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“EU VOS QUERO ALTERADOS POR UM TROPICAL AMOR DO MUNDO”: ARTE MODERNA, POVO E ESPIRITUALIDADE NO ITINERÁRIO DE MÁRIO DE ANDRADE

“I Want you Altered by a Tropical Love of the World”: Modern Art, People and Spirituality in Mário de Andrade’s Itinerary

RESUMO

No artigo a seguir, destacaremos em largos traços dois marcos do itinerário intelectual-existencial de Mário de Andrade, que constituem passagens para dimensões axiais de sentido, em consonância com a travessia histórica do Brasil contemporâneo, a saber: passagens para a modernidade e a coletividade. No itinerário de Mário, cada uma dessas passagens comporta, a nosso juízo, uma respectiva forma de espiritualidade, aqui entendida como experiência radical de sentido que abre o humano a uma perspectiva de transcendência e transfigura a totalidade de sua existência. Embora a atuação pública de Mário de Andrade se localize em campo artístico-cultural, não se trata de nos aprofundarmos em análises estéticas especializadas, mas de ensejar um diálogo com núcleos conceptivos subjacentes à sua obra, de modo a contribuir para articular um possível esboço do pensamento marioandradino e, em especial, do projeto de Brasil nele inscrito.

PALAVRAS-CHAVE
Brasil; Modernidade; Coletividade; Espiritualidade

ABSTRACT

The following article highlights, in general terms, two milestones in Mário de Andrade’s intellectual-existential itinerary. They constitute passages with axial dimensions of meaning, in line with the historical crossing of contemporary Brazil, namely: passages to modernity and collectivity. In our opinion, each of these passages, in Mário’s itinerary, acts in a respective form of spirituality, understood here as a radical experience of meaning that opens the human being to a perspective of transcendence and transfigures the totality of their existence. Although Mário de Andrade’s public performance is in the artistic-cultural field, it is not a matter of us delving into specialized aesthetic analyses, but of creating a dialogue with the conceptual cores underlying his work. This is done to contribute to articulating a possible outline of the Marioandradino thought and, in particular, of the Brazil project inscribed in it.

KEYWORDS
Brazil; Modernity; Collectivity; Spirituality

Introdução

Difícil pensar o Brasil contemporâneo em sua complexidade, possibilidades e impasses, sem passar pela figura paradigmática de Mário de Andrade.

Nas tantas faces e ao longo de todas as fases de sua exuberante produção cultural, como poeta, escritor polígrafo, músico e musicólogo, crítico de arte, etnógrafo, folclorista, professor, diretor de departamento cultural etc., sob a consigna de que “é preciso abrasileirar o brasileiro”, Mário jogou-se inteiro e com ardor no afã de contribuir para deixar nascer o Brasil – ou Brasis – na encruzilhada de disputas civilizatórias do século XX: fosse na busca de uma linguagem artística atual e local, no trabalho de recuperação de matrizes ancestrais de nossa cultura, na promoção de uma articulação viva entre os campos erudito e popular, ou na luta pelos direitos fundamentais das populações excluídas e, por extensão, no enfrentamento da insanável fratura colonial da sociedade brasileira.

Com o seu “tipo físico de um índio espadaúdo” – tal como o descreve Alceu Amoroso Lima –, de “boca enorme, cheia de dentes, mãos enormes como patas de urso, ombros muito largos, riso muito aberto”, “talhado para agitador”, e no qual “tudo respirava irradiação, dinamismo, exuberância, alegria de viver” (JARDIM, 2015JARDIM, E. Eu Sou Trezentos: Mário de Andrade – Vida e Obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015., p. 11), poucas vezes em nossa história cultural se viu alguém dar tanto de si, e em áreas tão diversas, a serviço de um projeto de Brasil como civilização tropical próspera, igualitária, distinta, plural, intercultural, mestiça. É como se o Brasil contemporâneo – terra em transe – se encarnasse no corpo em transe desse “índio espadaúdo” da Pauliceia.

Pelo modo como narra a si mesmo, numa ou noutra passagem, percebe-se como o próprio escritor parecia consciente da magnitude que sua figura havia alcançado no imaginário dos contemporâneos. A exemplo do poema do livro póstumo “Lira Paulistana”, no qual o poeta se metamorfoseia na figura totêmica do boi – referência simbólica de unidade nacional, de acordo com suas pesquisas etnográficas –, e simula a repartição dos membros de seu corpo pelos diversos logradouros da cidade natal, em correspondência com o ritual popular da partilha do boi: “Quando eu morrer quero ficar,/ Não contem para os meus inimigos,/ Sepultado em minha cidade./ Saudade./ Meus pés enterrem na rua Aurora,/ No Paiçandu deixem meu sexo,/ Na Lopes Chaves a cabeça/ Esqueçam.” (ANDRADE, 1987ANDRADE, M. de. Poesias Completas. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1987., p. 381)

Ao encenar em versos a partilha do próprio corpo – não obstante limitar-se ao espaço da cidade natal –, o poeta-boi investe-se a si mesmo como um análogo totêmico da unidade nacional, investidura, aliás, sobejamente justificável, tendo em vista tudo o que fez, em campo cultural, em favor da afirmação do Brasil como pátria una, distinta e plural, soberana e proativa no concerto das nações, conforme veremos adiante.

A seguir, destacaremos em largos traços dois marcos do itinerário intelectual-existencial de Mário de Andrade, que constituem passagens para dimensões axiais de sentido, em consonância com a travessia histórica do Brasil contemporâneo, a saber: passagens para a modernidade e a coletividade. No itinerário de Mário, cada uma dessas passagens comporta, a nosso juízo, uma respectiva forma de espiritualidade1 1 Para uma compreensão do sentido de espiritualidade em perspectiva contemporânea, cf. o verbete “Espiritualidade contemporânea”. In: FIORES, S. de.; GOFFI, T. (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 340ss. , aqui entendida como experiência radical de sentido que abre o humano a uma perspectiva de transcendência e transfigura a totalidade de sua existência. Com efeito, ao atravessar o portal da insurreição estética modernista – primeira passagem –, o escritor transfigura-se em subjetividade erótica-libertária consagrada a uma espiritualidade de afirmação da vida; e ao (re)encontrar as matrizes ancestrais da nacionalidade na comunidade popular, passando a dedicar-se a uma arte a serviço da libertação coletiva – segunda passagem –, transfigura-se em subjetividade ética-comunitária consagrada a uma espiritualidade da vida compartilhada. Em cada uma dessas “trans-figurações”, toma corpo no poeta-pensador a correspondente dimensão de sentido que, em nível histórico, vai emergindo na terra em transe brasileira.

Embora a atuação pública de Mário de Andrade se localize em campo artístico-cultural, fique claro que não se trata aqui de nos aprofundarmos em análises estéticas especializadas, mas de ensejar um diálogo com núcleos conceptivos subjacentes à sua obra, de modo a contribuir para articular um possível esboço do pensamento marioandradino e, em especial, do projeto de Brasil nele inscrito.

1 Passagem à modernidade

O movimento modernista foi o porta-voz artístico de uma efervescência difusa na sociedade brasileira na segunda década do século XX, a reboque da expansão da civilização capitalista global, com seus fenômenos correlatos de industrialização, progresso científico-tecnológico, urbanização, dentre outros, que chacoalharam velhos poderes, tradições, valores, hábitos, ritmos etc. e redesenharam a configuração geo-socio-cultural do país (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 23ss).

Com seu rico repertório de choques semióticos, o movimento modernista emitiu um importante sinal de virada civilizatória, por menor que tivesse sido, de início, a amplitude de seu alcance nas camadas menos ilustradas da população; e fez soar um outro grito, desta vez cultural, de “independência”, cujo marco programático – a Semana de Arte Moderna de 1922 – não por acaso ocorre no mesmo ano do centenário de independência do Brasil, coincidindo com outros eventos seminais de insurgência de nossa história contemporânea, como a insurreição tenentista e a fundação do Partido Comunista do Brasil. Mais do que sintoma de época, a insurgência estética modernista contribui, a seu modo, para potenciar o estado revolucionário desencadeador, anos mais tarde, da Revolução de 1930, que usurparia o poder da velha oligarquia agrária e estabeleceria as bases do moderno Estado nacional, confirmando a hipótese de Mário de Andrade segundo a qual “os movimentos espirituais precedem sempre as mudanças de ordem social” (ANDRADE, 1974ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974., p. 241).

A insurgência modernista se traduz em ruptura estética com o passadismo. Tratava-se de atualizar as artes nacionais com a civilização global; de despertá-las de sua letargia pela abertura aos acontecimentos dos novos tempos, isto é, de dar um choque elétrico de realidade nas artes. Romper com o passadismo estético significava não somente incorporar na arte, ao nível semântico, o diversificado repertório temático do novo cenário histórico – fábricas, automóveis, cinema –, mas, sobretudo, infundir na arte a energia, a vibração anímica da emergente civilização moderna. Significava deixar a energia da modernidade acontecer na arte e como arte; plasmar em arte a alma da modernidade; portanto, dar à arte a possibilidade de recomeçar a dizer o mundo a partir dessa transmutação epocal de sensibilidade.

