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A CONSTRUÇÃO DA FRATERNIDADE E DA AMIZADE SOCIAL À LUZ DA TEOLOGIA BIBLICA DA FRATELLI TUTTI

The Construction of Fraternity and Social Friendship by the Light of Fratelli Tutti’s Biblical Theology

RESUMEN

O artigo tem como objetivo refletir sobre os conceitos ἀγαθωσύνη (agathosyne [FT, n. 112]) e χρηστότης (chrestotes [FT, n. 223]). Busca-se entender as bases bíblicas e a Teologia Bíblica da Fratelli Tutti, bem como a intuição bíblica de Francisco ao indicar as virtudes da benignidade e da bondade (Gl 5,22), como caminho para a fraternidade e a amizade social. É importante entender as bases bíblicas, explícitas e implícitas, bem como o fio condutor da Teologia da Fraternidade presente na Fratelli Tutti, a fim de perceber a missão que o Cristianismo tem diante da atual crise de amor fraterno entre as pessoas e entre os povos. Francisco indica estas duas virtudes como via privilegiada para a edificação da fraternidade e para o cuidado da casa comum, convidando a humanidade a superar a lógica do sócio e a entrar na lógica do irmão (FT, n. 101-105). Após realizar um estudo das bases bíblicas da Encíclica, busca-se fazer uma análise do texto paulino de Gl 5,22, no qual Francisco indica dois frutos do Espírito para a edificação da fraternidade e do bem. O estudo revela que Francisco tem diante de si a tradição bíblica judaico-cristã, bem como a realidade e os desafios hodiernos da falta de benignidade e de bondade. Ademais, convida a Igreja e a sociedade em geral para refletir sobre a gravidade do risco em que se encontra a humanidade, a fim de buscar saídas para a superação da atual crise de solidariedade entre as pessoas e entre os povos.

PALAVRAS-CHAVE
Solidariedade; Benignidade; Bondade; Paz; Justiça

ABSTRACT

The article aims to reflect on the concepts of ἀγαθωσύνη and χρηστότης in Pope Francis’ Encyclical Fratelli Tutti (2020). He quotes Gal 5,22, transliterating the terms from Greek to Latin characters: agaptosyne (FT, n. 112) and chrestotes (FT, n. 223). The present article seeks to understand the biblical basis and Biblical Theology of the Fratelli Tutti, as well as the biblical intuition of Francis when indicating these virtues as a path to fraternity and social friendship, indicating two of the nine fruits of the Spirit present in the Pauline text of Gl 5,22-23. Understanding the biblical bases, explicit and implicit, as well as the guiding thread of the Theology of Fraternity present in Fratelli Tutti, is very important for understanding the mission that Christianity has in the face of the current crisis of fraternal love between people and peoples. Francis indicates these two virtues as a privileged way of building fraternity and caring for the common home, of inviting humanity to overcome the partner’s logic and enter into the brother’s logic (FT, n. 101-105). After carrying out a study of the biblical basis of the Encyclical Letter, we seek to analyze the Pauline text of Gal 5,22. From that letter, Francis points out two fruits of the Spirit for the building of the fraternity and of the good. The study reveals that Francis has before him the Judeo-Christian biblical tradition, as well as today’s reality and challenges of lack of kindness and goodness. The study also reveals that Francis wants to make a contribution, inviting the Church and the society in general to reflect on the seriousness of the risk in which humanity finds itself, in order to seeks ways to overcome the current crisis of solidarity between individuals and peoples.

KEYWORDS
Solidarity; Kindness; Goodness; Peace; Justice

Introdução

O presente artigo analisa os termos ἀγαθωσύνη e χρηστότης, presentes em Gl 5,22, indicados como “ὁ καρπὸς τοῦπνεύματός/o fruto do Espírito” (Gl 5,22a), citados pelo Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti (03/10/2020), como caminho para a construção da fraternidade e da amizade social. O “καρπός/fruto” é uma metáfora bíblica sugestiva que ajuda o cristão a melhor entender o sinal da vida plena em Cristo e sua fecundidade, fator de dinamismo espiritual, enquanto itinerário de crescimento constante.

O catálogo paulino de virtudes, em Gl 5,22-23, citado imediatamente após o catálogo dos vícios (Gl 5,19-21), não tenciona ser completo, mas, como indica Vanhoye, “dar uma visão global” (2000, p. 138) de um caminho a ser trilhado para a construção do bem comum, focado na edificação da fraternidade universal. Mais ainda, nesta lista de nove virtudes, Paulo realça as que compõem o “fruto do Espírito”, capazes de moldar o estilo de vida em que o Espírito habita e lhes dá força para o agir cotidiano moldando a vida “segundo um projeto maior” (MAZZAROLO, 2013MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Gálatas: da libertação da Lei à filiação em Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013., p. 147). Nela, aprimora-se cada vez mais o “ἀγάπη/amor”: “de sorte que o resultado é um desdobramento do amor em nove aspectos” (POHL, 1999POHL, A. Carta aos Gálatas. Curitiba: Esperança,1999., p. 187). Assim como Paulo, o Papa Francisco tem claro que o amor é a característica primordial dos filhos e filhas de Deus, seja na dimensão vertical (Deus), seja na horizontal (o próximo), visto que, como afirma Ferreira, “o amor é a característica fundamental da liberdade cristã” (2005, p. 175).

Segundo Légasse, as três tríades de virtudes paulinas (Gl 5,22-23) são capazes de tecer “relações inter-humanas” (2000, p. 431-433). Para Corsani, elas “são capazes de determinar as relações com o próximo” (1990, p. 364). Finalmente, Hendriksen as chama de “nove frutos preciosos” para o relacionamento entre as pessoas (2009, p. 267). Entretanto, o Papa Francisco cita apenas duas das nove virtudes indicadas no catálogo de Gl 5,22-23: “ἀγαθωσύνη/benignidade” e “χρηστότης/bondade”, presentes em Gl 5,22, enquanto que o catálogo completo compreende: “amor, alegria, paz, longanimidade, bondade, benignidade, fé, mansidão e autodomínio”.

O termo “ἀγαθωσύνη/benignidade” é originário da palavra grega “ἀγαθός/bom”, cujo significado está ligado a algo que é “inerentemente bom”, que, em outras palavras chamaríamos de bondade intrínseca, portadora de uma conotação qualificante e de uma condição peculiar. A esse termo é acrescentado o sufixo -σύνη, que pode ser traduzido por “digno do bem”, o que nos reporta à bondade em si mesma. Uma melhor tradução seria “benignidade”, a qual tem sua origem e causa em Deus e é substancializada por virtude e/ou bom hábito. Nessa perspectiva, pode indicar igualmente uma atitude de “generosidade” (PITTA, 1996PITTA, A. Lettera ai Galati. Bologna: EDB, 1996., p. 363), gentileza, amabilidade, ou seja, uma virtude ligada ao campo da “ternura” no comportamento, como temos no evangelho paulino, em sua “mudança de tom”, na perícope de Gl 4,8-20 (GONZAGA, 2017aGONZAGA, W. O Evangelho da ternura e a solidaridade de Gl 4,8-20. x_imRiblax_im, v. 76, n.3, p. 61-86, 2017a., p. 61-86). Quem possui a virtude da “ἀγαθωσύνη/benignidade” é capaz de produzir bondade, pois isso lhe é intrínseco, inerente a seu ser, reflete-se em seu agir generoso. Como diz Buscemi, trata-se de uma pessoa com “grandeza de ânimo” (2004, p. 562) ou, como indica DunnDUNN, J. D. G. The Epistle to the Galatians. London: A & A Black, 1993., de uma pessoa “genuinamente boa” (1993, p. 309).

A segunda virtude citada por Francisco é a “χρηστότης/bondade” (Gl 5,22), que faz parte do mesmo campo semântico e indica a atitude do “ser bom”, mas de bondade duradoura, a disposição para fazer o bem e não o mal, benevolência, o querer o bem. Ela pode ainda ter o sentido de afabilidade, com a prática, e assim torna-se uma “bondade prestativa” (SCHNEIDER, 1984SCHNEIDER, G. A Epístola aos Gálatas. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 148), visando sempre o bem do próximo. Como se vê, as duas virtudes vão na mesma linha. Com isso, Francisco quer indicar um caminho para a edificação da fraternidade e da amizade social, baseado na bondade, como algo duradouro, capaz de estabelecer bases sólidas para as atuais e futuras gerações. Ambos os termos indicam o topos da amizade pela φιλίας ou captatio benevolentiae.

É oportuno perceber a Teologia Bíblica presente na Fratelli Tutti, seja aquela explícita seja aquela implícita, e, mais ainda, fazer uma análise exegética do texto paulino que Francisco tomou de Gl 5,22 para falar da benignidade (ἀγαθωσύνη) e da bondade (χρηστότης). Elas se mostram como caminhos para a edificação da fraternidade universal, abrindo espaço para o diálogo e para a busca de possíveis saídas e soluções diante da triste realidade em que se encontra a humanidade, na casa comum, e diante da atual crise de amor fraterno. Assim, Francisco convida a Igreja e a humanidade a refletir sobre o risco em que se encontram a fraternidade e a amizade social, a buscar saídas para a superação da atual crise de solidariedade entre as pessoas e entre os povos, hoje agigantada ainda mais por causa do modus vivendi et operandi humanitatis. Por isso Francisco indica a Teologia da Fraternidade como caminho para refletir e agir em vista de uma sinergia entre todos os agentes e em todos os campos: religioso, político, econômico, ambiental, social e cultural, a fim de superar as crises de solidariedade causadas sobretudo no século XX.

