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A ‘INVENÇÃO’ DO ANTROPOCENTRISMO: UMA ABORDAGEM DECOLONIAL

The ‘Invention’ of Anthropocentrism: a Decolonial Approach

RESUMO

Propomo-nos, aqui, uma abordagem decolonial do antropocentrismo, em três momentos. No primeiro, analisaremos a separação “Natureza” e “culturas” e “humanos” e “não-humanos”, dualismos típicos do antropocentrismo, invenção da modernidade/colonialidade. No segundo, concentrar-nos-emos na instituição do “direito natural” como “direito dos povos”, para arbitrar conflitos entre Estados-nações em seus respectivos projetos coloniais. No terceiro, indagaremos acerca da imprescindibilidade de se “voltar aquém” do dualismo “Natureza/culturas” no intuito de nos libertarmos do círculo vicioso no interior do qual vivemos aprisionados. Na conclusão, em alternativa às atitudes de exterioridade, superioridade e instrumentalidade típicas do antropocentrismo moderno/colonial, proporemos relações de pertença, interação e cuidado para com todas as expressões de vida do planeta: humanos, seres vivos e entes que povoam o cosmos. Trata-se de privilegiar relações e movimentos em contínuo processo de composição entre organismos, espécies e coletivos.

PALAVRAS-CHAVE
Perspectiva decolonial; Modernidade-colonialidade; Antropocentrismo; Direito natural; Estados-nações

ABSTRACT

We propose, here, a decolonial approach to anthropocentrism, in three parts. The first part analyzes the separation between “Nature” and “cultures”, and “humans” and “non-humans”. These are typical dualisms of anthropocentrism, an invention of modernity/coloniality. The second part focuses on the institution of “natural law” as “peoples’ law”, to arbitrate conflicts between nation-states in their respective colonial projects. The third part inquires about the indispensability of “going back” from the “Nature/cultures” dualism, in order to free ourselves from the vicious circle in which we are trapped. The conclusion, as an alternative to the attitudes of exteriority, superiority and instrumentality typical of modern/colonial anthropocentrism, proposes relationships of belonging, interaction and care for all expressions of life on the planet: human beings, living beings and beings that populate the cosmos. It is about privileging relationships and movements in a continuous process of composition between organisms, species and collectives.

KEYWORDS
Decolonial Perspective; Modernity-Coloniality; Anthropocentrism; Natural Law; Nation-States

Introdução

De início, gostaríamos de explicitar o que aqui entendemos por “abordagem decolonial”. Na esteira de quanto proposto pelo grupo de pesquisa “modernidad/colonialidad1 1 É importante ter presente a genealogia dos “estudos decoloniais” e sua relação com os “estudos pós-coloniais” e também com os “estudos subalternos” (MELLA, 2016, p. 442-448; BALLESTRIN, 2013). Constatamos, não raras vezes, o uso indiscriminado dos prefixos “pós-” e “de-”, talvez pela carência de maiores referências com respeito a esclarecimentos terminológicos que, para além de mero jogo de palavras, são introduzidos com o fito de discernir perspectivas epistemológicas distintas. , nós a concebemos como processo que, partindo da analítica da modernidade/colonialidade, culmina em outro, o da gramática da decolonialidade. Daí a razão de se falar em abordagem ou, como preferem outros, viragem, movimento, processo, guinada, perspectiva, opção. Constata-se, portanto, que lógicas da colonialidade e retóricas da modernidade constituem, de fato, cara e coroa da mesma moeda e que, portanto, é perfeitamente justificável falar em “modernidade/colonialidade” (DUSSEL, 2000DUSSEL, E. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 24-33., p. 29-30; QUIJANO, 2000QUIJANO, A. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201-246.; 2007QUIJANO, A. “Colonialidad del poder y clasificación social”. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Eds.). El giro decolonial: Reflexiones para uma diversidade epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 93-126.; PORTO GONÇALVES, 2003PORTO GONÇALVES, C.W. Geografando nos varadouros do mundo. Brasília: Ibama, 2003., p. 168; MIGNOLO, 2010MIGNOLO, W. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010.; 2017MIGNOLO, W. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 32, n. 94, p. 1-18, junho 2017.).

Isso posto, nossa exposição se desdobrará em três momentos. No primeiro, analisaremos a separação entre “Natureza” e “culturas” – e, por extensão, entre “humanos” e “não-humanos” –, dualismos que se encontram na origem do antropocentrismo, invenção da modernidade/colonialidade. Em seguida, no intuito de discernir as causas dessa oposição, concentrar-nos-emos na instituição do “direito natural” como “direito dos povos”, expediente excogitado para arbitrar conflitos entre Estados-nações em seus respectivos projetos coloniais. Por último, indagaremos acerca da imprescindibilidade de se “voltar aquém” do dualismo “Natureza/culturas” na tentativa de libertar humanos e não humanos desse círculo vicioso no qual se encontram cindidos e aprisionados. Na conclusão, em alternativa às atitudes de exterioridade, superioridade e instrumentalidade típicas do antropocentrismo moderno/colonial, proporemos relações de pertença, interação e cuidado para com todas as expressões de vida do planeta: humanos, seres vivos e entes que povoam o cosmos. Trata-se de privilegiar relações e movimentos, e não contornos bem delimitados, em um contínuo processo de composição entre organismos, espécies e coletivos.

1 “Natureza” versus “cultura” – “Humano” versus “não-humano”

A oposição entre os pares de termos que compõem os dualismos “Natureza/cultura” e “humano/não-humano” constitui uma das bases de sustentação da modernidade/colonialidade em seu projeto de exploração extenuante e violenta de corpos e territórios. A tal propósito, acolhendo a sugestão de Donna Haraway, Bruno Latour deflagra uma apropriação indevida do adjetivo “humano(a)” por parte do sujeito moderno/colonial. Remetendo-nos à etimologia latina do termo, Latour insiste que “humano”, oriundo de humus, significaria “terrestre” e, portanto, relativo a todos os seres que vivem no planeta. E, conclui, de forma contundente: “Dizer ‘Nós somos terrestres em meio a outros terrestres’ não supõe de forma alguma a mesma política de ‘Nós somos humanos na natureza’. Os dois não são farinha do mesmo saco; ou mais precisamente, não provêm da mesma lama” (LATOUR, 2020aLATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020a., p. 105).

O recurso ao par de termos “Natureza/culturas” tem por finalidade dar sustentação à configuração moderno/colonial no interior da qual “Natureza” seria uma espécie de tela de fundo, neutra, sobre a qual se destacariam, mediante técnicas de relevo, todas aquelas atividades consideradas próprias do âmbito da “cultura”, da “sociedade”, da “civilização”. Daí a razão de se definir o ser humano como ser “cultural”, “social”, “civilizado” mediante processos cada vez mais sofisticados de separação, contraposição e hierarquização com respeito a tudo o que se considere “natural”, “primitivo”, “selvagem”. Em suma, “Natureza” e seus derivados corresponderiam a uma espécie de fundo indistinto sobre o qual se destacaria sempre mais o ser humano com suas respectivas atribuições culturais: criativas, sociais e morais. Com base nesse pressuposto, a noção de “Natureza” postularia o rango de evidência universal e, portanto, inquestionável e definitiva.

Trata-se, em suma, de uma invenção artificiosa de um par de termos reciprocamente dependentes, posto que se inventa para um determinado sujeito um objeto específico e, simultaneamente, um sujeito próprio para um determinado objeto. Deflagra-se, neste sentido, uma operação que separa sujeito de objeto, conferindo-lhes menções não apenas distintas, mas, separadas, contrapostas e hierarquizadas. O desafio seria, então, indagar acerca desta operação anterior que, ao distribuir os papéis entre esses personagens inventados, estabelece que uma parte desempenhará o papel de “Natureza” (para o sujeito humano) e a outra metade, o papel da consciência (desse objeto “natural”).

Nesse sentido, o que se convencionou chamar de “relação do ser humano com o mundo” trairia uma intrínseca ambiguidade: a pressuposição de estarmos postos frente a dois domínios – não apenas distintos, mas, separados, contrapostos e hierarquizados –: Natureza e cultura. Todavia, a rigor, não seriam dois domínios, mas, uma realidade bipartida cujas partes, porém, se encontram reciprocamente implicadas.

“Na tradição ocidental, jamais se fala de um sem falar do outro: não há outra natureza senão esta definição da cultura, e não há outra cultura senão esta definição da natureza. Elas nasceram juntas, são inseparáveis quanto irmãos siameses que se abraçariam e se golpeariam até sangrar sem deixar de pertencer ao mesmo tronco” (LATOUR, 2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., p. 34-35).