Ao nível formal, isto implicava toda uma batalha demolidora contra o academicismo das escolas oficiais de arte, que promoviam a reprodução acomodatícia de cânones estéticos importados, desencorajando ousadias criadoras e privando o artista de uma relação orgânica com o seu ambiente social. Era o “bom gosto” a serviço da reprodução da ordem social dominante, e a mumificação artística em conluio com a esterilização crítica.

No campo literário, a batalha antiacademicista teve como principal foco estratégico o combate ao parnasianismo, cuja pregnante presença no imaginário belle epoque nacional, nas primeiras décadas do século XX, levou à sistemática confusão entre literatura e beletrismo, resumido no lema anódino segundo o qual a literatura é “o sorriso da sociedade”. Em 1921, a um ano da Semana de Arte Moderna, Mário afia suas armas polêmicas na emblemática série de artigos intitulada “Mestres do Passado”, sobre os poetas parnasianos. Sem deixar de reconhecer os momentos de alta poesia das obras desses mestres, prevalece nos artigos a crítica ao efeito desvitalizante, para a criação poética, do formalismo da escola parnasiana considerada como fenômeno cultural coletivo.

Ademais dessa crítica propriamente estética, Mário de Andrade também observa que o parnasianismo e demais modas artísticas importadas não somente se originam em outros contextos socioculturais, que pouco têm a ver com o nosso; mas também aqui chegam com mais de uma década de atraso em relação aos seus países de origem. Ou seja: são territorialmente transplantados e historicamente defasados. Puro fenômeno de colonização mental.

Ao investir contra a crosta morta de beletrismo que asfixiava a cultura brasileira, o modernismo de 1922 não somente franqueava espaço ao “direito permanente à pesquisa estética”, mas também a um mais amplo projeto de “atualização da inteligência artística brasileira” e, como consequência, de “estabilização de uma consciência criadora nacional” – aspectos que, segundo Mário de Andrade, constelam os três “princípios fundamentais” do movimento modernista (ANDRADE, 1974ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974., p. 242).

Note-se que o “direito à pesquisa estética” não constitui um logro redutível ao estrito campo da produção artística, mas articula-se ao trabalho coletivo de atualização da “inteligência artística” brasileira e de consolidação da própria “consciência nacional”, com as responsabilidades ético-sociais – isto é, civilizatórias – que lhes correspondem. Noutras palavras, levar longe e a fundo a pesquisa das possibilidades da linguagem artística já é, em certa medida, contribuir para potenciar a própria comunidade humana que se serve dessa linguagem para traduzir e afirmar a si mesma. Um povo com mais possibilidade de se dizer é, ao fim e ao cabo, um povo com maior possibilidade de ser si mesmo. Nesse sentido, a pesquisa estética, ela própria, já comporta importantes responsabilidades civilizatórias, como veremos a seguir.

Antes, porém, de passar às dimensões nacional e ético-social da arte – ressaltadas nos momentos seguintes da obra marioandradina –, deteremo-nos ainda um pouco em aspectos pontuais da poética modernista, a fim de abrir caminho à primeira vertente do que aqui chamamos de espiritualidade subjacente ao itinerário de Mário de Andrade.

No ensaio “A Escrava que Não é Isaura”, publicado em 1925, Mário de Andrade sustenta a tese, apoiado em Paul Dermée2 2 Paul Dermée (1886-1951), poeta e crítico literário belga. , segundo a qual o moto originário da arte é o “lirismo” ou “moto lírico”, entendido como pulsão criadora pré-consciente, não lógica, que brota de si mesma e transcende à consciência e vontade do sujeito. Embora o princípio fundamental da poética modernista consista no “respeito” à “liberdade subconsciente” de tal pulsão criadora, Mário previne, no entanto, com o próprio Dermée, que a arte poética consiste em “Lirismo puro + Crítica + Palavra”, em que “Crítica” e “Palavra” abrangem a dimensão artesanal ou o que nosso autor chama propriamente de “arte”, isto é, todo o trabalho de produção da obra, com os materiais, técnicas e aprendizados aí implicados. (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 30).

A “Escrava”, a que alude o título do ensaio, é a “Poesia”. A grafia em maiúscula sugere que o termo é empregado não para designar um dos ramos da literatura, mas no sentido originário de “poiésis”, isto é, como o próprio princípio produtivo-criativo da arte. No ensaio, a Poesia é metaforicamente descrita como uma mulher “humana, cósmica e bela”, criada “nua e eterna” da língua do primeiro ser humano, cuja “queda”, entretanto, o leva, e às gerações seguintes, a cobrir a nudez primordial dela com toda sorte de panos e atavios. Até que um “vagabundo genial” – Rimbaud, um dos pais fundadores da arte moderna – sacode a montanha de vergonha, da qual volta à luz a mulher “nua, ignara, falando por sons musicais, selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera”, que os novos poetas se põem a “adorar” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 29). A poesia moderna nasceria, assim, de um gesto de alforria dessa entidade eterna que, de “escrava”, se veria restituída ao status de potência “cósmica” originária. Curioso, aliás, que a rebeldia emancipadora moderna, personificada em Rimbaud, seja aqui narrada como um movimento de retorno às fontes da criação.

A metáfora acima condensa o essencial da concepção modernista de arte – ao menos na versão de Mário de Andrade – como ato libérrimo de “criação pura”, nascido do “eu profundo”, cujo fluxo indômito caberia ao poeta tão somente obedecer, auscultar e grafar. A rigor, portanto, o poeta não propriamente “faz” Poesia, mas deixa que esta aconteça no tempo-espaço da obra.

Essa “obediência” (no sentido etimológico de ob-audire, que remete a “escuta”) do poeta moderno à regência do fluxo lírico tem como corolário a recuperação da “Eloquência”, linguagem “vária das falas da alma que mais psicologicamente se chamariam movimentos do sub-eu” (ANDRADE, 1980ANDRADE, M. de. Obra Imatura. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980., p. 221). Em contraste com a Eloquência do “sub-eu”, que é a linguagem em estado nascente, como um puro dizer jamais inteiramente dito – no permanente limiar entre o dito e o não-dito –, a retórica caracteriza-se pela sujeição da linguagem a moldes pré-estabelecidos, a partir da pretensão do eu-sujeito de comandar a fala a serviço de um bem-dizer – de uma “orto-logia” – que não deixaria margem para equívocos e exauriria tudo a ser dito.

Vista nessa perspectiva, a defesa do verso livre pelos poetas modernistas representa não um gesto de desleixo formal, mas, bem ao contrário, a aposta numa responsabilidade estética ainda mais exigente e muito delicada, pois doravante se trataria justamente de não reduzir a forma à fôrma – como o fizeram os parnasianos – e de buscar encontrar, para o tônus e a cadência de cada impulsão lírica, o ritmo frasal que melhor lhes corresponda. Nessa fina ausculta da cadência do movimento lírico, inclusive, o poeta modernista se vê instado a incorporar recursos da arte musical, no sentido de tentar aproximar-se da fala “por sons musicais”, visceralmente lírica e translógica, da “Escrava” liberta por Rimbaud.

Outro corolário da preeminência do moto lírico é a proscrição da distinção entre assuntos mais ou menos “poéticos”, já que a pulsão lírica é vasta como a vida e “pode nascer de uma réstea de cebolas como de um amor perdido.” (ANDRADE, 1980ANDRADE, M. de. Obra Imatura. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980., p. 208). O assunto não é poético em si – por sua maior densidade “metafísica”, por exemplo –, e sim pela comoção que pode despertar, comunicando ao poeta um “transe lírico” ou “dom de escureza” que o impele à incessante busca do sentido das coisas: “(...) o essencial, em poesia, não é o Amor, Deus, e outras maiúsculas, mas a própria poesia, a indefinível poesia (...). Haverá sempre o essencial mesmo na poesia que, integralmente poética, trate do rabo do gato.” (ANDRADE, 1972ANDRADE, M. de. O Empalhador de passarinho. 3.ed. São Paulo: Martins Editora, 1972., p. 20).

2 Espiritualidade de afirmação da vida

Alforriados em sua pulsão criadora, “consultando a liberdade das impulsões líricas”, os poetas modernistas põem-se a “cantar tudo”, pois “tudo o que pertence à vida e à natureza” lhes interessa. (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 31-32). Veem-se reintegrados à “fartura” da vida, notadamente à pletora em alta voltagem da vida metropolitana do século XX. Jovens, apaixonados/as, talentosos/as, propiciam em arte um culto a Eros-Dionísio no coração em fúria da Pauliceia.

Durante essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. (...) O estado de exaltação em que vivíamos era incontrolável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial! (...) Mesmo cercados de repulsa cotidiana, a saúde mental de quase todos nós, nos impedia qualquer cultivo da dor. (...) Ninguém pensava em sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se imaginava precursor nem mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos. E muito saudáveis.

(ANDRADE, 1974ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974., p. 237-238).

Insinua-se, nesse depoimento, a ambiência anímica em cujo substrato reconhecemos, no itinerário específico de Mário de Andrade, a aqui chamada espiritualidade de afirmação da vida, isto é, uma experiência radical de sentido que transfigura toda a existência humana ao dizer sim! à realidade terrena, celebrar a sacralidade da vida e abençoar as alegrias de eros.

