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O BRASIL EM CANÇÕES

Brazil in Songs

RESUMO

Pensar o Brasil através de um percurso pela música brasileira é a proposta do presente texto. A herança da Semana de Arte Moderna de 1922 questiona não apenas sobre o modernismo, mas também como se pode pensar o Brasil e sua cultura específica. Através de métodos de leitura e análise utilizados nos estudos que relacionam teologia e literatura e preocupando-se sobretudo com a letra das canções, faz-se um panorama da música brasileira dos últimos tempos, incluindo aí a música religiosa, ressaltando aspectos de crítica social que fazem pensar um Brasil diferente, sem discriminações e com espaços democráticos de convivência. As canções se configuram como verdadeiros espaços de formação da consciência crítica com vistas à efetiva participação dos cidadãos no processo de construção do país e de sua cultura.

PALAVRAS-CHAVE
Canções; Crítica; Sociedade; Brasil; Cultura

ABSTRACT

This text proposes to think about Brazil in a journey through Brazilian music. The legacy of the 1922 Week of Modern Art questions not only modernism, but also how we can think about Brazil and its specific culture. The text makes an overview of recent Brazilian music using methods of reading and analysis in studies that relate theology and literature. It focuses mainly on the lyrics of the songs, including religious music, highlighting aspects of social criticism that make us think of a different Brazil, without discrimination and with democratic spaces for coexistence. The songs are configured as true places for the formation of critical consciousness with a view to the effective participation of citizens in the process of building the country and its culture.

KEYWORDS
Songs; Criticism; Society; Brazil; Culture

Introdução

A Semana de Arte Moderna de 1922, cujo centenário estamos celebrando, deixou marcas profundas na cultura e na sociedade brasileiras. O país não foi o mesmo depois de 1922, tanto na arte quanto na vida, e a celebração do centenário daquela semana nos dá a esperança de que, depois de 2022, o Brasil não será mais o mesmo, ainda uma vez. O país mudou e pode mudar novamente.

O movimento modernista não trouxe apenas modificações no âmbito das artes ou da estética, mas movimentou, por bem ou por mal, toda a sociedade (BOAVENTURA, 2013BOAVENTURA, M. E. Semana de arte moderna: o que comemorar? Remate de Males, Campinas, n. 3, p. 23-29, jan./dez. 2013., p. 24). Rapidamente suas propostas foram assumidas por alguns e duramente criticadas por outros, sobretudo rejeitada por muitos. Sua proposta estética, escandalosa para os padrões vigentes naquele momento, revolucionou o mundo das artes e, na sequência, toda a cultura brasileira. Presa até ali aos padrões artísticos e culturais europeus, que se haviam firmado como tradicionais no país, a sociedade brasileira foi pelo modernismo desafiada a assumir suas próprias e íntimas características (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, E. A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Modernismo Brasileiro: atualização cultural e “primitivismo” artístico. Gragoatá. Niterói, n. 39, p. 376-391, 2015., p. 381), como transparece no “Manifesto Antropófago” (1928) de Oswald de Andrade, ou na “Paulicéia Desvairada” (1922) de Mário de Andrade.

Os jovens artistas que fizeram acontecer aquela semana e encheram de temores os conservadores que defendiam a estética e os valores tradicionais, ajudaram a traçar um país que, em certo sentido, tornou-se senhor de seus próprios caminhos, o que motivou outros jovens a que, ao longo da história, também propusessem, a seu turno, mudanças e transformações para o cenário nacional (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, M. A. 1922: a semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 89).

1 A Semana de 1922 como cenário inicial

As manifestações artísticas foram as primeiras transformadas pelas propostas modernistas. Aquela semana, vivida no Teatro Municipal de São Paulo, foi uma mostra de arte que assumia uma nova estética, muito mais moderna, para escândalo dos tradicionalistas. Literatura, artes plásticas, música, teatro, enfim, o conjunto de manifestações artísticas foi sendo desafiado a assumir os quadros estéticos propostos pelo modernismo ou para além dele (JARDIM, 2022JARDIM, E. Apontamentos sobre o modernismo. Estudos Avançados, São Paulo, v. 36, n. 104, p. 7-16, jan./abr. 2022., p. 12), e a encarnar as características mais singulares da cultura brasileira que passavam a retratar. Os exemplos clássicos da poesia e da literatura, como “Macunaíma” (1928) de Mário de Andrade, ou “Poética” (1922) de Manuel Bandeira, ou ainda o “Canto de Regresso à Pátria” (1925), de Oswald de Andrade, retratam, mas não esgotam, as transformações operadas pelo modernismo na cultura brasileira. Rapidamente as artes plásticas foram também alcançadas, como com o “Abapuru” (1928) de Tarsila do Amaral, “Samba” (1925) de Di Cavalcanti ou “Mestiço” (1934) de Cândido Portinari. Em seguida veio a música, com a coragem artística de Heitor Villa Lobos inovando a música brasileira e influenciando-a de maneira duradoura. Importante perceber que o movimento iniciado em 1922, tomado como data referencial, cresceu e lançou ramos em diversas direções na sequência (LOPES, 2022LOPES, M. Catedral de ossos ou húmus da cultura brasileira? Jornal da Unicamp, 04/03/2022. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/marcos-lopes/catedral-de-ossos-ou-humus-da-cultura-brasileira. Acesso em: 10 mar. 2022.
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), como se pode perceber na forma de modificação da música brasileira, sobretudo a de corte popular. Alguns modernistas da primeira cepa, além de Villa Lobos, trabalhavam também com música. Guilherme de Almeida compõe letras que se tornaram hinos, como a “Canção do Expedicionário”, que tem melodia de Spartaco Rossi. Mário de Andrade foi musicista e, além de composições com características populares, escreveu textos de teoria musical como o “Compêndio da História da Música” (1929) ou “Música do Brasil” (1941).

A música popular brasileira foi assumindo suas características próprias, conforme a proposta modernista, na valorização do samba, da música regional, mesmo aquelas não tão conhecidas, e dos diversos ritmos que foram surgindo no país (LEITE, 2012LEITE, E. Música na Semana de 22: tradição e ruptura na cidade de São Paulo. Revista USP, São Paulo, n. 94, p. 59-70, jun./jul./ago. 2012.). Das modinhas às marchinhas de carnaval, do samba ao frevo, do baião aos outros ritmos populares, o Brasil foi sendo desenhado pela musicalidade que aqui nascia e era cultivada. Na raiz, a renovação iniciada por Villa-Lobos, mas continuada por tantos artistas, em veia moderna, inclusive com a criação do famoso movimento da Bossa Nova, que se propôs a renovar o samba nos idos de 1950 e se tornou um ritmo brasileiro bastante conhecido no exterior. Outros movimentos musicais na sequência, como a Jovem Guarda ou os Festivais de Música Popular Brasileira dos anos de 1960, ajudaram a renovar a música nacional e transformar em coisa do Brasil ritmos que vinham do exterior. Os gêneros musicais mais recentes, como o pop, o rap, o funk ou o “sertanejo universitário”, constituem-se em produtos efetivamente nacionais não apenas porque traduziram tais ritmos a partir de suas matrizes culturais, mas os refizeram com elementos propriamente brasileiros.