Enfim, analisar o uso de citações e alusões bíblicas feitas por Francisco na Fratelli Tutti ajuda a ver a Teologia Bíblica desse documento, explícita e implícita. Isso se torna ainda mais agradável quando formatado em um gráfico que possibilita notar o emprego do Antigo Testamento e do Novo Testamento ao longo de toda a Encíclica, norteando cada capítulo. Finalmente, analisa-se o texto bíblico que o Papa Francisco citou, Gl 5,22, esclarecendo o sentido dos termos transliterados nos dois parágrafos da Fratelli Tutti: agathosyne (FT, n. 112: no capítulo III, “Pensar e gerar um mundo aberto”, n. 87-127) e chrestotes (FT, n. 223: no capítulo VI, “Diálogo e amizade social”, n. 198-224).

1 Bases Bíblicas e Teologia Bíblica da Fratelli Tutti

Ao ler a Carta Encíclica Fratelli Tutti, o leitor se depara com pouquíssimas citações bíblicas ao longo de seu texto. Mais ainda, a pouca concentração de citações bíblicas explícitas e de alusões, na Fratelli Tutti, dá-se nos capítulos II a VIII, ficando sem nenhuma citação e/ou alusão no capítulo I (n. 9-55) e nos números finais sobre o “Apelo e Oração ao Criador” (n. 285-286). Forma-se como que numa moldura sem citações e/ou alusões das Sagradas Escrituras nestas partes da Encíclica.

Na Fratelli Tutti, as citações e/ou alusões acontecem sempre no corpo do texto e jamais em notas de rodapé. Interessante observar que a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia (02/02/2020) e Carta Encíclica Laudato Si’ (24/05/2015) vão na mesma direção. Aliás, os últimos documentos de Francisco contam com poucas citações das Escrituras Sagradas judaico-cristãs.

Outra coisa que salta aos olhos do leitor, ainda que não expressivo, é o uso maior do Novo Testamento, com maior frequência do corpus dos Evangelhos. Em ordem de citações, temos: Mateus (15x), João (4x) e Lucas (3x); Atos (3x); Cartas Paulinas: Romanos (4x), Gálatas (3x), 1Coríntios (2x) e 1Tessalonicenses (1x); Cartas Pastorais: 2Timóteo (1x) e Tito (1x); Cartas Católicas: 1Pedro (1x), 1João (5x) e 3João (1x); Apocalipse (1x).

Para o Antigo Testamento, na ordem do arranjo do cânon bíblico, as citações são: Pentateuco: Gênesis (3x), Êxodo (2x), Levítico (2x) e Deuteronômio (1x). Nenhum dos livros Históricos escritos em hebraico é citado, mas apenas um dos livros deuterocanônicos: Tobias (1x); dos livros Sapienciais, temos: Jó (1x) e Provérbios (1x), e um deuterocanônico, Sirácida/Eclesiástico (2x); dos livros Proféticos, só Isaías é citado (2x). Estão ausentes todos os demais Profetas Maiores e os Profetas Menores. Como se constata, o livro mais citado na Fratelli Tutti é do Novo Testamento, o Evangelho de Mateus (15x), mesmo que com poucas ocorrências. Na Laudato Si’, dá-se o contrário, pois temos mais citações do Antigo Testamento, com maior peso ao corpus do Pentateuco, sendo Gênesis o livro mais citado (13x).

É oportuno ver um quadro referencial do uso das Sagradas Escrituras na Fratelli Tutti, dividido entre o Antigo Testamento e o uso do Novo Testamento. Nele, subdividi-se entre os vários blocos que há nas divisões bíblicas para os dois Testamentos e, por fim, procura-se indicar se o uso foi explícito no corpo do texto ou se foi apenas referencial, remetido apenas como citação a ser conferida. Assim, o leitor encontra sempre o texto bíblico e sua citação no referido número da FT, recordando que seu uso ocorre apenas no corpo de seu texto e jamais em notas de rodapé. Curiosamente, embora tenhamos várias alusões ao longo do texto, apenas uma é indicada precedida de um cf. (At 2,47; cf. 4,21.33; 5,13; FT, 239, Cap. VII), após ter citado explicitamente um texto de Atos do Apóstolos, indicando outros dois do mesmo livro bíblico a serem conferidos. Neste sentido, o gráfico é bastante simples, de fácil leitura e pode nos ajudar a fazer uma análise do emprego das Sagradas Escrituras na FT, bem como de sua Teologia Bíblica, tanto explícita como implícita.

Uso do Antigo Testamento na Fratelli Tutti (TANAK e LXX [Tobias]) Pentateuco (4) Históricos (01) Sapienciais (3) Profetas (01) Gênesis (3x): 4,9 (FT, n. 57, Cap..II); 11,1-11 (FT, n. 144, Cap. IV); 9,5-6 (FT, n. 270, Cap. VII). Êxodo (2x): 22,20 (FT, n. 61, Cap. II); 23,9 (FT, n. 61, Cap. II). Levítico (2x): 19,18 (FT, n. 59, Cap. II); 19,33-34 (FT, n. 61, Cap. II).Números: não é mencionado.Deuteronômio (1x): 24,21-22 (FT, n. 61, Cap. II). Dos livros históricos em hebraico, nenhum é mencionado. Apenas um deuterocanônico:Tobias (1x): 4,15 (FT, n. 59, Cap. II). Jó (1x): 31,15 (FT, n. 58, Cap. II).Provérbios (1x): 12,20 (FT, n. 256, Cap. VII).Sirácida/Eclesiástico (2x):18,13 (FT, n. 59, Cap. II); 50,25-26 (FT, n. 82, Cap. II).Obs.: ausentes todos os demais livros Sapienciais, Líricos e Poéticos. Isaías (2x): 2,4 (FT, n. 270, Cap. VII); 58,7 (FT, n. 84, Cap. II).Obs.: ausentes os demais Profetas Maiores e nenhum dos Profetas Menores é mencionado.
Uso do Novo Testamento na Fatelli Tutti (Koiné) Evangelhos (3) Atos (ok) Paulo (04) Pastorais (02) Hebreus (0) Católicas (03) pocalipse (ok) Mateus (15x): 5,44-46 (FT, n. 246, Cap. VII); 5,45 (FT, n. 60, Cap. II; 140, Cap. IV); 6,3-4 (FT, n. 140, Cap. IV); 7,12 (FT, n. 60, Cap. II); 10,8 (FT, n. 140, Cap. IV); 10,34-36 (FT, n. 240, Cap. VII); 18,22 (FT, n. 238, Cap. VII); 18,23-35 (FT, n. 238, Cap. VII); 20,25-26 (FT, n. 238, Cap. VII); 22,36-40 (FT, n. 181, Cap. V); 23,8 (FT, n. 92, Cap. III); 25,35 (FT, n. 84, Cap. II); 25,40.45 (FT, n. 85, Cap. II); 26,52 (FT, n. 270, Cap. VII). Marcos: não é sequer mencionado.Lucas (3x), o que resulta estranho por contar com o texto motor para a reflexão de quem é meu próximo: 6,36 (FT, n. 60, Cap. II); 10,25-37: Samaritano (FT, n. 56, Cap. II); 10,37 (FT, n. 81, Cap. II).João (4x): 4,9 (FT, n. 83, Cap. II); 8,48 (FT, n. 83, Cap. II); 17,21 (FT, n. 280, Cap. VIII); 19,26 (FT, n. 278, Cap. VIII). Atos dos Apóstolos (3x e no mesmo número): 2,47; cf. 4,21.33; 5,13 (FT, n. 239, Cap. VII). Romanos (4x): 12,15 (FT, n. 84, Cap. II); 12,21 (FT, n. 243, Cap. VII); 12,19 (FT, n. 264, Cap. VII); 13,4 (FT, n. 264, Cap. VII). 1Coríntios (2x): 12,13 (FT, n. 280, Cap. VIII); 13,1-13 (FT, n. 92, Cap. III).Gálatas (3x): 5,14 (FT, n. 61, Cap. II); 5,22 (FT, n. 112, Cap. IV: agathosyne; 223, Cap. III: chrestotes).1Tessalonicenses (1x): 3,12 (FT, n. 62, Cap. II)As demais cartas protopaulinas estão ausentes.As três cartas deuteropaulinas estão totalmente ausentes. 2Timóteo (1x): 2,25-26 (FT, n. 239, Cap. VII) Tito (1x): 3,2-3 (FT, n. 239, Cap. VII)Das três cartas pastorais, apenas 1Timóteo não foi citada. Cartas aos Hebreus: não é mencionada.Das sete cartas católicas, temos três mencionadas e quatro ficaram de fora:1Pedro (1x): 2,14 (FT, n. 264, Cap. VII)1João (5x): 2,10-11 (FT, n. 61, Cap. II); 3,14 (FT, n. 61, Cap. II); 4,8 (FT, n. 283, Cap. VIII); 4,16 (FT, n. 4, Preâmbulo); 4,20 (FT, n. 61, Cap. II).3João (1x): 5 (FT, n. 62, Cap. II)Apocalipse (1x): 12,17 (FT, n. 278, Cap. VIII)

Além de poucas citações bíblicas, é importante ler aquilo que é a Teologia Bíblica da Fratelli Tutti, que, diante da atual profunda crise de fraternidade e solidariedade em que a humanidade se encontra, faz um grande convite a todos para que sejamos capazes de cuidar da obra do Criador, “casa comum”, recuperando a Laudato Si’ (por exemplo LS, 1; 3; 13; 15; 53; 61; 155; 164; 222; 243). Visto que estamos todos no mesmo barco, Francisco tem insistido, com a chegada da atual pandemia (novo coronavírus, o covid-19, com suas várias cepas/variantes) em um convite a ler e a discernir os “sinais dos tempos” (Gaudium et Spes, 4 e 11) e a trabalhar pela fraternidade e pela amizade social.