Deparamos um significativo registro dessa espiritualidade de afirmação da vida no poema “Reza de Fim de Ano”, de 1923, no qual um Mário católico apostólico paulistano confia ao seu Deus, com intimidades de salmista, os prazeres e dores da intensa vida metropolitana nos tempos de farra modernista. É como se o antigo congregado mariano3 3 Em 1909, Mário de Andrade entra para a Congregação da Imaculada Conceição da Igreja de Santa Efigênia, da qual fazia parte seu irmão mais velho, Carlos Augusto, e em 1918 pede admissão ao noviciado da Venerável Ordem Terceira do Carmo. entregasse ao Cristo as primícias do opulento reinado de Dionísio sob o qual então vivia:

Senhor, é 31.../ Deixei a noite lá./ Paulicéia alegre, farrista,/ Sacudida em fordes, dodges.../ (...)/ Senhor, é 31.../ Eu te agradeço este ano que me deste./ Que o novo seja igual ao que passou!/ Alegrias bombásticas/ Sofrimentos redundantes/ Retumbantes/ Samba/ Villa Lobos/ Os meus amigos de Paris/ Águas-fortes de Seewald/ Águas-fortes de Chagall/ Sangue/ Pranto e riso/ Quanta coisa! Quanta coisa!...

(ANDRADE, 1989ANDRADE, M. de. Cartas a Anita Malfatti. Marta Rossetti Batista (Org.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 68).

Advertido pelo mano mais velho, e também congregado mariano, de que o poema-reza continha um ponto frouxo em matéria de ortodoxia religiosa4 4 Sobre o “paracatolicismo” de Mário de Andrade, SANTOS, L. Mário-Alceu: um diálogo marginal (Mário de Andrade leitor de Alceu Amoroso Lima). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. São Paulo, n. 49, p. x-xx, mar./set. 2009. , o poeta – muito zeloso em questões de fé, até o fim da vida5 5 Para uma visão mais abrangente da religião em Mário de Andrade, conferir: SANTOS, L. Elegia de Jacó, o homem: Mário de Andrade e a religião. In: SANTOS, L. O Passeio da Coruja. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994. – pensa em consultar um sacerdote, mas tem vergonha: “Acredito mesmo que pensam que fazer uma oração futurista já é pecado... coitados!” (ANDRADE, 2000ANDRADE, M. de. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organizado por Marco Antônio de Moraes. São Paulo: EDUSP/IEB, 2000., 178).

Para além da fase heroica do modernismo, essa espiritualidade de afirmação da vida ganha densidade e se firma no itinerário de Mário de Andrade como um de seus mais fecundos veios inspiradores, manifestando-se de vários modos.

Em carta a Alceu Amoroso Lima, de 23/12/1927, o escritor lança importante luz sobre essa dimensão de sua espiritualidade ao referir-se ao seu (dele, Mário) entranhado “dionisismo”, isto é, “não só uma vontade de gozar a vida, porém o gozo da vida”, que o faz prender-se “por um entusiasmo de corpo e alma pelos movimentos da vida” e vivê-los “com uma intensidade pasmosa”. Dionisismo, continua Mário, “sem êxtase, uma confiança sensual, uma fé sistematizada em tudo, e uma certeza permanente e perdoadora na imbecilidade do homem”, que vibra em “toda” sua obra (SANTOS, 2009SANTOS, L. Mário-Alceu: um diálogo marginal (Mário de Andrade leitor de Alceu Amoroso Lima). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 49, p. x-xx, mar./set. 2009., p. 65). Bem entendido, não seria um puro e simples “gozo da vida”, autorreferente e dissipado, que se alçaria à “espiritualidade” de afirmação da vida aqui indicada, e sim esses “entusiasmo de corpo e alma”, “confiança sensual” e “fé sistematizada em tudo” que abraçam a totalidade do real num ato de radical aceitação “perdoadora da imbecilidade do homem”, como se estivesse aqui em ação uma espécie de transcendência para dentro da condição terrena, uma adesão incondicional, apaixonada e devota à fonte da vida que em tudo se dá e em tudo vigora, apesar de tudo.

Noutro passo de seu notável epistolário, em carta a João Etienne Filho, de 10/02/1944 – um ano antes de sua morte –, tal exuberância dionisíaca é reafirmada de outro modo, quando Mário confessa não ter “piedade cristã enquanto virtude pretendida”, porque, diz ele, “é tamanho o meu interesse pessoal, o meu amor pela, digamos, utilização de mim mesmo, que tudo se transforma pra mim numa luta esportiva mas bravia, em que decerto eu perco dez ou trinta jogos, pra ganhar um.” (SANTOS, 1994SANTOS, L. O Passeio da Coruja. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994., p. 70). Mais adiante, na mesma carta, defende um inusitado “martírio esportístico” para o Cristianismo de seu tempo:

Um martírio com muita saúde de espírito, mais por interesse de vida que por interesse de morte, que pusesse de parte a Esperança, com menos Fé que Caridade, capaz de amar a Deus não sobre todas as coisas, mas nas coisas, capaz de amar a Deus cegamente na obra de Deus (...).

(SANTOS, 1994SANTOS, L. O Passeio da Coruja. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994., p. 70).

“Caridade” (Charitas) ou amor, no sentido cristão originário, vem a ser a terceira e mais importante das “virtudes teologais”, isto é, das virtudes infundidas por ação direta de Deus. Se fé e esperança são, respectivamente, o modo como o ser humano crê e espera em Deus em meio a sua travessia terrena, o amor-charitas é o próprio amor divino agindo no ser humano. Nesse sentido, ao passo que as outras duas virtudes teologais vigoram somente enquanto durar a existência terrena – pois não tem sentido “crer” e “esperar” em Deus na plenitude eterna que consuma a comunhão com Ele –, o amor-charitas não desaparece na vida eterna, pela simples razão de que a vida eterna é a plenitude mesma de amor-charitas; ou seja, porque “Deus é amor-charitas”. Ora, “se a insistência na fé e na esperança poderia vir a abrigar, clandestinamente, uma atitude espiritual conformista, que tudo espera de Deus e somente dEle”, a ênfase sobre o amor-charitas, em Mário, apela para que o ser humano “já se reconheça chamado, nesta vida, a agir como Deus age, a amar como Deus ama, a redimir como Deus redime, a consagrar-se, portanto, à vida terrena como uma espécie de emissário do Eterno.” (SANTOS, 2009SANTOS, L. Mário-Alceu: um diálogo marginal (Mário de Andrade leitor de Alceu Amoroso Lima). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 49, p. x-xx, mar./set. 2009., p. 66).

Algo dessa “saúde de espírito”, dessa verve “bravia” e “esportiva”, e desse amor cego por Deus “na obra de Deus”, em pleno coração do mundo, salta de modo enfático na Oração de Paraninfo pronunciada por Mário de Andrade no Conservatório Musical de São Paulo, em 1935, na qual exproba com veemência o que chama de “obsessão da Santa Casa”, segundo ele o maior obstáculo ao mecenato nacional – a “tradição grudenta” de restringir benfeitorias exclusivamente às pessoas desvalidas, relegando a sistemático esquecimento os que necessitam de amparo para produzir, criar, prosperar. Quando pronuncia o seu discurso, Mário já havia assumido a direção do Departamento de Cultura do município de São Paulo. Tinha diante de si jovens formandas/os de uma escola de Música, que em breve seriam lançadas/os a um cenário de descaso e falta de investimento em profissionais do campo artístico. E justifica:

(...) eu não quero com essas afirmativas ásperas, acusar a caridade em si mesma6 6 Aqui, o orador se refere à “caridade” em seu sentido vulgar, assistencialista e acomodatício, predominante entre os católicos de seu tempo. , nem sequer recusar a proteção a santa casa e asilos (...). O que eu indigito como espécie de nossa incultura, é este viver dentro da morte, esse desgalhamento da visão católica do outro mundo, que nos leva a uma caridade assustada, a uma caridade supersticiosa, a uma caridade esquecida de que a própria vida é uma oração. Ninguém aceita a vida como um benefício de Deus. Ninguém aceita a vida como uma luta, mas como um perigo de ir pro inferno.

(ANDRADE, 1991ANDRADE, M. de. Aspectos da Música Brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991., p. 191).

A afirmação lapidar de que “a própria vida é uma oração” poderia servir de consigna da espiritualidade subjacente a todo o itinerário de Mário de Andrade. Se, na fase modernista, tal consigna se traduz como exaltação da pulsão de vida, nas fases seguintes se transmutará, cada vez mais, em consagração a uma vida compartilhada, pensada como pertencimento e serviço à coletividade.

3 Passagem à coletividade

É voz corrente que, no ano de 1924, dá-se uma virada paradigmática no movimento modernista, cujo marco fundante é o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, no qual soa a pedra de toque do novo programa estético: “O trabalho da geração futurista foi ciclópico: acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro na sua época.” (ANDRADE, O., 1972ANDRADE, O. Obras Completas: do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 9).

