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ANTROPOFAGIA E TEOLOGIA

Antropophage and Theology

RESUMO

2022 é marcado por duas comemorações importantes no Brasil: os 200 anos de sua independência (dia 7 de setembro) e os 100 anos da Semana de Arte Moderna (13-17 de fevereiro). Embora remetam a eventos distintos, essas comemorações são uma ocasião favorável para de novo perguntar-se sobre o Brasil e os brasileiros, sua história, identidade, destino. Dentre os protagonistas da Semana, Oswald de Andrade foi, sem dúvida, um dos mais provocativos, tendo elaborado, nos anos que se seguiram, uma teoria sobre o Brasil e os brasileiros a partir da metáfora da antropofagia. Após alguns esclarecimentos metodológicos, o presente estudo apresenta o pensamento antropofágico oswaldiano, identificando em sua busca do “humanum” alguns elementos de uma possível “correlação mutuamente crítica” entre esse “clássico” do pensamento brasileiro e a teologia cristã.

PALAVRAS-CHAVE
Correlação mutuamente crítica; Clássico; Brasil; Semana de Arte Moderna; Antropofagia

ABSTRACT

2022 is marked by two important celebrations in Brazil: the 200th anniversary of its independence (September 7) and the 100th anniversary of the Modern Art Week (February 13-17). Although they refer to distinct events, these celebrations are a favorable occasion to ask again about Brazil and Brazilians, their history, identity, and destiny. Among the protagonists of the Week, Oswald de Andrade was undoubtedly one of the most provocative. He developed, in the years that followed, a theory about Brazil and Brazilians based on the metaphor of anthropophagy. Following some methodological clarifications, the present study presents Oswald’s anthropophagic thought, identifying in his search for the “humanum” some elements of a possible “mutually critical correlation” between this “classic” of Brazilian thought and Christian theology.

KEYWORDS
Mutually critical correlation; Classic; Brazil; Modern Art Week; Anthropophagy

Introdução

Duas comemorações importantes marcam o ano de 2022: os 200 anos da Independência do Brasil (07/09/1822) e os 100 anos da Semana de Arte Moderna (13-17/02/1922). Essas datas, apesar de recordarem acontecimentos distintos da vida nacional, apontam respectivamente para o surgimento de uma “identidade” social, política e cultural nacional, e para o questionamento dos padrões estéticos a partir dos quais essa identidade era dita. De fato, após a Independência, aos poucos se constituíram uma literatura e um pensamento brasileiros, expressos de diversas maneiras ao longo do século XIX, por autores e obras que tentaram dizer o que “faz o brasil, Brasil?”1 1 Título de uma das obras de MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. . Um século depois, sob o influxo de vanguardas artísticas europeias, num gesto crítico e transgressivo, teve início um novo esforço por dizer a brasilidade, impactando de muitos modos a reflexão do país.

Ao longo dos últimos dois séculos, muitos poetas, artistas e intelectuais se perguntaram sobre quem é o Brasil e os brasileiros. Não é intenção do presente estudo debruçar-se sobre as respostas que eles deram a tais perguntas. Ele pretende, em diálogo com a teologia cristã, revisitar uma das metáforas mais provocativas para dizer a identidade nacional surgida após a Semana de Arte Moderna: a da antropofagia. O texto que servirá como guia para uma compreensão do significado dessa metáfora será “Antropofagia ao alcance de todos”, de Benedito Nunes, que introduz o Volume VII das Obras completas de Oswald de Andrade. Embora utilizada em várias áreas do saber, como a literatura, a música, as artes plásticas, as ciências sociais, a filosofia, a gastronomia etc., essa metáfora é quase ausente na reflexão teológica do país, com exceção da tese doutoral do próprio autor deste estudo, defendida em 2002. O retorno a ela, 20 anos depois, não é motivado por revisão bibliográfica, mas pela convicção de que a antropofagia ainda não fecundou suficientemente a reflexão teológica nacional, dando-lhe maior enraizamento e autonomia.

O percurso proposto inicia com considerações sobre o método utilizado, o da correlação, que permitirá, em seguida, analisar a trajetória da metáfora da antropofagia, para, num terceiro momento, indicar algumas de suas “traduções” na reflexão teológica brasileira, além de apontar as tarefas que ainda restam pendentes na recepção dessa metáfora no fazer teológico nacional, que aponta, em parte, a tarefas pendentes da fé cristã no Brasil.

1 A teologia como “conversação” ou “correlação crítica” entre “clássicos”

A razão e a subjetividade modernas estão na origem do conhecimento e do domínio dos distintos âmbitos da realidade, que levaram à fragmentação do conhecimento e à suspeita frente ao saber que não se encontra nas coordenadas do espaço e do tempo, como é o caso do saber religioso. Isso provocou muitas disputas, que culminaram no divórcio entre razão e fé, cuja tradução, no âmbito político, é a secularização e a separação entre Estado e Igreja, produzindo, em muitos países, a exclusão da teologia do mundo da academia. Diante disso, a teologia fez uma profunda revisão de sua epistemologia e dos métodos que utilizava para dizer o mistério cristão de modo significante e relevante. No século XIX, enquanto o pensamento católico acentuou o divórcio entre razão e fé, opondo, pela neoescolástica, natural e sobrenatural, o mundo protestante, com F. Schleiermacher, buscou, pelo método da correlação, estabelecer um diálogo entre cristianismo e cultura moderna. No século XX, esse método foi retomado, entre outros, por P. Tillich, em perspectiva existencial, E. Schillebeeckx, em diálogo com a cultura secular, e D. Tracy, tendo em vista o pluralismo contemporâneo. A seguir será apresentado o enfoque dado por esses autores ao método de correlação, que guiará a leitura da relação, proposta neste estudo, entre as questões provindas da cultura brasileira nos últimos 100 anos e a teologia.

Segundo Marc Dumas, em dois textos que escreveu sobre a teologia da correlação, para Schleiermacher, a teologia deve responder a duas condições se quiser resolver o problema da fé cristã na modernidade: 1. A “da autonomia do cristianismo e da cultura”; 2. A “da reciprocidade ou de sua dependência mútua”. Essas condições asseguram, por um lado, “cada um dos membros da polaridade”, ou seja, o cristianismo e a modernidade, e, por outro, sua “dependência mútua”. Seu esforço foi o de não isolar cada um dos termos, pois o isolamento significaria o empobrecimento da religião e da cultura. O desafio que ele legou, porém, à posteridade, observa Dumas, foi o “de precisar a natureza da contribuição mútua de cada um desses dois polos” (DUMAS, 2004aDUMAS, M. Corrélations d’expériences? Laval theologique e philosophique, Québec, v. 60, p. 317-334, 2004a., p. 320; DUMAS, 2004bDUMAS, M. Corrélation – Tillich et Schlillebeeckx. In: ROUTHIER, G.; VIAU, M. Précis de théologie pratique. Montréal; Bruxelles: Novalis; Lumen Vitae, 2004b. p. 71-83., p. 72).

Numa perspectiva existencial, P. Tillich foi um dos teólogos que, no século XX, buscaram responder a esse desafio, aprofundando o método da correlação. Segundo ele, esse método não foi invenção sua, já que é “tão velho quanto a teologia”, tendo como função articular a “verdade eterna da mensagem cristã” e a “situação temporal na qual ela deve ser recebida”, ou seja, “explicar os conteúdos da fé cristã colocando em interdependência mútua as questões existenciais e as respostas teológicas” (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 89). A situação em questão é a “totalidade da interpretação criadora que o ser humano faz de si mesmo num período particular” (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 19). Tal interpretação concerne a existência e se encontra em várias formas teóricas ou práticas da cultura. Nesse sentido, pode-se dizer que o ser humano é a questão que ele põe sobre si, antes mesmo de a formular. De fato, muito cedo na história da humanidade, como atestam os mitos, e muito cedo na vida de cada indivíduo, como indicam as perguntas feitas pelas crianças, emerge a interrogação sobre o próprio ser. Essa interrogação diz respeito à “preocupação última” (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 29), cuja resposta se encontra nos distintos tipos de discurso, dentre os quais se destacam os das religiões. No cristianismo, eles provêm dos eventos reveladores que os fundam e que a teologia sistemática recebe das fontes (bíblia, história da Igreja, história da religião e da cultura), através do médium (experiência pela qual a fonte fala em cada tempo e lugar) e sob a norma (o que resulta do encontro entre a fonte e o médium, a saber, o credo e a história de fé das igrejas cristãs) (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 94).