Isso posto, diríamos ser necessário problematizar justamente o que a modernidade/colonialidade tem nos feito crer tratar-se de um pressuposto óbvio. Pois, de fato, em vez de dois, são três os termos que compõem esta intrincada trama: natureza, cultura e, por fim, uma espécie de operação situada “aquém” que repartiria entre as partes papéis separados, contrapostos e hierarquizados. Nesse caso, o que se inventou como “Natureza”, não seria o fundo da tela a partir do qual se destacariam o ser humano e os bens culturais produzidos por ele. “Natureza”, ao contrário, seria apenas a metade de um par de termos inventado por uma operação anterior, não por acaso, implícita e escondida.

Essa operação artificiosa caracterizar-se-ia, para todos os efeitos, como um caso de invenção, dado que: de um lado, desanima-se uma seção do mundo, declarada objetiva e inerte e, uma vez privada de toda e qualquer atividade, reduzida a mero cenário; de outro, superanima-se a seção contraposta e superior, declarada subjetiva e, portanto, dotada de admiráveis capacidades de ação: liberdade, consciência, reflexão, senso moral etc. (LATOUR, 2020aLATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020a., 116; 142ss). Essa invenção que vem pesando gravemente sobre o ocidente há, no mínimo, quatro séculos, foi descrita por Whitehead como um típico caso de “bifurcação da natureza” (WHITEHEAD, 1994WHITEHEAD, A.N. O conceito de natureza. São Paulo: Martins Fontes. 1994., p. 54).

Gostaríamos de salientar um recurso gramatical que, aparentemente ingênuo, possui extrema relevância semântica. Trata-se do emprego do termo “Natureza” no singular. A força do termo, expressa em sua utilização no singular, consiste no ajuntamento em uma única série que, mediante expedientes de recapitulação e ordenamento, hierarquiza o conjunto dos seres. E o faz no intuito, sobretudo, de tornar mais efetivo o enfrentamento com outros ajuntamentos ordenados, compostos e unificados, tais como: a política, a moral, a religião, etc. Pois, de fato, tem razão Latour ao afirmar: “Quando se faz apelo à noção de natureza, o ajuntamento que ela autoriza conta infinitamente mais que a qualidade ontológica de ‘natural”, da qual ela garantiria a origem” (LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 54).

Talvez seja o caso, aqui, de nos remetermos às questões relativas à separação, contraposição e hierarquização entre mononaturalismo e multiculturalismo formuladas pelo antropólogo brasileiro Viveiros de Castro a propósito do que tem proposto como “perspectivismo ameríndio”. No bojo da modernidade/colonialidade, os assim chamados “humanos” vêm se sentindo confortáveis com a divisão entre: “reino da necessidade” e “reino da liberdade”. No primeiro caso, vigoraria o esquema causa-consequência; no segundo, seriam contempladas as invenções legais, morais e artísticas, todas elas fruto das atribuições próprias do “humano”, concebido como espírito e liberdade.

Em alternativa ao “mononaturalismo”, Viveiros de Castro propõe a noção de “multinaturalismo”. Em sua opinião, a ideologia hegemônica prefere recorrer à expressão “relativismo cultural” para se referir às várias opiniões sobre o mundo, o universo ou a “realidade”, em contraposição à visão verdadeira do mundo, essa “coisa lá fora”. Haveria, portanto, uma única opinião correta – a “verdade científica” – entre várias opiniões relativas. Todo o resto, consequentemente, seria “cultura”, isto é, superstições, visões exóticas – literalmente, “foras da ótica” – “fora da realidade”. A certeza de que Natureza, grafada no singular e com letra N maiúscula, seria uma só e que, portanto, não dependeria de nossas muitas e diversas opiniões – com exceção é claro da visão da “Ciência” que, neste caso, trairia uma espécie de “religião laica” – as opiniões e visões outras de mundo deveriam inclusive ser toleradas, posto que no fundo, conceber-se como “multiculturalistas” seria uma posição, de resto, politicamente correta. Escreve Viveiros de Castro:

“O que chamei de “multinaturalismo” ou de “perspectivismo multinaturalista”, para caracterizar as metafísicas indígenas, supõe a indissociabilidade radical, ou pressuposição recíproca, entre “mundo” e “visão”. Não existem “visões de mundo” (muitas visões de um só mundo), mas mundos de visão, mundos compostos de uma multiplicidade de visões eles próprios, onde cada ser, cada elemento do mundo é uma visão no mundo, do mundo — é mundo. Para este tipo de ontologia, o problema que se coloca não é o da “tolerância” (só os donos do poder são “tolerantes”), mas o da diplomacia ou negociação intermundos

(VIVEIROS DE CASTRO, 2016VIVEIROS DE CASTRO, E. O que se vê no Brasil hoje é uma ofensiva feroz contra os índios. Revista IHU On-line, 2016. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/559817-eduardo-viveiros-de-castro-o-que-se-ve-no-brasil-hoje-e-uma-ofensiva-feroz-contra-os-indios. Acesso em: 31 ago. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
).

O desafio, enfim, não seria propriamente “ir além” do dualismo “Natureza/cultura”, mas, ao contrário, “voltar aquém” para deflagrar o que se encontra implícito, posto que encoberto (DESCOLA, 2005DESCOLA, P. Par-delà Nature et culture. Paris: Gallimard, 2005.).

2 A instituição do “Direito natural” como “Direito dos povos”

A invasão e ocupação violentas dos territórios do continente ameríndio criaram as condições para a invenção de um “novo mundo”: o primeiro “sistema mundo” capitalista, colonial, eurocêntrico, racista, patriarcal2 2 Apesar de interpretarem a novidade da modernidade recorrendo a distintos modelos – secularização, emancipação e imanentização –, Löwith (1965), Blumenberg (1966) e Voegelin (1979) confluem na atitude de legitimar a novidade dos tempos modernos a partir de suas condições históricas de emergência situadas no universo simbólico medieval e, portanto, circunscritas única e exclusivamente ao espaço da Europa ocidental. Bem distinta é a posição assumida por E. Dussel (2000, p. 29-30), W. Mignolo (2010, p. 18) e Anibal Quijano (2000, p. 201-246), ao insistirem no fato de que a conquista e exploração violentas do “novo” continente americano não apenas precede historicamente a constituição da Europa, mas é conditio sine qua non de sua própria constituição e de imposição como protagonista do primeiro padrão de poder internacional: capitalista, colonial, eurocêntrico, racista, patriarcal. Mignolo chega a dizer que a colonialidade se apresenta como “o lado mais escuro da modernidade” (MIGNOLO, 2017). E Carlos Walter Porto Gonçalves afirma contundentemente: “sem o ouro e a prata da América, sem a ocupação de suas terras para as plantações de cana-de-açúcar, de café, de tabaco e de tantas outras espécies, sem a exploração do trabalho indígena e escravo, a Europa não seria nem moderna nem centro do mundo” (PORTO GONÇALVES, 2003, p. 168). . A tal propósito, E. Dussel é de opinião que o “eu conquisto” (conquiro) precede historicamente o “eu penso” (cogito), uma vez que o termo latino conquiro “significa: procurar com diligência. Mas na reconquista espanhola contra os muçulmanos a palavra tomou o sentido de dominar, submeter, ao saírem para recuperar territórios para os cristãos. Neste novo sentido, queremos agora usá-la ontologicamente” (DUSSEL, 2009DUSSEL, E. Meditações anti-cartesianas sobre a origem do anti-discurso filosófico da modernidade. In: SANTOS, B.S.; MENESES, M.P. (Ed.). Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 283-335., p. 307). De fato, a emergência do sujeito moderno constitui a legitimação teórica da conquista e, neste sentido, o substrato a partir do qual se explicitará a “invenção” de uma nova cosmovisão moderno/colonial. Não se trata de mero acaso, portanto, que a violência seja uma das características principais da epistemologia moderno/colonial.

Não sem razão, esta específica epistemologia se coaduna perfeitamente com o projeto da modernidade/colonialidade de submeter a vida como tal, em sua complexidade, ao controle absoluto do sujeito sob a guia segura do conhecimento: Cogito, ergo sum! O sujeito pensante se impõe, portanto, como o substrato a partir do qual se inaugura uma analítica do mundo circunstante. A perspectiva a partir da qual se constrói esta cosmovisão é a da racionalidade formal que decompõe em partes os fenômenos, no ato mesmo de descrevê-los e explicá-los, para em seguida opô-las e contrapô-las. E assim se cria uma fratura epistemológica expressa na infinidade de dualismos opostos e contrapostos. Trata-se de expediente excogitado pela racionalidade formal para poder controlar mais eficazmente a realidade.

E, assim, a modernidade/colonialidade vem, desde seus primórdios, se impondo mediante dois expedientes: exploração violenta dos bens e serviços da Terra e invenção de sujeitos-indivíduos separados da Terra. E a relação destes com aquela tem se dado a partir da exterioridade, da superioridade e da instrumentalidade. A invenção moderno-colonial da subjetividade como cogito tem provocado uma série de fraturas no tecido natural, social e existencial. Violentamente separados da Mãe Terra, deixamos de nos considerar “filhos da Terra”. Reduzidos a indivíduos sentimo-nos separados, opostos e contrapostos, a nós mesmos e aos outros seres que constituem o tecido social e cósmico. E, por fim, somos violentamente atravessados por aquela fratura existencial que nos cinde em duas coisas (res): uma extensa e outra pensante. Temos sido, de fato, constrangidos a padecer de uma espécie de esquizofrenia existencial, social e cósmica.