No âmbito da música religiosa as transformações aconteceram de maneira muito mais lenta, o que talvez se deva ao fato de o comportamento religioso ter se aproximado com mais facilidade dos esquemas tradicionais de pensamento. A cultura brasileira foi, desde seu início, fortemente impactada pela religiosidade, de maneira especial o catolicismo tomado como religião dominante. Estabelecidas a partir de seus referenciais ibéricos medievais, as características católicas tradicionais foram promovidas continuamente pelos senhores da sociedade, de maneira que as transformações, como aquelas anunciadas pelo movimento de 1922, foram temidas também pelos setores dominantes da religiosidade católica nacional. Tal realidade se encontra em perfeita linha de continuidade com o embate entre a Igreja Católica e a modernidade (SOUZA; GONÇALVES, 2013SOUZA, N.; GONÇALVES, P. S. L. Catolicismo e sociedade contemporânea, São Paulo: Paulus, 2013., p. 58), que acontecia desde o século XVIII e assumiu contornos evidentes com o “Syllabus” (1864) de Pio IX e, na sequência, a realização do Concílio Vaticano I (1869-1870). Para o pensamento religioso tradicional, as inovações, a criatividade e o aparecimento de novas propostas estéticas ou de pensamento configuravam uma tentativa de rompimento da ordem estabelecida, que ameaçava mergulhar nas trevas a sociedade brasileira. Por isso, de maneira geral, a Igreja se não se opôs às realizações da Semana de 1922 também a ela não se abriu, de forma que permaneceu em sua estrutura artística, com os mesmos padrões estabelecidos e tradicionalmente cultivados. Apenas décadas depois, quando o Concílio Vaticano II ensinou que era possível o diálogo com a modernidade, é que a Igreja se abriu a novas realidades e a novas formas de percepção da arte religiosa, aí incluída a música.

Por seu lado, se a proposta da Semana de Arte Moderna é a renovação da cultura e a reescritura do Brasil (ALAMBERT, 2012ALAMBERT, F. A reinvenção da Semana (1932-1942). Revista USP, São Paulo, n. 94, p. 107-116, jun./jul./ago. 2012., p. 112), não deixa de ser interessante pensar em como, um século depois, o movimento frutificou e modernizou a cultura brasileira (COELHO, 2021COELHO, F. A semana de cem anos. ARS, São Paulo, v. 19, n. 41, p. 27-52, 2021., p. 33) que, no entanto, pode se renovar e modernizar ainda mais, assim como também há a possibilidade de repensar o país e seus caminhos de futuro, inclusive atingindo a perspectiva eclesial ou religiosa. Isso pode ser feito a partir de inúmeros produtos culturais, seja nas artes ou nas ciências, e por isso aqui se propõe um olhar sobre a evolução da musicalidade brasileira marcada pela letra de algumas canções populares, com o que se quer perceber como tais canções retratam o país, sua religiosidade e apontam caminhos para que o povo brasileiro realize suas aspirações, sonhos e projetos.

2 Canções falam do país e da Igreja

Existe uma gama muito grande de canções que se propõem a retratar o Brasil, tanto no que diz respeito a seu povo quanto no que diz respeito à natureza, à cultura, à compreensão eclesial ou à situação social. Seria interessante olhar para algumas delas a fim de perceber seu alcance de formação cultural, assim como a evolução do movimento musical brasileiro, traçando linhas que modernizam a cultura e fazem com que sejam afirmadas as matrizes do povo que as cultiva. Será importante pensar em dois aspectos iniciais.

Primeiramente há que se reconhecer que a letra das canções precisa casar-se com a melodia para que surja, efetivamente, uma canção. A letra da canção não é apenas uma poesia à qual se acopla uma melodia, embora isso possa ser feito e, efetivamente, tenha sido realizado por compositores talentosos. Normalmente, a letra da canção se relaciona de maneira única com sua melodia, de tal forma que a repetimos seguindo ritmo e entonação. Ao cantarolar repetidas vezes a canção, acaba-se prestando mais atenção ao que diz a letra e com ela, então, se aprende (MANZATTO, 2019MANZATTO, A. Certas canções: música popular brasileira e teologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2019., p. 15). Aqui não se vai além do olhar sobre a letra das canções, aludindo apenas lateralmente à questão do ritmo ou da melodia, porque o instrumental para sua análise escapa ao escopo dos estudos que relacionam teologia e literatura, método que aqui será seguido.

O segundo ponto a observar é que a letra das canções, ao mesmo tempo em que revela a cultura que a produziu, propõe-se a afirmar valores culturais que vão confirmar ou infirmar aquele berço cultural (CAMPOS, 2007CAMPOS, R. R. Visão da nação brasileira e música popular brasileira (MPB): uma proposta para o ensino da Geografia. Geografia, Rio Claro, v. 32, n. 2, p. 391-421, 2007., p. 392). As canções que cantarolamos vão formando nossa maneira de pensar e, assim, vão tecendo valores que serão afirmados e, eventualmente, seguidos segundo seu caminho de sucesso. Assim, elas não apenas revelam o que já existe e apresentam o jeito de ser brasileiro que está em vigor, mas também propõem modos de ser que podem ir confirmando ou infirmando aquele modo de ser brasileiro. As canções, dialeticamente, formam a cultura nacional e são formadas por ela, cantam o que somos e nos tornamos aquilo que com elas cantamos.

Isso se pode dizer da compreensão eclesiológica que é retratada por canções religiosas e que, em contrapartida, possibilitam-nas, incentivam ou reproduzem. Aquilo que se canta no ambiente eclesial retrata uma forma de ser Igreja, tanto naquilo que dizem suas letras como também naquilo que se refere ao ritmo, aos instrumentais utilizados ou à maneira de proceder o canto. Por sua vez, a repetição das canções forma a consciência eclesial no sentido de se reproduzir a compreensão de Igreja que nelas é retratada. Por isso, no ambiente religioso, não se canta qualquer canção, nem se a canta de qualquer forma. O tipo de instrumento utilizado, por exemplo, para acompanhar as canções já denota uma certa forma de compreensão da religião e do modelo de Igreja que se quer propagar; a mesma coisa se dá com o ritmo utilizado, se mais erudito, popular ou típico de uma região geográfica, assim como a forma de se fazer o canto, se com coral, solista ou com toda a assembleia. Percebe-se, portanto, que aquilo que se canta, ao mesmo tempo em que repercute certa compreensão de eclesiologia e espiritualidade, também tem uma função catequética bastante determinada.

3 O orgulho nacional e o triunfalismo eclesial

Uma série de canções cantam as belezas e a alegria do Brasil e dos brasileiros. Algumas delas bastante antigas ainda figuram na memória de tantos, outras tiveram vida mais efêmera. “Luar do Sertão”, por exemplo, de Catullo da Paixão Cearense e João Pernambuco, gravada pela primeira vez em 1914, já foi considerada o segundo hino nacional brasileiro (MELLO, 2007MELLO, Z. H. Música nas veias: memórias e ensaios. São Paulo: Editora 34, 2007., p. 58). Tantas vezes regravada por ícones da música popular, canta as belezas e a melancolia do interior do país, e de maneira simples e até ingênua afirma a beleza deslumbrante à luz do luar. Sua letra é extensa e as diferentes gravações como que selecionam as estrofes que serão cantadas e lembradas. Mas todos os brasileiros cantam de cor o refrão que exalta a alegria das belezas do sertão do país: “não há, oh gente, oh, não, luar como esse do sertão”. Em termos de melancolia, cabe lembrar de “Noites brasileiras” (1954), de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, que canta as saudades do sertão lembrando as fogueiras de São João, forma de celebrar a festa do santo em tempos passados. Nessa mesma esteira, a alegria e o orgulho de ser brasileiro são entoadas na célebre “Aquarela do Brasil” (1939), de Ary Barroso, uma das canções nacionais mais conhecidas no exterior. Sua letra, na simplicidade da exaltação do país, não se centra na beleza das paisagens, mas sim na figura do povo e em sua cultura, falando da música e do estilo de festa do “mulato inzoneiro” ou da “morena sestrosa”. O Brasil brasileiro é definido como “terra de samba e pandeiro” sem deixar de ser a “terra de Nosso Senhor”!