A correlação, segundo Tillich, se dá entre a mensagem da fé cristã e a situação existencial. Para a análise da situação humana, a teologia utiliza todos os materiais disponibilizados pela “autointerpretação criativa do ser humano em todos os domínios da cultura”. Para isso, contribuem a filosofia, mas também a “poesia, o teatro, o romance, a psicologia terapêutica e a sociologia”. O teólogo organiza esses materiais em relação com a resposta dada pela mensagem cristã (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 93). Segundo Tillich, são cinco as principais questões existenciais relacionadas à preocupação última, cada uma tratada numa das partes da teologia sistemática: 1. A questão da contradição ou da alienação, que analisa a estrutura essencial do ser humano e as questões que implicam sua finitude e a finitude em geral, tendo resposta em Deus, por isso essa parte é denominada “O ser e Deus”; 2. A autoalienação existencial do ser humano, cuja resposta é Cristo, abordada na segunda parte chamada “A existência e o Cristo”; 3. Análise do ser humano vivente, em união com a vida em geral e a questão das ambiguidades da vida, que tem sua resposta no Espírito, objeto da terceira parte: “A vida e o Espírito”; 4. Análise da racionalidade do ser humano e das questões implicadas na finitude, na autoalienação e nas ambiguidades da razão, cuja resposta é a revelação, tratada na quarta parte: “Razão e revelação”; 5. O aspecto histórico da vida, que trata da existência histórica do ser humano e das questões que implicam as ambiguidades da história, cuja resposta é o Reinado de Deus, sendo abordada na quinta parte: “A história e o Reinado de Deus” (TILLICH, 2000TILLICH, P. Théologie systématique I. Introdction première partie: Raison et révélation. Paris; Genève; Laval: Cerf; Labor et Fides; Les Presses de lv’Université Laval, 2000., p. 96-99).

O método da correlação em Schillebeeckx tem em conta as sociedades secularizadas, para as quais Deus nem sempre emerge como questão. A relação entre situação e mensagem, tal como foi posta por Tillich, possui, segundo o teólogo de Nimega, um caráter situado e histórico, condicionado pela época, não podendo, por isso, receber respostas de outra época. Nesse sentido, a contemporaneidade levanta a questão das condições de uma vida religiosa e de uma vida cristã, e a de um discurso sobre Deus que seja significante para a situação na qual é feita a teologia. O método da correlação, observa Schillebeeckx, busca articular a resposta cristã à problemática de cada época. No mundo secular, trata-se de tornar Deus significante quando ele desaparece do horizonte da experiência da cultura. A correlação não pode mais então ser, como em Tillich, entre questões existenciais e respostas da revelação. Na verdade, as questões humanas devem primeiro receber uma resposta humana, antes de escutar uma palavra religiosa. Por isso, a resposta cristã não esclarece e aprofunda a questão humana, mas lhe mostra um “mais de Deus” no coração das respostas do mundo, que é da ordem da gratuidade. De fato, diante da ambiguidade da história do mundo, a oferta desse mais de Deus ultrapassa a busca humana de sentido, ela é uma oferta de salvação, o Cristo, o humanum autêntico, a correlação por excelência.

Antes, portanto, de situar as respostas no horizonte da revelação, Schillebeeckx propõe que elas sejam respondidas no horizonte da própria experiência humana. Para isso, ele propõe uma “correlação mutuamente crítica”, que supõe, por um lado, a busca crítica da resposta à própria questão no seio da mesma experiência, e, por outro, o confronto, também crítico, com a narrativa cristã. Essa correlação implica: 1. “Uma análise do mundo atual ou dos mundos de experiências”; 2. “Uma análise das estruturas constantes da experiência cristã fundamental das quais falam o Novo Testamento e a tradição”; 3. Uma “correlação crítica” entre a primeira e a segunda. Para o teólogo de Nimega, quatro elementos, presentes na experiência de base do Novo Testamento, podem estruturar a experiência da fé cristã hoje: 1. Os princípios antropológico e teológico, que afirmam que Deus quer salvar o ser humano; 2. A mediação cristológica, segundo a qual Jesus revela perfeitamente a Deus; 3. A mensagem e a vida da Igreja, para a qual a aventura de Deus, proposta na narrativa cristã, concerne ainda hoje a humanidade, podendo dar-lhe sentido; 4. A realização escatológica, que afirma ser preciso crer que a história possui uma plenitude escatológica. A correlação mutuamente crítica entre as experiências humanas e as da narrativa cristã conduz a relações de convergência e divergência entre uma e outra, levando à rejeição ou à conversão (SCHILLEBEECKX, 1980SHILLEBEECKX, E. Interin Report on the Books Jesus and Christ. London: SCM Press, 1980., apud DUMAS, 2004bDUMAS, M. Corrélation – Tillich et Schlillebeeckx. In: ROUTHIER, G.; VIAU, M. Précis de théologie pratique. Montréal; Bruxelles: Novalis; Lumen Vitae, 2004b. p. 71-83., p. 81).

D. Tracy, tendo em conta o pluralismo, como marca da cultura do final do século XX, também fala de “correlação mutuamente crítica” entre dois polos, por ele denominados: 1. “Situação contemporânea”, captada a partir da noção de “públicos”; 2. “Tradição religiosa”, captada a partir da noção de “clássico”. Duas teses guiam sua reflexão sobre o primeiro polo: 1. “[...] toda teologia é discurso público” (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 19); 2. “Todo teólogo se dirige a três realidades sociais distintas e relacionadas: a sociedade mais ampla, a academia e a Igreja” (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 23), uma delas tendo a primazia em sua reflexão, mas implicando sempre as demais. Para o teólogo de Chicago, o público “sociedade” engloba fundamentalmente três domínios: o tecno-econômico, o político e o cultural, cada um levantando questões de sentido para a existência humana, relacionadas, em geral, com as ambiguidades constitutivas de cada um desses três domínios. O público “academia” remete ao “locus” fundamental no qual se elaboram o método e o discurso científico: a universidade, com as questões trazidas pelas distintas disciplinas da ciência e da filosofia. O público “Igreja”, comunidade de pertença e de interlocução do/a teólogo/a, é habitado pelas questões específicas da fé. Cada um desses públicos dá origem a um tipo de discurso: a sociedade, à teologia prática; a academia, à teologia fundamental; a Igreja, à teologia sistemática. Em cada discurso é necessário assumir as pretensões ao sentido e à verdade, típicos do respectivo público ao qual se refere e com o qual dialoga.

Os três “públicos” dos quais emerge a situação contemporânea, são confrontados, através das teologias prática, fundamental e sistemática, pelos “clássicos cristãos”, estabelecendo com eles uma conversação ou diálogo, que é sempre uma interpretação, que lê os clássicos e é lida por eles, deixando-se enriquecer por seu “excesso de sentido” (TRACY, 2012TRACY, D. A teologia na esfera pública: três tipos de discurso público. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 44, n. 122, p. 29-51, jan./abr. 2012., p. 33-44). São candidatos a clássicos, diz o autor, textos, eventos, imagens, rituais, símbolos e pessoas, reconhecidos como revelação de uma realidade na qual se identifica a verdade, ou seja, algo valioso, que desvela o real e pode ser tido como um momento de “reconhecimento” da verdade, por surpreender, provocar, desafiar e transformar o que é convencional e expandir o senso para o possível (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 153). Oriunda da estética, a noção de clássico supõe uma capacidade, por parte de seu intérprete, de “entrar no jogo”, descentrando sua subjetividade e produzindo nela uma real transformação. Nesse sentido, o clássico possui um caráter público e paradigmático, e torna-se então normativo.

Os clássicos, observa Tracy, são ao mesmo tempo marcados pela permanência e pelo excesso de sentido, demandando sempre interpretação, que implica um risco criativo. No caso dos clássicos religiosos, arriscar a própria interpretação é arriscar “entrar no mais perigoso de todos os diálogos”, pois “neles são postas as mais sérias questões sobre o sentido da existência”, codificado “nas perguntas e respostas dos textos, eventos, imagens, símbolos, rituais e pessoas religiosas clássicas”. De fato, toda religião funciona de uma “maneira ambígua”, possuindo um poder de “sustentar o mundo” e, nesse sentido, podendo “abençoar o status quo”, e um “poder criador do mundo”, liberando forças poderosas em favor do bem, ou realidades selvagens, mesmo demoníacas (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 203. 204. 205). As religiões são objeto de estudo de antropólogos culturais, cientistas sociais, psicólogos e historiadores, filósofos e teólogos, ganhando, nesses últimos, pretensões a sentido e verdade. A teologia fundamental as capta como um “evento de desvendamento, expressão do “limite de”, do “horizonte para”, do “fundamento para” da realidade. O específico do clássico religioso é “uma alegação de verdade como evento de descobrimento-encobrimento do todo da realidade mediante o poder do todo, como, em certo sentido, um mistério radical e, em última análise, gracioso” (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 221).