A Teologia Bíblica presente na Fratelli Tutti não poderia ser diferente. É Teologia da Fraternidade, da Amizade e da Solidariedade, de um agir de Deus criador que pede que cuidemos da obra da criação em vista do bem comum e do equilíbrio de toda a obra criada, sendo solidários entre todos, sobretudo com os mais fragilizados. O Papa Francisco convoca o ser humano a colaborar na edificação da solidariedade entre as pessoas e entre os povos, exercendo sua corresponsabilidade, pelo bem de todos os irmãos e irmãs. Ele apresenta vários ângulos que podem ser trilhados de forma magistral, a partir de sua centralidade dialógica, antropológica, profética, cristológica, pneumatológica, mariológica, espiritual, pastoral, solidário-comunitária, etc. A figura central para esse diálogo é o próprio Cristo, com seu agir solidário aos mais fragilizados e aos últimos, que vivem nas várias periferias sociais e existenciais, procurando sempre edificar o projeto do Pai.

A Igreja que emerge da Fratelli Tutti é uma que se sabe parte do genus humanum como locus existencial, como parte integrante do sonho de Deus para o bem comum e a solidariedade entre as pessoas e entre os povos. Por isso, ela é chamada a entrar em diálogo com o mundo e a ajudar a superar a dicotomia reinante entre profano e sagrado. É chamada a reconhecer-se como parte integrante de tudo aquilo que é humano, daí emana sua participação e colaboração na agenda social e cultural do mundo, em vista do bem da casa comum, da família humana e da fraternidade universal.

É igualmente salutar recordar que o Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti, também dedica muitos números ao tema da justiça e da paz, como algo inseparável e essencial na construção da fraternidade e da amizade social. Abre o documento falando de Francisco de Assis, como aquele que “semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos” (FT, n. 2). Continua falando da paz ao longo de todo o texto, termo que ocorre por 95 vezes, sem contar derivados, como o verbo “pacificar” e o substantivo “pacificação”, que retrata a ação ou efeito de pacificar(-se) e/ou do restabelecimento da paz. Igualmente em relação ao tema “justiça” (31 vezes). Conclui seu texto com a Oração ao Criador, com uma súplica pela justiça e pela paz: “Senhor e Pai da humanidade, [...] Inspirai-nos o sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz” (FT, n. 287). Isso indica que a solidariedade entre os povos passa pela justiça e pela paz, sem as quais não se conseguirá verdadeira fraternidade e amizade social.

2 Alguns dados da presença de citações bíblicas na Fratelli Tutti

A fim de auxiliar na reflexão, elencam-se alguns dados da presença das citações e/ou alusões bíblicas na Fratelli Tutti, os quais revelam a Teologia Bíblica desta Carta Encíclica, tanto explícita como implícita. Eles apontam os rumos teológico-bíblicos assumidos por Francisco na construção do documento em vista da edificação da fraternidade e da amizade social:

  1. a maior concentração de citações e/ou alusões bíblicas está presente especialmente no Cap. II: “Um estranho no caminho” (n. 56-86), com vinte e cinco citações e duas alusões, com maior enfoque no Novo Testamento, que tangencia todo o documento da Fratelli Tutti, trazendo uma Teologia Bíblica da Fraternidade/Solidariedade;

  2. os dois livros mais citados na Fratelli Tutti são o primeiro do Novo Testamento (Mateus: 15x) e o primeiro do Antigo Testamento (Gênesis: 13x), indicando que é entrando pelos textos sagrados da tradição judaico-cristã e percorrendo os dois Testamentos, que iremos encontrar caminhos para a construção da fraternidade e da amizade social;

  3. o uso do Antigo Testamento na Fratelli Tutti é quase de igual peso entre citações explícitas e alusões. Dá-se majoritariamente a partir dos textos hebraicos, da TANAK, e de dois livros apenas da LXX (Tobias e Sirácida/Eclesiástico). Sua menção se dá da seguinte forma: Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico e Deuteronômio); Históricos (Tobias); Sapienciais (Jó, Provérbios e Eclesiástico); Profetas Maiores (Isaías); Profetas Menores (nenhum);

  4. o uso do Novo Testamento (grego Koinè) na Fratelli Tutti é mais por citações explícitas que por alusões. Dá-se a partir de: Evangelhos (Mateus, Lucas e João) e Atos; Paulo: protopaulinas (Romanos, Gálatas e 1Tessalonicenses) e deuteropaulinas (nenhuma); Pastorais (2Timóteo e Tito), Hebreus (ausente), Católicas (1Pedro, 1João e 3João) e Apocalipse;

  5. a primeira e a última citações bíblicas no corpo Fratelli Tutti são do Novo Testamento, e são explícitas, da Primeira Carta de João, voltadas para a temática do amor: 1Jo 4,16: “Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus” (FT, n. 4); e 1Jo 4,8: “quem não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor” (FT, n. 283). Como se vê no texto, Francisco indica que o amor fraterno é o caminho para a construção da fraternidade e da amizade social, com a edificação da solidariedade entre as pessoas e entre os povos:

    • Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que “Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus” (1Jo 4,16). Assim foi pai fecundo que suscitou o sonho duma sociedade fraterna, pois “só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai”. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas. (FT, n. 4)

    • O culto sincero e humilde a Deus “leva, não à discriminação, ao ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do bem-estar de todos”. Na realidade, “aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4,8). Por isso, “o terrorismo execrável que ameaça a segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora os terroristas a instrumentalizem – mas tem origem no cúmulo de interpretações erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça, de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações”. As convicções religiosas sobre o sentido sagrado da vida humana consentem-nos “reconhecer os valores fundamentais da nossa humanidade comum, valores em nome dos quais se pode e deve colaborar, construir e dialogar, perdoar e crescer, permitindo que o conjunto das diferentes vozes forme um canto nobre e harmonioso, e não gritos fanáticos de ódio” (FT, n. 283).

  6. Lc 11,25-37, no formato explícito, é a citação bíblica mais longa no corpo da Fratelli Tutti, usada para falar da fraternidade e da misericórdia para com o próximo, como se lê no texto da Encíclica:

    • Levantou-se, então, um doutor da Lei e perguntou [a Jesus], para O experimentar: “Mestre, que hei de fazer para possuir a vida eterna?” Disse-lhe Jesus: “Que está escrito na Lei? Como lês?” O outro respondeu: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe Jesus: “Respondeste bem; faz isso e viverás”. Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?” Tomando a palavra, Jesus respondeu: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, eu te pagarei quando voltar’. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” Respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lc 10,25-37) (FT, n. 56).

  7. Francisco abre o texto da Fratelli Tutti sem nenhuma citação bíblica e só apresenta a primeira citação no número 4, 1Jo 4,16: “Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus” (FT, n. 4), sendo sua única citação bíblica em todo o Preâmbulo da Encíclica, que compreende oito números (FT, n. 1-8), cujo texto está reportado aqui acima, no item 5, e pode ser conferido em sua íntegra.

  8. Quando trata de Maria, sob o título de “mãe do caminho da fraternidade”, Francisco o faz com duas citações: aos pés da cruz (Jo 19,26) e como aquela que cuida de Jesus e do “resto da sua descendência” (Ap 12,17), como se pode ver no documento:

    • Chamada a encarnar-se em todas as situações e presente através dos séculos em todo o lugar da terra – isto mesmo significa “católica” –, a Igreja pode, a partir da sua experiência de graça e pecado, compreender a beleza do convite ao amor universal. Com efeito, “tudo o que é humano nos diz respeito (...); onde quer que as assembleias dos povos se reúnam para determinar os direitos e os deveres do homem, sentimo-nos honrados, quando eles nos permitem, tomando lugar nelas”. Para muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal (Jo 19,26) e cuida não só de Jesus, mas também do “resto da sua descendência” (Ap 12,17). Com o poder do Ressuscitado, Ela quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz. (FT, n. 278).

  9. Em sua estrutura, a Fratelli Tutti conta com 8 capítulos e a pouca presença de textos bíblicos (citações e/ou alusões) se dá apenas no Preâmbulo (uma única citação explícita); nos capítulos II, III, IV, V, VI, VII e VIII, nos quais temos a concentração de poucas citações e/ou alusões. Não há nenhuma citação e/ou alusão no Cap. I e no Apelo Final, criando quase que uma moldura sem citação e/ou alusão bíblica:

    • Preâmbulo, n. 1 a 8: uma citação explícita, sendo a primeira do documento, 1Jo 4,16: “Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus” (FT, n. 4);

    • Cap. I: As sombras dum mundo fechado (n. 9-55): nenhuma citação bíblica;

    • Cap. II: Um estranho no caminho (n. 56-86), traz a concentração das poucas citações (25) e alusões (2), com maior enfoque no Novo Testamento. Traz, inclusive, a maior citação explícita no texto da Encíclica: Lc 10,25-37 (FT, n. 56);

    • Cap. III: Pensar e gerar um mundo aberto (n. 87-127), conta com uma citação e duas alusões, sendo uma a de interesse neste artigo: (Gl 5,22: agathosyne; FT, n. 112);

    • Cap. IV: Um coração aberto ao mundo inteiro (n. 128-153), com três citações e uma alusão;

    • Cap. V: A política melhor (n. 154-197), com apenas uma citação (Mt 22,36-40; FT, n. 181);

    • Cap. VI: Diálogo e amizade social (n. 198-224), com apenas uma alusão, sendo a de interesse neste artigo: Gl 5,22: chrestotes; (FT, n. 223);

    • Cap. VII: Percursos dum novo encontro (n. 225-270), traz nove citações e oito alusões;

    • Cap. VIII: As religiões ao serviço da fraternidade no mundo (n. 271-284), traz apenas quatro citações, inclusive a última do documento, 1Jo 4,8: “quem não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor” (FT, n. 283);

    • Apelo e Oração ao Criador (n. 285-286): nenhuma citação bíblica.