Aquarela do Brasil Brasil, meu Brasil brasileiro, Meu mulato inzoneiro, Vou cantar-te nos meus versos. Brasil, meu Brasil brasileiro, Bamboleio, que faz gingar O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim! Ô, abre a cortina do passado, Tira a mãe preta do cerrado, Bota o rei congo no congado. Brasil! Brasil! Deixa cantar de novo o trovador À merencória luz da Lua Toda canção do meu amor. Quero ver essa Dona caminhando Pelos salões, arrastando O seu vestido rendado. Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim! Brasil, terra boa e gostosa Da morena sestrosa De olhar indiscreto! O Brasil, verde que dá Para o mundo se admirar, O Brasil do meu amor Terra de Nosso Senhor. Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim! Ô! Esse coqueiro que dá coco Onde eu amarro a minha rede Nas noites claras de luar! Brasil! Brasil! Ô! Estas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede E onde a Lua vem brincar. Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro É o meu Brasil brasileiro, Terra de samba e pandeiro. Brasil! Brasil! Pra mim! Pra mim!

O foco da canção é o Brasil, seu ritmo e sua herança africana, completado pela alusão às belezas naturais e a elementos da cultura europeia. O país é apresentado de forma otimista, festiva até, no comportamento de seus habitantes, em sua indolência e sensualidade, elementos elencados como característicos da cultura brasileira pelo movimento modernista. Interessante, também, como se repete constantemente que o Brasil é “pra mim, pra mim”, o que indica não apenas uma vontade, mas um concreto assumir a realidade do país pelo seu povo. Não é sem razão que a canção é vista como uma das marcas da cultura nacional (CABRAL, 1996CABRAL, S. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996., p. 49).

Assis Valente compôs “Brasil Pandeiro” (1940) pensando especificamente na interpretação de Carmem Miranda, que finalmente não a gravou, mas a canção reapareceu em registro icônico do grupo Novos Baianos no início dos anos de 1970. Canta igualmente a cultura popular com destaque para o samba e a batucada, mas também se referindo ao gingado, à dança e mesmo à culinária popular, ao citar diferentes localidades onde o samba é elaborado. Em comparação com os Estados Unidos, por conta do sucesso que Carmem Miranda fazia por lá, afirma que “o Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada”, apresentando sua cultura como principal produto de exportação do país. Algum tempo depois, Silas de Oliveira, pensando os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, imagina uma exaltação das belezas do país e compõe, como samba enredo para o desfile da Império Serrano, “Aquarela Brasileira” (1964), enumerando as características principais dos estados nacionais sobretudo em termos de paisagem, mas também afirmando a realidade do povo e aquilo que produz como cultura.

Essas canções remetem a um período em que os brasileiros se davam conta do país em que viviam, e em estilo mais clássico ou mais moderno, normalmente de maneira alegre e até ufanista, apresentavam uma compreensão do ser brasileiro (CABRAL, 1996CABRAL, S. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996., p. 24). A época em que foram compostas denota, de um lado, a herança modernista que motiva a pensar na realidade do Brasil e, de outro lado, encaminha a esperança de desenvolvimento encarnada na renovação cultural que conduz às transformações dos anos de 1960. A partir dessa época, a música brasileira se renova integralmente pela efervescência da bossa nova, pelo movimento da jovem guarda e pelo espetáculo dos grandes festivais de música popular, consolidando não apenas tendências, mas uma caracterização mais efetiva da música como produto nacional (SEVERIANO & MELLO, 1998SEVERIANO, J.; MELLO, Z. H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998., p. 57). Nesse sentido, embora as canções toquem em temas pontuais e específicos, o que mostra sua maneira de se perceber a realidade brasileira não é tanto o que dizem, mas sim o fato de serem canções nacionais. Exatamente por isso denotam o orgulho de ser brasileiro (CAMPOS, 2007CAMPOS, R. R. Visão da nação brasileira e música popular brasileira (MPB): uma proposta para o ensino da Geografia. Geografia, Rio Claro, v. 32, n. 2, p. 391-421, 2007., p. 410) e constituem o que se convencionou chamar de MPB, a música popular brasileira.

A ditadura militar que se instaurou no país, exatamente naquela década de 1960, precisou eleger algumas canções que se encaixavam em sua ideologia e na forma como os militares pretendiam cantar o orgulho nacional. É certo que, em outros momentos da política nacional, várias canções foram como que cooptadas para apoiar determinado governo. Isso aconteceu com “Aquarela do Brasil” e, por conta do futebol, outra paixão nacional, reverberou na conquista da Copa do Mundo de 1958 com “A taça do mundo é nossa” (1958), uma das canções mais tocadas nas rádios da época, composição de Maugeri Sobrinho, Wagner Maugeri, Lauro Müller e Victor Dagô.

Duas canções mostram bem o que os militares pretendiam desenvolver como orgulho nacional. Uma delas, “Eu te amo meu Brasil” (1970), tornou-se não apenas grande sucesso popular, especialmente no meio da juventude por conta da interpretação de Os Incríveis, mas efetivamente apareceu sustentando a ditadura e sua proposta de “Brasil ame-o ou deixe-o”. Entoada aos quatro ventos, com o apoio dos militares, fez a fama musical de seu compositor, Eustáquio Gomes de Farias, o Dom da dupla Dom e Ravel, e algum tempo depois foi esquecida por sua fraca qualidade musical e seu papel de propaganda da ditadura. Nesse sentido vale ainda uma referência à canção que foi como que o tema da seleção de futebol nacional que conquistou a Copa do Mundo no México, em 1970. Trata-se de “Pra frente Brasil” (1970), composição de Raul de Souza e Miguel Gustavo, canção de torcida, mas que foi apresentada pelos militares como um chamado à unidade nacional, forma de calar, literalmente, a oposição ao governo, pois se passou a identificá-la como oposição ao país. A segunda canção referida, composta fora dos padrões desejados pelos militares, também fez grande sucesso e firmou-se como um dos emblemas da nacionalidade brasileira. Trata-se de “País Tropical” (1969), de Jorge Benjor, que até hoje é lembrada e reverenciada como um dos clássicos do cancioneiro popular. A expressão abreviada, patropi, que aparece na interpretação tanto de Wilson Simonal quanto do próprio Jorge Benjor, tornou-se forma de a juventude do país afirmar sua identidade nacional fora dos quadros e dos padrões desejados e promovidos pela ditadura militar. Se a primeira exalta sobretudo as belezas naturais do país, suas praias e paisagens, a outra apresenta sobretudo a cultura nacional, mais especificamente a carioca, mas que se espalha um pouco por todo o país.

País tropical Moro num país tropical, abençoado por Deus E bonito por natureza (mas que beleza)! Em fevereiro (em fevereiro) Tem carnaval (tem carnaval), Eu tenho um fusca e um violão. Sou Flamengo e tenho uma nega Chamada Tereza! Sambaby, Sambaby, Sou um menino de mentalidade mediana (Pois é) mas assim mesmo sou feliz da vida Pois eu não devo nada a ninguém. (Pois é) pois eu sou feliz Muito feliz comigo mesmo Sambaby, Sambaby Eu posso não ser um band leader, (pois é) mas assim mesmo lá em casa todos meus amigos, meus camaradinhas me respeitam (pois é). Essa é a razão da simpatia Do poder, do algo mais e da alegria! Mó num pa tropí, Abençoá por Dê E boní por naturê (mas que belê), Em feverê (em feverê) Tem carná (tem carná), Eu tenho um fu e um viô Sou Flamê, Tê uma nê Chamá Terê.