Ao se considerar o corpo como res extensa, a imaterialidade foi alçada à essência do sujeito. Isso se deu sobremaneira com Descartes que, ao estabelecer uma nítida separação entre mente e corpo, acabou por definir o ser humano como mente. É clara, portanto, a posição cartesiana de que a natureza humana se esgota essencialmente no plano da não extensão ou da imaterialidade, perfazendo-se unicamente no âmbito do pensamento. Portanto, o corpo não entra na constituição daquilo que é considerado essencial ao humano. A identidade do “eu” reside na alma; o “eu” é a alma3 3 Testemunhamos, nos dias que correm, um fenômeno chamado “neo-cartesianismo high-tech”, no qual o clássico dualismo corpo/alma se manifestaria agora na oposição hardware-software. Situamo-nos no interior das discussões em torno da “inteligência artificial” e seus derivados: processo de upload da mente humana mediante a transmissão de dados do cérebro humano para máquinas, a imortalidade da mente graças à sua hibridação com o software, etc... Discussões essas que se inserem no interessante capítulo da tecnociência contemporânea, dedicado ao mundo “pós-humano”, “pós-biológico” ou “pós-orgânico” (SIBILIA, 2002; FUKUYAMA, 2003; NEUTZLING; ANDRADE, 2009). .

Esta tese de Descartes serviu como luva aos interesses da sociedade emergente preocupada em extrair bens da natureza, vistos como meros recursos, e transformá-los, por meio da exploração forçada de corpos humanos, em meras mercadorias disponíveis aos negócios do incipiente capitalismo mercantil colonial. Interessante ressaltar que não se tratava apenas de considerar a natureza como algo objetivo e meramente extenso. Tendia-se também a conceber os seres humanos de outras ‘raças’, considerados sub-humanos ou não humanos, como simples corpos a serem controlados e submetidos a trabalhos extenuantes4 4 A tal propósito, remetemos o leitor às instigantes reflexões do sociólogo peruano, Aníbal Quijano, acerca do que ele chama de “invenção da ideia de raça” (QUIJANO, 2000, p. 201-246; 2007, p. 93-126). . É nesse contexto que devem ser inseridas as intermináveis disputas acerca da questão se os povos originários de nosso continente e os negros trazidos à força do continente africano tinham ou não alma. Não ter alma significava, naqueles idos, não ser humano e, portanto, apenas animal selvagem exposto a todo tipo de violência e exploração de seus corpos.

A tal propósito, resultam iluminadoras as palavras do jurista alemão Carl Schmitt no seu O nomos da Terra:

“Em nossos dias, a ordem do direito das gentes centrada na Europa, que vigorou até agora, está desmoronando. Com ela afunda o antigo nomos da Terra. Ele surgiu do descobrimento, fabuloso e inesperado, de um Novo Mundo, um acontecimento histórico irrepetível. Uma nova ocorrência desse tipo em nossos dias só pode ser imaginada em paralelos fantásticos, se homens a caminho da Lua descobrissem um planeta até então desconhecido que pudesse ser livremente explorado e usado para o desafogo dos conflitos na Terra. A questão de um novo nomos não pode ser respondida com tais fantasias. Tampouco será solucionada por meio de novas intervenções de caráter técnico-científico”

(SCHMITT, 2014SCHMITT, C. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014., p. 34 [grifos nossos]).

Pode causar espécie o fato de recorrermos a Carl Schmitt – arguto intérprete da República de Weimar e um dos principais teóricos do nacional-socialismo alemão – para ilustrar nossa argumentação. Contudo, nosso interesse reside justamente no fato de suas palavras explicitarem o elo que liga a constituição dos Estados-nações europeus ao histórico “desencontro” com os povos autóctones do “novo continente americano”, caracterizado pelo genocídio de populações inteiras e pela ocupação violenta de seus territórios com a consequente extração de seus bens e serviços. Por tais razões, seu texto ilustra bem alguns elementos que gostaríamos de ressaltar. Em primeiro lugar, o fato de o autor considerar que o “direito europeu” se encontra em processo de desmoronamento constitui situação oportuna para melhor compreender sua estruturação interna.

O autor alemão descreve a invasão de territórios e a dizimação de populações inteiras do novo continente como “descobrimento fabuloso e inesperado”. Em nossa opinião, o que de fato ocorreu foi um colossal “desencontro entre civilizações” caracterizado por um genocídio em proporções inauditas e de um saque sem precedentes de seus territórios. Não por acaso, há especialistas que insistem em propor o ano de 1610 como marco referencial para o início do “Antropoceno” (LEWIS; MASLIN, 2015LEWIS, S. L.; MASLIN, M. A. Defining the Anthropocene. Nature, v. 519, p. 171-180, 12 mar. 2015.). E as razões seriam a extinção massiva de populações locais e o voraz desmatamento de suas florestas perpetrados pela conquista europeia.

As “novas invenções de caráter técnico-científico” seriam, segundo o autor, capazes de diminuir a rivalidade entre os Estados-nações moderno/coloniais uma vez que não encontraremos “um planeta desconhecido” para “desafogo dos conflitos na Terra”. Suas palavras revelam que, no fundo, foi o expansionismo das monarquias e, sucessivamente, dos Estados-nações europeus, a tornar possível a invenção do assim chamado nomos da Terra ou do “direito natural moderno/colonial” como desafogo para a rivalidade interna. E, desde então, a intensificação do extrativismo de territórios e culturas e da exploração de corpos submetidos a servidão e escravidão como também novos expedientes de colonialidade têm sido a principal razão de se ter sustentado e legitimado, ao longo dos séculos, o assim chamado “direito natural” ou “direito dos povos”.

Contudo, Schimitt sequer parece suspeitar de que o extrativismo se desdobraria, ao longo dos séculos, em expedientes cada vez mais vorazes, na proporção de seu progressivo traslado da superfície ao subsolo. Pois, de fato, na medida em que os bens e serviços da Terra, indevidamente considerados meros “recursos”, escasseiam, a intensidade e violência da extração crescem exponencialmente. E, por incrível que pareça, a hipótese improvável, segundo o autor, de se encontrar um “planeta desconhecido”, não resulta tão absurda quanto parece. A energia fóssil, sangue da economia moderna e contemporânea, não teria, em última instância, sua origem em um corpo celeste? Afinal, carvão, petróleo e gás natural não são “Sol capturado por seres vivos cujos restos mortais foram sedimentados nas rochas”? (LATOUR, 2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., p. 364).

2.1 “Direito natural”: transcendência da natureza e da razão

Expediente excogitado para dirimir questões postas pela nova configuração da modernidade/colonialidade, o “direito natural” se constitui, segundo Marilena Chauí, em torno da “transcendência” da natureza e da razão5 5 Entre os séculos XVI-XVII, a doutrina da lei ou do direito natural se vê às voltas com desafios oriundos da ocupação e intensa exploração de corpos e territórios de “novos continentes” por parte das monarquias europeias. O que se encontra em jogo é a tensão entre a assim chamada “visão cristã do mundo” – identificada até então com a síntese elaborada por Tomás de Aquino entre lex evangelii e ética aristotélica – e as tradições dos povos conquistados. O desafio a partir de então será “inventar” a Natureza – daí a razão de se falar em “transcendência da Natureza” (Chauí) – como base moral vinculante com evidência e validade universais. É nesse contexto específico da colonização do “novo mundo” por obra do “velho mundo cristão” que, primeiro, teólogos da Segunda Escolástica como, por exemplo, Francisco de Vitória, Luis de Molina, Gabriel Vásquez e Francisco Suárez e, depois, juristas como Grotius e Pufendorf, se vêm às voltas com a urgência e necessidade de formular uma ética com abrangência, evidência e validade universais. É nesse contexto que aparece, por primeira vez, a expressão que, mais tarde, tornou-se clássica, a saber: “etsi deus non daretur” [“ainda que Deus não existisse”] (HONNEFELDER, 2010, p. 324-337). . O vínculo entre “direito natural” e vontade livre, a partir de então, desdobra-se em duas direções, a saber: direito natural objetivo e direito natural subjetivo. No primeiro caso, temos que, ao criar a Natureza, Deus dota-a de uma ordem jurídica originária de tal sorte que, ao nascermos, somos dotados de um natural sentimento do justo e do injusto, decorrente daquela justiça originária querida e decretada pelo Criador que, portanto, autorizaria certas ações e interditaria outras. Daí a razão de o pecado original ferir o direito natural pelo fato de constituir uma transgressão jurídica daquela justiça originária querida pelo Criador.