Na primeira fase modernista, prevalecia o entendimento de que a entrada do Brasil no “concerto das nações civilizadas” se daria por sua automática incorporação à cultura moderna. Nessa altura, “civilização” – leia-se “universalidade” – era praticamente sinônimo de “modernidade”, que, por sua vez, identificava-se com sua versão hegemônica ocidental-europeia. Ainda que o problema da dependência “colonial” aos países do Centro chegasse a ser apontado, como o faz Mário de Andrade, por exemplo, ao criticar a adesão subserviente a modas parnasianas ultrapassadas; no entanto, tal problema parecia reduzir-se, então, a mera questão de atraso em relação ao “tempo mundial”, isto é, ao tempo “moderno” em vigor nos países do Centro. No final das contas, em certo sentido a questão da emancipação artística limitava-se à substituição de uma sujeição defasada por outra atualizada, de “vanguarda”.

Doravante, vai-se consolidando a percepção de que, para haver efetiva participação na civilização universal, é preciso contribuir com o que cada nação tem de próprio, singular, do contrário não se trataria, propriamente, de “concerto” das nações, como conjunto polifônico resultante da confluência de diferentes atores. Assim, já não basta alinhar-se ao tempo moderno global, mas é preciso fazê-lo a partir do próprio lugar. No novo ciclo que se inaugura, atualidade passa a significar esse compósito indissociável de tempo-lugar.

Jogou papel favorável à virada de 1924, em parte, a sanha nacionalista dos países imperialistas a partir da Primeira Guerra, com impacto sobre as nações emergentes no cenário internacional; e, em âmbito local, toda a fermentação política emancipatória do início dos anos 1920, com a fundação do Partido Comunista e a insurreição tenentista, a qual se desdobra na Coluna Prestes e na Revolta comandada pelo General Isidoro Dias Lopes contra o poder das oligarquias paulista e mineira, também conhecida como “segunda insurreição tenentista”.

Não obstante a importância desses fatores exógenos para a precipitação da virada nacionalista como fenômeno coletivo, não se deve perder de vista, porém, que esta se inscreve numa profunda tendência da tradição cultural brasileira, se consideramos, com Afrânio Coutinho, que “não há outra linha de pensamento mais coerente, mais constante e mais antiga do que a nacionalista” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 97).

De outro lado, em marcante contraste com o internacionalismo de matriz futurista, há um fecundo veio nacionalizante no próprio caldo cultural de vanguarda que desemboca no movimento modernista de 1922. Com efeito, ao contribuir para remover, a golpes de inventividade e iconoclastia, a crosta artificial de arte “oficial”, importada, que aqui remanescia sem relação orgânica com nosso tempo-lugar, o trabalho crítico das vanguardas franqueia espaço à livre criação e, nessa medida, acaba fomentando a expressão de nossa formação étnico-social em sua complexa e inquietante singularidade. Noutras palavras, a libertação (negativa) de academicismos caducos se traduz, então, como libertação (positiva) para uma linguagem artística “própria e apropriada”7 7 A expressão conceitual “próprio e apropriado”, de inspiração heideggeriana, é exemplarmente desenvolvida pelo filósofo Dante Augusto Galeffi em suas obras. GALEFFI, D. A. O Ser-Sendo da Filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001. , que traga à luz a realidade na qual habitamos. Em 1921, Menotti del Picchia – exaltado futurista dos tempos heroicos da Semana – já antevia o surgimento de “uma estética original e nossa, feita com as transmutações das correntes artísticas hereditárias (...) fruto da fixação do tipo étnico nacional. Será essa a arte brasileira independente” (BRITO, 1978BRITO, M. da S. História do Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978., p. 170).

Transitando com singular desenvoltura pela ambiguidade cosmopolita-nacionalista do movimento modernista, Mário de Andrade foi, entre os de sua geração, segundo Wilson Martins, “o mais moderno e o menos futurista, sofrendo pouco da inquietação vanguardista”; e, segundo o mesmo crítico, nele encontramos nada menos que a “fonte de todo o brasileirismo modernista” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 104).

Por óbvio, este não é o espaço para examinar a pertinência de uma afirmação peremptória dessa magnitude. Nem mesmo para esboçar uma genealogia da incidência do elemento nacional no itinerário de Mário de Andrade. A esse respeito, bastaria sinalizar uma precoce e significativa passagem de sua obra. Em 1918, em conferência sobre “Arte Religiosa no Brasil”, para a Congregação Mariana de Santa Ifigênia, um Mário católico apostólico brasileiro critica o “erro de construir igrejas nos mais estrangeiros dos estilos”, quebrando “bruscamente a cadeia da arte nacional”; e recomenda que, seguindo o bom exemplo do movimento nacionalista na arte, a Igreja “nos dê ainda templos nossos, capelas brasileiras onde a comoção religiosa da raça palpite, como num lar avoengo (...)” (ANDRADE, 1993aANDRADE, M. de. A Arte Religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento, 1993a., p. 96).

Por suposto, “raça” designa aqui não uma identidade biológica, de sangue, mas sociocultural, no sentido de coletividade que se constitui e diferencia pela participação em um habitat humano comum. O registro afetivo em que aparece o termo, associado à “comoção religiosa” da raça, sugere dimensão de profundidade antropológica: há uma corda anímica da raça que vibra no fundo de cada pessoa. Decantado da cândida afetação patriótica ou nativista da citação acima, o substrato dessa compreensão anímica de nacionalidade (ou “raça”) é reafirmado em carta ao amigo Carlos Drummond de Andrade, de 1924, já agora numa incisiva perspectiva ontológica:

Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família, etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará de ser nacional.

(ANDRADE, 1988ANDRADE, M. de. A Lição do Amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1988., p. 30).

Deixando de lado eventuais (e importantes) revisões críticas dos conceitos sinonímicos de “raça” e “nação” na obra de Mário de Andrade, no essencial se poderia dizer, por ora, que nação é a entidade coletiva fundante a que permanecemos ligados pela pertença histórico-cultural e pelo afeto, e que não propriamente temos, mas somos.

No horizonte dessa perspectiva ontológica, e tendo por transfundo o contexto polêmico da mencionada virada estética nacionalista, Mário de Andrade afirma em carta ao escritor pernambucano Joaquim Inojosa, em 1925:

Nós temos que criar uma arte brasileira. Esse é o único meio de sermos artisticamente civilizados... Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo = Brasil pros brasileiros... Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que pode enriquecer e alargar a Civilização.

(JARDIM, 1993JARDIM, E. Atitude estética e nacionalismo em Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia da PUC-RJ, 1993a., p. 5-6).

Em suma, “não há Civilização. Há civilizações. Cada uma se orienta conforme as necessidades e ideais duma raça, dum meio e dum tempo” (ANDRADE, 1988ANDRADE, M. de. A Lição do Amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1988., p. 31).

Ora, justamente no curso desse programa pela nacionalização das artes e afirmação da singularidade brasileira no proscênio da civilização mundial, vai-se firmando em Mário de Andrade o entendimento do Brasil como país vastamente incivilizado. E isto – note-se bem – não mais em razão da incipiente participação do país na civilização moderna global, e sim devido à sua profunda desagregação interna, cindido entre, de um lado, uma classe dominante europeizada detentora dos privilégios de ter, poder e saber oficial, cuja cultura transplantada é destituída de relação viva com seu habitat local; e, de outro, uma massa popular descendente de indígenas, negros escravizados e mestiços, enraizada no território e em tradições locais, mas expropriada de seus direitos elementares e negada em seus modos originários de ser, viver, saber. Nessa perspectiva, a ideia de modernidade começa a sofrer uma decisiva torção crítica no pensamento de Mário de Andrade, que passa a atinar para o seu caráter geocultural limitado/limitante e politicamente dominador. Modernidade já não significa, sem mais, universalidade, atualidade, potência, avanço, prosperidade, emancipação etc., como na fase anterior, mas – também – dominação e uniformização, isto é, imposição homogeneizadora de uma civilização (a ocidental europeia) sobre as demais, que termina por bloquear o próprio horizonte civilizatório polifônico do “concerto” das nações. Nesse sentido, desenraizado de sua terra e de costas para o seu povo, o cidadão do centro do país – que espelha o Centro do mundo – vive numa espécie de limbo civilizatório, numa “história” e numa “paisagem” sem correspondência com seu tempo-lugar. Por isso, e nessa medida, segundo Mário, ele é bem mais “selvagem”, isto é, “primitivo”, incipiente, que “os tupis nas suas tabas” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 107).

Assim, justo quando começava a buscar a singularidade do Brasil como sinal de promessa e promissão, Mário desperta para a fratura colonial que fere a nação brasileira no cerne, constituindo sua maior danação e talvez seu maior enigma.

No marco da virada nacionalista, ao longo da década de 1920, Mário de Andrade empreende uma sistemática prospecção das raízes “bárbaras”, populares e tradicionais, da (in)civilização brasileira, que o leva bem além do projeto inicial de consolidação de uma arte brasileira, rumo à busca de uma cartografia da própria entidade brasileira. Talvez não exagerássemos em dizer que, nos prolíficos e febris anos pós ‘24, Mário embrenha-se na tarefa demiúrgica de ajudar a construir, ou antes a partejar, o Brasil como civilização. O fato é que tal virada popular dentro da virada nacionalista o leva a iniciar-se, seja nos estudos etnográficos para melhor apetrechar-se às investigações de campo, seja no folclore como ciência da cultura popular, assegurando-se assim de todo um novo aprovisionamento epistemológico-metodológico que inaugura o flanco “científico-analítico” de sua obra.