Igualmente interessante é observar como a Fratelli Tutti usou as Sagradas Escrituras, de seus vários corpora, tanto do Antigo Testamento como do Novo Testamento, ainda que com pouco uso. Mais ainda, é oportuno correr os olhos e ver como a Fratelli Tutti usou ou deixou de usar cada um dos livros de cada corpus do Antigo Testamento e do Novo Testamento, a fim de ver qual conta com um peso maior.

A maioria das citações são diretas no corpo do texto e nunca em nota de rodapé. Em número bem menos são as indicações indiretas (alusões), para que o leitor confira em sua própria Bíblia. Além disso, é preciso não perder de vista que a Igreja Católica, que vai emergindo do final do século XIX e que celebra o Concílio Vaticano II (1962-1965), é uma Igreja que realiza mudanças em seu relacionamento com a Bíblia1 1 Desde o final do séc. XIX, a Igreja Católica emanou várias Encíclicas e Documentos Bíblicos, como, por exemplo: Leão XIII, Providentissimus Deus (1893); Bento XV, Spiritus Paraclitus (1920); Pio XII, Divino Afflante Spiritu, (1943); Pontifícia Comissão Bíblica, Sancta Mater Ecclesia (1964); Concílio Vaticano II, Dei Verbum (1965); Pontifícia Comissão Bíblica, A Intepretação da Bíblia da Igreja (1993); Pontifícia Comissão Bíblica, O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã (2001); Pontifícia Comissão Bíblica, Bíblia e Moral, Raízes Bíblicas do Agir Cristão (2008); Bento XV, Verbum Domini (2010); Pontifícia Comissão Bíblica, Inspiração e verdade da sagrada Escritura (2014); Pontifícia Comissão Bíblica, Che cosa è l’uomo? (2019). . Elas ocorrem no que diz respeito aos estudos2 2 Vários e renomados são os centros de estudos bíblicos que a Igreja Católica criou entre o final do séc. XIX e início do séc. XX: a) em 1890: École Biblique de Jérusalem (dominicanos); b) em 1909: Pontificio Instituto Biblico de Roma (Jesuítas); c) em 1927: Pontificio Instituto Biblico de Jerusalém (jesuítas); d) em 1901: Ateneo e Facoltà de Sciencie Bibliche e Archeologiche de Jerusalém (franciscanos); e) em 1955: Instituto Español Bíblico y Arqueológico de Jerusalém, Casa de Santiago (ligado à Universidad Pontificia de Salamanca). e ao povo de Deus, tendo em vista o Movimento Bíblico, antes, durante e depois do Concílio, e a Animação Bíblica da Pastoral3 3 No que tange à Animação Bíblica da Pastoral, a Igreja Católica tem publicado documentos ou realizado eventos como: a) em 2007, o Documento de Aparecida, nn. 99 e 248; b) em 2008, o Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus (Vaticano, com Bento XVI); c) em 2010, a Constituição Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, n. 73, de Bento XVI; d) em 2010, o subsídio doutrinário número 5 da CNBB: Presbítero, anunciador da Palavra de Deus, educador da fé e da moral da Igreja; e) em 2011, o Documento 94 da CNBB, resultado da 49ª Assembleia dos Bispos: Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral, os n. 44 e 45, do Item 3.3; f) em 2011, o I Congresso de Animação Bíblica da Pastoral (de 8-11 de outubro, em Goiânia/GO); g) em 2012, o Documento 97 da CNBB, resultado da 50ª Assembleia dos Bispos, em seu Cap. II, Nossa Reposta à Palavra, item 2.1: A Busca e o Encontro; item 2.2: A Animação Bíblica da Pastoral, o que é?; item 2.3: A Animação Bíblica da Pastoral, como ocorre? Desenvolve a temática a partir dos três eixos inspirados na metáfora bíblica de At 8,26-40 (Filipe e o Eunuco de Candace): eixo da formação (conhecimento e interpretação da Palavra), eixo da oração (oração com Palavra e Comunhão) e eixo do anúncio (evangelização e proclamação da Palavra), nn. 21-66; h) em 2013, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, que não trata da Animação Bíblica da Pastoral, mas fala da Palavra de Deus e da Homilia (nn. 145-159); i) Em 2021, o Estudo 114 da CNBB, resultado da 58ª Assembleia Geral dos Bispos: “A Palavra habitou entre nós” (Jo 1,14) Animação Bíblica da Pastoral a partir das comunidades eclesiais missionárias. Em seu Cap. II: “É tempo de semear”, item 2.3, o estudo retoma a temática “Animação Bíblica da Pastoral: do que estamos falando, do que se trata, o que propõe, o que nos cabe fazer”; cita a expressão “Animação Bíblica” por 99 vezes e dedica seu último capítulo (Cap. VII) à “Animação Bíblica da Pastoral e sua implantação” nos níveis nacional, diocesano, local e virtual (novos tempos, provocados sobretudo pela pandemia do novo coronavírus, o covid-19). No que diz respeito à produção no campo da Animação Bíblica da Pastoral na América Latina e no Caribe, para consultas, indicamos o site https://c-b-f.org/es/Materiales/Publicaciones-FEBIC/Orientaciones , no Brasil, na América Latina e no Caribe, bem como em outros países em que ela está presente.

Aliás, a Igreja que emerge do Concílio Vaticano II é uma que valoriza cada vez mais o encontro entre Bíblia e Teologia. Com a aprovação do texto da Dei Verbum aos 18/11/1965, ela retomou o velho e sempre novo axioma de “que as Sagradas Escrituras sejam como que a Alma da Sagrada Teologia” (DV, n. 24), presente também na Optatam Totius, n. 16: “formem-se os estudantes no Estudo da Sagrada Escritura, que deve ser como que a alma de toda a Teologia”, aprovado aos 28/10/1965 (GONZAGA, 2015GONZAGA, W. “A Sagrada Escritura, a alma da sagrada teologia”. In: MAZZAROLO, I.; FERNANDES, L. A.; LIMA, M. L. C. (Orgs.). Exegese, teologia e pastoral: relações, tenções e desafios. Santo André: Academia Cristã; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2015. p. 201-235., p. 201-235). Recentemente a Igreja tem tratado o tema da Animação Bíblica da Pastoral e da Lectio Divina4 4 O método é atribuído ao monge Guigo, italiano, que, por volta de 1150 d.C., pode ser usado para o estudo, a meditação, a oração etc. No diálogo com Deus, busca-se o crescimento na espiritualidade e intimidade com a Palavra de Deus, desenvolve-se um caminho a ser percorrido em cinco degraus: lectio, meditatio, oratio, contemplatio et actio (leitura, meditação, oração, contemplação e ação), tendo presente que “a leitura leva a comida sólida à boca, a meditação mastiga e rumina-a, a oração prova o seu gosto e a contemplação é a própria doçura que alegra e recria”. (Bento XVI e Francisco). Ou seja, as Sagradas Escrituras voltam a fazer parte do patrimônio teológico da Igreja. E, se olharmos para as Conferências do Episcopado da América Latina e do Caribe, vemos que o Concílio Vaticano II foi acolhido e implementado no continente, com amplo trabalho no campo das Sagradas Escrituras: Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), e hoje fortalecido pelas orientações do Papa Francisco e pelos compromissos assumidos pelo CELAM (Conselho Episcopal Latino Americano e Caribenho) e palas Conferências Episcopais de cada país, como é o caso da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

3 A carta aos Gálatas e o projeto paulino de defesa da vida em Cristo Jesus

A carta de Paulo aos Gálatas, uma das 13 do epistolário paulino, foi escrita em Éfeso, durante a terceira viagem missionária de Paulo, entre os anos 54-57 d.C., sendo considerada pela grande maioria dos comentadores como uma carta autenticamente paulina ou protopaulina (GONZAGA, 2017bGONZAGA, W. O Corpus Paulinum no Cânon do Novo Testamento. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 55, p. 19-41, jan./abr.2017b., p. 22). Ela é bastante polêmica, pois Paulo recorre a seu estilo vivo e apaixonado em defesa de seu apostolado contra seus adversários, que ele chama de falsos apóstolos, operários enganadores, camuflados em apóstolos de Cristo, e afirma a sua dependência unicamente de Jesus Cristo (Gl 1,1). A estrutura de Gálatas, em seus grandes blocos, pode ser dividida em: introdução (Gl 1,1-5), apologia pessoal e autobiografia (1,6–2,21), argumentação doutrinal (3,1-4,31), parte parenética e conclusão (5,1-6,18) (GONZAGA, 2021GONZAGA, W. A estrutura literária da Carta aos Gálatas à luz da Análise Retórica Bíblica Semítica. ReBiblica, v. 2, n. 3, p. 09-41, jan./jun., 2021., p. 9-41).

Segundo a maioria dos autores, a carta aos Gálatas é um texto que Paulo escreveu a diversas comunidades da Galácia, a partir de seus problemas concretos. Nela, diante das acusações levantadas contra seu ministério e pessoa, Paulo realiza uma apologia pro vita sua, em defesa de seu ministério e do Evangelho que estava pregando entre os gentios. Ele afirma que seguiu o acordo feito após o evento da Conferência de Jerusalém (49 d.C.; Gl 2,1-10), afetando sua evangelização realizada nas comunidades por ele fundadas no território da Galácia do Norte, ou seja, entre os gálatas étnicos.