No caso do direito natural subjetivo, parte-se do pressuposto de que o assim chamado “ditado da razão” seja constitutivo do ser humano em sua diferença específica com relação às meras coisas. Pois, enquanto dotado de razão e vontade, o ser humano seria capaz de discernir “atos conformes” de “atos contrários” à sua natureza racional. Nesse caso, seria a noção de uma natureza humana universal o critério para se avaliar se uma determinada ordem moral ou política estaria ou não conforme à Natureza, entendida aqui como natureza racional dos seres humanos.

Instaurar-se-ia, para todos os efeitos, o racionalismo jurídico jusnaturalista, pois, enquanto que, de um lado, a razão divina fundamentaria a teoria do direito natural objetivo, de outro, seria a natureza racional do ser humano a fundar e legitimar a teoria do direito natural subjetivo. Talvez, assim, fique mais claro por quais motivos diz-se que naturalismo e racionalismo constituam os pilares estruturantes do inteiro fenômeno histórico-cultural da modernidade/colonialidade. A tal propósito, escreve a filósofa Marilena Chauí:

“O fundamento da teoria do direito objetivo é a transcendência da Natureza, que cria uma ordem jurídica anterior à ordem política, e o fundamento da teoria do direito natural subjetivo é a transcendência da Razão, que define o homem como animal racional livre ou como vontade livre guiada pela razão, capaz de escolher entre o bem e o mal. Essa escolha é contingente porque um ato só é voluntário se for uma escolha incondicionada ou indeterminada, e é somente a razão que pode e deve guiar uma escolha que seja naturalmente boa ou a melhor. É por um ditado da razão que os homens decidem pactuar e instituir o Estado”

(2006, p. 115).

Em tal contexto, parece-nos oportuno relacionar o fenômeno da “transcendência da Natureza” com a materialidade concreta da vida. Pois, ao que tudo indica, parece ter havido uma certa confusão entre matéria e materialidade. E não teria sido, por acaso, esta confusão a justificar o fato de que, a partir de então, a matéria tenha sido considerada desejável e, ao mesmo tempo, desprezível? Como explicar a paradoxalidade consistente no fato de se ter convertido a matéria em uma espécie de idealismo totalmente oposto à materialidade? Seria ela, por um verso, desejável por conduzir-nos ao ideal transcendente? E, por outro, desprezível justamente por não estar à altura de tamanha incumbência? Por essa razão, a noção de matéria parece ter sido indevidamente tomada de assalto da transcendência pela imanência6 6 E. Voegelin concebe a modernidade como fruto do processo de “Imanentização”, posto que teria ocorrido uma “inserção definitiva da transcendentalidade” na imanência. E, por essa razão, o termo “imanentização” quer justamente ressaltar o fato de que o peso da transcendência “factícia” teria esmagado quase por completo a imanência e, consequentemente, sua inerente materialidade. Segundo ele, teria se tratado de uma “imanentização errônea”, na medida em que, nessa específica relação entre ser humano e mundo, sua materialidade constitutiva desaparece para dar lugar apenas a um mundo imanentizado. E o resultado seria um fenômeno paradoxal descrito como um caso de “matéria indevidamente espiritualizada” ou de “transcendência mal situada” (VOEGELIN, 1979). A originalidade da posição de Voegelin reside na afirmação de que os modernos foram, na verdade, “imanentizados”, uma vez que se imbuíram da pretensão de realizar plenamente “aqui-em-baixo” a promessa escatológica cujo cumprimento estaria reservado ao “além”. Sucumbiram, portanto, à tentação falaciosa de reduzir o mundo presente a uma tentativa desajustada do transcendente se encolher para caber dentro de seus estreitos limites. A este propósito, comenta Latour: “Mas, para aqueles que imanentizaram o Céu, não há mais Terra acessível. [...] se os Modernos perdem o mundo, isso ocorre não por excesso de materialismo, mas por uma overdose de transcendência mal situada... [...] não era necessário trazer o Céu para a Terra, mas sim, em primeiro lugar, ocuparmo-nos, graças aos Céus, da Terra” (2020b, p. 314-315; 382). .

Isso posto, seria o caso de problematizar o caráter normativo de “Natureza” presente em várias de nossas expressões rotineiras, quais sejam, por exemplo: “Agir de acordo com sua natureza”; “Viver em consonância com sua verdadeira natureza”; “É preciso respeitar ou, ao contrário, lutar contra a natureza humana”. Fala-se ainda em “seguir a natureza ou voltar-se contra ela”; “obedecer à natureza”; “aprender a conhecer a natureza”; “voltar à natureza” etc. Curioso observar, em primeiro lugar, que a índole normativa em tais casos não se encontra do lado da “cultura” como era de se esperar, segundo aquela “bifurcação da natureza” e sua respectiva repartição de papéis, deflagrada anteriormente. Ao contrário, ela se encontra inversamente no lado da Natureza.

Pressuposto implícito à noção de “Direito natural” é que à Natureza seria creditado um conjunto de regras com status praticamente jurídico. Nesse caso, o adjetivo “natural” seria estranhamente considerado sinônimo de moral, legal, respeitável. Isso posto, como reconhecer atos “favoráveis ou contrários à Natureza”? Quais seriam, afinal, os critérios a partir dos quais discernir o que seria “contra” daquilo que, por oposição, seria “a favor” da Natureza? Esta específica compreensão de “direito natural” revelaria uma congênita fraqueza, explorada por Michel SerresSERRES, M. Retour au Contrat naturel. Paris: BnF, 2000. em sua obra O Contrato natural. Segundo ele, a noção de direito natural pressuporia uma situação caracterizada por uma “bifurcação do direito”: direito natural (phisis) e direito positivo (nomos). E o que ele chama de “fraqueza congênita” – uma espécie de contradição interna – da noção de direito natural seria reconhecer simultaneamente que, apesar de o verdadeiro direito só se dar no âmbito da cultura, haveria um direito inscrito na própria natureza a legitimar, portanto, sua intrínseca dimensão prescritiva. Daí a ideia inusitada por ele proposta de se estabelecer um pacto ou contrato com a natureza, como expresso no título de sua obra (SERRES, 1990SERRES, M. Le Contrat naturel. Paris: Bourin, 1990.; 2000).

Haveria outra ramificação de expressões associadas à Natureza que se encontram reunidas em torno do que se convencionou chamar de “Mundo natural”. Empregam-se usualmente expressões como: “é preciso voltar à natureza assim como ela é”; “os fatos falam por si mesmos”. Em tais casos, ainda que se tomem todas as precauções para não extrair delas algum tipo de carga moral, sob o pressuposto da não identificação entre descrição e prescrição, tais expressões acabam assumindo uma exigência moral potentíssima. Trata-se da eleição da indiscutível realidade “assim como ela é” e de suas respectivas necessidades imperiosas, em alternativa às incertezas confusas daquilo que “deveria ser”. Neste caso, a simples descrição dos fatos, assim como são, implicaria em um conjunto de injunções coercitivas do tipo: “É preciso respeitar os fatos brutos, em sua objetividade”. Assim, através de uma “dimensão normativa de segundo grau”, seríamos colocados diante de inúmeros deveres impostos por algo que se supõe ser “o que se encontra aí, diante de nossos olhos, nada mais que isso”. E a conclusão parece óbvia: “é preciso respeitar as leis da natureza que se impõem sobre todos pela evidência própria de serem, simplesmente, assim como são”.

Jamais, como em tais casos, as injunções normativas se tornam tão contundentes, justamente enquanto subentendidas e implícitas. Pois, afinal, o “mundo natural” é invocado e instrumentalizado, em sua índole não-moral, como árbitro neutro a dirimir escolhas, comportamentos e decisões humanas e, portanto, culturais. O que não deixa de ser intrinsecamente paradoxal. Pois, justamente por serem considerados “puramente naturais”, é que são indevidamente invocados em sua realidade bruta como árbitro indiscutível para dirimir desejos, ideais, necessidades e, inclusive, fantasias humanas. A invocação desse “mundo natural” serviria ainda como um “chamado à ordem” a todos que dela porventura pretendessem se afastar. Em suma, a exigência de “se ater unicamente aos fatos” resultaria altamente normativa. Pois, em tal caso, se naturaliza um simples estado de fato, tornando-o, para todos os efeitos, um estado de direito.

Fazendo, portanto, recurso a uma espécie de translatio imperii, boa parte daqueles predicativos que, na cristandade medieval, eram aplicados ao Deus cristão, foram, no período moderno/colonial, recolhidos e concentrados na noção de “Natureza” (com a letra inicial maiúscula e no singular). E, assim, esta operação fez com que “Natureza” constituísse aquele universal evidente, único e verdadeiro, a partir do qual teriam surgido as culturas, por certo, múltiplas. Em suma, a verdadeira “Natureza”, fundada na “Ciência”, unificaria as múltiplas culturas. Daí a ilusão difundida em profusão na modernidade/colonialidade de que as questões religiosas teriam sido definitivamente solucionadas e, por conseguinte, superadas – no sentido de terem sido deixadas para trás – mediante a irrupção do conceito de “Natureza”, salvaguardado pela “Ciência”. Estaríamos, portanto, imersos em uma nova configuração, caracterizada por uma espécie de “religião natural”, na qual o conceito de “Natureza” exerceria o papel de postulado fundamental: conceber o mundo como universo, isto é, como um todo unificado.