A experiência religiosa, continua Tracy, é alguma experiência do todo, “sentida como a automanifestação de um poder inegável”, que não depende de quem a faz e “não é articulada na linguagem da certeza e da clareza, mas na do escândalo e do mistério”. Quem faz tal experiência, recorre, para dela falar, a uma linguagem do tipo “libertação”, “emancipação”, “totalidade”, “salvação”. Enquanto evento de revelação, ela é captada, ao mesmo tempo, como participação no todo e encobrimento de tal participação, ou, nos termos de Rudolf Otto, como “fascinação, confiança, medo e temor reverente”. No âmbito da teologia cristã, essa experiência é expressa somente na linguagem dialética da teologia sistemática. Para essa linguagem, quando predomina o sentido de participação radical, a expressão religiosa será denominada “manifestação” e sua tradução, nas escrituras bíblicas, encontra-se, sobretudo, nos textos dos sacerdotes, místicos e sábios. Quando predomina a forma de um senso de não participação radical, a expressão religiosa será denominada “proclamação”, aparecendo nas Escrituras Judaicas, sobretudo, nos textos prescritivos e proféticos. Nas igrejas cristãs, a primeira experiência aparece sob a rubrica do “sacramento”, como o mostra, de modo particular, o catolicismo e a ortodoxia, e a segunda, na da “palavra”, mais forte no protestantismo (TRACY, 2006TRACY, D. Imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Unisinos, 2006., p. 241. 249. 267).

O método da correlação, esboçado por Schleiermacher, e suas distintas versões em Tillich, Schillebeeckx e Tracy, oferece pistas para o diálogo entre razão moderna e fé cristã. O sobrevoo sobre a compreensão que cada autor tem do método, mais que informar de modo exaustivo sobre a especificidade e os limites de cada um, visava trazer os elementos que parecem mais inspiradores para a correlação, proposta neste estudo, entre cultura brasileira e teologia frente às questões levantadas pelas comemorações de 2022. O que reter de cada um? De Schleiermacher, o princípio da autonomia dos elementos da correlação (cultura moderna e fé cristã), e a interdependência entre ambos. De Tillich, as portas que ele propõe para aceder à cultura (perguntas existenciais e mediações através das quais captá-las) e à fé cristã (respostas da mensagem da revelação, através da fonte, do médium e da norma). De Schillebeeckx, a correlação mutuamente crítica entre problemática e resposta, valorizando as respostas dadas em toda busca do “humanum” e abrindo-as à gratuidade do mais de Deus. Enfim, de Tracy, a perspectiva da pluralidade de públicos e discursos, e a conversação que devem estabelecer com os clássicos cristãos.

2 A “antropofagia”: clássico da busca do “humanum” no Brasil

Os primeiros séculos da história do Brasil foram marcados pelo processo colonial, no qual, através de vários ciclos econômicos e socioculturais, inúmeros povos autóctones foram eliminados ou submetidos, milhões de homens e mulheres trazidos da África foram transformados em escravos, construindo uma sociedade patriarcal, escravocrata, unida pela língua, instituições e tradições de origem lusitana. A Independência, cujo bicentenário se comemora em 2022, apesar de criar uma primeira identidade nacional, não mudou significativamente as condições da maior parte da população brasileira, pois o período imperial manteve o sistema escravocrata até 1888, e a República, proclamada em 1899, não deu aos que foram libertos terras e condições de serem reconhecidos como cidadãos, mas incentivou o “branqueamento” da população, através da imigração europeia.

Ao longo do século que se seguiu à Independência, vários intérpretes tentaram dizer “o que faz o brasil, Brasil?”, em distintas áreas do saber, com destaque para a literatura. O romantismo, inicialmente com Gonçalves Dias e José de Alencar, elegeu a terra e seus povos originários como heróis da gesta nacional. Em seguida, com Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves e Sousândrade, a nova fase romântica explorou o pessimismo e a liberdade. O realismo, marcado pelo objetivismo e a busca pela verdade dos fatos, explorou temas sociais, urbanos e cotidianos, como aparece nas obras de Machado de Assis, Raul Pompeia, Visconde de Taunay. O naturalismo, também interessado em apresentar um retrato fidedigno da realidade, se fixou na descrição da realidade, privilegiando o lado patológico de certos personagens, como aparece em Aloísio de Azevedo. O parnasianismo, surgido no final do século XIX, buscou a perfeição das formas, seguindo o princípio da “arte pela arte”, como aparece em Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Valorizando o subjetivismo, o misticismo e a imaginação, o simbolismo buscou entender a alma humana, exaltando a realidade subjetiva, como em Cruz e Souza, Alphonsus de Guimarães e Augusto dos Anjos. Nas primeiras décadas do século XX, o pré-modernismo rompeu com o academicismo anterior, valorizando várias figuras da cultura nacional, como, entre outros, o fazem Euclides da Cunha, Lima Barreto, João Ribeiro, Graça Aranha (BOSI, 1994BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994., p. 140-522).

O modernismo, que tem nos protagonistas da Semana de Arte Moderna um de seus marcos fundadores, caracteriza-se por uma série de rupturas que, segundo Henrique Cláudio de Lima Vaz, conduzem, pela primeira vez, à conjunção do “tempo histórico no tempo lógico”, dando origem a um pensamento genuinamente nacional. Até então, grande parte da produção intelectual brasileira repetia mimeticamente o que se fazia na Europa. A partir de 1922, a filosofia social e a filosofia política adquiriram um significado até então desconhecidos. O mesmo ocorreu com a “prática do discurso historiográfico”, que implicou e exigiu a reflexão filosófica; com a literatura, que se tornou um dos caminhos que levou “mais longe” a “busca da elucidação da pergunta” por essa experiência de humanidade chamada Brasil; com a “leitura científica da natureza” “socialmente significativa” e os “problemas filosóficos levantados pela ciência moderna”, entendidos como “problemas nascidos no terreno de uma prática social” (VAZ, 1984VAZ, H. C. de L. O problema da filosofia no Brasil. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 11-25, 1984., p. 15. 22. 23).

Dentre os organizadores da Semana de Arte Moderna, Oswald de AndradeANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. foi quem propôs uma das teses mais inusitadas sobre o “que faz o brasil, Brasil?”. No Manifesto Antropófago, de 1928, ou seja, alguns anos depois do evento de 1922, ele afirma que só a antropofagia “une socialmente, economicamente e filosoficamente” os brasileiros. Essa tese, transgressiva, incômoda e provocativa, alimentou várias interpretações do país no último século, podendo, por isso mesmo, ser tomada como um dos “clássicos” do qual extrair as questões e respostas existenciais, sociais e culturais que expressam a busca do “humanum” no contexto nacional, a partir das quais estabelecer a correlação mutuamente crítica com o “mais de Deus” das perguntas e repostas dos clássicos cristãos, a ser feita na última parte deste estudo. Benedito Nunes, no texto “Antropofagia ao alcance de todos”, que prefacia o Volume VI das Obras completas do grande autor modernista, oferece uma boa análise da gênese, significado e evolução da tese oswaldiana, trazendo, a esse título, os elementos a partir dos quais interpretar esse “clássico” da brasilidade.

Após a fase modernista, com os Manifestos Pau Brasil (1924) e Antropófago (1928), Oswald de Andrade, segundo Benedito Nunes, abjura ao “sarampão antropofágico” e adere, em 1933, ao marxismo, voltando, após 1945, à antropofagia e dedicando-se à filosofia, com a retomada das intuições da fase modernista e a elaboração da obra A crise da filosofia messiânica (1950) com sua concepção filosófica do mundo, que aprofunda nos textos reunidos na obra póstuma A marcha das utopias (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xv-xvii).

Segundo Benedito Nunes, as vanguardas modernistas do início do século XX, com as quais se identificou Oswald de Andrade, buscaram as “origens concretas e metafísicas da arte” nos sentimentos ou na descarga das emoções do primitivismo (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xviii-xix). Para elas, o originário se identificava com o “sobressalto étnico”, presente no caráter mitopoético do pensamento selvagem, “que participa da lógica do imaginário, e que é selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado”. Isso aparece no Manifesto Pau Brasil, através da exploração dos “estados brutos da alma coletiva” e da simplificação e depuração formais, que fazem emergir “a originalidade nativa” em fatos de natureza pictórica (“Os casebres de açafrão e de ocre nas favelas”), folclórica (“O carnaval”), histórica (“Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil”), étnica (“A formação étnica rica”), econômica (“Riqueza vegetal. O minério”), culinária (“A cozinha. O vatapá”) e linguística (“A contribuição milionária de todos os erros”). Trata-se de “um programa de reeducação da sensibilidade” e de “uma teoria da cultura brasileira”, que explora a originalidade, o choque, a surpresa, que “ensina o artista a “ver com olhos livres os fatos que circunscrevem sua realidade cultural”, valorizando-os poeticamente, sem excetuar os populares e etnográficos”. Nasce assim uma teoria crítica da cultura nacional, “focalizada na oposição entre seu arcabouço intelectual de origem europeia”, presente no “idealismo doutoresco de sua camada ilustrada, e o amálgama de culturas primitivas, como a do índio e do escravo negro”. O Manifesto explora isso ao falar do “lado doutor”, “importado”, “imitativo”, “bacharelesco”, com “mania de citações”, encarnado pela “prática culta da vida”, comum a juristas e gramáticos, aos quais opõe o “amálgama primitivo”, a “originalidade nativa” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xix-xxii).