A fundação dessas comunidades da Galácia teria ocorrido na segunda viagem missionária de Paulo, quando ali ficou retido por uma enfermidade, como ele mesmo afirma em Gl 4,13. Ademais, na carta aos Gálatas é surpreendente o número de informações que temos acerca de Paulo, mais que em qualquer outra de suas cartas.

Gálatas é uma carta escrita no calor dos temas concretos e não a partir de questões teóricas. O que se encontra em jogo é “a verdade do Evangelho” (Gl 2,5.14), a saber: a salvação provém de Deus, como graça, pela fé em Jesus Cristo, ou é fruto do esforço humano, a partir da observância da lei de Moisés? Paulo não tem dúvidas em afirmar que a salvação é fruto da gratuidade divina e que a lei não é e nem pode ser considerada como condição para se obter a salvação que vem de Deus. Ela pode até ser observada na liberdade de cada um, mas não na obrigatoriedade, como se fosse uma “conditio sine qua non para se obter a salvação” (GONZAGA, 2014GONZAGA, W. “A Verdade do Evangelho” (Gl 2,5.14) e a Autoridade na Igreja: Gl 2,1-21 na exegese do Vaticano II até os nossos dias. História, balanço e novas perspectivas. Santo André: Academia Cristã, 2014., p. 57).

Dado o valor da carta aos Gálatas, no tocante ao tema da liberdade cristã em aderir a Cristo, Bover (1926)BOVER, J. M. “La epístola a los Gálatas ‘Carta Magna de la libertad cristiana’”. Estudíos Eclesiásticos, n. 5, p. 44-59, 183-194, 297-310, 362-372, 1926. a chama de a Magna Carta da Liberdade Cristã e Burgos Núñez (2001)BURGOS NÚÑEZ, M. “La Carta a los Gálatas, ‘manifiesto del Cristianismo Paulino’”. Interpretación Bíblica Latino-Americana, Ecuador, v. 34, n. 1, p. 201-228, 2001. a intitula o Manifesto do Cristianismo Paulino. Nela o “Apóstolo dos Gentios” (Rm 11,13) luta e labuta pela defesa da “Verdade do Evangelho” (Gl 2,5.14) e pela liberdade dos seguidores de Cristo em aderir à fé sem os condicionamentos da lei mosaica, própria da tradição judaica, visto que o cristão, como nova criatura, tem a liberdade que o próprio Cristo lhe concedeu (Gl 5,1). É justamente no caminho da liberdade e da prática do “amor fraterno e solidário” (SCHNEIDER, 1984SCHNEIDER, G. A Epístola aos Gálatas. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 147) que Paulo indica dois catálogos: dos vícios (Gl 5,19-21), mais longo, com quinze vícios, e “do fruto do Espírito” (Gl 5,22-23), mais curto, com apenas nove virtudes, que “tratam dos grandes princípios, das relações com o próximo e das grandes virtudes” (CORSANI, 1990CORSANI, B. Lettera ai Galati. Genova: Marietti, 1990., p. 364). Como afirma Betz, “comparado com o catálogo dos vícios, o catálogo das virtudes é peculiar por várias razões” (1979, p. 286), a começar pelo fato de estar no singular e não no plural, em que Paulo cita as “τὰ ἔργα τῆς σαρκός/obras da carne” um pouco antes, no v.19, e o “καρπὸς τοῦ πνεύματός/fruto do Espírito”, no v.22a.

Entre os problemas que Paulo tem que enfrentar, estão os chamados “opositores” ao “seu Evangelho”, que geram uma crise nas igrejas paulinas dessa região, aos quais ele denomina de “falsos irmãos” (Gl 2,4) e de “perturbadores” dos fiéis (Gl 1,7; 5,10). Eles causam divisão e sublevação (Gl 5,12), procuram forçar os gálatas à circuncisão (Gl 6,12), entre outras coisas. É neste oceano paulino que é preciso navegar e perceber como Paulo desenvolve seu pensamento, com suas teses, argumentos e conclusões em favor da gratuidade da salvação, por meio de Jesus Cristo, e proclama as virtudes cristãs, em Gl 5,22-23, para se edificar a fraternidade e a amizade social, como nos pede Francisco na Fratelli Tutti.

A carta aos Gálatas nos coloca, ainda, o conflito entre Pedro e Paulo (Gl 2,11-14); a prova escriturística da gratuidade da fé (Gl 3,1-29); o Evangelho da ternura de Paulo (Gl 4,8-20), em que o Apóstolo se revela como um pai cheio de amor por seus filhos, capaz de dar a vida pela salvação de todos; a liberdade para a qual Cristo nos libertou (Gl 5,1). Além da fidelidade de Paulo (Gl 1,10), da prática do bem de forma incansável (Gl 6,9), de sua certeza destemida (Gl 6,17), bem como de sua convicção de que “toda a Lei se cumpre no amor ao próximo” (Gl 5,14) (BURTON, 1988BURTON, E. de W. The Epistle to the Galatians. Edimburg: T.&T. Clark Ltd, 1988., p. 314). Por fim, é a única carta em que Paulo cita o nascimento do Filho de Deus por meio de uma mulher (Gl 4,4) (GONZAGA, 2019GONZAGA, W. “Nascido de Mulher” (Gl 4,4). Horizonte, Belo Horizonte, v. 17, n. 53, p. 1194-1216, maio/ago. 2019., p. 1194-1216).

4 Gl 5,22 como luz e trilha para a Teologia Bíblica da Fratelli Tutti

Os catálogos de virtudes são recorrentes nas cartas de Paulo, destacam a importância da ética paulina e quase sempre vêm após um catálogo de vícios, indicando que são coisas “totalmente incompatíveis” (MARTYN, 1998MARTYN, J. L. Galatians: the Anchor Bible 33A. New York: Doubleday, 1998., p. 498), que estão em “oposição” (MAZZAROLO, 2013MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Gálatas: da libertação da Lei à filiação em Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013., p. 149; VANHOYE, 2000VANHOYE, A. Lettera ai Galati. Roma: Milano, 2000., p. 138; MEYNET, 2012MEYNET, R. La lettera ai Galati. Bologna: EDB, 2012., p. 190-191) e em “contraste” entre si (BLIGH, 1972BLIGH, J. La Lettera ai Galati: una discussione su un’epistola di S. Paolo. Roma: Paoline, 1972., p. 799; LONGENECKER, 1990LONGENECKER, R.N. Galatians: WBC 41. Dallas: Thomas Nelson Publishers, 1990., p. 259; BURTON, 1988BURTON, E. de W. The Epistle to the Galatians. Edimburg: T.&T. Clark Ltd, 1988., p. 312), como em Gl 5,19-23, com o catálogo dos vícios nos v.19-21 e das virtudes nos v. 22-23 (BETZ, 1979BETZ, H. D. Galatians: a commentary on Paul’s Letter to the Churches in Galatia. Hermeneia. Fhiladelphia: Tortress Press, 1979., p. 286). Para Barbaglio (199, p. 106). O elenco apresentado, mormente no caso específico da carta aos Gálatas, é exemplificativo e não objetiva fazer um catálogo completo, embora tenha como função oferecer critérios para discernir a prática do bem comum. Ao finalizar o elenco das obras da carne, o Apóstolo afirma: “καὶ τὰ ὅμοια τούτοις/e coisas semelhantes a estas” (Gl 5,21). Neste sentido, em Gl 5,22-23, são elencadas nove virtudes “com uma unidade de conceitos” (BETZ, 1979BETZ, H. D. Galatians: a commentary on Paul’s Letter to the Churches in Galatia. Hermeneia. Fhiladelphia: Tortress Press, 1979., p. 286) e que indicam “aquilo que provém do Espírito” (FERREIRA, 2005FERREIRA, J. A. Gálatas: a epístola da abertura de fronteiras. São Paulo: Loyola, 2005., p. 174).

O estudo aqui é realizado a partir do catálogo das virtudes elencadas por Paulo em Gl 5,22-23, que apresenta nove substantivos como sendo “ὁ καρπὸς τοῦ πνεύματός/o fruto do Espírito” (Gl 5,22a). Segundo Pohl, o texto tem “um solene ritmo ternário triplo” (1999, p. 187), conta com três virtudes em cada grupo (LÉGASSE, 2000LÉGASSE, S. L’Épître de Paul aux Galates. Paris: CERF, 2000., p. 433; BUSCEMI, 2004BUSCEMI, A. M. Lettera ai Galati: commentario esegetico, SBFAn. 63. Jerusalem: Frasciscan Printing Press, 2004., p. 560-562; MARTYN, 1998MARTYN, J. L. Galatians: the Anchor Bible 33A. New York: Doubleday, 1998., p. 498), delimitando sua construção triádica (1. “ἀγάπη/amor”, “χαρὰ/alegria” e “εἰρήνη/paz”; 2. “μακροθυμία/longanimidade”, “χρηστότης/bondade” e “ἀγαθωσύνη/benignidade”; e 3. “πίστις/”, “πραΰτης/mansidão” e “ἐγκράτεια/autodomínio”). O estudo desenvolve-se a partir do campo semântico das duas virtudes que Francisco cita na Fratelli Tutti, presentes em Gl 5,22, porém, não a partir de tradução (benignidade e bondade) e nem do original grego (ἀγαθωσύνη e χρηστότης), mas sim transliterando os termos do grego para os caracteres latinos: agathosyne (FT, 112) e chrestotes (FT, n. 223). O campo semântico indica a atuação das duas e a sua relação com as demais, presentes na lista tríplice de todo o catálogo das virtudes de Gl 5,22-23, como é possível conferir no texto da edição do Novo Testamento de Nestle-Aland (2012)NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. Ed.28. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012.. Conforme Pitta, a ἀγαθωσύνη e a χρηστότης são duas virtudes que representam, antes de mais anda, “um atributo de Deus, que demonstram a sua misericórdia em relação ao ser humano” (1996, p. 363), e que, na opinião Schneider, expressam “a ordem moral criada pelo Espírito de Deus” (1984, p. 147).