Doravante, portanto, opera-se o que Eduardo Jardim chama de “segunda redução” no itinerário intelectual de Mário de Andrade: se, no início da virada nacionalista, tratava-se de afirmar a nacionalidade para alcançar verdadeiramente o estatuto moderno e assegurar o direito de inscrição no concerto das nações; agora se trata de afirmar a cultura popular como núcleo originário da nacionalidade. Em suma, moderno = nacional = popular.

Caberia discutir (não aqui, naturalmente) se a afirmação da cultura popular ainda se prestaria a servir de fundamento a um projeto civilizatório “moderno”; ou se, considerando a imbricação de modernidade e colonialidade8 8 “Colonialidade” refere-se às estruturas de poder constituídas pela articulação de capitalismo, eurocentrismo e racismo, a partir da conquista dos povos originários pela Europa no início da era moderna, e que se mantém em ação nas sociedades colonizadas mesmo após os processos formais de independência do colonialismo. Para uma introdução ao conceito, QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Revista Peru Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. , a cultura popular – as culturas populares periféricas – já nos projetaria(m) a um marco civilizatório além do moderno – “transmoderno”9 9 “Transmodernidade” concerne ao paradigma civilizatório situado além do fundamento da civilização global ocidental-eurocêntrica-capitalista-moderna. Para uma fundamentação filosófica do conceito, DUSSEL, E. Filosofías del Sur: Descolonización y Transmodernidad. México: AKAL, 2015. –, de caráter pluriversal (não “universal”, sem mais) e intercultural (não monocultural). Mais que mera disputa semântica, quer nos parecer que se joga nessa questão a possibilidade mesma de existir além do – de outro modo que o – mundo europeu-ocidental moderno como espaço civilizatório exclusivo e excludente.

Em sua investigação etnográfica da cultura popular, Mário de Andrade teve inúmeras ocasiões de testemunhar o impacto devastador do ideal de “progresso” da assim chamada civilização ocidental moderna sobre as tradições populares. A exemplo das danças dramáticas do Norte e Nordeste, que

lutam furiosamente... com a civilização. Ou melhor: esta é que luta com elas e as domina. Engraçada a civilização... Eu que amo irrefletidamente a vida, e que por isso não sou também contra a civilização, não consigo imaginá-la mais do que uma criadora de conceitos. De preconceitos (...) A civilização cria um conceito de conforto, mas não o próprio conforto que já existia antes dela. A civilização cria um preconceito de higiene, mas não a própria higiene. A civilização criou um preconceito de cidade moderna e progressista, com boa educação civil. E como em Paris, Nova York e São Paulo não se usa danças dramáticas, o Recife, João Pessoa e Natal perseguem os Maracatus, Caboclinhos e Bois, na esperança de se dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. São tudo isto, com Cheganças ou sem elas. Mas quem que pode com o delírio de mando dum polícia ou dum prefeito, ou com a vergonha dum cidadão enricado que viajou na Avenida Rio Branco! Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga. Mas ninguém não se lembra de proibir escravizações ditatoriais, perseguições políticas, e ordenados misérrimos provocadores de greves, que de tudo isso nasce crime e briga também (...).

(ANDRADE, 1982ANDRADE, M. de. Danças Dramáticas do Brasil. 2.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. v. 1., p. 69-70).

Numa passagem de “Vida do Cantador”, reunião de textos sobre o coqueiro Chico Antônio, extraordinário artista popular nordestino e uma das figuras humanas que mais o impactou em toda sua vida, Mário descreve o efeito devastador da civilização moderna em si mesmo. Vale notar o contraste entre a vida “deserta” dele, doutor, urbano, “civilizado”, e a de Chico Antônio, roceiro iletrado, cujo canto “de duzentos séculos” se liga a potentes correntes criadoras ancestrais:

Melancolias da educação... Eu, vai, me alfabetizo, estudo, me desabuso, xingo as coisas de superstições, me individualizo, e hei de cantar com o “meu” verso a “minha” ideia. E com essas possíveis superioridades, não consigo ter mais que os cinquenta anos de uma vida deserta. O cantador improvisa e o seu tema tem sete séculos de antepassados, e os seus gostos se ligam, na pré-história, às formas mais necessárias da razão. É bem fatigante isso de viver cinquenta anos, em vez de duzentos séculos.

(ANDRADE, 1993bANDRADE, M. de. Vida do Cantador. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993b., p. 96).

Na obra de Mário de Andrade, a fratura colonial que dilacera a sociedade e desertifica espíritos, projeta-se na percepção do Brasil como entidade desintegrada, amorfa, disforme, que nem propriamente chegou a ser; entidade por ele descrita como “monstro molengo”, de “alma indecisa” e caráter “noturno”. Ou, ainda mais enfático, entidade “sem nenhum caráter”, como Macunaíma, “produto mesmo do caos humano, mexendo-se no abismo brasileiro” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 108). Tal “caráter”, que faltaria a Macunaíma e ao Brasil, tem aqui tanto o sentido psicológico de constituição psíquica diferenciada, quanto o sentido moral de constituição psíquica estruturada/orientada pelo senso do bem e do mal. Faltaria, pois, ao Brasil, seja uma “personalidade” coletiva singular, seja um projeto ético-civilizatório norteador. Certo que a figura solar de Macunaíma com sua vivacidade telúrica indomesticável exibe também a face exuberante do “caos” brasileiro. Atente-se, porém, que a fratura colonial da “incivilização” brasileira não concerne a esse caos potente, que desborda a ordem por excesso de possibilidades; mas ao caos estéril de uma abissal anomia que impede toda nova possibilidade. Segundo Mário, o caos colonial brasileiro constitui uma “dor dos irreconciliáveis”, como se lê em carta a uma amiga judia-francesa-comunista, incluída em “O Turista Aprendiz”, livro que reúne anotações de suas viagens ao Norte e Nordeste do país:

“A dor, a imensa e sagrada dor do irreconciliável humano, sempre imaginei que ela viajara na primeira vela de Colombo e vive aqui. Essa dor não é de ser operário, que não é de ser intelectual, que independe de classes e políticas, (...) a dor dos irreconciliáveis vive aqui.”

(ANDRADE, 1983ANDRADE, M. de. O Turista Aprendiz. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983., p. 165).

A essa fratura da “incivilização” brasileira, o pensamento de Mário de Andrade responde com um vigoroso senso de integração nacional, que visa intensificar a imersão da nação em seu próprio magma, e conciliá-la consigo mesma a partir da sutura de dimensões antagonizadas pelo projeto colonial

Isto, por duas vias. Primeiro, em perspectiva temporal, por meio de um processo de tradicionalização, que religa o fluxo do errático tempo moderno – para o qual o passado é sempre “ultrapassado” – à memória coletiva dos antepassados. A tradicionalização anula a distância entre passado e presente, compondo, como diz Eduardo Jardim, um “fundo do tempo, uma dimensão duradoura, em que se enraízam as manifestações culturais que possuem um caráter genuíno” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 116). Ao contrário de mera sobrevivência do legado cultural do passado, tradicionalizar significa assegurar a permanência da cultura antepassada no presente, formando assim um só “continuum temporal” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 116), de modo que o presente se alimente da memória da tradição, e esta seja reatualizada no presente. Diz Mário: “Nós já temos um passado guassú bonitão pesando nos nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo, isto é, referi-lo ao presente.” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 115). Segundo, em perspectiva socioespacial, a integração nacional também requer um processo de socialização, com vistas à superação do fosso entre as classes privilegiadas/estrangeiradas e o povo excluído/enraizado: seja pela inclusão da massa popular no acesso aos bens da civilização hegemônica, seja pela conversão das elites ao projeto ético-político libertador – e ao mundo da vida – da comunidade popular. Sem essa dupla via de integração, isto é, sem a sutura do tempo histórico à deriva do “progresso” e do espaço social cindido em classes, seria inviável propiciar ao tecido da nação a integridade que desde o princípio lhe foi negada pelo projeto colonizador.

No que se refere, especificamente, ao processo de socialização, Mário de Andrade é bastante claro ao mostrar sua implementação entre os mais fecundos artistas de linhagem modernista, em texto publicado na obra “Música, Doce Música”:

Os nossos compositores maiores da atualidade, todos se afirmam resolutamente socializantes na sua atitude criadora. Carece verificar, com maior certeza de visão, que o fato dos artistas eruditos darem a suas obras caracteres mais populares, maior delícia melódica, mais dinamização rítmica, maior parecença com os cantos tradicionais do povo, não é apenas uma questão de nacionalismo. É também e mais efetivamente uma tendência para diminuir anti-capitalistamente a distância social, hoje tão absurdamente exagerada, entre a arte erudita e as massas populares.

(ANDRADE, s/d,ANDRADE, M. de. Ensaio sobre Música Brasileira. São Paulo: Martins Editora. s/d. Música, Doce Música, p. 363-364).