O ideal do Manifesto, continua Benedito Nunes, é “conciliar a cultura nativa e a cultura intelectual”, a “floresta e a escola”, num composto “híbrido que ratificaria a miscigenação étnica do povo brasileiro”, associando a “originalidade nativa aos componentes mágicos, instintivos e irracionais da existência humana” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxiv). O mesmo estilo e espírito marcam o Manifesto antropófago, misturando “imagens e conceitos”, a provocação polêmica à proposição teórica, a piada às ideias, a irreverência à intuição histórica, o gracejo à intuição filosófica”. A palavra antropofagia, invocada no início do Manifesto para falar do que une os brasileiros, funciona como “instrumento de agressão pessoal e arma bélica de teor explosivo”, e desempenha um papel “catalizador, reativo e elástico”, mobilizando negações ao redor da prática da devoração antropofágica, “símbolo cruento, misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de flagelação pública, como sucedâneo verbal da agressão física a um inimigo de muitas faces, imaterial e proteico”. Dentre essas faces, são objeto da crítica oswaldiana, o “aparelhamento colonial político-religioso repressivo”, que deu origem ao país; a “sociedade patriarcal”, com seus “padrões morais de conduta”, suas “esperanças messiânicas”; a retórica imitativa de sua intelectualidade, curvada ao estrangeiro; o “indianismo”, visto como “sublimação das frustrações do colonizado, que imitou atitudes do colonizador” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxv).

No Manifesto, a antropofagia é, segundo Benedito Nunes, “símbolo da devoração” e funciona como “metáfora, diagnóstico e terapêutica” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxv): metáfora, por se inspirar na cerimônia guerreira dos tupis, que imolavam o inimigo valente, preso em combate, e o devoravam, absorvendo o que deve ser repudiado, assimilado e superado, em vista da conquista da autonomia intelectual; diagnóstico, por descobrir na repressão colonizadora, começada com o interdito jesuíta do ritual tupi, a incapacidade de pensar por si; terapêutica, por fazer da reação violenta e sistemática contra os mecanismos geradores da mentalidade colonizada, cuja causa exemplar é a catequese, uma “catarse imaginária do espírito nacional”, tornando-se “tônico reconstituinte para a convalescença intelectual do país” e “vitamina ativadora de seu desenvolvimento futuro”. A palavra “antropófago” é utilizada no texto oswaldiano com sentido emocional, exortativo e referencial, e tem em vista duas pautas semânticas: a etnográfica, remetendo aos tupis no período anterior à colonização; e a histórica, apontando para a “prática de rebeldia individual” contra os interditos e tabus da sociedade brasileira (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxvi).

É impossível, diz Benedito Nunes, expor o conteúdo do Manifesto de modo a esgotar as intuições de suas imagens e trocadilhos. Para efeitos de análise, ele propõe distinguir no texto um tríplice plano: o da “simbólica da repressão ou da crítica da cultura; o histórico-político da revolução caraíba; e o filosófico, das ideias metafísicas”. O primeiro emerge das oposições que dividem a sociedade brasileira, “polarizando a sua religião, a sua moral e o seu direito, a partir de uma primeira censura, a da Catequese”, feita pelo cristianismo, e a do Governo Geral, feita pelas Ordenações. De fato, a conquista espiritual, obra dos jesuítas, “conjugada ao poder temporal dos mandatários da Coroa”, modelou o “código ético do Senhor de Engenho, patriarca, dono de escravos, reinando sobre a Senzala e a Casa Grande”. Contudo, o que resultou dessa conjunção é aparente, pois o paganismo tupi ou africano “subsiste como religião natural na alma dos convertidos”; a moral sexual envergonhada, desconhecida dos indígenas e praticada pelo Senhor na Casa Grande, tornou-se, no mesmo Senhor, desenfreada e “sem-vergonha” na Senzala; sob o parlamentarismo do império reina “o poder real do tacape”; por detrás do “verniz das instituições” dominam a política e a economia primitivas; e, “sob os ouropéis da literatura e da arte”, se encontram a “imaginação e a lógica do indígena” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxvii).

Todas essas oposições são atravessadas por uma única contradição, que passa pelo “eixo da simbólica da repressão, com seus emblemas e seus símbolos míticos”, que se traduzem em “fixações psicológicas e históricas” da cultura intelectual do país. Seus emblemas são “personalidades e situações consagradas”: Antônio Vieira, com a retórica e a eloquência; Anchieta: com o fervor apostólico e a pureza; Goethe: com o senso do equilíbrio e a plenitude da inteligência; Mãe dos Gracos: com a moral severa e o culto à virtude; Corte de D. João VI: com a dominação estrangeira; João Ramalho: com o patriarcado. A esses emblemas, tornados mitos culturais, opõem-se os “símbolos míticos propriamente ditos”: “Sol, Cobra grande, Jaboti, Jacy, Guaracy”, tirados das “reservas imaginárias do inconsciente primitivo”, e podendo, por isso, quando lançados contra os primeiros, catalisar “a operação antropofágica, devoradora dos emblemas de uma sociedade para transformar “o tabu em totem”, liberando assim a consciência coletiva para “seguir os roteiros do instinto caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem: o pleno ócio, a festa, a livre comunhão amorosa”, “sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxviii).

A rebelião individual está ao serviço da rebelião caraíba e expressou-se em todas as revoluções, da burguesa à surrealista, assumindo, portanto, a paternidade de todas. Nesse sentido, segundo o autor do Manifesto, Montaigne e Rousseau se inspiraram no modelo tupi para falar da sociedade primitiva, identificada com “a mítica idade de ouro, matriarcal e sem repressão, cuja violência se descarregaria no ritual antropofágico”, responsável por transformar o tabu em totem. Oswald de Andrade retoma essa ideia à obra de Freud, Totem e tabu, que explica a passagem da natureza à cultura, e a articula com a “imagem digestiva” do “homem como animal de presa”, utilizada na obra Genealogia da moral, de Nietzsche. Por sua vez, a menção à “barbárie técnica da era do chauffeur” é de Keyserling, na obra O mundo que nasce, e é vista como “prenúncio da abundância dos bens de consumo garantida pelo desenvolvimento tecnológico da produção”. Esses elementos já incluem o plano de uma filosofia da antropofagia, que norteará a elaboração posterior do pensamento do autor, através da ratificação da “metafísica bárbara”, repelida por Graça Aranha na obra A estética da vida, na qual identificava a imaginação brasileira, herdada dos povos originários e africanos, a “uma floresta de mitos”, que devia ser sobreposta pela reativação da herança latina da cultura nacional (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxx, xxxi, xxxii).

A antropofagia, como metafísica bárbara que assume o terror primitivo, é aprofundada ao longo dos anos. Inicialmente, através da discussão do conjunto da teoria, que concebe o instinto antropofágico, do qual deriva a própria libido, como “vínculo orgânico e psíquico ligando o ser humano à terra”, vínculo que nasce do “sentimento órfico”, convertido nas obras de maturidade do autor em “sentimento existencial de abandono do ser no mundo”. Esse sentimento se manifesta, primeiro, na “consciência do sagrado, entendido como “entidade estranha e hostil”, “tabu supremo e interdito transcendente”. Em seguida, ele aparece na “atitude devorativa pela qual o selvagem, graças ao ritual canibalístico, incorporava, num ato de extrema vingança, a alteridade inacessível dos seus deuses”, trazendo-os para a terra e estabelecendo com eles uma convivência familiar como a que os tupis tinham com Guaracy e Jacy. O paradoxo dessa metafísica, observa Benedito Nunes, é que ela parte de “um profundo ateísmo” para “chegar à ideia de Deus”. Nela, a religião aparece com um sentido prático, “como instrumento de adaptação vital”, nos moldes de William James. Quanto ao ser humano, como em Nietzsche, ele é visto como dominador da natureza, tendo na “vontade de poder” a “força primordial de seu ethos”. Essa força é ambígua e faz dele um “rebelde generoso” ou um “guerreiro cruel”, em “contínua adaptação biopsíquica, reagindo contra o meio e criando seu ambiente”, que o limita, porém, às coordenadas do espaço em que habita, fazendo dele um ser “localista e tribal”. É nos limites desse espaço que o ser humano se converte no “bárbaro tecnizado”, “ávido de progresso e utilizando-se da máquina para acelerar a sua libertação moral e política”, que o levará à criação de um “novo estado de natureza”, visto como uma volta à “infância da espécie”, numa “sociedade matriarcal” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxxiii, xxxiv).