Parece ter, de fato, razão Latour ao escrever: “O limite de todo direito natural não é querer buscar uma ordem que permita legislar, mas agir como se houvesse duas séries paralelas, e apenas duas, uma da ‘natureza’, outra do direito; e buscar qual seria a cópia do outro” (LATOUR, 2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., p. 109). E, na raiz deste limite, não se encontraria uma compreensão implícita, jamais assumida, de uma Natureza “indevidamente transcendentalizada”, ainda que travestida de roupagens seculares? Seria legítimo falar de uma espécie de “teologia” subentendida na ideia de Natureza que justificaria o fato de uma “certa visão científica do mundo” trair-se como versão religiosa da natureza das causas? O pressuposto é que haveria uma narrativa causalista por detrás de uma “certa visão científica do mundo”, em conformidade com a qual, segundo Latour, dar-se-ia tudo às causas e nada às consequências. Na prática, tudo seria remetido à causa primeira, ao passo que tudo quanto segue seria entendido como mera consequência.

A tal propósito, parece-nos deveras revelador o que escreve Francis Bacon no seu Novum Organum (I, 3), no tocante à identidade entre saber e poder: “A ciência e a potência humana coincidem, porque a ignorância da causa impede o efeito, e só se domina a natureza obedecendo-a: aquilo que na teoria é a causa, se torna regra na operação prática” (Apud: TODISCO, 2006TODISCO, O. Il dono dell’essere: sentieri inesplorati del medioevo francescano. Padova: Messaggero Padova, 2006., p. 289). A fundamentação, portanto, do aforisma de Francis Bacon “saber é poder” (nosse est posse) é altamente reveladora, em primeiro lugar, no que tange à extrema importância concedida às causas. O conhecimento consiste na individuação das causas para, assim, poder atuar sobre a natureza dominando-a, com base em duplo pressuposto: “a ignorância da causa impede o efeito”; e “só se domina a natureza obedecendo-a”. Encontra-se, para todos os efeitos, justificada a proposição de que investigar as causas constitui a conditio sine qua non para o conhecimento daquelas prescrições que, somente enquanto obedecidas, tornarão possível ao ser humano o domínio sobre a natureza.

Essa posição defendida na aurora da modernidade/colonialidade talvez nos ajude a compreender melhor o que estaria na base do “direito natural”, fundamentando-o e, por conseguinte, conferindo-lhe plenos direitos de cidadania. Destarte, confirmaria quanto afirmado por Latour com respeito ao paralelismo e mimetismo entre as únicas duas séries de legislações no bojo de uma visão de mundo que, embora se repute científica, se trai demasiadamente religiosa.

2.2 “Estado da Natureza e da Razão”

Como vimos acima, na opinião de Marilena Chauí, “É por um ditado da razão que os homens decidem pactuar e instituir o Estado” (2006CHAUÍ, M. Espinosa: poder e liberdade. BORON, A. Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. CLACSO (Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales); DCP (Departamento de Ciências Políticas); FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas). São Paulo, USP, 2006. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/06_chaui.pdf. Acesso em: 02 set. 2021.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libro...
, p. 115). E a autora chega a esta contundente conclusão após afirmar:

“O fundamento da teoria do direito objetivo é a transcendência da Natureza, que cria uma ordem jurídica anterior à ordem política, e o fundamento da teoria do direito natural subjetivo é a transcendência da Razão, que define o homem como animal racional livre ou como vontade livre guiada pela razão, capaz de escolher entre o bem e o mal”

(2006, p. 115).

A relação entre “Natureza” e “Política” é bem antiga e, não por acaso, testemunha a implicação recíproca entre os pares do binômio. Será necessário, aqui, remeter-nos àquela repartição à qual temos nos referido desde o início de nosso discurso, a saber: “humanos” e “não-humanos”. A política pertenceria ao âmbito dos “humanos” ao passo que a Natureza corresponderia ao âmbito dos “não-humanos”. A natureza seria reduzida a mero cenário inanimado no interior do qual se desenrolariam as atividades dos humanos, únicos protagonistas da trama histórica, posto que dotados dos atributos específicos de sua condição ontológica peculiar: espírito e liberdade.

Como vimos anteriormente, uma vez considerada amoral, a “Natureza” ditaria a conduta moral dos humanos. De igual maneira, inventa-se o conceito apolítico de “Natureza” com o escopo de erigi-lo instância de valores e critérios a partir dos quais tomar decisões políticas propriamente ditas. E, assim a “Natureza”, de um lado, é considerada uma espécie de suprema corte de decisões morais e, de outro, invocada na condição de árbitro super partes a dirimir toda sorte de conflitos políticos entre os Estados-nações. Cumplicidade tão intrincada que, no dizer de Latour: “Jamais houve outra política que aquela da natureza e outra natureza que aquela da política” (LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 54).

Nesse sentido, o termo “Natureza”, possuidor de forte carga semântica, vem remediar a fissura, provocada pela Reforma protestante e pelo sucessivo fenômeno da guerra das religiões, no tecido homogêneo da religião única, base de sustentação do inteiro edifício sócio-político medieval. Durante toda a cristandade medieval, a Igreja teria cumprido o papel de arbitrar sobre os eventuais conflitos políticos. O poder dos papas era unanimemente reconhecido e, portanto, gozava de autoridade para intimar as partes envolvidas em conflito e para arbitrar sobre elas. Na modernidade/colonialidade, a guerra das religiões desautoriza, por assim dizer, a figura do papa como poder unificador das partes. Talvez seja sobretudo essa a razão pela qual se invente a “Natureza” como substituto desse expediente. Assim, embora se fale em “laicização” ou “secularização”, o que se verifica é que a noção de “Natureza” se impregna de atitudes e hábitos semelhantes aos que caracterizavam a religião que se acreditava combater e superar. É nesse sentido que Marilena Chauí, após falar da “transcendência da Natureza” como “fundamento da teoria do direito objetivo” pelo fato de criar “uma ordem jurídica anterior à ordem política”, conclui dizendo taxativamente: “É por um ditado da razão que os homens decidem pactuar e instituir o Estado” (2006, p. 115). Em conclusão, a “Natureza” seria, em resumidas palavras, um corpo inventado para controlar a política, tornando-a impotente.

Pressuposta essa cumplicidade tácita entre Natureza e política, os cidadãos dos Estados-nações, em situação de conflito, brigam apenas por detalhes, ao passo que, quanto ao essencial, manifestam um consenso básico. E o assentimento consistiria em se submeterem unanimemente à égide de uma soberania cuja característica fundamental seria apelar para a razão do ser humano. Neste sentido, a noção de “Natureza” gozaria de uma soberania naturalista e, ao mesmo tempo, racionalista. A “Natureza”, portanto, possuiria leis internas acessíveis ao ser humano mediante o uso correto e seguro da razão. Percebe-se aqui a oportunidade e pertinência do aforisma baconiano, citado e analisado anteriormente. Em tal caso, estaria justificado o consenso com respeito à universalidade e indiscutibilidade do “Estado da Natureza”7 7 Conviria, aqui, distinguir o que, seguindo Latour, chamamos de “Estado da Natureza” do que Hobbes chamava de “estado de natureza” em equivocada referência aos povos originários do novo continente americano (LATOUR, 2019, p. 354-356). , como instância a arbitrar eventuais conflitos envolvendo os Estados-nações, considerados meras assembleias humanas, notadamente plurais e parciais.

Criar-se-ia, então, uma nítida separação e oposição entre “natureza sem história” e “sociedade com história”. Nesse caso, estariam criadas as condições para que se instaure um verdadeiro culto à Natureza – entidade exterior, imutável, universal e indiscutível. A história, enquanto espaço no qual “humanos” habitam, ocuparia posição oposta e inferior, enquanto mutável, localizada, discutível. A natureza, enfim, designaria um âmbito inerte, definitivo e evidente capaz de paralisar a vida pública, parcial e plural, de humanos. E, assim, a noção de “Natureza” seria empregada no intuito de abortar a política, uma vez que o assim chamado poder natural estaria guardado sob sete chaves e, portanto, acessível apenas a “invisíveis” especialistas, os únicos capazes de decidir sobre os desejos, poderes e deveres da natureza, como, de resto, vaticinado por Bacon.