Não deixa de ser curioso que, quando se trata de apresentar o país e o orgulho de seus habitantes, sempre se caminhe pelos rumos das belezas naturais e da cultura popular. São elementos próprios da nacionalidade brasileira, que não devem nada a padrões internacionais de estética. O país é bonito por natureza, e seu povo desenvolve uma cultura própria que diz muito do seu jeito de ser, no ritmo, na dança, no gingado, no batuque. As influências de diversas culturas africanas na composição do jeito de ser brasileiro não são escamoteadas, ao contrário, são cantadas como parte integrante da cultura nacional. Há um orgulho bem explícito na referência às paisagens e à cultura popular, fortemente influenciada pela presença africana (SEVERIANO; MELLO, 1998SEVERIANO, J.; MELLO, Z. H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998., p. 78). O Brasil não é exclusivamente um país de população branca de origem europeia, mas sim fruto de uma miscigenação própria, de uma mestiçagem que produz o próprio orgulho de ser assim, tornando-se como seu distintivo e característica essencial. Tal mestiçagem representa uma diversidade cultural bastante significativa que se encontra na raiz daquilo que é a cultura nacional, ampla e diversa em sua constituição e em suas fronteiras (SOUZA, 2000SOUZA, J. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da UnB, 2000., p. 48). Por isso, ainda que a pessoa seja pequena, tenha pouca ou nenhuma importância no cenário nacional, ela possui a convicção de que seu país é repleto de coisas boas, entre elas as outras pessoas com quem se relaciona e com quem pode tecer vínculos de amizade e solidariedade.

A realidade da presença negra também aparece em canções que marcaram o cenário da música brasileira, como a famosa “Canta Brasil” (1941), de David Nasser e Alcir Pires Vermelho, ou o “Canto das Três Raças” (1976), de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, que Clara Nunes apresentou ao país. “Canta Brasil” gravada pelo grande Francisco Alves e que apresenta o canto brasileiro, sua música, como fruto dos diferentes povos que compuseram o país, se situa na mesma linha do samba “Fala Martin Cererê” 1972), que foi tema de desfile da escola de samba Imperatriz Leopoldinense no Rio de Janeiro. Inspirada no poema de Cassiano Ricardo, poeta modernista, o samba composto por Gibi e Zé Catinga exalta o país em sua composição multiétnica e insiste na grandeza da pátria, fato que caiu bem no gosto dos militares que governavam pela ditadura. Já a obra gravada por Clara Nunes é bem mais crítica porque fala da opressão que fez sofrer os antepassados, mas, também, ainda causa sofrimento.

Canto das três raças Ninguém ouviu um soluçar de dor No canto do Brasil. Um lamento triste sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou Um canto de revolta pelos ares No Quilombo dos Palmares Onde se refugiou. Fora a luta dos Inconfidentes Pela quebra das correntes. Nada adiantou! E de guerra em paz, de paz em guerra, Todo o povo dessa terra Quando pode cantar, canta de dor. E ecoa noite e dia, é ensurdecedor. Ai, mas que agonia, o canto do trabalhador! Esse canto que devia ser um canto de alegria Soa apenas como um soluçar de dor!

Aqui descortina-se um novo horizonte, aquele de perceber que a música brasileira é também crítica e, assim, faz refletir e quer produzir uma consciência conhecedora dos problemas nacionais em vista de sua transformação. Não é suficiente para a identidade nacional dizer das grandezas do país ou de seu povo, de suas riquezas naturais ou culturais. A realidade obriga a ver como essas riquezas, naturais ou culturais, não são respeitadas pelos donos do poder, pelos dominantes, que fazem com que o povo sofra e a natureza seja destruída. A crítica insiste em dizer que a identidade nacional precisa ser construída, e ainda não está pronta se o país segue mergulhado em desigualdade. Não deixa de ser interessante perceber como, na letra da canção, as três raças entoam cantos de sofrimento e protesto, e não cantos ufanistas de grandeza como queriam os militares. A desigualdade, que esteve presente no país desde seu início, ecoa atualmente no sofrimento dos trabalhadores, e estes clamam por uma transformação da sociedade que faça surgir um Brasil não apenas mais brasileiro, mas mais justo. Canções como essa clamam por uma nova ordem social de diversas maneiras e com diferentes preocupações, mas fazem compreender que o brasileiro não é apenas alguém que canta, dança e sorri, mas também é alguém que sofre e que age para que o mundo seja diferente, um pouco mais semelhante àquilo que espera e deseja.

No ambiente eclesial, as canções que animam as celebrações litúrgicas e as reuniões de Igreja mostram não apenas certa tendência musical, mas também a forma de compreensão da Igreja e seu papel na cultura e na composição da identidade nacional. As canções religiosas referem-se, quase que unicamente, às celebrações litúrgicas e devocionais, e por isso sua referência é o modelo romano e, não raro, a língua latina. O instrumento utilizado no ambiente religioso das igrejas é o órgão, alojado quase sempre no coro do templo, lugar de onde o coral realiza a execução da canção, com ou sem jogo de vozes, em um estilo bem do agrado da cultura religiosa tradicional. Além de composições eruditas utilizadas na liturgia, sobretudo nas partes fixas da missa, alguns cantos específicos alcançam a sensibilidade popular e são cantadas por toda a assembleia reunida, como o “Pange língua”, ou “Tantum ergo” na sua forma abreviada, ou o “Veni creator”, canções que são entoadas ainda atualmente.

No Brasil, foi instrumento importante para as celebrações litúrgicas o livreto “Cecília, Manual de cânticos sacros”, (SINZIG; ROWER, 1939SINZIG, P.; ROWER, B. Cecília, manual de cânticos sacros. Petrópolis: Vozes, 1939.) que se tornou extremamente popular. Sua edição de 1939 enfatizava que o canto deveria ser feito por toda a assembleia “em uníssono”, mas também poderia ser realizado por um coral em “duas ou mais vozes” (p. 10)1 1 A primeira edição do livreto Cecília, manual de cânticos sacros, data de 1910. É resultado do trabalho dos freis Pedro Sinzig e Basílio Rower, e sua edição de 1939 foi feita pela Editora Vozes. Traz não apenas a letra, mas também a partitura musical de canções possibilitando o acompanhamento pelo órgão e a entonação mesmo em segunda voz. Edições posteriores acrescentaram novas canções, e uma edição mais popular trazia apenas a letra das canções. . O que transparece em primeiro lugar é a finalidade litúrgico-devocional do livreto e das canções que reúne, como “A nós descei”, “Divina eucaristia” ou “Coração santo2 2 Certas canções religiosas tradicionais são praticamente de domínio público, com muita dificuldade para estabelecer a autoria e data da composição. Quando possível, ao menos a autoria aqui é referida. . Elas expressam a forma de se compreender a prática religiosa católica como devoções, em especial aquela de Nossa Senhora. Por isso algumas dessas canções tornaram-se referências na cultura popular, como “Com minha mãe estarei”:

Com minha mãe estarei Com minha Mãe estarei na santa glória, um dia. Ao lado de Maria no céu triunfarei. No céu, no céu, com minha Mãe estarei. Com minha Mãe estarei aos anjos me ajuntando, e hinos entoando, louvores lhe darei. No céu, no céu, com minha Mãe estarei. Com minha Mãe estarei, então coroa digna de sua mão benigna, feliz receberei. No céu, no céu, com minha Mãe estarei. Com minha Mãe estarei e, sempre, neste exílio, de seu piedoso auxílio com fé me valerei.

O alcance catequético da canção, além de sua expressão devocional, parece evidente, proclamando a esperança e a confiança na intercessão da Mãe de Jesus, tornada aqui “minha Mãe”. A atenção de quem canta é direcionada ao céu futuro, esperança de todo cristão, entendendo a vida na terra como exílio, ou seja, lugar de sofrimento e padecimento. Assim, a esperança cantada anima os sofredores enquanto apazigua eventual revolta e contribui para que a religião seja vista sobretudo como confortadora e consoladora.