22 ὁ δὲ καρπὸς τοῦ πνεύματός ἐστιν 22 Mas o fruto do Espírito é: ἀγάπη χαρὰ εἰρήνη, amor, alegria, paz, μακροθυμία χρηστότης ἀγαθωσύνη, longanimidade, bondade, benignidade πίστις 23 πραΰτης ἐγκράτεια· fé, 23 mansidão, autodomínio. κατὰ τῶν τοιούτων οὐκ ἔστιν νόμος. Contra estas coisas não exise lei

Paulo indica uma lista tríplice de nove virtudes, a partir de termos que mostram um crescendo, desde o “ἀγάπη/amor” (primeira virtude), a maior de todas as virtudes (PITTA, 1996PITTA, A. Lettera ai Galati. Bologna: EDB, 1996., p. 361; BORSE, 2000BORSE, U. La Lettera ai Galati. Vago di Lavagno: Morcelliana, 2000., p. 309), até o “ἐγκράτεια/autocontrole” (nona virtude), imprimindo no ser humano as virtudes sobrenaturais permanentes para a prática do bem comum (LAGRANGE, 1926LAGRANGE, J. M. Saint Paul. Épître aux Galates. Paris: Gabalda, 1926., p. 152). Aliás, o amor é uma virtude que está presente em todos os catálogos e listas das cartas paulinas (MEYNET, 2012MEYNET, R. La lettera ai Galati. Bologna: EDB, 2012., p. 189; SCHLIER, 1999SCHLIER, H. La carta a los Gálatas. Marcelona: Sígueme, 1999., p. 297). Para Paulo, ele é a fonte de todos os frutos e dons de Deus, em sintonia com o que já fora apontado em Gl 5,14: o amor ao próximo cumpre toda a lei. Todas as virtudes conservam o campo semântico da construção do bem, pessoal e comunitário, mostrando que “κατὰ τῶν τοιούτων οὐκ ἔστιν νόμος/contra estas coisas não exise lei” (Gl 5,23b).

Quando se olha para os dois termos que Francisco cita na Fratelli Tutti, agathosyne (FT, 112) e chrestotes (FT, n. 223), de imediato, percebe-se o caminho que ele aponta para a construção da fraternidade e da amizade social, visto que as duas virtudes são do campo semântico do bem/bom: “ἀγαθωσύνη/benignidade” e “χρηστότης/bondade” (Gl 5,22). É interessante, então, analisar os termos a partir de léxicos e de comentários bíblicos da carta aos Gálatas, a fim de se perceber o topos da amizade que ambos indicam, separadamente e no conjunto do catálogo.

A partícula “δὲ/mas”, uma adversativa, que aparece no incío do v. 22, aponta a antítese conceitual entre o catálogo dos vícios (Gl 5,19-21) e o catálogo das virtudes (Gl 5,22-23) (PITTA, 1996PITTA, A. Lettera ai Galati. Bologna: EDB, 1996., p. 362; BUSCEMI, 2004BUSCEMI, A. M. Lettera ai Galati: commentario esegetico, SBFAn. 63. Jerusalem: Frasciscan Printing Press, 2004., p. 559-560; CORSANI, 1990CORSANI, B. Lettera ai Galati. Genova: Marietti, 1990., p. 365), mostrando uma “tensão antitética” (MAZZAROLO, 2013MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Gálatas: da libertação da Lei à filiação em Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013., p. 148). Ressalta o que provém do Espírito como um dom de Deus e não simplesmente como um fruto do esforço humano, “em dependência absoluta e entrega incondicional ao Espírito de Deus” (PÉREZ MILLOS, 2013PÉREZ MILLOS, S. Gálatas. Barcelona: CLIE, 2013., p. 535). Ferreira afirma que as virtudes desse catálogo apontam para um tríplice encontro: “com o irmão: amor, alegria, paz, paciência, benegnidade, bondade e mansidão; com Deus: fé; consigo mesmo: autodomínio” (2005, p. 175). Longenecker, respeitando a divisão paulina, classifica-as em três grupos por atuação na vida dos cristãos: “disposições da mente: amor, alegria e paz; qualidades que afetam as relações humanas: longanimidade, bondade e benignidade; princípios que guiam a conduta: fé, mansidão e autodomínio” (1990, p. 260). Para Gurthrie, os três primeiros frutos foram colocados logo no início por causa de sua ordem de importância e “tratam de qualidades interiores ao ‘eu’ propriamente dito, ainda que interligadas nas relações pessoais, e as seis últimas acham-se mais socialmente orientadas” (1988, p. 179). Como todas são “καρπὸς τοῦ πνεύματός/fruto do Espírito”, então o motor de tudo é o próprio Espírito, pois é ele quem tudo movimenta e faz com que se viva segundo o projeto divino, “respondendo aos apelos de Deus” (MAZZAROLO, 2013MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Gálatas: da libertação da Lei à filiação em Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013., p. 148), tanto de forma pessoal como comunitária.

Segundo Beyrether, os termos ἀγαθωσύνη e χρηστότης podem ser traduzidos por tudo aquilo que possa ser “sintetizado” com o conceito de “bom” (1998, v. 1, p. 188-194), mudando apenas a perspectiva entre o que é moralmente bom, boa conduta, excelente, digno de bondade, benignidade, amabilidade, doçura, ternura e mansidão. Ambas são virtudes intrínsecas ao ambiente comunitário. Neste sentido, como afirma Guthrie, “parece haver pouca distinção entre ambas” (1988, p. 179). Elas refletem a “cordialidade comunitária” (FERREIRA, 2005FERREIRA, J. A. Gálatas: a epístola da abertura de fronteiras. São Paulo: Loyola, 2005., p. 176), a prática concreta do bem aos demais, sobretudo aos mais vulneráveis e necessitados. Embora o campo semântico seja o da bondade, como algo que é intrínseco a Deus, o bem pode se tornar uma “conduta humana” (BEYRETHER, 1998BEYRETHER, E. Bueno (ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω, ἀγαθωσύνω, καλός, χρηστός, χρηστότης). In: COENEN, L.; BEYREUTHER, E.; BIETENHARD, H. Diccionario Teologico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1998. v. 1, p. 188-194., v. 1, p. 189). Aliás, a depender do ideal de vida de cada um, é possível caracterizar a bondade como algo presente nos vários campos da vida humana: “de ordem material, espiritual, moral e religiosa” (BEYRETHER, 1998BEYRETHER, E. Bueno (ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω, ἀγαθωσύνω, καλός, χρηστός, χρηστότης). In: COENEN, L.; BEYREUTHER, E.; BIETENHARD, H. Diccionario Teologico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1998. v. 1, p. 188-194., v. 1, p. 189).

Tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, somente Deus é “bom” por excelência, empregando os termos tôb (hebraico) e kalós (grego) para afirmar que Deus é “bom” desde suas entranhas de misericórdia, como algo que lhe é próprio. A bondade humana é imitação da bondade divina, a partir de uma “disposição espiritual fundamental que rejeita todo tipo de injustiça, maldade e avareza” (BORSE, 2000BORSE, U. La Lettera ai Galati. Vago di Lavagno: Morcelliana, 2000., p. 311). Tal sentido é conservado inclusive na versão grega do Antigo Testamento, a LXX. O ser bom na vida humana é um dom de Deus, mas que também depende da livre disposição do ser humano em praticar o bem e crescendo na bondade, pessoal e comunitariamente, como um projeto de vida para o bem comum, sendo sua opção fundamental e vital.

Juntamente com a “μακροθυμία/longanimidade”, a “ἀγαθωσύνη/benignidade” e a “χρηστότης/greekbondadegreek” constituem as virtudes da “generosidade de coração e de ações” (HENDRIKSEN, 2009HENDRIKSEN, W. Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 2009., p. 270), que marcam “diretamente as relações inter-humanas” (LÉGASSE, 2000LÉGASSE, S. L’Épître de Paul aux Galates. Paris: CERF, 2000., p. 433), no dia a dia, pautando a “convivência humana” (SCHNEIDER, 1984SCHNEIDER, G. A Epístola aos Gálatas. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 148). Elas são “duas virtudes semelhantes e dizem respeito à bondade do ser humano” (PITTA, 1996PITTA, A. Lettera ai Galati. Bologna: EDB, 1996., p. 363). Segundo BruceBRUCE, F. F. Un Comentario de la Epístola a los Galatas. Terrassa: CLIE, 2004., “não há modo melhor de permanecer na bondade divina que aquela de espalhá-la aos outros” (2004, p. 344). Como afirma Pérez Millos, o agir com bondade ou benignidade com os outros “não constitui uma fraqueza e sim de uma entrega sem resistência em favor dos outros” (2013, p. 542), sobretudo dos mais fragilizados e empobrecidos.