Ao apostar no enraizamento do vetor civilizatório dominante – ocidental-burguês-moderno-urbano-letrado – na matriz popular historicamente subjugada e relegada ao esquecimento, Mário engaja-se, portanto, num movimento de contrafluxo civilizatório com base na afirmação contra hegemônica da cultura popular – ancestral, comunitária, territorializada, telúrica, insurgente, libertadora – como núcleo vivo do organismo nacional.

Por maior que tenha sido, no entanto, a ênfase estratégica conferida por Mário de Andrade aos núcleos nacional-popular-tradicional da “incivilização” brasileira, e isto em razão de sua grande clareza quanto ao efeito erosivo do projeto colonial, como vimos, mas também por seu entendimento de que o Brasil atravessava uma etapa de “fundação étnica”, isto é, de nascimento como nação propriamente dita; é preciso, por isso mesmo, muito cuidado ao se modular essa ênfase, considerando não somente a congênita complexidade civilizatória do Brasil, mas a complexidade do próprio pensamento de Mário de Andrade, e dele mesmo. Que não falte, portanto, a contrapartida de uma devida e comedida matização de olhar, ao se ter em vista afirmações de tamanha contundência e apostas de tamanha envergadura, como as acima consideradas.

Com efeito, ao enfrentar a complexidade do Brasil contemporâneo, Mário de Andrade não desata suas constitutivas tensões, não propõe a mera desintegração da civilização global na nação, nem da modernidade na tradição, nem da cultura letrada na popular. Antropofagicamente, devora aquelas, incorporando-as nestas que, por sua vez, são também por elas transmutadas. Há aqui uma selvagem dialogia em curso. Por outro lado, ao empenhar-se pela “fundação étnica” do Brasil a partir do enraizamento na cultura popular, tampouco perde de vista a dimensão, segundo ele, “livre e evolutiva” da nacionalidade, sujeita a toda sorte de interfaces, transes e transformações históricas. Serviu-se do folclore no programa de construção de uma arte brasileira atual, quando esta lutava para vir à luz, mas bateu-se contra a exangue redução do popular ao folclórico. Como artista militante, servidor de uma causa ético-civilizatória, defendeu até o fim o caráter “interessado” da arte, cuja aspiração a uma beleza ideal não se reduz ao ideal desinteressado da beleza ou à “arte pela arte”10 10 Sobre a diferença entre ideal de beleza e beleza ideal, cf. SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao Pensamento de Mário de Andrade, op. cit., p 82ss. ; nem por isso, porém, deixou de advogar – ele, o vanguardista do verso livre e lírico louco da Pauliceia – a liberdade “trágica” do artista criador. Homem-ponte, “tupi futurista”, ao dar passagem em sua obra ao Brasil contemporâneo, Mário de Andrade se deixou atravessar pelas tantas complexidades que atravessam o Brasil. Por isso, é preciso não pouca atenção para que a radicalidade (quiçá profética) de algumas de suas posições de fundo não dê lugar a simplificações que terminariam por desnaturá-las.

Feita essa importante ressalva, e prevenidos, também, contra a disposição alérgica que tende a chamar de “populismo” qualquer tentativa de tomar a categoria povo a sério, acheguemo-nos agora mais de perto à questão da cultura popular tal como Mário de Andrade a pensa, considerando, em especial, o modo de subjetividade subjacente à cultura popular e, a partir daí, em que sentido esta, afinal, encontra-se melhor constituída para operar como núcleo da nacionalidade. Discorrendo sobre música popular – uma de suas especialidades –, no “Ensaio sobre Música Brasileira”, Mário afirma que ela é

de dinamogenia sempre agradável porque resulta diretamente, sem nenhuma erudição falsificadora, sem nenhum individualismo exclusivista, de necessidades gerais humanas inconscientes. E é sempre expressiva porque nasce de necessidades essenciais, por assim dizer interessadas do ser e vai sendo gradativamente despojada das arestas individualistas dela à medida que se torna de todos e anônima. E como o povo é inconsciente, é fatalizado, não pode errar e por isso não confunde umas artes com as outras, a música popular jamais não é a expressão das palavras. Nasce sempre de estados fisiopsíquicos gerais de que apenas também as palavras nascem. E por isso em vez de ser expressiva momento por momento, a música popular cria ambientes gerais cientificamente exatos, resultantes fisiológicas da graça ou da comodidade, da alegria ou da tristura.

(ANDRADE, s/d, Ensaio sobre Música Brasileira, p. 41-42)

Extraindo uma suma das principais características da música popular – e, por extensão, da cultura popular – com base na citação acima, vemos que ela é: necessária – nasce de “necessidades gerais humanas”, e não de caprichos fortuitos; expressiva – sempre transmite “estados fisiopsíquicos gerais”; interessada – porque movida, também, por necessidades vitais, e não pela mera fruição da arte pela arte; de todos – expressa a alma da comunidade da qual se origina e, nessa medida, o próprio humano como tal; anônima – não importa quem é seu autor, mas o que ela expressa e que papel humano cumpre; inconsciente – brota de pulsão criadora prévia à atividade consciente do sujeito; e fatalizada – não resulta de decisão do sujeito, mas de impulso irresistível que atua à sua revelia. (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 128).

Ressalte-se, apenas, pela importância desse pormenor para a discussão da subjetividade popular, que a música do povo é “de todos” porque inconsciente e fatalizada. Anônimo, esvaziado de si enquanto “autor” de “sua” obra, o artista popular encontra-se mais disponível aos estados de inconsciência e, por isso também, a se abandonar às correntes criadoras ancestrais da comunidade-humanidade a que pertence (como vimos no caso do coqueiro Chico Antônio), da qual se torna o mais autorizado porta-voz. Mário retoma aqui o nexo entre inconsciência e universalidade (humanidade), já afirmado na poética modernista de “A Escrava que Não é Isaura”, quando dizia que o caráter subconsciente da poesia modernista “equilibra” o seu “excesso de coeficiente individual”, tendo em vista que a subconsciência – note-se bem – é “ingênua, geral, sem preconceitos, pura, fundamentalmente humana.” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 128). Nesse sentido, a defesa da primazia do inconsciente na arte tem menos a ver com relevar os direitos da inteligência11 11 Lembremos que: “Poesia = Lirismo + Palavra + Crítica”. Ver Nota 16. , do que com transcender o senhorio individualista do artista-“gênio” moderno. É o que se lê em “Música, Doce Música”:

A gente bem sabe que uma melodia popular foi criada por um indivíduo. Porém esse indivíduo, capaz de criar uma fórmula sonora que iria ser de todos, já tinha de ser tão pobre de sua individualidade, que se pudesse tornar assim, menos que um homem, um humano.

(ANDRADE, s/dANDRADE, M. de. Música, Doce Música. São Paulo: Martins Editora. s/d., Música, Doce Música, p. 32).

5 Espiritualidade da vida compartilhada

Pobre de sua individualidade, despojado de veleidades autorais e vaidades formalistas, o artista popular condensa na sua arte um extrato de sentidos e afetos humanos substanciais. “Menos” que pessoa-indivíduo, é apenas um humano com e como os outros. É um com todos. Ao contato com a sua obra essencial, Mário de Andrade, o espectador culto e moderno, se vê tocado em suas cordas afetivas mais profundas, como se reencontrasse uma dimensão primal de si mesmo que, entretanto, permanecera encoberta. Tal como o confessa a partir de sua experiência com os cantadores nordestinos:

Recolhendo e recordando esses cantos, muitos deles tosquíssimos, precários às vezes, não raro vulgares, não sei o que eles me segredam que me encho todo de comoções essenciais, e vibro com uma excelência tão profundamente humana, como raro a obra-de-arte erudita pode me dar. Não sei que apelo tradicional me leva, que coincidência de afeto, de corpo, de esquecimento de mim; (...) Eles me comovem mais que nada e eu me identifico com eles numa Einfuehlung perfeitíssima. Necessária. Como devem ser necessários todos os nossos gestos humanos.

(ANDRADE, 1984ANDRADE, M. de. Os Cocos. São Paulo: Duas Cidades, 1984., p. 388).

Nesse substrato demasiado humano da arte popular, Mário de Andrade vai encontrar a potência sagrada que habita a alma coletiva do povo, cuja decifração constitui uma das principais aspirações de sua própria obra:

Do fundo das imperfeições de tudo quanto o povo faz, vem uma força, uma necessidade que, em arte, equivale ao que é a fé em religião. Isso é que pode mudar o pouso das montanhas. É mesmo uma pena, os nossos compositores não viajarem o Brasil. Vão na Europa, enlambusam-se de pretensões e enganos do outro mundo, pra amargarem depois toda a vida numa volta injustificável. Antes fizessem o que eu fiz, conhecessem o que amei, catando por terras áridas, por terras pobres, por zonas ricas, paisagens maravilhosas, essa única espécie de realidade que persisto através de todas as teorias estéticas, que é a própria razão primeira da Arte: a alma coletiva do povo.

(ANDRADE, 1984ANDRADE, M. de. Os Cocos. São Paulo: Duas Cidades, 1984., p. 388-389).