Ao mesmo tempo, certo triunfalismo eclesial desponta em canções que afirmam a grandeza católica, inclusive como componente da identidade nacional, e denuncia o erro dos incrédulos, como em “Queremos Deus”. O ritmo preferido é próximo ao de hinos militares, explícitos em “Levantai-vos soldados de Cristo”, e de certa forma contagiantes porque propícios para execução pelas corporações musicais, as famosas bandas, que participavam das procissões com seus instrumentos de sopro, sobretudo. Assim é com “Glória a Jesus”, de João Brasil, ou “Honra e Glória”, de Vitorino Fontes, e com “Virgem Mãe Aparecida”, de Vicente Blied, tornado o hino de Nossa Senhora Aparecida, expressando a romaria a Aparecida como forma de prática religiosa típica do brasileiro:

Virgem Mãe Aparecida Virgem Mãe Aparecida, estendei o vosso olhar Sobre o chão de nossa vida, sobre nós e nosso lar. Virgem Mãe Aparecida, nossa vida e nossa luz, Dai-nos sempre, nesta vida, paz e amor no bom Jesus. Peregrinos, longes terras, caminhamos através De altos montes e altas serras para vos beijar os pés. Estendei os vossos braços, que trazeis, no peito em cruz, Para nos guiar os passos para o Reino de Jesus. Desta vida, nos extremos, trazei paz, trazei perdão, A nós, Mãe, que vos trazemos com amor no coração.

Tais cantos, por um lado, apresentam devoções e convicções religiosas que se tornaram bastante popular pela catequese eclesial e por aquilo que tais cantos afirmam. Por outro lado, manifestam de maneira triunfal o privilégio de se pertencer à Igreja católica, expressando sua importância como componente da realidade nacional mesmo nas afirmações doutrinais. A certeza de que o Brasil é o maior país católico do mundo anima a prática religiosa, e o orgulho de tal pertença é cantado a uma voz nas assembleias celebrativas, como é expresso na “Marcha da Igreja”, de David Julien. Mais uma vez diga-se que o acompanhamento musical através do órgão ou, como acontecem em concentrações públicas e procissões, da banda, mostram bem a compreensão de Igreja que se tem, como uma sociedade perfeita, com destaque para o papel da hierarquia3 3 A eclesiologia dita da sociedade perfeita foi bastante afirmada no cenário medieval e esteve presente na consciência eclesial ainda em tempos de modernidade. Veja-se, por exemplo, SOUZA, N. História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 2020. . Uma nova concepção eclesial se produzirá a partir do Concílio Vaticano II, e as canções religiosas se apresentarão de outra maneira, manifestando nova consciência eclesial e novas perspectivas para a prática cristã, como transparece na afirmação de um “novo jeito de ser Igreja, afirmado e repetido pelas Comunidades Eclesiais de Base pelo Brasil afora durante bastante tempo.

4 A consciência nacional

Uma das canções mais emblemáticas quando se trata de pensar a crítica à política brasileira é “Pra não dizer que não falei das flores” (1968) de Geraldo Vandré e Theo de Barros. Ela encarnou, ainda no final dos anos de 1960 e vinda dos festivais, o grito de protesto da juventude contra a ditadura militar. É verdade que não se trata da primeira canção de crítica ao governo, até porque sempre houve maneiras de a arte popular criticar o poder estabelecido (SEVERIANO; MELLO, 1998SEVERIANO, J.; MELLO, Z. H. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Editora 34, 1998., p. 94). Também no cenário da música brasileira, a crítica aos governos aconteceu em outros tempos, como o demonstra Juca Chaves e sua famosa canção Dona Maria Teresa (1962), por exemplo. Mas o refrão da canção que dizia “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, ao mesmo tempo em que enchia de medo os donos dos quartéis, também alimentava a esperança da juventude brasileira que fez dela seu canto de protesto.

Durante a ditadura militar, a censura foi estabelecida, com especial cuidado no controle das manifestações artísticas. As letras das canções eram censuradas assim como peças de teatro, filmes, exposições e outras manifestações. Mesmo assim, o talento dos artistas nacionais conseguiu ludibriar os censores e estabelecer, publicamente, críticas que passaram, com o tempo, a fazer parte da consciência das pessoas que entoavam tais canções. Um mestre nessa arte, de talento reconhecido internacionalmente, foi Chico Buarque. Sua crítica política é contundente desde a conhecida “Roda Viva” (1967) até a mais recente “Caravanas” (2017), passando por “Cálice” (1973), “Apesar de você” (1970), “Meu caro amigo” (1976) e “Vai passar” (1984), sem esquecer ainda “Bye bye Brasil” (1979) ou “A violeira” (1983). Retratam a realidade nacional, o sofrimento imposto pela desigualdade social e a esperança de democracia e de participação. Nessa linha, “Apesar de você” é um clássico.

Apesar de você Hoje você é quem manda, falou, tá falado, Não tem discussão. A minha gente hoje anda falando de lado E olhando pro chão, viu? Você que inventou esse estado, E inventou de inventar toda a escuridão, Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar o perdão! Apesar de você amanhã há de ser Outro dia! Eu pergunto a você onde vai se esconder Da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir Em cantar? Água nova brotando e a gente se amando Sem parar! Quando chegar o momento, esse meu sofrimento, Vou cobrar com juros, juro. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, Este samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza De desinventar! Você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada Nesse meu penar! Apesar de você amanhã há de ser Outro dia! Inda pago pra ver o jardim florescer Qual você não queria! Você vai se amargar vendo o dia raiar Sem lhe pedir licença. E eu vou morrer de rir que esse dia há de vir Antes do que você pensa! Apesar de você amanhã há de ser Outro dia. Você vai ter que ver a manhã renascer E esbanjar poesia! Como vai se explicar vendo o céu clarear De repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar Na sua frente? Apesar de você amanhã há de ser Outro dia. Você vai se dar mal etc. e tal...

Apresentada como uma briga ou separação de casal, a canção se refere ao estado de exceção instalado pela ditadura militar e, em especial, à introdução do malfadado Ato Institucional Número Cinco, o AI-5, de infeliz memória. A canção, vista dessa forma, grita a esperança de novos tempos, com a liberdade alcançada, o povo festejando e os senhores do poder ditatorial derrotados de maneira inapelável.

A oposição ao regime militar aparece também na obra de outros autores como Aldir Blanc e sua famosa “O bêbado e a equilibrista” (1979), em parceria com João Bosco; ou Paulo César Pinheiro e seu “Pesadelo” (1972), feita em parceria com Maurício Tapajós; Gonzaguinha e sua irônica “Bié bié Brasil” (1980), e mesmo Fernando Brant com seu “Coração civil” (1981), em parceria com Milton Nascimento. O final do tempo da ditadura militar conhece críticas que ultrapassam o simples combate ao governo ditatorial e alcançam a forma de organizar a sociedade brasileira. É assim com “Querelas do Brasil” (1978), de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, e “Meninas do Brasil” (1980), de Fausto Nilo e Moraes Moreira. Com o fim da ditadura militar, a crítica político-social das canções ainda se manteve com foco não no governo, mas no sistema social e político. O jeito de construir a sociedade brasileira e suas instituições políticas foram fortemente criticados por canções como “Brasil Mostra Tua Cara” (1988), de Cazuza, George Israel e Nilo Romero, ou “Que país é esse?” (1987), de Renato Russo com interpretação do grupo Legião Urbana.

Que país é esse? Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado. Ninguém respeita a Constituição, Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia, Na Baixada Fluminense, Mato Grosso, Minas Gerais E no Nordeste, tudo em paz. Na morte, eu descanso. Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão. Que país é esse? Terceiro mundo se for, piada no exterior. Mas o Brasil vai ficar rico, Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão! Que país é esse?

O grito de indignação da juventude ecoava em tempos nos quais, finda a ditadura, imaginava-se que o país, finalmente, sairia de suas dificuldades e a justiça social fosse estabelecida. Tais sonhos, porém, mostraram-se de difícil realização, e o desencanto da juventude no final daquela “década perdida” transformou-se em rebeldia que ecoava nas artes e nos movimentos sociais. O fracasso dos sucessivos planos econômicos recolocava a questão da justiça social e da superação da desigualdade, mas como não se avançava nessas questões, o grito de indignação aparecia na pergunta “que país é esse?”