O termo “ἀγαθωσύνη/benignidade”, usado por Paulo em Gl 5,22, é um substantivo nominativo feminino singular de ἀγαθωσύνη (-ης, ἡ), que tem como cognato o adjetivo “ἀγαθός/bom”, de onde tem sua origem, e seu parentesco verbal é “ἀγαθοποιέω/fazer o bem” e “ἀγαθοεργέω/operar o bem” (GRUNDMANN, V/1, 1965GRUNDMANN, W. ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω,.ἀγαθωσύνη. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1965. v. 1, p. 29-50., p. 47). Ele mostra uma qualidade de excelência moral de algo bom, podendo ser traduzido por bondade e retidão, presente também em outras cartas paulinas (Rm 15,14; Ef 5,9; 2Ts 1,11). Seu uso indica a qualidade do relacionamento de uma pessoa com as demais, demonstrando uma disposição em dar ou compartilhar, com generosidade e bondade. O de ser generoso, como encontra-se em Gl 5,22, fala de um comportamento orientado a ser bom e reto, segundo indica Francisco na Fratelli Tutti (n. 112 e 223), como caminho para a construção da fraternidade e da amizade social. Em relação a Deus, o ἀγαθός indica uma qualidade da essência divina, referindo-se “à bondade essencial de Deus, consistente em sua clemência” (GRUNDMANN, 1965GRUNDMANN, W. ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω,.ἀγαθωσύνη. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1965. v. 1, p. 29-50., v. 1, p. 42), enquanto o ser humano a recebe de Deus e precisa aprimorar-se cotidianamente nela, como num exercício diário.

O termo ἀγαθωσύνη entrou no Novo Testamento por meio da LXX, conservando o mesmo significado e apontando para a qualidade de um ser humano bom, “tanto na bondade moral como no estado de ânimo” (GRUNDMANN, 1965GRUNDMANN, W. ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω,.ἀγαθωσύνη. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1965. v. 1, p. 29-50., v. 1, p. 49). Está “definindo a nova possibilidade vital dos cristãos” (GRUNDMANN, 1965GRUNDMANN, W. ἀγαθός, ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω,.ἀγαθωσύνη. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1965. v. 1, p. 29-50., v. 1, p. 49), em “sentido ético-espiritual” (MAZZAROLO, 2013MAZZAROLO, I. Carta de Paulo aos Gálatas: da libertação da Lei à filiação em Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2013., p. 149). A exortação paulina vai, então, na direção de um comportamento ético para a vida cristã, o qual é pautado pelas três listas tríplices dos conceitos e noções apontados pelo apóstolo em Gl 5,22-23a.

O substantivo ἀγαθωσύνη é um hapax legomenon paulino. Ele só aparece quatro vezes no Novo Testamento e apenas no corpus paulinum, em duas cartas protopaulinas (Rm 15,14 e Gl 5,22) e em duas cartas deuteropaulinas (Ef 5,9 e 2Ts 1,11). Em Gl 5,22 e em Ef 5,9, o substantivo faz parte de um catálogo de virtudes (Gl 5,22-23; Ef 5,9-10), que vem logo após um catálogo de vícios (Gl 5,19-21; Ef 5,3-8). Interessante notar que se em Gl 5,22 fala-se no singular, em “ὁ καρπὸς τοῦ πνεύματός/o fruto do Espírito”, em Ef 5,9 fala-se em “ὁ καρπὸς τοῦ φωτὸς/o fruto da luz”, sempre no singular, mesmo que se trate de listas de várias virtudes e não apenas de uma. Tal fenômeno se dá justamente porque elas “formam uma unidade” (SCHNEIDER, 1984SCHNEIDER, G. A Epístola aos Gálatas. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 147) daquilo que o Espírito de Deus produz na vida das pessoas, para “demonstrar os vários aspectos da única colheita” (GUTHRIE, 1988GUTHRIE, D. Gálatas. Introdução e Comentário. Cidade Dutra: Vida Nova, 1988., p. 178). O que está em jogo é que “não se trata do resultado do esforço pessoal do crente e sim do Espírito Santo” (PÉREZ MILLOS, 2013PÉREZ MILLOS, S. Gálatas. Barcelona: CLIE, 2013., p. 535). Para Paulo, a ἀγαθωσύνη é tanto “fruto do Espírito” (Gl 5,22) como “fruto da luz” (Ef 5,9) e “dom de Deus” (2Ts 1,11).

Na LXX (RAHLFS, 1979RAHLFS, A. Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.), o termo ἀγαθωσύνη aparece com uma gama de significados, inclusive como sinônimo de χρηστότης, tendo em visa seu “vasto campo semântico” (LONGENECKER, 1990LONGENECKER, R.N. Galatians: WBC 41. Dallas: Thomas Nelson Publishers, 1990., p. 262) na linha da bondade e da gentileza. Por exemplo, em Ecl 4,8; 5,10 e 6,3, indica bens terrenos; 7,14, felicidade; 5,17; 6,6 e 9,18, realça o bem que acontece com uma pessoa; em 2Esd 19,25.35, menciona os bens que procedem de Deus para a terra, e em 23,31, o bem que se promete no céu; em Jz 8,35; 9,16; 2Cr 24,16 e no Sl 51,5, significa um bem ético-moral (BAUGARTEN, 1996BAUGARTEN, J. ἀγαθοεργέω, ἀγαθοποιέω, ἀγαθός, ἀγαθωσύνη. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1996. v.1, p. 11-21., v. 1, p. 20).

O termo “χρηστότης/greekbondadegreek”, igualmente citado por Paulo em Gl 5,22, é um substantivo nominativo feminino singular de χρηστότης (-ητος, ἡ), que mostra uma atitude de graciosa bondade e ternura, tanto em Gl 5,22 como em Rm 2,4; 9,23. Também pode indicar integridade moral e generosidade (Ef 2,7; Cl 3,12; Tt 3,4), retidão e honestidade (2Cor 6,6), fazer o correto (Rm 3,12) (LAGRANGE, 1926LAGRANGE, J. M. Saint Paul. Épître aux Galates. Paris: Gabalda, 1926., p. 152), a depender do contexto. Sempre realça no ser humano um fator importante para a edificação e manutenção de uma sociedade bem ordenada, bondosa, generosa, solidária, pautada pela honestidade, fraternidade e amizade, com retidão e benignidade.

O substantivo χρηστότης também é um hapax legomenon paulino. Ele aparece dez vezes no Novo Testamento e só no corpus paulinum, seja nas cartas protopaulinas, como nas deuteropaulinas e pastorais (ZMIJEWSKI, 1998ZMIJEWSKI, J. χρηστεύομαι, χρηστολογία, χρηστός, χρηστττης. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1998. v. 2, p. 2106-2115., v. 12, p. 2108; WEISS, 1988WEISS, K. χρηστός, χρηστότης, χρηστεύομαι, χρηστολογία. In: KITTEL G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1988. v. 5, p. 819-846., v. 15, p. 841). Sua origem deriva de χρηστός, uma forma adjetiva do verbo χράομαι, que aponta a capacidade de fazer uso de alguma coisa em vista do “bem”, designando idoneidade e retidão, em sentido moral, e que leva à prática da bondade, amabilidade, indicando uma verdadeira bondade de coração.

O termo χρηστότης aparece em Rm 2,4; 3,12; 11,22 (3x); 2Cor 6,6; Gl 5,22; Ef 2,7; Cl 3,12; Tt 3,4, sempre apontando para uma conduta benigna e bondosa. Normalmente aparece em um catálogo de virtudes, que pode suceder a um catálogo de vícios, como em Gl 5 e em Ef 2, ou a um catálogo de situações penosas, como em 2Cor 6,6, que faz parte de um extenso catálogo, em 2Cor 6,3-10. Mas é em Gl 5,22 que a “χρηστότης/greekbondadegreek” divina nasce de sua “ἀγαθωσύνη/benignidade”, visto ser parte integrante de seu “ser bom” por natureza, expressando sua “σπλάγχνον/compaixão visceral”, formando parte do “καρπὸς τοῦ πνεύματός/fruto do Espírito” (Gl 5,22a).

Fato notável é que a escola paulina, pelos redatores das cartas deuteropaulinas (Ef 2,7; Cl 3,12) e das pastorais (Tt 3,4), levou adiante a demonstração da ação bondosa e benigna de Deus. Ela indica Cristo como personificação e epifania da bondade divina (Tt 3,4), como riqueza da bondade de Deus (Ef 2,7), e convida os cristãos a “revestirem-se dos sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, longanimidade” (Cl 3,12). Ela compreende que a “χρηστότης/greekbondadegreek” “é uma expressão própria de Deus” (PÉREZ MILLOS, 2013PÉREZ MILLOS, S. Gálatas. Barcelona: CLIE, 2013., p. 542), enquanto que a ἀγαθωσύνη “representa uma qualidade própria do ser humano” (PITTA, 1996PITTA, A. Lettera ai Galati. Bologna: EDB, 1996., p. 364), como capacidade e abertura para a generosidade. Aqui está a intuição de Francisco ao citar estas duas virtudes, indicando que a fraternidade e a amizade social nascem da iniciativa divina e da colaboração humana.

Na LXX (RAHLFS, 1979RAHLFS, A. Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.), o termo χρηστότης também aparece com uma vasta gama de significados, traduzindo o hebraico tôb e seus derivados, sempre apontando para a virtude da bondade. Assim como o termo χρηστός, mostra a característica de quem é magnânimo. Com exceção do Sl 13,1.3 e do Sl 52,4, que indicam a retidão e a piedade humanas, e de Est 8,12, que refere-se à bondade de um soberano, o substantivo χρηστότης se refere a Deus (MUSSNER, 1987MUSSNER, F. La Lettera ai Galati. Brescia: Paideia, 1987., p. 584). Aponta para seus sentimentos de bondade, benignidade, mansidão, gentileza, clemência, suas entranhas de misericórdia, ligado igualmente aos termos “ἔλεος/misericórdia” (hebraico: ḥesed) e “δικαιοσύνη/justiça” (hebraico: edāqâ), e derivados (WEISS, 1988WEISS, K. χρηστός, χρηστότης, χρηστεύομαι, χρηστολογία. In: KITTEL G.; FRIEDRICH, G. (Ed.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1988. v. 5, p. 819-846., v. 15, p. 826-827).