O período que se seguiu à Semana, não foi marcado somente pelo radicalismo crítico de Oswald de Andrade, mas viu também surgir o Movimento Verde-Amarelo, composto por Menotti del Pichia, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Em 1927, o Movimento passou a se chamar Escola da Anta. Para esse grupo, os tupis também eram a referência para se pensar a brasilidade, pois a “transfusão” de seu sangue no colonizador deixou como herança para o país “o substrato biológico, psíquico e espiritual da nacionalidade”. Diante desse mito, diz Nunes, a antropofagia era um “antimito”, pois, para ela, a “sociedade primitiva”, através do “apelo igualitarista”, abria o horizonte à utopia, enquanto “motor de possibilidades humanas”. Nos anos que se seguiram, o Verde-Amarelo se tornou o defensor da ordem e a Antropofagia encarnou a crítica. No mundo católico, através do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, Jackson de Figueiredo assumiu uma perspectiva reacionária. Após sua morte trágica, Alceu de Amoroso Lima o sucedeu. Embora fosse mais aberto e dialogal, via na teoria oswaldiana “o reflexo da dissolução da anarquia dos tempos modernos” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xxxviii, xl). Com a revolução de 1930, o Verde-Amarelo se orientou politicamente à direita e Oswald de AndradeANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 24.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. à esquerda.

A militância de Oswald de Andrade no marxismo o levou a aprofundar sua teoria, dando-lhe um significado e alcance universal. Por um lado, ele vai contestar a sociedade patriarcal e sua encarnação no poder político e religioso, e, por outro, vai sustentar que a revolução caraíba, pela universalização da técnica, conduziria do “histórico ao transitório, da cronologia da civilização ao tempo da vida primeva por ela estabelecida”, consumando uma “reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xli). Na obra Meu testamento, o marxismo é identificado por ele como precursor da antropofagia, e o mundo dividido em duas lógicas: a do Norte (trópico de Câncer), corresponde ao eixo do individualismo, e a do Sul (trópico de Capricórnio), ao eixo do coletivismo. A partir da teoria do matriarcado, de Bachofen, e da hipótese do parricídio originário, de Freud, na obra A crise da filosofia messiânica, à luz do esquema da filosofia da história de Hegel, o autor propõe um percurso da história da humanidade em três tempos: “tese: homem natural; antítese: homem civilizado; síntese: homem natural tecnizado”. Nesse percurso, ao patriarcado corresponderia o modelo sócio-histórico da civilização, de orientação messiânica, unindo em si duas instâncias de dominação: a temporal, de uma classe, através do Estado, do direito paterno, em proveito da ordem, e seus instrumentos jurídicos e repressivos; e a espiritual, de uma religião, através de suas figuras de mediação, de caráter sobrenatural ou carismático, incutindo uma moral de obediência e o recalcamento dos instintos primários. Ao matriarcado, por sua vez, corresponderia a experiência de uma solidariedade fundamental, ligando o ser humano à natureza e os indivíduos entre si, graças ao comum sacrifício do totem. Nele vigem o direito materno, a propriedade comum da terra, compondo a cultura antropofágica, lúdica e festiva (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xlv-xlvii).

A partir de 1945, Oswald de Andrade, em diálogo com o socialismo de Proudhon, vê em Deus o “inimigo jurado e real da humanidade”, e na teologia o obstáculo prático à libertação da espécie humana. Para ele, o sentimento órfico é o fundamento comum das formas primitivas da consciência religiosa e do ritual católico. O “homem cordial”, gestado no processo que conduz a humanidade ao “homem natural tecnizado”, conservará a consciência religiosa, mas sacrificando, como o antropófago outrora, “o tabu, o limite, o contra, que as religiões tentam aplacar com seus ritos e sacrifícios”. Complementando essa perspectiva, a obra A marcha das utopias reabilita o “ciclo das utopias”, mostrando a contribuição do matriarcado primitivo e dos povos periféricos dele descendido. A utopia se torna sinal de “inconformação um princípio de revolta”, o sentido prospectivo da existência humana em sua totalidade”. Nesse sentido, diz Benedito Nunes, a utopia, “princípio e fim” do pensamento oswaldiano, “forma o espaço transhistórico, onde se projetam “todas as revoltas eficazes na direção do homem” – também espaço ontológico entre [...] a “economia do haver” e a “economia do ser”. O instinto antropofágico, transformado, de “impulso biopsíquico em impulso espiritual, tende à própria negação como vontade de poder”, pois, ao conduzir à utopia, ele absorve, “na liberdade e na igualdade”, a “violência geradora dos antagonismos sociais” (NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. xlviii. lii).

A metáfora da antropofagia, e o fundamento teórico que lhe deu Oswald de Andrade, tornaram-se, em vários âmbitos da cultura brasileira, um verdadeiro “clássico” da busca por dizer o “que faz o brasil, Brasil?”. Sob muitas formas ela fecundou as ciências sociais e a literatura no último século, como mostram, entre outras, as seguintes obras e teses: 1. Casa grande e senzala (1933), de Gilberto FreyreFREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48.ed. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2003., e a tese da “democracia racial”; 2. Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e a figura do “homem cordial”; 3. Carnavais, heróis e malandros (1979), de Roberto da MattaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., e a análise que propõe dos “rituais” e expressões típicos que encarnam figuras da identidade nacional: o dia da pátria, o carnaval e a frase “sabe com quem está falando?”; 4. O povo brasileiro (1995), de Darcy RibeiroRIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 25.ed. São Paulo: Companhia de Letras, 1995., com a teoria da identidade nacional como resultado da “confluência, entrechoque e caldeamento do invasor português com silvícolas e campineiros e com negros africanos, que se fundiram para dar lugar a um povo novo”; 5. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade (1928)ANDRADE, O. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano I, n. 1, maio de 1928., e suas peripécias para recuperar o muiraquitã; 6. Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo RibeiroRIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., e a figura de Capiroba, caboclo que se “tomou gosto pela carne humana”, ancestral da “alma” nacional.

A leitura sintética e panorâmica desse “clássico”, que é a metáfora da antropofagia para dizer e pensar o Brasil e sua cultura, é o primeiro passo para realizar sua “correlação mutuamente crítica” com os clássicos cristãos. A última parte desse estudo vai se dedicar, em parte, à pergunta pela possibilidade dessa correlação; em parte, à recepção que essa metáfora teve na reflexão teológica brasileira do último século; em parte, às tarefas que ainda parecem pendentes quase um século após ter sido proposta para dizer a brasilidade.

3 A antropofagia e os “clássicos cristãos”

A “correlação mutuamente crítica” entre “clássicos”, objeto desse estudo, supõe, como foi indicado na primeira parte do texto, que se identifique no seio do clássico que será correlacionado com o “clássico cristão”, sob que formas nele se expressa a busca pelo “humanum”, identificando, nessa busca, possíveis aberturas para o “mais” de Deus. A metáfora da antropofagia e o percurso teórico que a transformou em “metafísica bárbara”, propõe uma teoria geral da cultura, na qual o processo civilizatório é identificado com o domínio do patriarcalismo, encarnado pelo Estado e pela religião, e o caminho da reconciliação é protagonizado por um retorno ao mundo primitivo do matriarcado, que implica a transformação do tabu em totem, com a negação da religião, e que culminará na liberação do trabalho pela técnica. O que inicialmente se apresentava como oposição cognitiva à mentalidade colonizada, torna-se, aos poucos, expressão de uma grande síntese, ao mesmo tempo incorporadora dos teóricos que pensaram a modernidade (Montaigne, Rousseau, Keyserling, Nietzche, Freud, Bachofen), e nunca coincidindo totalmente com eles, pelo caráter transgressivo, incômodo e provocativo inerente à metáfora da antropofagia. O final do percurso coincide com um ateísmo, que leva o autor a identificar Deus como inimigo da humanidade e a teologia como obstáculo à libertação da espécie humana. A busca do “humanum” parece então implicar a eliminação do divino.

A supressão do divino do horizonte da busca do “humanum” nesse clássico da cultura brasileira do último século, parece inviabilizar sua “correlação mutuamente crítica” com a teologia. Porém, alguns teólogos contemporâneos, em seus esforços por dialogar com o ateísmo moderno, mostraram que o deus dos “mestres da suspeita”, identificado por eles com o deus da razão moderna ou o deus da onto-teologia, mais que adversário da reflexão teológica, devia provocá-la à crítica de todo percurso teórico que o aprisionasse em conceitos ou o identificassem com figuras de poder e autoridade justificadoras do status quo. Esse foi o percurso da teologia negativa, em parte, inspirada pela pregação profética contra os que queriam transformar Deus em ídolo, e, em parte, instigada pela mística filosófica em sua crítica aos intentos por apreender o todo na razão. Ao identificar a religião cristã com o processo colonial de repressão do instinto antropofágico, Oswald de Andrade provoca a fé e a teologia inspiradas no evento cristológico a refletirem sobre seu papel nos processos que deram origem à cultura nacional, e as figuras do cristianismo que nela participaram das dinâmicas subjacentes às múltiplas expressões do colonialismo.