Essa “força” que irrompe da criação popular, extraordinária como a fé religiosa, é “necessária”, segundo o etnógrafo, porque portadora de imperiosos influxos anímicos provenientes do fundo da memória, de cuja ação nutriz e formadora não é possível se privar sem condenar-se à inanição existencial de uma “vida deserta” e “miraculosa”, pois capaz de remover montanhas seculares de exclusão para trazer à luz a alteridade “bárbara”, negada, do povo, e reiniciar/renovar a história. É a essa força-fonte coletiva transcendente que o escritor se reconhece, ou se quer, pertencente.

Desse modo, a aqui chamada espiritualidade da vida compartilhada, subjacente ao momento nacionalista-popular do itinerário de Mário de Andrade, emerge em primeira instância como uma espiritualidade do pertencimento filial à coletividade.

Pertencer à vida coletiva, antes de mais nada, é ser filiado a ela, portanto, receber dela o próprio ser e, nessa medida, obedecer-lhe e responder ao seu chamado. O pertencimento constitui uma existência em voz passiva: pertencemos à coletividade enquanto somos formados, consagrados, enviados por ela, partilhando em comum a vida que nos foi dada e a todos irmana.

Tendo em vista sua condição de sujeito moderno-urbano-culto, Mário de Andrade não registra em sua obra uma relação pacífica com a questão do pertencimento-filiação à coletividade. Este pertencimento não é, para ele, justamente, uma condição dada – um dado geocultural herdado –, e sim desejo agudo, aspiração existencial, projeto político-cultural, no âmbito de uma mais abrangente busca de sentido. Notadamente, o desejo de pertencimento à coletividade apresenta-se, em Mário, como desejo de integração à comunidade popular da qual, em certo sentido, o escritor considerava-se exilado.

Em sua obra poética, tal desejo de integração comunitária estala, ora como desejo de transformação de si: “Não tenho onde cair morto/ Fiz gorar a inteligência/ Vou reentrar no meu povo/ Reprincipiar minha ciência.” Ora como frustração pela comunhão malograda: “Que dificuldade enorme!/ Quero cantar e não posso,/ Quero sentir e não sinto/ A palavra brasileira/ Que faça você dormir.../ Seringueiro, dorme...” Ora como comprazimento pela graça da comunhão, afinal, alcançada: “Doçura da pobreza assim.../ Perder tudo o que é seu, até o egoísmo de ser seu,/ Tão pobre que possa apenas concorrer pra multidão.../ Dei tudo o que era meu, me gastei no meu ser,/ Fiquei apenas com o que tem de toda a gente em mim.../ Doçura da pobreza assim.../ Nem me sinto mais só, dissolvido nos homens iguais!” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 126)

Ao expressar o desejo de “reentrar” no povo e “reprincipiar” sua ciência, de acalentar o distante irmão amazônico e abraçar a doce “pobreza” de “concorrer pra multidão”, ficando apenas “com o que tem de toda gente” em si, é como se o poeta projetasse em verso uma aspiração iniciática de filiar-se à ancestralidade popular, de metamorfosear-se em povo, de ser (re)iniciado na tradição do povo como comunidade espiritual. Assim, não seria qualquer desejo de integração comunitária de tipo nativista ou identitário – isto é, desejo de uma integração autorreferente, aprisionante e isoladora –, que se alçaria à “espiritualidade” do pertencimento coletivo aqui indicada; mas a busca de religação àquela miraculosa “força”-fonte popular que constitui, a seu modo, uma transcendência para dentro da comunidade popular ancestral, em última instância em direção à própria comunidade humana como centro gravitacional solar do sujeito.

Na perspectiva desse pertencimento-filiação, a espiritualidade marioandradina se consubstancia como travessia do escritor ao (re)encontro do ser telúrico-ancestral-comunitário-insurgente – o “tupi” de Pauliceia, ou Macunaíma, ou Chico Antônio... – que se achava encoberto e cativo dentro dele mesmo; travessia que, por sua vez, não é senão a correspondência, em nível pessoal, daquela outra travessia – civilizatória – do Brasil ao encontro de suas margens excluídas e esquecidas, rumo à sua integração a si mesmo.

Outra perspectiva da espiritualidade da vida compartilhada é a do pertencimento coletivo como serviço, que configura uma existência em voz ativa: pertencer à coletividade é servi-la, agir com e para ela, engajar-se por ela, isto é, coadjuvar a “força”-“fé” da comunidade popular em sua dinâmica criadora e libertadora. Não apenas partilhar de uma vida comum, mas compartilhar a vida pelo serviço aos outros e ao coletivo.

A espiritualidade do pertencimento-serviço subjaz a uma tendência ético-socializante de funda raiz no itinerário de Mário de Andrade. Basta lembrar que o apostolado católico do jovem Mário se inicia com seu ingresso na Congregação Vicentina, cujo carisma abrangia, dentro outros aspectos, o serviço social junto aos pobres. Tal compromisso ético-social já aflora com força na própria fase nacionalista-popular e atinge o apogeu a partir dos anos 1930, no contexto pós-revolucionário de construção do moderno Estado brasileiro, chegando ao paroxismo na década seguinte, em plena Segunda Guerra. De maneira simplificada, diríamos que essa tendência ético-socializante consiste em conceber o ser humano à luz da responsabilidade para com a alteridade dos outros, notadamente dos excluídos e oprimidos pelos poderes dominantes; nessa perspectiva, a arte, ou qualquer outra atividade humana, não pode se desvincular desse chamado ao serviço inter-humano sem trair a si mesma. Não há, desse ponto de vista, nenhuma atividade humana neutra: ou se serve à comunidade humana e, em especial, aos proscritos dela, ou se serve aos donos do poder econômico-político que promovem a exclusão.

Na conferência “O Movimento Modernista”, de 1942, Mário de Andrade faz um rigoroso balanço autocrítico do movimento de 1922, destacando, com particular dureza, precisamente sua inconsistência ético-política:

Atuais, atualíssimos, universais, originais mesmo por vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do período melhormente chamado “modernista”, fomos, com algumas exceções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizamos. Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. E isto era o principal!

(ANDRADE, 1974ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974., p. 252).

E conclui: “Apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amelhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade.” (ANDRADE, 1974ANDRADE, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974., p. 254).

Pode-se ponderar em que medida Mário de Andrade exagera em sua revisão do movimento modernista, considerando as óbvias limitações conjunturais do contexto de 1920. Em todo caso, a radicalidade dessa incisão autocrítica serve de importante sinalizador para o profundo corte que irá ferir o próprio itinerário intelectual-espiritual do escritor: após 1930, Mário efetivamente irá “morrer” para o sentido de vida – e de humanidade – regido sob o signo de Eros-Dionísio, que presidiu os tempos heroicos do modernismo: “Agora, tendes à vossa frente um órfão. Não mais o filho da felicidade, a felicidade morreu, mas o apaixonado, o ganancioso compartilhador da precariedade humana.” (ANDRADE, 1991ANDRADE, M. de. Aspectos da Música Brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991., p. 187)

Certo que, após 1930, Mário-Dionísio renascerá transfigurado em outro modo de dizer sim! ao sentido da Terra. Mas, a passagem pelo fogo da alteridade ético-social significará uma metamorfose definitiva e sem retorno.

Antes de chegar a essa derradeira transmutação do Mário-Dionísio, e de mostrar como ela se inscreve na espiritualidade do pertencimento como serviço, ressalve-se que há uma orientação ético-social já em ação na própria virada nacionalista-popular dos anos 1920. Com efeito, o programa de uma arte nacional não serve apenas à estratégia de inserção do Brasil no concerto das nações modernas; não é uma mera extensão do projeto de “modernização” das artes nacionais. Há algo mais. Nacionalizar, no contexto colonial da sociedade brasileira, conforme vimos, supõe retirar o povo excluído da subalternidade histórica, reconhecendo-lhe os direitos fundamentais e assumindo sua cultura como matriz nuclear de conformação da nação. Significa reconhecer o protagonismo estratégico – político-cultural – da comunidade popular na estruturação do projeto de nação. Nesse sentido, Mário de Andrade se refere ao nacionalismo artístico como “a verdadeira ética da idade moderna”, que veio substituir o “ethos” das civilizações antigas; longe de reduzir-se a “problema de pátrias insolúveis”, o nacionalismo artístico concerne “à própria funcionalidade primeira da arte, no sentido em que arte é sempre uma crítica da vida, no sentido também em que criticar é consertar.” (SANTOS, 2005SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao pensamento de Mário de Andrade. Ijuí: Unijuí, 2005., p. 95)

No pós-1930, essa ideia da “funcionalidade” ética-humana da arte – arte como serviço coletivo, compartilhamento de vida – alcançará uma afirmação programática cada vez mais desenvolta, a ponto de firmar-se como um dos principais eixos da militância pública do escritor. Analisando as estatuárias grega clássica e egípcia, por exemplo, Mário reconhece nos povos antigos um tratamento mais integrado à questão da beleza, em contraste com a deriva estética formalista do individualismo moderno:

(...) a sensação de beleza que essa estatuária nos dá, não tira o seu alimento apenas das linhas, dos volumes, dos claros-escuros, etc., senão que se alimenta também de necessidades outras, de exigências espirituais do indivíduo e sua finalidade. É um ideal necessário à coletividade. Estamos por certo aqui em dois momentos dos mais sublimes, dos mais complexos e completos, dos mais perfeitos da arte tendo como finalidade a obra de arte, condicionada aos destinos totais do ser humano que a faz.