Os anos finais do século vinte trouxeram nova mudança no cenário musical brasileiro com a fixação da cultura pop e a introdução de novos ritmos musicais, marcados e revisados sobretudo pela gente da periferia. O que se tornara a clássica música popular brasileira, produto sobretudo de artistas intelectuais de classe média, era agora agitada pelo talento de artistas vindos do lado excluído da sociedade e que bradavam sua crítica como uma denúncia de suas condições de vida pouco dignas. O grupo Biquini Cavadão lançou a canção “Zé Ninguém” (1991), que escancara as mazelas do modo de vida da sociedade brasileira. A decepção com o governo de Fernando Collor de Mello e as denúncias sobre a corrupção instalada no país são o mote para as críticas ali apresentadas. “Diário de um Detento” (1997), composta por Mano Brown e Jocenir, é outra canção que revela o submundo do país, aquele que sobrevive apesar da desigualdade estruturalmente instalada no país. Seu pano de fundo é o massacre do Carandiru quando mais de uma centena de presos foram massacrados pelas forças policiais, e a canção aponta para tal fato como referência daquilo que acontece pelo país afora.

A longa letra cantada rapidamente em estilo rap da periferia, denuncia a vida dos detentos na prisão, o pouco caso do Estado e a decisão de perpetrar a chacina que vitimou 111 presos. Segundo a sugestão da canção, é apenas uma amostra daquilo que se conhece país afora, e experimentado com mais vigor na periferia dos grandes centros urbanos, onde a escalada da violência, muitas vezes patrocinada pelo próprio Estado, vitima tantas pessoas e faz sofrer ainda outras tantas. Há uma metáfora intencional entre o drama vivido nas cadeias e aquilo que a gente da periferia experimenta no cotidiano.

Mais recentemente, na segunda década do novo século, a crítica social ainda se faz presente no cancioneiro popular, e de forma bastante explícita. Paulinho Moska, por exemplo, lançou seu “Nenhum Direito a Menos” (2018), parceria com Carlos Rennó, em tempos nos quais se discutia reformas no sistema econômico e social brasileiro que ocasionaram a supressão de direitos trabalhistas duramente conquistados em outras épocas. Em tempos de pandemia de coronavírus, que matou mais de 650 mil brasileiros, a canção “Inumeráveis” (2020), de Bráulio Bessa e Chico César, afirmava que “se números frios não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar”, na ânsia de sensibilizar a sociedade brasileira e seus governantes diante da tragédia de tantas mortes. Aliás, a instalação do governo de extrema direita no Brasil trouxe à tona canções de resistência, algumas que nem foram compostas visando o governo, mas que se aplicavam muito bem a ele. Assim foi com o “Samba da Utopia” (2018), composto por Jonatham Silva inicialmente para a peça teatral Ledores do Breu e que se transformou em grande sucesso porque falava da resistência necessária diante do governo que flerta com comportamentos antidemocráticos.

A música popular brasileira conhece ainda a crítica que visa aspectos específicos da sociedade brasileira. Assim, por exemplo, aquelas que se posicionam contra o racismo, como “Raça” (1976), de Fernando Brant e Milton Nascimento, ou “Negão Negra” (2020), de Flavio Renegado e Gabriel Moura, cantada por Elza Soares, ou ainda o emblemático samba enredo da escola de samba Unidos de Vila Isabel intitulado “Kizomba, a Festa da Raça” (1988), de Martinho da Vila. Efetivamente o racismo tem acompanhado o desenvolvimento da sociedade brasileira (CARDOSO, 2022CARDOSO, R. Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 25), sem dar sinais de enfraquecimento. Também aquelas que valorizam a mulher e se posicionam contra sua discriminação, como “Cor de Rosa Choque” (1982), de Rita Lee, ou a simbólica “Maria Maria” (1978) de Milton Nascimento e Fernando Brant, que se tornou verdadeiro hino da grandeza e resistência da mulher brasileira frente à dominação. O mesmo pode ser observado com relação ao trabalhador, como “O Ferroviário” (1979), de Wando, ou a célebre “Construção” (1971), de Chico Buarque de Hollanda.

5 Um novo cenário religioso

Algumas canções populares alcançam comportamentos religiosos porque apresentam elementos próprios da religiosidade presentes na cultura nacional, e isso tanto na linguagem quanto na melodia ou naquilo que apresentam como temática. Talvez o exemplo mais célebre disso seja “Romaria” (1977), de Renato Teixeira, ou “Nossa Senhora” (1993), de Erasmo e Roberto Carlos e, em seguida, por tantos outros cantores brasileiros. Mas poderíamos também citar composições de Elomar Figueira de Mello, como sua “Balada do Filho Pródigo” (1993) ou sua “Cantiga do Estradar” (1983); ou as interpretações de Maria Bethânia para músicas religiosas em seu álbum Cânticos, Preces e Súplicas à Senhora do Jardim dos Céus (2003). O que se percebe em tais canções é a consciência religiosa fazendo parte da cultura popular brasileira em um jeito de ser nacional (CALVANI, 1998CALVANI, C. E. B. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola/Umesp, 1998., p. 43). Ainda poderiam ser aqui inseridas outras canções tipo gospel ou ligadas às religiões africanas como forma de exemplificar comportamentos religiosos próprios da população brasileira e inseridas em suas preferências musicais.

O cenário religioso brasileiro começa a se transformar após a realização do Concílio e a elaboração da teologia latino-americana da libertação. Também as canções religiosas se transformam e, dentro do novo jeito de ser igreja, tornam-se mais populares. Alguns passos foram dados inicialmente, como a inserção dos violões e guitarras para o acompanhamento de tais canções. Pe. Zezinho é um dos iniciadores de tal movimento, aproximando a juventude da música religiosa, também com preocupação catequética (MANZATTO, 2020bMANZATTO, A. Música religiosa: espiritualidade e catequese em canções do Pe. Zezinho. Caminhos, Goiânia, v. 18, p. 762-780, 2020b., p. 764). Posteriormente, as canções evoluíram ainda mais, com variação de ritmos, de instrumentos musicais e da forma como a assembleia foi convidada a participar do canto (FONSECA; WEBER, 2015FONSECA, J.; WEBER, J. A música litúrgica no Brasil 50 anos depois do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015., p. 44).

Interessante, porém, é notar a força de conscientização que as canções religiosas podem representar. As músicas religiosas passaram a ser vistas para além de seu papel de incentivar devoções ou animar celebrações, pois elas apresentam uma forma de pensar a teologia, a vivência religiosa cristã e a consequência social da afirmação de fé (MANZATTOa, 2020MANZATTO, A. A mística dos pobres em canções das Ceb. In: BINGEMER, M. C.; VILLAS BOAS, A. (Orgs.). Teopoética, mística e poesia. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2020a. p. 333-352., p. 335), desenhando o compromisso de construir uma sociedade diferente daquela que existe atualmente e que escandaliza por ser desigual e discriminatória. A eclesiologia do Povo de Deus, expressa pelo Concílio Vaticano II (CALIMAN, 2015CALIMAN, C. Povo de Deus. In: PASSOS, J. D.; SANCHEZ, W.L. Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus-Paulinas, 2015. p. 757-764., p. 757ss), é fundamental para compreender essa transformação, e a elaboração da teologia da libertação em terras latino-americanas propiciam o aparecimento da nova consciência eclesial, expressa pelo “novo jeito de ser Igreja” (MARTÍNEZ, 2017MARTÍNEZ, S. Communautés ecclésiales de base. In: CHEZA, M., MARTÍNEZ SAAVEDRA, L.; SAUVAGE, P. Dictionnaire historique de la théologie de la libération. Namur/Paris: Lessius, 2017, p. 155-159., p. 156ss). As chamadas Canções da Caminhada, articuladas com a prática das Comunidades Eclesiais de Base e com a teologia progressista e socialmente engajada em contexto latino-americano, são importante exemplo para mostrar como, a partir da dinâmica religiosa, o compromisso social pode ser vivenciado em termos de renovação do país.