Exemplos do que dissemos, podem ser encontrados seja nos impactos sociais provocados pelo assim chamado “darwinismo histórico” seja nas metáforas patriarcais mediante as quais as mulheres seriam assimiladas à natureza. No primeiro caso, metáforas do darwinismo teriam sido tomadas em empréstimo pela política e, depois, projetadas de novo sobre a natureza para, ao final, serem reimportadas novamente à esfera política no intuito de justificar e legitimar a dominação dos ricos e poderosos com argumentos oriundos de uma irrefragável ordem natural. No segundo caso, mediante a insistência das feministas, compreendemos todos que associar as mulheres à natureza serviu como justificação ideológica, durante longo tempo, para mantê-las afastadas de todos os direitos civis e políticos. Esses e outros tantos exemplos de intromissão de critérios e valores reputados “naturais” na vida pública confirmam a suspeita de que toda questão epistemológica é, ao fim e ao cabo, uma questão marcadamente política. E, com base, neste pressuposto, reconhecemos que na totalidade das vezes em que se recorre à “Natureza” no contexto de cenas políticas, isso é feito com a intenção de reduzir ou mesmo anular a intensidade política. Aliás, não é de se estranhar que isso ocorra, pois, em última instância, ela foi inventada para isso, ou seja: “tornar a política impotente” (LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 58).

A confirmar esta associação entre os Estados-nações e o novo direito natural compreendido como “Jus publicum europeanum” é o caráter tipicamente moderno/colonial destas duas noções. Ao conceito de “Natureza”, base de sustentação de ambas as noções, encontram-se intrinsecamente associados os seguintes princípios: Progresso linear ilimitado, sentido da História e Ciência indiscutível. Chamamos a atenção para o fato de os substantivos estarem grafados no singular e com iniciais maiúsculas. Em conclusão, diríamos que os “Estados-nações” moderno/coloniais foram imaginados para solucionar questões suscitadas no bojo da nova configuração provocada pelas guerras religiosas e, sobretudo, justificar a conquista e apropriação de outros povos e territórios mediante expedientes coloniais.

3 “Voltar aquém” do dualismo “Natureza/culturas”

O que propomos, afinal, seria “voltar aquém” do dualismo “Natureza/culturas” ou “humanos/não humanos” no intuito de deflagrar aquela espécie de operação implícita. Essa seria a condição de possibilidade de se libertar tanto humanos quanto não-humanos: os primeiros, de sua constrição a serem sujeitos; os últimos, de sua objetalização imposta. Em outras palavras, é necessário que deflagremos e desconstruamos a viciada relação instaurada pelo dualismo “sujeito/objeto” que constrange os humanos a serem sujeitos daquela natureza e, simultaneamente, obriga a natureza a ser mero objeto para determinados sujeitos. Nesse caso, escapar da polêmica e da falácia da contraposição e hierarquização entre “humanos” e “não-humanos” torna-se conditio sine qua non para que os assim chamados “humanos” exerçam sua liberdade mais plena.

Nesse sentido, salienta Latour, defender a natureza seria, rigorosamente falando, trair “a ingenuidade de crer que sob o manto da natureza” não se defenderia outra coisa que “um ponto de vista particular, o dos ocidentais”. Nesse sentido, continua ele, “pôr fim ao antropocentrismo” seria, no fundo, trair-se em “seu etnocentrismo” (2019, p. 59). De fato, as culturas ditas “não ocidentais” jamais empregaram a noção de “Natureza”; aliás, sequer manifestaram interesse por ela. São os ocidentais, na verdade, a advertirem a necessidade premente de se desintoxicarem da ideia de “Natureza”.

“Foram os ocidentais, ao contrário, que transformaram a natureza em um grande negócio, em uma imensa cenografia política, em uma formidável gigantomaquia moral, e que têm com frequência engajado a natureza na definição de sua ordem social”

(LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 72).

Isso pressuposto, torna-se necessário desconstruir os preconceitos dos ocidentais de que as culturas não ocidentais teriam misturado completamente as duas ordens: natural e social. Não é que estas duas ordens tenham sido misturadas, os ocidentais é que as separaram, opuseram e hierarquizaram. As culturas não ocidentais sequer as distinguiam. Isso posto, Latour faz o balanço de décadas de estudos acerca da antropologia comparada, nos seguintes termos:

“Vê-se, atualmente, uma inversão de perspectiva: não são mais eles, os selvagens, que aparecem como estranhos, por misturarem o que não se deveria de modo algum misturar, as ‘coisas’ e as ‘pessoas’: somos nós, ocidentais, que vivemos até aqui o estranho sentimento de que era preciso separar em dois coletivos distintos, segundo duas formas de ajuntamento incomensuráveis, as ‘coisas’, de um lado, as ‘pessoas’, de outro”

(LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 75).

A tal propósito, seria oportuno considerarmos os estudos do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro acerca do “perspectivismo ameríndio”. Através do estudo da maior parte dos mitos dos povos indígenas da América do Sul, ele reconhece que “a condição original dos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (2018, p. 60). Se nas ontologias ocidentais a animalidade seria o denominador comum entre humanos e animais, justificando assim o antropocentrismo, nas ontologias ameríndias esse fundo comum seria a humanidade, posto que “cada espécie de existente vê-se a si mesma como humana” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir?: ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014., p. 95).

Nesse sentido, as cosmologias ameríndias não conferem algum tipo de primado ontológico ou epistemológico ao ser humano, posto ser a humanidade substrato ou condição universal de todos os entes. Segundo Viveiros de Castro, “a grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam atributos herdados ou mantidos pelos humanos” (2018, p. 60). Segundo as narrativas indígenas, portanto, o mundo da natureza é que teria se distinguido do que seria o mundo humano, e não o contrário, como reza a cartilha da tradição antropocêntrica moderno/colonial. Lembra Viveiros de Castro que “os não-humanos são ex-humanos” (2018, p. 60), ainda que a humanidade de todas as espécies se oculte, na maioria das vezes, existindo não objetivamente, mas, ao contrário, subjetivamente. Pois, segundo o autor, “o perspectivismo afirma uma diferença intensiva que traz a diferença humano/não-humano para o interior de cada existente” (2018, p. 61). Concebida como uma espécie de fundo interior, a humanidade se realizaria diferentemente em cada ser existente e, assim, simultaneamente, aproximaria e distanciaria os seres, tornando-os semelhantes e, ao mesmo tempo, distintos.

“A humanidade é reciprocamente reflexiva (o jaguar é um homem para o jaguar; o queixada é um homem para o queixada), mas não pode ser mútua (no momento em que o jaguar é um homem, o queixada não o é, e vice-versa. Esse parece-me ser, em última análise, o sentido da ideia de ‘alma’ nas ontologias indígenas”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2018VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu, 2018. v. 1., p. 62).

Compreendida assim, humanidade corresponderia à interioridade ou subjetividade cosmológicas, reveladora, porém, de múltiplas diferenças em se tratando de corpos. Por tais razões, as ontologias ameríndias foram, em nossa opinião, apressadamente classificadas como “animistas”. A rigor, não seriam elas, ao contrário, “somatistas”, uma vez que as distintas formas de ser e, respectivamente, de ver/compreender o mundo se originam de aspectos específicos de cada corpo, a saber: “o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário, tímido ou agressivo…” (2018, p. 66)? Tais afetos, portanto, se originariam a partir de um corpo que se destaca daquele fundo comum último da humanidade primordial. Concebe-se corpo, nesse caso, como modo de ser próprio de cada existente e, portanto, jamais redutível a mera fisiologia.

Compreender a humanidade como “alma” seria o mesmo que “voltar aquém” à separação-contraposição-hierarquização entre “humano” e “não-humano”. Pois, falar da humanidade de todos os seres seria situar-se no pré-cosmos (2018, p. 56), vale dizer, no âmbito pré-subjetivo e, ao mesmo tempo, pré-objetivo: o mundo integral narrado pela mitologia indígena. Esse seria o mundo caracterizado por uma interpenetração original no interior do qual diferenças se dariam como correlação, proporção e permutação de caracteres no bojo de uma mesma natureza, a humana. Nesse pré-cosmos, em vez de se ocultarem reciprocamente, corpo e espírito narram correlativamente a história de suas próprias transformações. Nesse sentido, para além de um conceito epistemológico, o perspectivismo se assume, sobretudo, como um conceito ontológico, ao reconhecer que o mundo é composto por múltiplos pontos de vista distintos que, ao projetarem o mundo, passam a concebê-lo e, em certo sentido, “fabricá-lo”. Assim, esses seres “fabricados” a partir de diferentes pontos de vista – deuses, animais, falecidos, plantas, chuva, ventos, objetos e artefatos vários – seriam todos, sem exceção, “intensivamente pessoas, virtualmente pessoas” (2018, p. 46). E não apenas porque o são, de fato, mas também porque já o foram um dia, ou ainda porque, eventualmente, podem se transformar em pessoa. Precisamente pelo fato de que, nas mitologias ameríndias, todos esses seres detêm uma mesma característica associativa – aquela “alma” ou aquela “humanidade” – da qual não se distinguem subjetivamente, mas, objetivamente, é que a concepção de pessoa, para todos os efeitos, lhes diz respeito.