Além da crítica teológica, que faz do deus do patriarcado o inimigo da humanidade, e da eliminação do sacrifício do tabu, do limite e do contra, próprio ao matriarcado, para aceder à reconciliação, a metáfora da antropofagia veicula ainda uma forte crítica social, ao associar o patriarcado às instâncias de dominação temporal (Estado) e espiritual (religião), e o matriarcado à experiência de solidariedade, que liga os seres humanos com a natureza e entre eles. Outro aspecto, presente sobretudo quando foi criada essa metáfora, o cultural, propõe a desconstrução de modelos importados e copiados, e a deglutição do outro como dinâmica através da qual emerge o mais próprio da identidade nacional. Esses distintos significados, postos em evidência ao longo da história de elaboração da visão de mundo da antropofagia, por incrível que pareça, quase um século após seu surgimento e aprofundamento, possuem uma grande atualidade e relevância. Com outros conteúdos, o retorno ao “primitivo”, identificado no pensamento oswaldiano ao matriarcado, encontra-se, por exemplo, em algumas tendências dos movimentos ecológicos e feministas contemporâneos, na valorização do saber dos povos originais e afrodescendentes, com sua religião holística, tida como mais respeitosa da natureza, menos dualistas e mais inclusivas. Algo parecido se pode dizer do parentesco entre a intuição original da antropofagia, ao se rebelar contra a tendência à cópia e à imitação, presente na elite nacional, e as correntes que advogam atualmente a abordagens intercultural e decolonial.

As críticas à teologia, e através dela à religião e ao cristianismo, à organização social e política, e à cultura do empréstimo e da cópia, e as alternativas que conduzem à utopia da liberdade e da igualdade, ultrapassando a violência geradora de antagonismos e gerando uma cultura lúdica e festiva, sintetizam bem a busca do “humanum” presente nesse clássico da cultura brasileira que é a metáfora da antropofagia, com o qual a reflexão teológica deve estabelecer uma correlação mutuamente crítica. Antes de indicar como essa correlação pode se dar no atual contexto nacional, é importante fazer um breve sobrevoo sobre a relação que a teologia cristã teve com as provocações da antropofagia.

Se a crítica de Oswald de Andrade aos “importadores de consciência enlatada” (ANDRADE, 1928ANDRADE, O. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, ano I, n. 1, maio de 1928., apud NUNES, 1978NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. Obras completas VI: do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii., p. 14), valia para as elites intelectuais da época em que escreveu o Manifesto Antropófago, muito mais, talvez, era apta para falar dos que então faziam teologia no Brasil. É o caso, por exemplo, de Leonel Franca, um dos maiores intelectuais católicos do país na primeira metade do século XX, que, segundo Henrique Cláudio de Lima Vaz, “não foi um pensador original” (1995, p. 442). De fato, o jesuíta brasileiro, formado em Roma à luz dos princípios da neoescolástica, corrente teológica católica anti-moderna, iniciou suas atividades no Rio de Janeiro em 1924. Sua formação “clássica” não parecia tê-lo preparado para um diálogo com a efervescência intelectual então em curso no Brasil, que, apesar de “oficialmente católico” não possuía “nenhuma expressão institucional de cultura católica” (VAZ, 1998VAZ, H. C. de L. Leonel Franca e a cultura católica no Brasil. Síntese, Belo Horizonte, v. 2, n. 82, p. 317-328, 1998., p. 319). Com o apoio do Cardeal Sebastião Leme, um grupo de intelectuais católicos havia fundado, em 1921, a revista A ordem, que se tornou um dos principais veículos de transmissão das ideias do catolicismo, e em 1922, o Centro Dom Vital, o qual, a partir de 1928, sob a direção de Alceu de Amoroso Lima, tornou-se um lugar importante de circulação de ideias e debate.

Orientador espiritual de vários dos membros desse Centro, Leonel Franca, ao regressar ao país já possuía várias obras publicadas, como o livro Noções de história de filosofia, de 1918, com os conteúdos do curso que dava para seus alunos no Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, ao qual, nas edições posteriores, havia acrescentado um apêndice sobre “A filosofia no Brasil”; o livro A Igreja, a Reforma e a Civilização (1923), com o qual entrou num debate polêmico com os protestantes, dando origem, nos anos seguintes, às obras: Relíquias de uma polêmica (1926), Catolicismo e protestantismo (1933), O protestantismo no Brasil (1938); os livros O divórcio (1931), Ensino religioso e ensino leigo (1931), nos quais entra nos debates candentes da época. A “summa” de seu pensamento (VAZ, 1995VAZ, H. C. de L. Uma filosofia cristã da cultura: Leonel Franca. Síntese, Belo Horizonte, v. 22, n. 71, p. 441-452, 1995., p. 443), porém, encontra-se na obra A crise do mundo moderno (1941), que propõe uma “filosofia cristã da cultura” apoiada no “postulado da fé como geratriz da razão” (VAZ, 1995VAZ, H. C. de L. Uma filosofia cristã da cultura: Leonel Franca. Síntese, Belo Horizonte, v. 22, n. 71, p. 441-452, 1995., p. 444). Para Lima Vaz, essa obra, de caráter filosófico, possui pressupostos metafísicos (a afirmação de um Absoluto pessoal e transcendente, e do ser, na sua amplitude transcendental); críticos (no sentido do realismo gnosiológico), antropológicos e éticos (concepção de pessoa). Três eixos, cada um com suas categorias, iluminam a conceituação e o julgamento filosófico do mundo moderno: 1. Antropológico: o ser humano como indivíduo, produtor e ser de conhecimento; 2. Histórico: categorias de civilização, humanismo e modernidade; 3. Axiológico: noções de crise e civilização cristã. Como se percebe, embora alguns dos temas abordados pelo eminente intelectual jesuíta tenham como referência questões em debate no Brasil, não parecem estabelecer uma correlação mutuamente crítica com as críticas feitas pela metáfora da antropofagia.

Essa ressalva não desmerece os esforços de Leonel Franca por pensar a relação entre cristianismo e sociedade. Sua ação, sobretudo junto aos intelectuais do Centro Dom Vital, foi fundamental para o papel que tiveram no período que antecedeu o concílio Vaticano II. De fato, graças a eles a Igreja católica manteve-se presente no debate cultural do país e foi fecundada por esse mesmo debate, em particular através da Ação Católica, que, a partir de 1935, ganhou um papel decisivo na formação da militância juvenil mais aberta ao diálogo com o mundo moderno, exercendo, após o Concílio, um papel decisivo na criação de uma Igreja “fonte” e não mais “reflexo” (VAZ, 1968VAZ, H. C. de L. Igreja reflexo vs Igreja-fonte. Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, n. 46, p. 17-22, 1968., p. 17-22). Marginal em todo esse período, embora reiterando a lógica da Igreja “reflexo”, através de uma relação radicalmente crítica com a modernidade, à qual opôs uma idade média idealizada, foi a ação de Plínio Correia de Oliveira. Inicialmente, a partir de 1928, na Congregação Mariana, e depois, na Ação Católica e no jornal Legionário (1927), sua ação radicalizou a oposição ao diálogo da Igreja com o mundo moderno. Em 1934, na obra, Em defesa da Ação Católica, ele ataca os “erros progressistas” do principal movimento católico de então, sendo relegado ao ostracismo, como também o grupo que o apoiava, constituído, entre outros, pelos então Pe. Sigaud, nomeado, porém, em 1947, bispo, e o Pe. Castro Mayer, também nomeado bispo, em 1948, e criando, em 1951, o mensário Catolicismo, o qual foi confiado à direção de Plínio Correia de Oliveira, que nele publicou, em 1959, sua principal obra, Revolução e contra revolução. Em 1960, o mesmo Plínio fundou a Sociedade de Defesa da Tradição, Família, Propriedade (TFP), que atuou em toda a segunda metade do século XX, cindindo-se, em 2001, para dar origem aos Arautos do Evangelho, provavelmente, o grupo neotradicionalista católico mais atuante hoje no país.

A “Igreja fonte”, que emergiu no Brasil na esteira do grande esforço de diálogo entre catolicismo e modernidade, feito pelo concílio Vaticano II, teve, portanto, seus principais antecessores nos militantes da Ação Católica, iniciando, somente após o Concílio, uma reflexão que buscasse efetivamente a correlação mutuamente crítica entre fé e cultura. Os estudos específicos sobre a religião dos povos originários e afrodescendentes, feitos sobretudo na perspectiva da antropologia cultural, eram, nas primeiras décadas do século XX, marcados por tendências positivistas e racistas, como as de Nina Rodrigues, primeiro estudioso da religião afro-brasileira no país, que associava mestiçagem, degenerescência e crime. Foi através da literatura que muitas experiências religiosas dessas culturas, bem como as da religiosidade popular, ganharam pouco a pouco cidadania acadêmica. Os estudos de Lévi-Strauss, Tristes trópicos (1955) e de Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil (1958), embora valorizassem a racionalidade indígena e africana, eram de estrangeiros que falavam sobre brasileiros. Darcy Ribeiro, a partir da década de 1950, Octávio Eduardo e René Ribeiro, a partir da década de 1940, entre outros, abordam esses “outros” que compõem a brasilidade de modo mais horizontal, conferindo à metáfora oswaldiana da antropofagia fundamentos etnológicos mais precisos e sólidos.