Canções como “Peregrino/Migrante” (1981), de Frei Domingos dos Santos, mostra bem como a crítica social está presente dentro do cenário da vivência religiosa, a partir do grito dos mais sofridos. Talvez a canção mais emblemática do mesmo compositor seja “Lamento Nativo” (1982), na qual se articulam a vivência religiosa, a carência de recursos e a desigualdade social. “Seu Nome é Jesus Cristo” de Estéfano Rutuna com adaptação de Jadiel Barbosa e Nei Araújo, é canção profundamente questionadora no sentido de tornar bastante evidente a necessária ligação entre a afirmação de fé e o compromisso com os mais pobres.

Lamento nativo E agora me digam: se eu tenho direito, se sou cidadão ou por Deus não fui feito? Eu venho de longe, eu sou do sertão! Sou Pedro, sou Paulo, Maria e João! Eu sou brasileiro, mas sou estrangeiro. Lutei pela pátria e ganhei cativeiro. Eu sou a nação, eu também sou irmão, Sou povo de Deus e não tenho porção! Eu venho da fome, da seca e da dor, Eu sou do trabalho e não tenho valor. E agora me digam se eu tenho direito, se sou cidadão ou por Deus não fui feito? Eu faço a cidade e não moro, me arranjo. Plantei e colhi, mas não como, sou anjo! Eu venho da terra sem distribuição, Eu sou do cansaço sem compensação. Eu venho de longe, eu sou do sertão Sou Pedro, sou Paulo, eu sou a Nação! Eu faço a cidade, mas sou estrangeiro, Lutei pela pátria e ganhei cativeiro. E agora me digam se eu tenho direito, se sou cidadão ou por Deus não fui feito?

O lamento dos pobres aqui se faz sentir em toda sua força. Servindo-se mesmo da ironia, a canção denuncia, em primeira pessoa, o sofrimento daqueles que são deixados à margem da sociedade, vindos do interior e tornando-se excluídos nas periferias das grandes cidades, sejam essas periferias geográficas ou existenciais. Mas destaca-se que a desigualdade não se refere a indivíduos, mas ao coletivo dos pobres ou, mais amplamente, a toda a nação, já que a mesma situação de injustiça atravessa inúmeras regiões do país. A sequência, deixada para os que ouvem a canção, deve ser o questionamento sobre o que fazer para mudar a situação. Nesse sentido, a canção é engajante e ecoa os princípios fundamentais da teologia da libertação, sobretudo em sua decidida opção pelos pobres. Em tal caminho se engajou não apenas a Igreja do Brasil, mas a de toda a América Latina, criando uma consciência de pertença que extrapolou as fronteiras nacionais e abarcou todo o continente4 4 As assembleias gerais do Celam bem o demonstram, sobretudo as de Medelín, Puebla e Aparecida. Manifestam a consciência de uma Igreja latino-americana, expressa ainda recentemente na realização da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021). Sobre as conferências gerais do episcopado latino-americano, veja-se BRIGHENTI, A.; PASSOS, J.D. (Orgs.). Compêndio das Conferências dos Bispos da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2018. .

As canções religiosas também afirmam uma compreensão eclesial e uma percepção da identidade nacional pela melodia e pelos ritmos que cultivam, para além das temáticas que abordam. As músicas mais recentes são no estilo gospel ou baladas e rocks com jeito internacional. Aquelas Canções da Caminhada, no entanto, faziam apelo a ritmos e melodias nacionais, afirmando não apenas o compromisso social da fé, mas também a cultura popular que podia, sim, cantar à sua maneira os louvores de Deus e a força de seu povo (MANZATTO, 2020aMANZATTO, A. A mística dos pobres em canções das Ceb. In: BINGEMER, M. C.; VILLAS BOAS, A. (Orgs.). Teopoética, mística e poesia. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2020a. p. 333-352., p. 338). Também a utilização de instrumentos musicais mais populares, como a sanfona e o violão, demonstra como a música pode ter o povo como seu sujeito de referência, o que se casa muito bem com a nova consciência eclesial. Referência nesse sentido é Zé Vicente, que compõe fazendo recurso a não poucos ritmos populares nacionais como frevo, baião ou samba, tudo de maneira bem popular. Seu “Baião das Comunidades”, por exemplo, é típico disso, assim como seu “Samba social” (2012).

Baião das comunidades Somos gente nova vivendo a união, Somos povo semente de uma nova nação ê, ê. Somos gente nova vivendo o amor, Somos comunidade, povo do senhor, ê, ê. Vou convidar os meus irmãos trabalhadores Operários, lavradores, biscateiros e outros mais. E juntos vamos celebrar a confiança Nossa luta na esperança de ter terra, pão e paz, ê, ê. Vamos chamar os índios que ainda resistem, As tribos que ainda insistem no direito de viver. E juntos vamos, reunidos na memória, Celebrar uma vitória que vai ter que acontecer, ê, ê. Convido os negros, irmãos no sangue e na sina, Seu gingado nos ensina a dança da redenção. De braços dados, no terreiro da irmandade, Vamos sambar de verdade enquanto chega a razão, ê, ê. Vamos chamar Oneide, Rosa, Ana e Maria, A mulher que, noite e dia, luta e faz nascer o amor. E reunidas no altar da liberdade, Vamos cantar de verdade, vamos pisar sobre a dor, ê, ê. Vou convidar a criançada e a juventude, Tocadores, me ajudem, vamos cantar por aí. O nosso canto vai encher todo o país, Velho vai dançar feliz, quem chorou vai ter que rir, ê, ê. Desempregados, pescadores, desprezados E os marginalizados, venham todos se ajuntar. A nossa marcha pra nova sociedade, Quem nos ama de verdade pode vir, tem um lugar, ê, ê.

O que transparece em tais composições é a formação da consciência para a vivência do compromisso cristão com vistas à transformação da sociedade. Na canção acima, o ritmo bem popular, conjugado à letra que faz referência à gente simples do povo, anuncia o processo de formação de comunidades como forma de vencer não simplesmente o individualismo, mas a opressão política e social que é exercida sobre os pobres. Não se esconde a relação direta entre aquilo que a canção anuncia, a caminhada das Cebs e a Teologia da Libertação latino-americana. A crítica social presente nas Canções da Caminhada é situada e tem relevância a partir de onde ela é feita, normalmente a partir da periferia, dos pobres e dos setores sociais com eles comprometidos. Não é simples crítica a um governo ou a um partido político, mas sim à forma de organização da sociedade que produz excluídos, e feita exatamente a partir deles. Isso foi tremendamente importante no cenário nacional porque ajudou o país a sair da ditadura para fortalecer-se em democracia. Tal constatação não é sem importância quando se pensa a realidade nacional.