(ANDRADE, 1975ANDRADE, M. de. O Baile das Quatro Artes. 3.ed. São Paulo: Martins Editora, 1975., p. 87)

A essa altura, a modernidade está longe de servir de marco paradigmático para nortear as posições estéticas do autor. Não obstante os progressos materiais e processos de emancipação da civilização moderna burguesa, o seu individualismo antropológico de fundo não lhe permite compreender a arte a partir de uma intrínseca relação de serviço à coletividade.

Por fim, na mencionada “Oração de Paraninfo” de 1935, a espiritualidade do pertencimento-serviço à coletividade recebe uma formulação das mais fortes na obra de Mário de Andrade:

Eu não vos convido sequer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta (...) por uma realidade mais alta e mais de todos. (...) Eu vos trago o presente perfeito da imediata luta por uma realidade mais de todos. Há toda uma mística nova a carregar sobre os ombros, para que o destino não se desvirtue na procura mesquinha do nosso bem pessoal. Não desprezo o indivíduo e sei glorificar as criações, as forças e riquezas de que só ele é capaz; porém foram tais os descaminhos humanos na exaltação egoística do indivíduo, que nos vemos num momento agro do mundo em que qualquer idealidade tem que equiparar-se à religião, cujo resultado é fundir.

(ANDRADE, 1991ANDRADE, M. de. Aspectos da Música Brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991., p. 195).

O “tropical amor do mundo”, com que Mário de Andrade chacoalha sua jovem audiência, não se limita a celebrar a vida moderna, a cujo festim libertário somente poucos tinham acesso; ele convida ao “presente perfeito” da “luta” por uma realidade “mais alta” e “mais de todos”. Já não bastava a esse amor afirmar-glorificar a vida sem mais, urgia transformá-la/compartilhá-la com vistas a outra vida por vir. O “tropical amor do mundo” é, ele próprio, “alterado” pelo chamado dos outros, amor u-tópico, que assume as fraturas irreconciliáveis do mundo no trabalho pela sua transfiguração.

Mais de uma década depois da revolução estética modernista, Mário convoca as novas gerações a fazerem, com ele, a passagem do reinado de Eros-Dionísio à “mística nova” de uma apaixonada não-indiferença pela diferença dos outros. (SANTOS, 2009SANTOS, L. Mário-Alceu: um diálogo marginal (Mário de Andrade leitor de Alceu Amoroso Lima). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 49, p. x-xx, mar./set. 2009., p. 66). Em sua fina sintonia com o transe histórico da “incivilização” brasileira, àquela altura lhe parecia claro que, se reduzida às “criações”, “forças” e “riquezas” do indivíduo, a alegria já não seria, em definitivo, a “prova dos nove”. Era necessário a prova de uma outra alegria, outro amor e outra lucidez para fazer o Brasil saltar por sobre os abismos que o dilaceram.

Considerações finais

Há uma rara sinergia entre o itinerário de Mário de Andrade e o transe histórico da (in)civilização brasileira. Mais do que transfundo contextual que ajuda a explicar aspectos de sua obra, o Brasil contemporâneo – essa entidade obscura, complexa, problemática – magnetiza o itinerário do escritor como permanente polo de questões e provocações, como se a tarefa de decifrar o enigma-Brasil fosse a projeção externa de sua busca existencial pela decifração de si mesmo.

À luz da recapitulação apresentada, talvez não seja exagero afirmar que os marcos do itinerário de Mário de Andrade, a seu modo, (cor)respondem a momentos chave da saga do “monstro molengo” Brasil rumo à sua afirmação como civilização atual, distinta, plural, integrada e criadora. À medida em que atravessa os abismos brasileiros, narrando e articulando suas tantas dimensões desconexas, o escritor vai descobrindo-se a si mesmo e compondo o seu próprio mito.

O enigma-Brasil serve, assim, de chave hermenêutica para ajudar a acessar os núcleos de sentido que alimentam a obra marioandradina.

Considerado nessa perspectiva, por suposto o “Brasil” aqui referido não se reduz ao conceito moderno de Estado-nação, no sentido de organismo governamental constituído pela comunidade política e responsável pela administração do povo/território. Claro que, em última instância, a militância de Mário de Andrade em prol da arte – e, por extensão, da cultura – brasileira prenunciava o desafio em torno da construção de um Estado brasileiro soberano, democrático e, efetivamente, nacional – ou plurinacional. No entanto, a “civilização brasileira”, que tanto forcejou para trazer à luz, abrange uma dimensão histórico-antropológica mais profunda: remete ao Brasil profundo, amálgama coletivo feito de memórias, linguagens, matrizes sapienciais, criações, sonhos e, também, de projetos de libertação; portanto, menos Estado – construto institucional – que povo, nação; e, nesta, sobretudo a nação “de baixo”12 12 SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000. , do chão e das margens, colada ao território e cravada às necessidades vitais, majoritária, excluída, insurgente – o núcleo vital, anônimo, da nacionalidade.

Há mais, porém. Para além do Estado – comunidade político-institucional –, e enraizada no núcleo vital da nação – comunidade étnico-cultural –, a civilização brasileira emerge na obra de Mário de Andrade como comunidade espiritual, isto é, coletividade constituída pelo compartilhamento de uma experiência comum – e radical – de sentido, que instaura um recomeço na própria experiência do humano. Privar essa entidade coletiva-Brasil de proativa e inventiva participação no tempo global, ou – mais grave – privá-la de existir propriamente como coletividade, em razão de fraturas históricas e sociais que amputam o seu passado ancestral e excluem suas camadas populares, em suma, bloquear sua afirmação civilizatória no concerto das nações – seria, portanto, impor uma inestimável “supressão de alma”13 13 Alusão à expressão “supplément d’âme” (“suplemento de alma”), do filósofo Henri Bergson (1859-1941). à civilização humana como tal.

Nesse sentido, em seus movimentos de passagem à modernidade e à coletividade – com as respectivas espiritualidades de afirmação da vida e da vida compartilhada –, o itinerário de Mário de Andrade performa, em seu conjunto, uma singular travessia iniciática estético-política-espiritual, que a seu modo encarna o transe insurgente da civilização brasileira e abre caminho a uma idade civilizatória transmoderna e pluriversal.

  • 1
    Para uma compreensão do sentido de espiritualidade em perspectiva contemporânea, cf. o verbete “Espiritualidade contemporânea”. In: FIORES, S. de.; GOFFI, T. (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 340ssFIORES, S. de.; GOFFI, T. (Orgs.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989..
  • 2
    Paul Dermée (1886-1951), poeta e crítico literário belga.
  • 3
    Em 1909, Mário de Andrade entra para a Congregação da Imaculada Conceição da Igreja de Santa Efigênia, da qual fazia parte seu irmão mais velho, Carlos Augusto, e em 1918 pede admissão ao noviciado da Venerável Ordem Terceira do Carmo.
  • 4
    Sobre o “paracatolicismo” de Mário de Andrade, SANTOS, L. Mário-Alceu: um diálogo marginal (Mário de Andrade leitor de Alceu Amoroso Lima). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. São Paulo, n. 49, p. x-xx, mar./set. 2009.
  • 5
    Para uma visão mais abrangente da religião em Mário de Andrade, conferir: SANTOS, L. Elegia de Jacó, o homem: Mário de Andrade e a religião. In: SANTOS, L. O Passeio da Coruja. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994.
  • 6
    Aqui, o orador se refere à “caridade” em seu sentido vulgar, assistencialista e acomodatício, predominante entre os católicos de seu tempo.
  • 7
    A expressão conceitual “próprio e apropriado”, de inspiração heideggeriana, é exemplarmente desenvolvida pelo filósofo Dante Augusto Galeffi em suas obras. GALEFFI, D. A. O Ser-Sendo da Filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001GALEFFI, D. A. O Ser-Sendo da Filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001.
  • 8
    “Colonialidade” refere-se às estruturas de poder constituídas pela articulação de capitalismo, eurocentrismo e racismo, a partir da conquista dos povos originários pela Europa no início da era moderna, e que se mantém em ação nas sociedades colonizadas mesmo após os processos formais de independência do colonialismo. Para uma introdução ao conceito, QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Revista Peru Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Revista Peru Indígena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992..
  • 9
    “Transmodernidade” concerne ao paradigma civilizatório situado além do fundamento da civilização global ocidental-eurocêntrica-capitalista-moderna. Para uma fundamentação filosófica do conceito, DUSSEL, E.DUSSEL, E. Filosofías del Sur: Descolonización y Transmodernidad. México: AKAL, 2015. Filosofías del Sur: Descolonización y Transmodernidad. México: AKAL, 2015.
  • 10
    Sobre a diferença entre ideal de beleza e beleza ideal, cf. SANTOS, L. Mário Vário: uma introdução ao Pensamento de Mário de Andrade, op. cit., p 82ss.
  • 11
    Lembremos que: “Poesia = Lirismo + Palavra + Crítica”. Ver Nota 16.
  • 12
    SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.
  • 13
    Alusão à expressão “supplément d’âme” (“suplemento de alma”), do filósofo Henri Bergson (1859-1941).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2022
  • Aceito
    03 Ago 2022
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