O período que coincide com o final do Concílio é marcado, por um lado, pela guerra fria, que opôs democracias liberais-capitalistas a regimes, identificados por elas, como autoritários-comunistas, cada bloco buscando cooptar os países do Sul global, tidos como subdesenvolvidos; e, por outro, pela “revolução dos costumes”, que teve no Maio de 68 francês uma de suas expressões mais emblemáticas. No Brasil, o fim da era Vargas e o otimismo do desenvolvimentismo da era Kubitschek, foram seguidos pela efervescência dos movimentos sociais e políticos reivindicando “reformas de base” que pudessem construir um país mais igualitário e justo. O golpe militar de 1964 interrompeu as esperanças suscitadas por esses movimentos e longos anos foram necessários para que as instituições democráticas voltassem a funcionar. Nesses anos, precisamente, preparados pela militância da Ação Católica, como acima foi indicado, uma parte significativa da Igreja católica colocou-se na “escola dos pobres”, descobrindo neles uma sabedoria, uma resiliência, um anseio por justiça e uma capacidade de esperança que a levaram a, de fato, estabelecer com essa “escola” uma correlação mutuamente crítica com o evangelho. A reflexão que daí surgiu, a teologia da libertação, recorreu então, para melhor entender o mundo dos pobres, aos recursos analíticos das ciências sociais, conferindo ao primeiro momento do método ver, julgar, agir, da Ação Católica, uma maior cientificidade. Esse momento era em seguida confrontado com a luz dos textos bíblicos e teológicos, que faziam emergir os apelos de mudança e ação que brotavam da Palavra de Deus. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), através dos Círculos Bíblicos, e as pastorais inspiradas nesse método, foram os “laboratórios” a partir dos quais foi se gestando essa nova figura de Igreja: pobre, com os pobres, contra a pobreza injusta infligida aos pobres.

Essa figura de Igreja tornou-se então um dos lugares privilegiados, nas décadas de 1970-1980, para a formação de militantes de movimentos sociais, sindicais e políticos, criando consciência crítica e fortalecendo as inúmeras lutas por direitos cidadãos, que antecederam e sucederam ao processo de redemocratização do país. Como indica Henrique de Lima Vaz, num artigo em que fala sobre a filosofia no Brasil, “os problemas de qualidade de vida, dos fins éticos, dos valores de solidariedade e justiça são prioritários e pressupostos ao problema do desenvolvimento econômico” (1984VAZ, H. C. de L. O problema da filosofia no Brasil. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 30, p. 11-25, 1984., p. 25). Esses problemas e o contexto da ditadura justificam, então, a ênfase dada à reflexão de caráter transformador. O retorno ao primitivo, próprio às culturas indígenas e africanas, posto em relevo pelo pensamento antropofágico de Oswald de Andrade, e presente na literatura e nas ciências sociais que por ele foram influenciadas, impactou pouco, nesse período, a teologia, embora tenha emergido na reflexão pastoral junto aos indígenas, levando à criação, em 1982, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e junto a movimentos de consciência negra, com a articulação, em 1979, do grupo de padres negros que prepararam a contribuição do Brasil sobre a questão para a Vª Conferência do CELAM, em Puebla, ganhando maior importância a partir do tema da Campanha da Fraternidade de 1988: “A fraternidade e o Negro. Ouvi o clamor deste povo”. Em 1980 e 1981 foram criadas, por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, a “Missa da Terra Sem Males” e a “Missa dos Quilombos”, esforços de tradução, em linguagem da libertação, da perspectiva cultural.

A partir da década de 1990, a questão cultural ganhou mais visibilidade, seja na sociedade, com as lutas por delimitação de terras indígenas e quilombolas, prevista na Constituição de 1988; seja na reflexão acadêmica, com o surgimento do pensamento interdisciplinar, que, nas décadas seguintes deu origem à teoria intercultural. As novas epistemologias que surgiam então, passam a falar de pensamento transdisciplinar, de epistemologias do Sul e de teorias pós ou decoloniais, com repercussões em vários campos do saber, também no da teologia. Em dois outros âmbitos, o dos estudos feministas e de gênero, e o das pesquisas sobre a ecologia, diversificam-se, de modo extraordinário, as temáticas a serem levadas em conta para se pensar o mundo, em geral, e a teologia, em particular, sobretudo a correlação mutuamente crítica entre essas temáticas e o que propõe a revelação cristã.

A produção teológica dos últimos 30 anos no Brasil foi fecundada pelas provocações vindas desses distintos aspectos do que o presente estudo denomina como cultural e que a teoria antropofágica de Oswald de Andrade entendia como “primitivo”. No autor do Manifesto, o primitivo é o original, remetendo à sociedade matriarcal, caracterizada por uma solidariedade entre tudo e todos, pelo reconhecimento da alteridade, mesmo a do inimigo, transformado em totem pelo ritual antropofágico, pela dimensão lúdica e festiva.

Embora provocativa e assimilada de distintas maneiras pelas ciências sociais e pela literatura, enquanto tal, na teologia, a metáfora da antropofagia foi pouco explorada, com exceção, talvez, da tese doutoral do autor deste texto, defendida em 2002, na França2 2 Tendo como ponto de partida a problemática do tempo, a tese estuda, em diálogo com a teoria do tempo de Paul Ricoeur, a obra Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Nesta grande saga do Brasil, o autor propõe como “ancestral” da “alma brasileira” Capiroba, um caboclo que vivia num aldeamento jesuíta em Itaparica, BA, do qual fugiu, tornando-se antropófago. À luz dessa figura, são analisadas as distintas formas de o povo brasileiro viver o tempo. DE MORI, G. Le temps: enigma des hommes, mystère de Dieu. Une poétique eucharistique du temps en contexte brésilien. O texto foi posteriormente transformado em livro: DE MORI, G. Le temps. Énigme des hommes, mystère de Dieu. Paris: Cerf, 2006. . Mesmo assim, o caminho feito pela teologia no país nesses 100 anos mostra, por um lado, seu caráter mimético, presente, segundo o autor do Manifesto, em grande parte da produção intelectual nacional elaborada na ocasião, ganhando um caráter autóctone, como bem sinaliza Henrique Cláudio de Lima Vaz, somente após o concílio Vaticano II, quando a Igreja deixa de ser “reflexo” e passa a ser “fonte”, adotando então, sobretudo, uma postura profética de crítica sociopolítica, tornando a fé cristã uma parceira na busca pela justiça no meio da sociedade brasileira. Essa mudança foi aprofundada nas décadas seguintes, ganhando, nos últimos 30 anos, um enfoque cultural, com as teorias da interculturalidade e da decolonialidade, que fecundaram a reflexão sobre a experiência religiosa indígena e afrodescendente, sobre o meio ambiente e sobre a questão da mulher. Por outro lado, a questão de fundo, que extrapola a problemática epistemológica e a da crítica social, identifica Deus com o patriarcado e os sistemas de poder e dominação, inimigo da humanidade, e o matriarcado com a solidariedade que une o natural e o humano, exprimindo-se na “cultura antropofágica, lúdica e festiva”. Essa perspectiva, como acima foi dito, parece inviabilizar toda correlação mutuamente crítica entre a crítica radical à religião e a Deus, do Manifesto, e o conteúdo central dos “clássicos cristãos”.

Por detrás desse ateísmo de fundo, como foi observado no início da terceira parte deste estudo, é possível identificar a crítica anti-idolátrica dos profetas, como mostra a bíblia judaica, e a perspectiva apofática de correntes filosóficas antigas, como o neoplatonismo, assumida na teologia cristã por Pseudo-Dionísio, o Areopagita, e Mássimo, o Confessor, e continuada por místicos e teólogos importantes, como, no mundo latino, John Scotus Erígena, Mestre Eckhart, Tomás de Aquino, João da Cruz, entre outros. Para alguns intérpretes, a crítica à religião dos “mestres da suspeita” (Marx, Freud, Nietzsche), seria, ela mesma, uma espécie de “teologia negativa”, pois mostraria os desvios, equívocos e enganos da imaginação, do desejo e da razão na nomeação daquele ou daquilo que a filosofia e a teologia identificam como Transcendente, Totalmente Outro, Infinito, Deus3 3 Dentre os teólogos que exploraram essa perspectiva: E. JUNGEL. Dieu mystère du monde. Fondement de la théologie du crucifié dans le débat entre théisme et athéisme. Paris: Cerf, 1983; MOLTMANN, J. O Deus crucificado. A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Santo André: Academia Cristã, 2011. .