Essa maneira radicalmente diferente de se experimentar a relação entre humanidade e animalidade e de concebê-la segundo essa perspectiva outra se dá propriamente na tradição do xamanismo onde não se assume apenas a perspectiva, mas a própria condição ontológica do outro. De fato, na tradição xamânica das cosmologias ameríndias “todos os existentes são centros potenciais de intencionalidade” (2018, p. 42) e, enquanto tais, assumem pontos de vista diferentes. No intuito de pensar essa multiplicidade de agentes subjetivos, Viveiros de Castro propõe o “multinaturalismo” em alternativa ao “mononaturalismo”, como já tivemos ocasião de apresentar no primeiro tópico.

Mediante o recurso a uma infinidade de pares de termos separados, contrapostos e hierarquizados – humano/não humano; Natureza/cultura; objetividade/subjetividade; corpo/espírito etc – a metafísica ocidental concebe a noção de “ponto de vista” como a posição subjetiva que o espírito humano assume em suas várias interpretações. Já nas cosmologias ameríndias, são os corpos que constituem o âmbito da multiplicidade, uma vez que o espírito se revela em sua objetividade. Em síntese, nas ontologias ameríndias, o lugar da variação perspectiva é a natureza e, também, o corpo. Daí a razão de se falar em “multinaturalismo”.

Concluindo, diríamos que, enquanto a epistemologia moderno/colonial se caracteriza grosso modo pelo conhecimento objetivante, o xamanismo ameríndio se distingue por conhecer mediante a assunção do ponto de vista daquele que se quer conhecer (2018, p. 50). A personificação constitui, portanto, a condição mesma de possibilidade de todo conhecimento, posto que a todos os existentes, humanos e não-humanos, o espírito foi distribuído. É nesse sentido que se diz ser o “perspectivismo” uma ontologia, mais que mera epistemologia.

Talvez seja o caso de, a tal propósito, também nos remetermos à posição que vem sustentando o filósofo chinês, Yuk Hui, ao propor o conceito de “tecnodiversidade”, ou seja: a necessidade de se reconhecer uma espécie de pluralismo de tecnologias (HUI, 2020HUI, Y. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu, 2020.). Pois, como, diz:

“A maneira como vemos a tecnologia enquanto força exclusivamente produtiva e mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia nos impede de enxergar seu potencial descolonizador e de perceber a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade”

(HUI, 2021HUI, Y. Uma filosofia da tecnodiversidade. Revista IHU On-line, 2021. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606797-em-yuk-hui-uma-filosofia-da-tecnodiversidade. Acesso em: 09 set. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/6...
).

Conceber o progresso tecnológico unicamente como progresso linear acumulativo não seria expressão apenas de um modo entre outros de se pensar a tecnologia? Portanto, ao se perguntar acerca do que aconteceria se, em vez de uma única tecnologia, dispuséssemos, ao contrário, de muitas cosmotécnicas, o filósofo Hui está pondo em questão a premissa universalista da modernidade/colonialidade (WIRTZ, 2021WIRTZ, F. A cosmotécnica como método para pensar a relação entre tecnologia e cultura. Revista IHU On-line, 2021. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/612583-a-cosmotecnica-como-metodo-para-pensar-a-relacao-entre-tecnologia-e-cultura-entrevista-especial-com-fernando-wirtz,. Acesso em: 09 set. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/...
).

Deveras promissor, de resto, o futuro aberto para “humanos” e “não-humanos” na aventura da liberdade, pois, de fato,

“Uma vez liberados dessa verdadeira guerra fria, os humanos assumirão um aspecto totalmente diferente, e, em lugar de existir apenas por si mesmos, poderão exibir a longa cadeia de não humanos, sem os quais a liberdade não faria sentido” (LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 83-84)8 8 Impossível não ver aqui uma alusão implícita a quanto sustentado por Kant no tocante ao direito privado, responsável pela oficialização jurídica da existência de “pessoas” e “coisas” apenas. Segundo ele, tão somente o ser humano existe “por amor a si mesmo”. Todo o resto existe apenas por causa dele e em função dele. O sentido das demais “coisas” reside propriamente no seu estar à disposição do ser humano. Essa rígida divisão, aparentemente clara e distinta, tem se constituído em uma das fatalidades do paradigma civilizacional moderno/colonial. .

Emblemáticas, afinal, as questões que dizem respeito à relação peculiar da modernidade/colonialidade com o futuro. Demasiadamente preocupados e ocupados em escapar dos “velhos tempos”, os modernos acabam se traindo enquanto presos ao passado e, portanto, com grandes dificuldades em se abrirem à ulterioridade, enquanto dimensão que caracteriza o futuro. Excessivamente presos ao passado do qual pretendem se emancipar, não fazem recurso às mediações do “devir” como condição de possibilidade da emergência do “porvir”. Talvez essa seja a razão pela qual os modernos concebam grosso modo o futuro recorrendo a “antecipações ficcionais”, traindo, assim, sua falta de senso do “real”, como, de resto, expresso nas palavras de Latour: “Em suma, o tempo dos modernos é estranhamente atemporal” (2020b, p. 379).

Conclusão: relações de pertença, interação e cuidado com todos os seres vivos

O problema mais crítico do antropocentrismo talvez seja o de delimitar o que se convencionou chamar de “centro” instituindo bordas tão definidas a ponto de excluir os outros seres. Há, como vimos, uma generalização e redução indevidas da complexidade da realidade em duas seções bem delimitadas: objetiva e inerte, uma; outra, subjetiva, consciente, livre e dotada de senso moral. A seção considerada inerte seria reduzida a mero cenário da trama histórica cujo único protagonista seria o ser humano. Essa repartição clara e distinta de papéis entre ambas as seções se encontra na base da “visão científica do mundo”, responsável por negar historicidade e narratividade intrínsecas ao mundo, inviabilizando toda e qualquer experiência humana de se sentir em comunhão com todos os seres viventes que povoam o planeta. O cenário seria considerado “exterior” e, portanto, “fora” da trama (LATOUR, 2020aLATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020a., p. 104). Esta seria a pressuposição daqueles que insistem na noção de “meio-ambiente” como espaço exterior no qual se situa e age o ser humano, sujeito autônomo e desvinculado de seu inerte cenário.

Acontece que, nas últimas décadas, temos nos dado conta de uma espécie de revolução, pois o que considerávamos mero “pano de fundo” tem assumido o primeiro plano de nossas tramas. E a razão desta radical reviravolta parece ser o que Bruno Latour tem afirmado de forma contundente, a saber: “Os organismos fazem seu ambiente, não se adaptam a ele” (LATOUR, 2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., 162-167). Estaria, assim, justificado falar não mais de História apenas, mas, sim, de Geo-História.

“Não há nada de inerte, nada de benevolente, nada de exterior nela. Se o clima e a vida evoluíram juntos, o espaço não é um quadro, nem mesmo um contexto: o espaço é o filho do tempo. Exatamente o oposto do que Galileu havia começado a implantar: estender o espaço para tudo a fim de colocar cada ator no interior, partes extra partes. Para Lovelock, esse espaço não tem mais nenhum tipo de significação: o espaço em que vivemos, o da zona crítica, é exatamente o mesmo em que conspiramos; ele se estende tão longe quanto nós; duramos quanto aqueles que nos fazem respirar”

(LATOUR, 2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., 174).

Enquanto capaz de reagir às nossas ações, a Terra, além de movimento, possui, para todos os efeitos, um comportamento. Emblemática, a propósito, a expressão “E ainda assim a Terra se comove”, formulada por Michel Serres em clara alusão a quanto dito por Galileu Galilei no contexto de sua retratação pública: Eppur si muove! (SERRES, 1990SERRES, M. Le Contrat naturel. Paris: Bourin, 1990.).

Somos, segundo nos parece, obcecados pela ideia de nos considerarmos o centro de tudo quanto existe. Expulsos, historicamente, dessa posição central pela teoria do heliocentrismo, agarramo-nos impiedosamente ao antropocentrismo inventado pela modernidade/colonialidade. Séculos mais tarde, fomos novamente flagrados em nossa pretensa centralidade pela teoria evolucionista das espécies de Darwin e pelos estudos de Freud e Jung acerca da psique humana e, mais recentemente, pelas pesquisas de Turing em torno da infosfera. E a conclusão é a seguinte: depois das quatro revoluções provocadas por Copérnico, Darwin, Freud e Turing, não nos situamos mais no centro do universo, do reino animal, da esfera mental e da infosfera.

O antropocentrismo tem se constituído a partir de peculiar atitude/mentalidade assumidas em face das demais criaturas: afirma-se a identidade do ser humano em termos de superioridade mediante o processo de separação e oposição que lhe daria o direito de instrumentalizá-las segundo seus interesses próprios. Sendo assim, a identidade própria do ser humano se afirmaria em termos de superioridade, exterioridade e instrumentalidade. Isso posto, renunciar ao antropocentrismo não significa, como muitos pensam, perder-se num emaranhado onde todos os gatos pareçam pardos, mas, ao contrário, constitui condição irrenunciável para se recuperar a singularidade do ser humano, isto é, sua diferença específica no conjunto plural de todos os seres. O reconhecimento da pluralidade intrínseca a todos os viventes não nos dá o direito de inventar centros, mas, ao contrário, propicia a emergência de uma ciranda de singularidades e suas respectivas perspectivas peculiares.