Sendo vasto seu campo semântico, a tradução de χρηστότης para a língua portuguesa dependerá também do contexto, vendo igualmente os sinônimos possíveis para cada caso. Como elemento norteador para a escolha do tradutor é a compreensão que χρηστότης indica “uma benignidade indulgente de Deus em seu juízo [...] e a ação da clemência divina em geral” (ZMIJEWSKI, 1998ZMIJEWSKI, J. χρηστεύομαι, χρηστολογία, χρηστός, χρηστττης. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1998. v. 2, p. 2106-2115., v. 2, p. 2110). Mais ainda, a χρηστότης divina está ligada a todas as demais ações de bondade, justiça e misericórdia, sendo como que sua “causa motivadora” (ZMIJEWSKI, 1998ZMIJEWSKI, J. χρηστεύομαι, χρηστολογία, χρηστός, χρηστττης. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1998. v. 2, p. 2106-2115., v. 2, p. 2110). Segundo Ef 2,7, é por meio da χρηστότης que Deus salva em Cristo Jesus, visto que o Pai manifesta seu amor por meio do Filho, levando os cristãos a fazerem o mesmo em prol do próximo.

Conclusão

Como temos percebido nos últimos documentos e pronunciamentos do Papa Francisco, ele tem demonstrado uma preocupação muito grande com várias crises pelas quais a humanidade está atravessando neste momento. Entre elas, podemos citar a crise socioambiental, a migração desenfreada, o descuido com a casa comum, o agigantar-se da pobreza e da miséria, os conflitos internacionais, a falta de solidariedade e de amizade social, seja em nível nacional como internacional.

Seus escritos têm sido pautados por análises sobre a situação concreta atual e suas reflexões se dão a partir das Sagradas Escrituras, da Tradição e do Magistério da Igreja, seja o pessoal, de seus antecessores, seja o coletivo, do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais, por exemplo. Em seus documentos, Francisco tem valorizado cada vez mais, inclusive, as experiências de homens e mulheres de boa vontade de outras religiões, construindo pontes e redes de cooperação em vista do bem da “casa comum”, como na Laudato Si’, na Querida Amazônia e na Fratelli Tutti.

A Fratelli Tutti tem um maior uso das Sagradas Escrituras por meio de citações no texto que por alusões/indicações a serem conferidas. Sua Teologia Bíblica é a da Fraternidade/Solidariedade. Se quisermos, podemos também falar em Teologia Bíblica da Amizade Social. Para tanto, foi de grande valia ver a analisar todas as ocorrências e menções das Escrituras Sagradas da tradição judaico-cristã ao longo de toda a Encíclica, que se dão apenas no corpo do texto e nunca em nota de rodapé.

Entre as muitas coisas, salta aos olhos do leitor e chama a atenção o fato de que Francisco citou duas virtudes paulinas como caminho para a construção da fraternidade universal e da amizade social: a “ἀγαθωσύνη/benignidade” e a χρηστότης/bondade”, transliterando do grego para os caracteres latinos: agathosyne (FT, n. 112) e a chrestotes (FT, n. 223). Francisco não as traduz. Talvez pelo fato de que estes dois termos gregos bíblicos da koiné tenham uma gama de possibilidade de tradução para as línguas modernas, e ele não quis indicar apenas uma. Mas, embora os campos semânticos sejam bastante próximos, os dois termos têm suas nuances e diferentes possibilidades de tradução.

Se não bastasse isso, a ἀγαθωσύνη/agathosyne/benignidade” (FT, n. 112) é própria do homem e a χρηστότης/chrestotes/bondade” (FT, n. 223) é própria de Deus. Além disso, os autores examinados defendem que a bondade seria mais ativa que a benignidade, sendo como que o motor de tudo, tendo em Deus sua fonte e origem. Ambas são um dom divino, mas precisam ser abraçadas e praticadas pelo ser humano, no cotidiano da vida. Mais ainda, elas são um “καρπὸς τοῦ πνεύματός/fruto do Espírito” (Gl 5,22a) e não mero esforço humano. Ademais, Paulo afirma que “κατὰ τῶν τοιούτων οὐκ ἔστιν νόμος/contra estas coisas não exise lei” (Gl 5,23b).

Enfim, tanto a “ἀγαθωσύνη/benignidade” como a χρηστότης/bondade” fazem parte de uma lista de virtudes citadas por Paulo (Gl 5,22-23), na sequência de um catálogo de vícios (Gl 5,19-21), como é comum em seu epistolário. O “apóstolo dos gentios” (Rm 13,11) entende que a humanidade só vencerá os vícios praticando virtudes. Francisco parece ter isso bastante claro e indica que o caminho de construção da fraternidade e da amizade social passa pela correção dos vícios já arraigados na humanidade e pela prática das virtudes. Ou se trilha este caminho ou não se conseguirá a correção dos atuais desvios de falta de solidariedade entre as pessoas e entre os povos, pois ele é o caminho para a construção “da fraternidade e da amizade social”.

  • 1
    Desde o final do séc. XIX, a Igreja Católica emanou várias Encíclicas e Documentos Bíblicos, como, por exemplo: Leão XIII, Providentissimus Deus (1893); Bento XV, Spiritus Paraclitus (1920); Pio XII, Divino Afflante Spiritu, (1943); Pontifícia Comissão Bíblica, Sancta Mater Ecclesia (1964); Concílio Vaticano II, Dei Verbum (1965); Pontifícia Comissão Bíblica, A Intepretação da Bíblia da Igreja (1993); Pontifícia Comissão Bíblica, O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã (2001); Pontifícia Comissão Bíblica, Bíblia e Moral, Raízes Bíblicas do Agir Cristão (2008); Bento XV, Verbum Domini (2010); Pontifícia Comissão Bíblica, Inspiração e verdade da sagrada Escritura (2014); Pontifícia Comissão Bíblica, Che cosa è l’uomo? (2019).
  • 2
    Vários e renomados são os centros de estudos bíblicos que a Igreja Católica criou entre o final do séc. XIX e início do séc. XX: a) em 1890: École Biblique de Jérusalem (dominicanos); b) em 1909: Pontificio Instituto Biblico de Roma (Jesuítas); c) em 1927: Pontificio Instituto Biblico de Jerusalém (jesuítas); d) em 1901: Ateneo e Facoltà de Sciencie Bibliche e Archeologiche de Jerusalém (franciscanos); e) em 1955: Instituto Español Bíblico y Arqueológico de Jerusalém, Casa de Santiago (ligado à Universidad Pontificia de Salamanca).
  • 3
    No que tange à Animação Bíblica da Pastoral, a Igreja Católica tem publicado documentos ou realizado eventos como: a) em 2007, o Documento de Aparecida, nn. 99 e 248; b) em 2008, o Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus (Vaticano, com Bento XVI); c) em 2010, a Constituição Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, n. 73, de Bento XVI; d) em 2010, o subsídio doutrinário número 5 da CNBB: Presbítero, anunciador da Palavra de Deus, educador da fé e da moral da Igreja; e) em 2011, o Documento 94 da CNBB, resultado da 49ª Assembleia dos Bispos: Igreja: lugar de animação bíblica da vida e da pastoral, os n. 44 e 45, do Item 3.3; f) em 2011, o I Congresso de Animação Bíblica da Pastoral (de 8-11 de outubro, em Goiânia/GO); g) em 2012, o Documento 97 da CNBB, resultado da 50ª Assembleia dos Bispos, em seu Cap. II, Nossa Reposta à Palavra, item 2.1: A Busca e o Encontro; item 2.2: A Animação Bíblica da Pastoral, o que é?; item 2.3: A Animação Bíblica da Pastoral, como ocorre? Desenvolve a temática a partir dos três eixos inspirados na metáfora bíblica de At 8,26-40 (Filipe e o Eunuco de Candace): eixo da formação (conhecimento e interpretação da Palavra), eixo da oração (oração com Palavra e Comunhão) e eixo do anúncio (evangelização e proclamação da Palavra), nn. 21-66; h) em 2013, a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, que não trata da Animação Bíblica da Pastoral, mas fala da Palavra de Deus e da Homilia (nn. 145-159); i) Em 2021, o Estudo 114 da CNBB, resultado da 58ª Assembleia Geral dos Bispos: “A Palavra habitou entre nós” (Jo 1,14) Animação Bíblica da Pastoral a partir das comunidades eclesiais missionárias. Em seu Cap. II: “É tempo de semear”, item 2.3, o estudo retoma a temática “Animação Bíblica da Pastoral: do que estamos falando, do que se trata, o que propõe, o que nos cabe fazer”; cita a expressão “Animação Bíblica” por 99 vezes e dedica seu último capítulo (Cap. VII) à “Animação Bíblica da Pastoral e sua implantação” nos níveis nacional, diocesano, local e virtual (novos tempos, provocados sobretudo pela pandemia do novo coronavírus, o covid-19). No que diz respeito à produção no campo da Animação Bíblica da Pastoral na América Latina e no Caribe, para consultas, indicamos o site https://c-b-f.org/es/Materiales/Publicaciones-FEBIC/Orientaciones
  • 4
    O método é atribuído ao monge Guigo, italiano, que, por volta de 1150 d.C., pode ser usado para o estudo, a meditação, a oração etc. No diálogo com Deus, busca-se o crescimento na espiritualidade e intimidade com a Palavra de Deus, desenvolve-se um caminho a ser percorrido em cinco degraus: lectio, meditatio, oratio, contemplatio et actio (leitura, meditação, oração, contemplação e ação), tendo presente que “a leitura leva a comida sólida à boca, a meditação mastiga e rumina-a, a oração prova o seu gosto e a contemplação é a própria doçura que alegra e recria”.
  • Adendo

    Este documento possui um adendo: https://doi.org/10.20911/21768757v54n3p852/2022

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2022
  • Aceito
    14 Abr 2022
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