O diálogo com o ateísmo marcou profundamente a teologia feita nos séculos XIX e XX, sobretudo nos países em que o fenômeno mais se difundiu, os do Norte global. Para Juan Luis Segundo, num texto escrito depois da Conferência de Medellín, em geral, ao invés de começar interessando-se pela antítese “fé-ateísmo”, a teologia da América Latina começa pela antítese “fé-idolatria”. De fato, diz o teólogo uruguaio, em ordem de importância, urge primeiro começar com o “agir com retidão na história”, em seguida, com o “conceber a Deus na linha da luz ou das trevas”, enfim, por declarar “se ele existe ou não existe” (SEGUNDO, 1977SEGUNDO, J. L. A nossa ideia de Deus. São Paulo: Loyola, 1977., p. 14). Essa reflexão, retomada por Jon Sobrino, foi aprofundada na teologia feita no Brasil, no final da década de 1980, por Hugo Assmann e Jung Mo-SungASSMANN, H. Idolatria do mercado: desafios da vida na sociedade. Petrópolis: Vozes, 1989., associando idolatria e economia4 4 A obra de Assmann foi publicada na Coleção Teologia e Libertação: ASSMANN, H. Idolatria do mercado: desafios da vida na sociedade. Petrópolis: Vozes, 1989. A obra de Jung Mo Sung foi inicialmente elaborada no contexto da crise da dívida externa, que assolava o Brasil: SUNG, J. M. Idolatria do capital e morte dos pobres. Uma reflexão teológica a partir da dívida externa. São Paulo: Paulinas, 1989. . Segundo eles, em vertente neoliberal, a economia liberal adotou a linguagem sacrificial, tornando-se a tradução secularizada das religiões idolátricas do passado. Em parte, esse tipo de leitura confirma a crítica feita por Oswald de Andrade à teologia como fundamento de instituições de poder, mas não parece responder à questão de fundo do ateísmo oswaldiano, que, por sinal, não era objeto da reflexão elaborada por esses dois teólogos. Leonardo BoffBOFF, L. A trindade, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes, 1986., na obra que compõe a coleção Teologia e Libertação, oferece, talvez, um caminho mais adequado para avançar na correlação mutuamente crítica entre o ateísmo do Manifesto e o rosto do Deus cristão5 5 BOFF, L. A trindade, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes, 1986. .

Não é o caso de retomar aqui os conteúdos da obra de Boff sobre o Deus cristão, embora, sob muitos pontos de vista, sua reflexão seja a que melhor equacionou a crítica ao Deus da visão patriarcal, presente no pensamento de Oswald de Andrade, e o rosto de Deus revelado em Jesus de Nazaré, que, contrariamente ao poder do patriarca, revela-se na vulnerabilidade e na capacidade de padecer as dores das vítimas, provocando-as, porém, a vencer o mecanismo mimético da violência, inclusive a que é evocada no sacrifício antropofágico, pela entrega gratuita, por amor, da própria vida, oferecendo-a em alimento, para que, quem se deixa interpelar por seu gesto oblativo, também seja capaz de fazer da própria vida um dom eucarístico de corpo e sangue dado para que os demais tenham vida.

A crítica ao deus do patriarcado, identificado com o poder e com o superego repressor, é, sem dúvida, mais que necessária no atual contexto brasileiro. De fato, o nome de Deus é hoje “utilizado” ideologicamente no país, de diversos modos, tanto no interior da própria religião, quanto no âmbito da política e da regulamentação das normas de conduta. É o que se vê, por exemplo, nos grupos que se dizem cristãos e fazem de Deus a fonte da prosperidade e do domínio, corroborando a lógica do mercado, similar à lógica do deus do patriarcado criticada por Oswald de Andrade. É o caso ainda, de movimentos e grupos políticos que usurpam o nome divino para justificar ações incompatíveis com o Deus cristão, advogando um suposto “Deus acima de todos” para respaldar opções sociais e políticas autoritárias, blasfemando o nome divino, como diz Paulo, em Rm 2,24. É, enfim, o caso de pessoas e grupos que encontram em Deus motivos para excluir distintas expressões de alteridade e diferença, seja de raça, de condição social, religiosa e de gênero.

Conclusão

O percurso feito, além de indicar um caminho metodológico que torna possível o diálogo entre “clássicos” da cultura e “clássicos” da teologia cristã, propôs, em seguida, uma leitura panorâmica sobre a origem, o significado e os desdobramentos da metáfora da antropofagia no pensamento de Oswald de Andrade, metáfora vista como um dos clássicos para se pensar a cultura nacional a partir da Semana de Arte Moderna de 22. O passo seguinte foi realizar a “correlação mutuamente crítica” entre os elementos do “humanum” que emergem do clássico oswaldiano e o “humanum” que brota da revelação.

A antropofagia, na perspectiva oswaldiana, foi estudada sob muitos pontos de vista ao longo do último século e, seguramente, receberá novas abordagens no ano do primeiro centenário da Semana de Arte Moderna. Na perspectiva teológica, sobretudo a partir dos conteúdos que recebeu de seu autor após sua primeira elaboração, permanece como algo estranho, incômodo e, aos ouvidos de muitos, incompatível com a fé e a teologia cristãs. Nos estudos feitos pelo autor deste estudo em 2002, privilegiou-se o Manifesto Antropófago, não mostrando como, ao longo de sua carreira, Oswald de Andrade havia aprofundado a intuição originária, tornando a antropofagia uma teoria geral da brasilidade.

Na pesquisa concluída em 2002, a correlação entre antropofagia e teologia deu-se ao redor da eucaristia, entrevista na metáfora oswaldiana como buscada, presente e ausente. Nesse estudo, destacou-se a crítica de fundo que subjaz à intuição e à elaboração teórica da metáfora do autor modernista: o Deus cristão e a sociedade patriarcal do qual ele seria o garante. A essa crítica se associam a tendência, presente em setores da intelectualidade nacional, de submeter-se a padrões estéticos e culturais, que tem como suas manifestações a “cópia” e não a criação, a submissão às regras e modas da matriz colonial e não às formas transgressivas da antropofagia nacional. Ao Deus do patriarcado, o autor opõe então o retorno ao matriarcado lúdico, solidário, respeitoso e acolhedor das diferenças.

O caminho feito pela teologia, rapidamente delineado na terceira parte desse estudo, mostra as permanências da mentalidade colonizada e os avanços na direção de assumir as provocações da criatividade antropofágica. O presente estudo, ao assinalar a importância da crítica a alguns dos aspectos da “teologia” que alimentou os processos coloniais e se mantém ainda nas mentalidades colonizadas atuais, indica um caminho a ser trilhado pela reflexão teológica no país. Uma reta compreensão do Deus da revelação, a ser inaugurada por cada geração, poderá não só contribuir para que as relações sociais, étnicas e de gênero, tributárias dos desequilíbrios que estão na origem mesma da sociedade nacional, sejam reequacionadas numa perspectiva mais horizontal, acolhedora e igualitária, à imagem da figura “primitiva” do matriarcado, tão valorizada pelo intérprete modernista.

Oxalá essa incursão teológica no pensamento do criador da metáfora mais inusitada para se pensar o Brasil possa abrir novos percursos teóricos no seio da reflexão cristã nacional, ajudando-a a participar cada vez mais dos processos de afirmação da identidade brasileira, abrindo-a também para que possa oferecer-se iconicamente para enriquece a humanidade.

  • 1
    Título de uma das obras de MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
  • 2
    Tendo como ponto de partida a problemática do tempo, a tese estuda, em diálogo com a teoria do tempo de Paul Ricoeur, a obra Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Nesta grande saga do Brasil, o autor propõe como “ancestral” da “alma brasileira” Capiroba, um caboclo que vivia num aldeamento jesuíta em Itaparica, BA, do qual fugiu, tornando-se antropófago. À luz dessa figura, são analisadas as distintas formas de o povo brasileiro viver o tempo. DE MORI, G.DE MORI, G. Le temps. Énigme des hommes, mystère de Dieu. Paris: Cerf, 2006. Le temps: enigma des hommes, mystère de Dieu. Une poétique eucharistique du temps en contexte brésilien. O texto foi posteriormente transformado em livro: DE MORI, G. Le temps. Énigme des hommes, mystère de Dieu. Paris: Cerf, 2006.
  • 3
    Dentre os teólogos que exploraram essa perspectiva: E. JUNGELJUNGEL, E. Dieu mystère du monde. Fondement de la théologie du crucifié dans le débat entre théisme et athéisme. Paris: Cerf, 1983.. Dieu mystère du monde. Fondement de la théologie du crucifié dans le débat entre théisme et athéisme. Paris: Cerf, 1983; MOLTMANN, J.MOLTMANN, J. O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Santo André: Academia Cristã, 2011. O Deus crucificado. A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Santo André: Academia Cristã, 2011.
  • 4
    A obra de Assmann foi publicada na Coleção Teologia e Libertação: ASSMANN, H. Idolatria do mercado: desafios da vida na sociedade. Petrópolis: Vozes, 1989. A obra de Jung Mo SungSUNG, J. M. Idolatria do capital e morte dos pobres: uma reflexão teológica a partir da dívida externa. São Paulo: Paulinas, 1989. foi inicialmente elaborada no contexto da crise da dívida externa, que assolava o Brasil: SUNG, J. M. Idolatria do capital e morte dos pobres. Uma reflexão teológica a partir da dívida externa. São Paulo: Paulinas, 1989.
  • 5
    BOFF, L. A trindade, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    30 Jul 2022
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