Enfim, diríamos que, por mais que resulte paradoxal, talvez tenha sido justamente a grande narrativa da emancipação moderno/colonial – com sua contradição intrínseca: escravização de humanos e extrativismo violento – a nos tornar incapazes de experiências de “pertença” e de atitudes de respeito e cuidado para com seres vivos e territórios. E, portanto, em alternativa às atitudes e mentalidades de exterioridade, superioridade e instrumentalidade típicas do antropocentrismo moderno/colonial, propomos relações de pertença, interação e cuidado para com todas as expressões de vida do planeta: com humanos, mas também com outros seres vivos e entes que povoam o cosmos. Isso implica em privilegiar relações e movimento, e não contornos bem delimitados, em um contínuo processo de composição entre organismos, espécies e coletivos.

  • 1
    É importante ter presente a genealogia dos “estudos decoloniais” e sua relação com os “estudos pós-coloniais” e também com os “estudos subalternos” (MELLA, 2016MELLA, P. La teología latinoamericana y el giro descolonizador. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 48, n. 3, p. 439-461, set./dez. 2016., p. 442-448; BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 10 fev. 2022.
    https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp...
    ). Constatamos, não raras vezes, o uso indiscriminado dos prefixos “pós-” e “de-”, talvez pela carência de maiores referências com respeito a esclarecimentos terminológicos que, para além de mero jogo de palavras, são introduzidos com o fito de discernir perspectivas epistemológicas distintas.
  • 2
    Apesar de interpretarem a novidade da modernidade recorrendo a distintos modelos – secularização, emancipação e imanentização –, Löwith (1965)LÖWITH, Karl. Significato e fine della storia. I presupposti teologici della filosofia della storia. Milano: Comunità, 1965., Blumenberg (1966)BLUMENBERG, H. La legittimità dell´Età moderna. Genova: Marietti, 1992. e Voegelin (1979)VOEGELIN, E. A nova ciência da política. Brasília: Editora da Unb, 1979. confluem na atitude de legitimar a novidade dos tempos modernos a partir de suas condições históricas de emergência situadas no universo simbólico medieval e, portanto, circunscritas única e exclusivamente ao espaço da Europa ocidental. Bem distinta é a posição assumida por E. Dussel (2000, p. 29-30)DUSSEL, E. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 24-33., W. Mignolo (2010, p. 18)MIGNOLO, W. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2010. e Anibal Quijano (2000, p. 201-246)QUIJANO, A. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201-246., ao insistirem no fato de que a conquista e exploração violentas do “novo” continente americano não apenas precede historicamente a constituição da Europa, mas é conditio sine qua non de sua própria constituição e de imposição como protagonista do primeiro padrão de poder internacional: capitalista, colonial, eurocêntrico, racista, patriarcal. Mignolo chega a dizer que a colonialidade se apresenta como “o lado mais escuro da modernidade” (MIGNOLO, 2017MIGNOLO, W. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 32, n. 94, p. 1-18, junho 2017.). E Carlos Walter Porto Gonçalves afirma contundentemente: “sem o ouro e a prata da América, sem a ocupação de suas terras para as plantações de cana-de-açúcar, de café, de tabaco e de tantas outras espécies, sem a exploração do trabalho indígena e escravo, a Europa não seria nem moderna nem centro do mundo” (PORTO GONÇALVES, 2003PORTO GONÇALVES, C.W. Geografando nos varadouros do mundo. Brasília: Ibama, 2003., p. 168).
  • 3
    Testemunhamos, nos dias que correm, um fenômeno chamado “neo-cartesianismo high-tech”, no qual o clássico dualismo corpo/alma se manifestaria agora na oposição hardware-software. Situamo-nos no interior das discussões em torno da “inteligência artificial” e seus derivados: processo de upload da mente humana mediante a transmissão de dados do cérebro humano para máquinas, a imortalidade da mente graças à sua hibridação com o software, etc... Discussões essas que se inserem no interessante capítulo da tecnociência contemporânea, dedicado ao mundo “pós-humano”, “pós-biológico” ou “pós-orgânico” (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.; FUKUYAMA, 2003FUKUYAMA, F. Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.; NEUTZLING; ANDRADE, 2009NEUTZLING, I.; ANDRDADE, P.F.C. Uma sociedade pós-humana: possibilidades e limites das nanotecnologias. São Leopoldo: Unisinos, 2009.).
  • 4
    A tal propósito, remetemos o leitor às instigantes reflexões do sociólogo peruano, Aníbal Quijano, acerca do que ele chama de “invenção da ideia de raça” (QUIJANO, 2000QUIJANO, A. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER, E. (Ed.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201-246., p. 201-246; 2007QUIJANO, A. “Colonialidad del poder y clasificación social”. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Eds.). El giro decolonial: Reflexiones para uma diversidade epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p. 93-126., p. 93-126).
  • 5
    Entre os séculos XVI-XVII, a doutrina da lei ou do direito natural se vê às voltas com desafios oriundos da ocupação e intensa exploração de corpos e territórios de “novos continentes” por parte das monarquias europeias. O que se encontra em jogo é a tensão entre a assim chamada “visão cristã do mundo” – identificada até então com a síntese elaborada por Tomás de Aquino entre lex evangelii e ética aristotélica – e as tradições dos povos conquistados. O desafio a partir de então será “inventar” a Natureza – daí a razão de se falar em “transcendência da Natureza” (Chauí) – como base moral vinculante com evidência e validade universais. É nesse contexto específico da colonização do “novo mundo” por obra do “velho mundo cristão” que, primeiro, teólogos da Segunda Escolástica como, por exemplo, Francisco de Vitória, Luis de Molina, Gabriel Vásquez e Francisco Suárez e, depois, juristas como Grotius e Pufendorf, se vêm às voltas com a urgência e necessidade de formular uma ética com abrangência, evidência e validade universais. É nesse contexto que aparece, por primeira vez, a expressão que, mais tarde, tornou-se clássica, a saber: “etsi deus non daretur” [“ainda que Deus não existisse”] (HONNEFELDER, 2010HONNEFELDER, L. A Lei Natural de Tomás de Aquino como princípio da razão prática e a segunda Escolástica. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 40, n. 3, p. 324-337, set./dez. 2010., p. 324-337).
  • 6
    E. Voegelin concebe a modernidade como fruto do processo de “Imanentização”, posto que teria ocorrido uma “inserção definitiva da transcendentalidade” na imanência. E, por essa razão, o termo “imanentização” quer justamente ressaltar o fato de que o peso da transcendência “factícia” teria esmagado quase por completo a imanência e, consequentemente, sua inerente materialidade. Segundo ele, teria se tratado de uma “imanentização errônea”, na medida em que, nessa específica relação entre ser humano e mundo, sua materialidade constitutiva desaparece para dar lugar apenas a um mundo imanentizado. E o resultado seria um fenômeno paradoxal descrito como um caso de “matéria indevidamente espiritualizada” ou de “transcendência mal situada” (VOEGELIN, 1979VOEGELIN, E. A nova ciência da política. Brasília: Editora da Unb, 1979.). A originalidade da posição de Voegelin reside na afirmação de que os modernos foram, na verdade, “imanentizados”, uma vez que se imbuíram da pretensão de realizar plenamente “aqui-em-baixo” a promessa escatológica cujo cumprimento estaria reservado ao “além”. Sucumbiram, portanto, à tentação falaciosa de reduzir o mundo presente a uma tentativa desajustada do transcendente se encolher para caber dentro de seus estreitos limites. A este propósito, comenta Latour: “Mas, para aqueles que imanentizaram o Céu, não há mais Terra acessível. [...] se os Modernos perdem o mundo, isso ocorre não por excesso de materialismo, mas por uma overdose de transcendência mal situada... [...] não era necessário trazer o Céu para a Terra, mas sim, em primeiro lugar, ocuparmo-nos, graças aos Céus, da Terra” (2020bLATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020b., p. 314-315; 382).
  • 7
    Conviria, aqui, distinguir o que, seguindo Latour, chamamos de “Estado da Natureza” do que Hobbes chamava de “estado de natureza” em equivocada referência aos povos originários do novo continente americano (LATOUR, 2019LATOUR, B. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2019., p. 354-356).
  • 8
    Impossível não ver aqui uma alusão implícita a quanto sustentado por Kant no tocante ao direito privado, responsável pela oficialização jurídica da existência de “pessoas” e “coisas” apenas. Segundo ele, tão somente o ser humano existe “por amor a si mesmo”. Todo o resto existe apenas por causa dele e em função dele. O sentido das demais “coisas” reside propriamente no seu estar à disposição do ser humano. Essa rígida divisão, aparentemente clara e distinta, tem se constituído em uma das fatalidades do paradigma civilizacional moderno/colonial.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2022
  • Aceito
    14 Jul 2022
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