Mais recentemente as canções religiosas tornaram-se intimistas e favoreceram perspectivas individualistas de espiritualidade. Ritmos e melodias também se modificaram, e os instrumentos musicais que acompanham o canto são outros. Os chamados novos movimentos eclesiais tornaram-se hegemônicos no jeito de ser Igreja, trazendo novas compreensões de espiritualidade e cultivando a emotividade nas celebrações. As canções acompanharam tal movimento e os chamados “ministérios musicais” proliferaram nos diversos ambientes eclesiais com seu instrumental eletrônico próprio. A letra das canções tornou-se mais espiritualizante e intimista, como “Noites traiçoeiras”, de Carlos Papae, ou “Ninguém te ama como eu”, do costa-riquenho Martin Valverde, versão de Nelson Correa e Jorge Guedes:

Ninguém te ama como eu Tenho esperado este momento, Tenho esperado que viesses a mim. Tenho esperado que me fales, Tenho esperado que estivesses assim. Eu sei bem que tens vivido, Sei também que tens chorado. Eu sei bem que tens sofrido, Pois permaneço ao teu lado. Ninguém te ama como eu! Ninguém te ama como eu! Olhe pra cruz, Esta é a minha grande prova! Ninguém te ama como eu! Olhe pra cruz, Foi por ti, porque te amo. Ninguém te ama como eu! Eu sei bem o que me dizes, Ainda que nunca me fales. Eu sei bem o que tens sentido, Ainda que nunca me reveles. Tenho andado ao teu lado, Junto a ti permanecido. Eu te levo em meus braços Pois sou teu melhor amigo. Ninguém te ama como eu! Ninguém te ama como eu! Olhe pra cruz, Esta é a minha grande prova. Ninguém te ama como eu! Olhe pra cruz, Foi por ti, porque te amo. Ninguém te ama como eu!

Nos tempos atuais, em que a democracia corre sérios riscos, as Canções da Caminhada voltam a ter significado e importância, e não é sem interesse notar que elas reaparecem no cenário religioso, em celebrações e na vida das comunidades, muito ainda por conta do magistério do Papa Francisco. Canções que trabalham a temática do compromisso social dos cristãos ressurgem e novas são apresentadas, como é o caso do trabalho de Cirineu Kuhn em “Tudo está interligado”, clara referência à ecologia integral proposta na Laudato Sí (2015), e de Antonio Cardoso em “Pan-Amazônia ancestral”, em explícita alusão ao Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica (2019). A consciência crítica aponta para uma realidade que exige o reaparecimento da convicção de que a realidade nacional precisa ser repensada e reconstruída, assim como a consciência de pertença à comunidade cristã e sua forma de engajamento. Novos tempos exigem novo discernimento e novo compromisso, e o reaparecimento de referenciais eclesiais seguros, como os do Concílio Vaticano II, direcionam a ação dos cristãos na perspectiva do Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo. A defesa da vida, em todas as suas formas, e a cultura do diálogo precisam substituir a cultura do ódio e da violência que assola o país, e as canções religiosas, sobretudo, podem ter papel de destaque nesse cenário.

Conclusão

A moderna música brasileira também pensa, de diversas maneiras, a realidade do país e de seu povo. Apresenta caminhos de solução para seus problemas, denuncia situações de sofrimento e propõe engajamento pela transformação da sociedade. A identidade nacional não é estanque, mas dinamicamente se modifica na medida em que novas situações são experimentadas e novas questões são apresentadas ao conjunto da sociedade. Assim sendo, há uma profunda evolução na música brasileira segundo as diferentes épocas em que ela é realizada, sempre se referindo a formas de compreender e viver a brasilidade. Por isso a música brasileira contemporânea é, em certo sentido, herdeira da Semana de Arte Moderna de 1922 já que o modernismo evolui em conjunto com a sociedade (LEITE, 2012LEITE, E. Música na Semana de 22: tradição e ruptura na cidade de São Paulo. Revista USP, São Paulo, n. 94, p. 59-70, jun./jul./ago. 2012., p. 63). A consciência do que significa ser brasileiro se articula com a realidade social, com os diversos aspectos da cultura nacional e com as diferentes regiões onde se concretiza a existência do povo brasileiro (DA MATTA, 1999DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1999., p. 167). Assumir a realidade do país, em sua geografia, em sua cultura e em sua situação histórica, esse o desafio que o brasileiro encontra para viver em seu país e expressa nas canções que cantarola.

Diferentemente do que se pode pensar à primeira vista, as canções populares não são apenas instrumentos de diversão porque ultrapassam as fronteiras do lúdico para atingir a consciência cidadã. Elas expressam a cultura que as originam, mas são instrumentos de renovação do mundo que habitam, de maneira que ao repetir, continuamente, as frases e ideias que aparecem nas canções, a consciência evolui para aquilo que elas pregam ou anunciam. O mesmo acontece com a música religiosa, que tem profundo alcance catequético, como diríamos. Por isso, são inúmeras as canções nacionais que têm como tema o país, a sociedade e seus processos de transformação. Em seu conjunto, apelam de forma crítica para que o próprio povo se comprometa com a construção do Brasil e o faça de maneira a favorecer o conjunto do povo, e não simplesmente o indivíduo ou seu grupo de apoio. Mudar o país é aproximá-lo do que ele pode ser em benefício de seu povo. De tal compromisso não se afastam as canções religiosas, ao menos aquelas que aparecem no âmbito de uma igreja comprometida com a realidade do povo, que se poderia chamar atualmente de Igreja em saída. A religião não deve simplesmente satisfazer os donos do poder ou ser instrumentalizada a seu serviço, mas ajudar a humanidade a conviver no respeito à dignidade humana de todas as pessoas.

As canções religiosas também expressam, à sua maneira, compreensões do jeito de ser Igreja em referência à realidade nacional, e atravessam os vários cenários históricos de sua evolução. A Igreja não vive nas nuvens, mas dentro da história, e por isso “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS, n. 1). Ser cristão não significa habitar o mundo dos anjos, mas o dos humanos e comprometer-se, eticamente, a humanizá-lo cada vez mais. Aqui se estabelece a relação entre a profissão de fé em Jesus Cristo e a dinâmica de construção da cultura nacional, porque esta será marcada pela forma de se construir a historicização do seguimento de Jesus no concreto do contexto nacional em cada uma de suas épocas.

Em muitos aspectos a Semana de 1922 marcou a realidade brasileira. Como foi dito, tanto na arte quanto na vida. A proposta modernista era de repensar o país, formar sua própria cultura, sem preconceitos e sem temores, fazendo com que o país se transformasse para ser aquilo que ele pode ser. O desafio daqueles primeiros modernos permanece ainda hoje, pois o país segue adiante nos caminhos da história, e sua cultura vai se tecendo sempre ao longo do mesmo caminho. Ele se amplia também para o cenário religioso, já que o desafio contemporâneo é o de fazer com que o cristianismo seja ainda pertinente à realidade atual, especificamente a brasileira. No tem po que é o nosso, será preciso entender como se pode ser brasileiro e cristão ao mesmo tempo, ultrapassando a cultura do ódio e da violência para proclamar o direito dos pobres e a beleza da vida na fraterna construção do Reino de Deus, que também é nosso.

  • 1
    A primeira edição do livreto Cecília, manual de cânticos sacros, data de 1910. É resultado do trabalho dos freis Pedro Sinzig e Basílio Rower, e sua edição de 1939 foi feita pela Editora Vozes. Traz não apenas a letra, mas também a partitura musical de canções possibilitando o acompanhamento pelo órgão e a entonação mesmo em segunda voz. Edições posteriores acrescentaram novas canções, e uma edição mais popular trazia apenas a letra das canções.
  • 2
    Certas canções religiosas tradicionais são praticamente de domínio público, com muita dificuldade para estabelecer a autoria e data da composição. Quando possível, ao menos a autoria aqui é referida.
  • 3
    A eclesiologia dita da sociedade perfeita foi bastante afirmada no cenário medieval e esteve presente na consciência eclesial ainda em tempos de modernidade. Veja-se, por exemplo, SOUZA, N. História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 2020SOUZA, N. História da Igreja. Petrópolis: Vozes, 2020..
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    As assembleias gerais do Celam bem o demonstram, sobretudo as de Medelín, Puebla e Aparecida. Manifestam a consciência de uma Igreja latino-americana, expressa ainda recentemente na realização da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe (2021). Sobre as conferências gerais do episcopado latino-americano, veja-se BRIGHENTI, A.; PASSOS, J.D. (Orgs.). Compêndio das Conferências dos Bispos da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2018BRIGHENTI, A.; PASSOS, J. D. (Orgs.). Compêndio das Conferências dos Bispos da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2018..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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