGHENTI, A. O novo rosto do clero. Petrópolis: Vozes, 2021.).
  • 9
    Os impactos desse posicionamento aplicado à realidade brasileira podem ser lidos em Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco (SOUZA; BATISTA, 2020SOUZA, A. R. de; BATISTA, B. M. Os efeitos políticos no Brasil dos sete anos iniciais do Papa Francisco. Revista Brasileira de História das Religiões, Maringá, ano XIII, n. 39, janeiro/abril, p. 189-206, 2020.).
  • 10
    Pudemos nos dedicar a esse tema, à luz do Sínodo Extraordinário para a Região Pan-Amazônica, em O Papa Francisco e o Sínodo Amazônico: novos impulsos para a inculturação (MARTINS FILHO, 2020bMARTINS FILHO, J. R. F. O Papa Francisco e o Sínodo Amazônico: novos impulsos para a inculturação. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 80, n. 316, p. 232-261, maio/ago. 2020b.).
  • 11
    No caso do Papa, outras iniciativas certamente poderiam compor esse argumento, como a Economia de Francisco, que fora título de um encontro mundial.
  • 12
    No texto Um sonho ecológico para a Igreja: o magistério de Francisco da Laudato Si’ ao Sínodo para a Amazônia, publicado em 2020, pudemos explorar mais detalhadamente a ênfase ecológica impressa pelo papa ao seu pontificado.
  • 13
    No aludido fragmento, o texto se dispõe na seguinte ordem: “A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.” (LS, n. 119).
  • 14
    Em Agostinho, no que se refere à visão cosmológica relativa a uma teoria da beleza e da perfeição, o Criador é o fundamento daquilo que é belo. A beleza presente no ser humano ou nas demais criaturas é somente uma parcela da Beleza, sejam seres racionais ou não, fauna ou flora. Toda “criação entoa sem cessar seus louvores” (AGOSTINHO, 2015AGOSTINHO, Santo. Confissões. 26.ed. São Paulo: Paulus, 2015., p. 113). Por isso, a “beleza original fundada na semelhança é reencontrada em todas as belezas participantes” (GILSON, 2006GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. 2.ed. São Paulo: Discurso, Paulus, 2006., p. 403). Aquilo que é contemplado como belo, não traz em si uma beleza própria, mas traços da Beleza, que voltam para Ele como um perene louvor. Olhar para a criação é, então, descobrir sua origem no Criador, que é Bom e Belo.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2021
  • Aceito
    21 Mar 2022
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